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Francisco Vieira Lima Neto Gilberto Fachetti Silvestre (organizadores) Direito Probatório questões materiais e processuais Alexandre Pezzin Passos Ana Beatriz Costa da Graça de Araujo Ana Julia Dias Batista André Soares de Azevedo Branco Anselmo Bacelar Beatriz Carvalho Clímaco Bernardo Dias Lopes Nunes Bruna Figueira Marchiori Caio da Silva Ávila Eduardo Figueiredo Simões Felipe Sardenberg Guimarães Trés Henriques Flávio Cheim Jorge Francisco Vieira Lima Neto Gabriel Pereira Garcia Gabriela Azeredo Gusella Gilberto Fachetti Silvestre Guilherme Santos Neves Abelha Rodrigues Igor Gava Mareto Calil Isabela Loss Lopes Iúri Barcellos Cardoso João Antonio Schmith Barcellos João Victor Pereira Castello João Vitor dos Santos de Souza Júlia D’Amato Nitz Lara Abreu Assef Mariana Fernandes Beliqui Mariany de Souza Manga Matheus Campos Pompermayer Vieira Pedro Lube Sperandio Sandro Bortoluzzi Madeira Lamêgo Rodrigues Tiago Loss Ferreira Edição dos Organizadores Vitória – ES, 2022 ISBN: 978-65-00-37529-9 Título: Direito Probatório: questões materiais e processuais Formato: Livro Digital Capa: Canva Veiculação: Digital Vitoria – ES – 2022 LIMA NETO, Francisco Vieira; SILVESTRE, Gilberto Fachetti (Orgs.). Direito probatório: questões materiais e processuais. Vitória: Edição dos Organizadores, 2022, 364 p. ISBN: 978-65-00-37529-9. Os organizadores Francisco Vieira Lima Neto Professor Titular da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP); Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Procurador Federal. Lattes iD: http://lattes.cnpq.br/2462674053106950. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-4676- 763X. E-mail: limaneto@terra.com.br. Gilberto Fachetti Silvestre Professor do Departamento de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Pós-Doutorado em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Pós-Doutorado em Direito pela Școala Doctorală da Facultatea de Drept da Universitatea „Alexandru Ioan Cuza” din Iași, Romênia; Pós-Doutorado em Educação pelo Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Coordenador do Grupo de Pesquisa “Desafios do Processo”; Advogado. Lattes iD: http://lattes.cnpq.br/7148335865348409. Orcid iD: http://orcid.org/0000-0003-3604-7348. E-mail: gilberto.silvestre@ufes.br. Sumário Apresentação Francisco Vieira Lima Neto Gilberto Fachetti Silvestre...............................................................................................9 1. Noções introdutórias sobre prova Gabriela Azeredo Gusella Ana Julia Dias Batista......................................................................................................10 2. Princípios do direito probatório Guilherme Santos Neves Abelha Rodrigues..................................................................16 3. Princípio dispositivo vs. princípio inquisitório Guilherme Santos Neves Abelha Rodrigues Igor Gava Mareto Calil Lara Abreu Assef.............................................................................................................19 4. A boa-fé e a decisão fundamentada: uma sistematização principiológica da teoria das provas Anselmo Bacelar.............................................................................................................24 5. Prova e verdade Gilberto Fachetti Silvestre.............................................................................................40 6. Res ipsa loquitur e clear and convincing proof ou clear and convincing evidence (more probable than not) Gilberto Fachetti Silvestre.............................................................................................45 7. Resenha crítica do artigo “La verdad de los hechos como conditio sine qua non de una decisión judicial justa en el pensamento de Michele Taruffo”, de Belén Ureña Carazo André Soares de Azevedo Branco.................................................................................49 8. A teoria da verossimilhança preponderante no ordenamento jurídico brasileiro André Soares de Azevedo Branco Flávio Cheim Jorge Mariana Fernandes Beliqui............................................................................................53 9. Eventualidade e provas Guilherme Santos Neves Abelha Rodrigues.................................................................66 10. Iudex iudicare debet secundum allegata et probata non secundum conscientia Gilberto Fachetti Silvestre..............................................................................................72 11. Nemo tenetur se detegere: o direito de não produzir provas contra si mesmo Tiago Loss Ferreira.........................................................................................................75 12. O direito ao silêncio e sua extensão no ordenamento jurídico brasileiro Bernardo Dias Lopes Nunes Júlia D’Amato Nitz..........................................................................................................82 13. O encargo probandi: funções e dinamização do ônus da prova Eduardo Figueiredo Simões Iúri Barcellos Cardoso....................................................................................................89 14. Ônus da prova: conceito, dinamização e convenção processual Matheus Campos Pompermayer Vieira.......................................................................108 15. A distribuição dinâmica do ônus probatório na esfera processual trabalhista Eduardo Figueiredo Simões..........................................................................................117 16. Meios e fontes de prova Caio da Silva Ávila..........................................................................................................125 17. Confissão André Soares de Azevedo Branco................................................................................130 18. Depoimento pessoal André Soares de Azevedo Branco................................................................................136 19. Prova documental André Soares de Azevedo Branco................................................................................145 20. Prova pericial, prova científica e inspeção judicial Lara Abreu Assef...........................................................................................................154 21. Prova testemunhal André Soares de Azevedo Branco................................................................................160 22. Prova neurocientífica Anselmo Bacelar Bruna Figueira Marchiori..............................................................................................169 23. Prova emprestada João Antonio Schmith Barcellos João Vitor dos Santos de Souza Mariany de Souza Manga..............................................................................................173 24. Prova emprestada e prova compartilhada: mecanismos de proteção e garantia do contraditório Lara Abreu Assef...........................................................................................................183 25. Ata notarial como meio de prova João Victor Pereira Castello.........................................................................................189 26. A prova ilícita no processo civil Bruna Figueira Marchiori Matheus Campos Pompermayer Vieira.......................................................................196caso seja demandada antecipação de custas, podem simplesmente afastá-la da jurisdição e solução do seu problema, de modo que atinge consideravelmente este intervalo. a2: Visto que este elemento trata única e exclusivamente da prova documental, em nada afeta a escala, não devendo influenciar em nada a quantificação de pertencimento. É critério irrelevante para nesta prova estabelecer eventual alteração na dinâmica probatória. 33 Resultado: tendo um argumento magno para elevar a escala para próximo de 1 deve o juiz atuar neste aspecto para solucionar o problema de equilíbrio processual probatório ii) prova documental 0 a2 1 a1: Irrelevante para esta escala, visto que a prova processual seria inacessível, independentemente da condição econômica do autor. Não deve ser sopesado pelo juiz. a2: É extremamente relevante, visto que sendo uma prova impossível de produzir pelo autor e essencial para o processo deve ter peso significativo nesta escala. A inversão do ônus da prova aparece como solução adequada dado que a situação das partes não está equilibrada e o réu não deveria poder se beneficiar da “inércia” probatória que o art. 373 do CPC/15 o dá. É caso de aplicar o §1º do referido artigo para efetivar a boa-fé no processo na busca da verdade provável. Resultado: tendo um argumento significante para elevar a escala para próximo de 1 deve o juiz atuar neste aspecto para solucionar o problema de equilíbrio processual probatório Resultado da análise das duas escalas: Para cada prova um argumento serviu para modificar a dinâmica probatória, porém, restou visível que a análise não pode ser simplória juntando todos os argumentos e provas em uma só observação. Em cada caso um dos argumentos foi relevante e o outro irrelevante, podendo ser este um exemplo de diversas outras situações cotidianas da prática forense, inclusive com argumentos para o réu que deixassem o intervalo mais próximo de 0, apesar da existência de argumentos favoráveis ao autor, e, por isso, o estudo dos princípios e das normas fundamentais do processo, bem como de demais institutos do direito, a exemplo do favor deboli, são essenciais para tornar esta ferramenta útil. Deve então o juiz valorar todos os argumentos e somá-los a fim de encontrar o valor deste intervalo, estabelecendo valores negativos para os que julga que devem aproximar do 0 (manutenção do processo em como está) e positivo para os que devem levar ao 1 (alteração da dinâmica probatória), desconsiderando os que entende não afetar aquele intervalo (prova) em si, de modo que: a1+a2+a3+a4+...+an. É importante ressaltar que a lógica fuzzy por si só nada faz pelo direito, mas o uso dela com o arcabouço teórico e de julgados pode ofertar um melhor estabelecimento de critérios objetivos para o intérprete legal no estabelecimento da dinâmica das 34 provas (art. 373, §1§, CPC/15), usando a boa-fé como norte em suas funções integrativas e interpretativas. Transformar o direito em matemática parece pouco prático, viável e profícuo, porém, a utilização de elementos desta ciência em conjunto com os institutos e princípios jurídicos podem trazer frutos substancialmente interessantes para a concretização de direitos e perspectivas das normas gerais processuais, especialmente no que tange à prova. Este trabalho não preconiza a matematização do direito, mas busca sistematizar a boa-fé na Teoria das Provas encontrando ferramentas que viabilizem a aplicação dos princípios, normas fundamentais e os outros citados institutos jurídicos em prol dos objetivos elencados nos artigos do Capítulo I do Livro I do CPC/15, constituindo maior racionalização do agir do magistrado no processo, no manejo das provas e na dinâmica do ônus probandi. Em segunda repercussão tem-se o art. 77, III do CPC/15 que preceitua a não produção de provas desnecessárias ao processo, com o fim de evitar o atraso processual exagerado. Como visto nas normas fundamentais do CPC/15 (art. 4º), objetiva-se a tutela em tempo razoável, e a boa-fé tem efeitos de abstenção na conduta das partes, buscando um um agir de lealdade com a outra parte e com o processo, regendo que a não produção do que não é necessário se torna positivo quando almejada a celeridade processual, levando em conta que os atos a serem praticados são irrelevantes ao processo. É um dever de agir somente praticando os atos probatórios necessários à sua defesa. Cabe destacar ainda a relevância do art. 139, III, CPC. O descumprimento deste preceito pode gerar sanções processuais para as partes e/ou procuradores que não seguiram a probidade processual na produção probatória no decorrer do feito. (NERY JUNIOR; NERY, 2018, p. 485) Em terceira e última via exemplificada neste trabalho tem-se o direito de ampla produção de provas no processo. A prova é algo que beneficia a todos, visto que o objetivo deste é o alcance da verdade mais provável, sendo a prova um dos caminhos para tanto. Assim, a ampla produção de provas e a noção desta como algo que não é particular daquele que produziu parte como uma expressão desta cooperação entre as partes na produção probatória no processo. (ABELHA, 2016, p. 209-210; 540-541) Destaca-se que apesar de uma aparência contradição em uma regra de limitação de produção de provas e outra de um direito de ampla produção, esta é de fato apenas aparente. Se dá pois a regra de limitação serve apenas aos casos desnecessários e, como descrito, o que preconiza é o agir somente praticando os atos que efetivamente auxiliem em sua defesa. Em complemento a tal regra apresenta-se a de ampla produção: em tudo aquilo o que for auxiliar deve ser produzido, visando a máxima aproximação da verdade provável. A regra de limitação serve tão somente para evitar demora dispensável, obstando provas ilegítimas e desnecessárias, considerando a celeridade processual, norma fundamental do processo, conquanto não signifique que vá limitar a produção daquilo que for essencial para a defesa das 35 partes e do alcance da verdade provável, o que deve ser promovido no processo. (DINAMARCO, 2019, p. 51-54) É possível, portanto, concluir portanto que a boa-fé incide nas provas de diversas maneiras, interferindo em necessidades de abstenções das partes, direitos e deveres do juiz em manejar a dinâmica probatória, estipulando o ônus no caso a caso. O objetivo foi traçar os parâmetros possíveis dessa incidência e critérios práticos de sua aplicação, para compreensão de quando e como coordenar a boa-fé em uma Teoria das Provas no direito processual civil. 4. O dever de decisão fundamentada ante a principiologia da teoria das provas Os deveres de motivação de sentença e decisão encontram-se previstos no art. 489 do CPC/15, no caput e inciso II para o primeiro caso e no §1º para o segundo, bem como pode ser visto no art. 93, inciso IX da Constituição Federal. Ante estes dispositivos, a motivação das decisões é verdadeira obrigação dos magistrados, seja em sentenças, acórdãos, decisões monocráticas ou em decisões interlocutórias. O perigo de uma decisão não fundamentada é justamente derrubar toda a estruturação do processo nas normas fundamentais e princípios, tolhendo-o de seu contraditório e ampla defesa tão simplesmente por ignorar a participação das partes, além de criar verdadeira insegurança jurídica pelas incertezas das razões de decidir. É o dever que busca garantir o devido processo legal e todas as demais garantias corolárias a este. (DE LUCCA, 2019, p. 205-206) A decisão fundamentada é a conexão entre todos os elementos citados acima. Sem esta de nada serviria a prova apresentada pelas partes e o processo perderia propriamente sua razão de ser. Este deve consistir em: “El proceso es una relación jurídica continuativa,consistente en un método de debate con análogas posibilidades de defensa y de prueba para ambas partes, mediante el cual se asegura una justa decisión susceptible de cosa juzgada” (COUTURE, 1958, p. 42). Portanto, para observar esta justa decisão e processo adequado a sentença e decisões devem observar a dialógica e dialética do processo3, fundamentando qualquer ato decisório do juiz, sob pena, como dito, de perder a razão de ser das provas e do contraditório no processo. Antes de adentrar na análise da sentença há de se observar uma decisão essencial relativa às provas, que ocorre o ínterim do processo: a decisão que determina a dinâmica probatória do processo. Observando a argumentação deste trabalho, que 3 “A decisão judicial é, a um só tempo, o resultado de um processo argumentativo e a causa eficiente desse resultado, assim como são causas eficientes os argumentos apresentados pelas partes. Isso porque, além de processar os argumentos oferecidos pelas partes e incorporá-los à decisão, o julgador pode oferecer argumentos novos ou uma nova leitura dos argumentos oferecidos pelas partes”. (NETO, 2019, p. 305) 36 busca critérios de racionalização para esta decisão, é mister também tratar propriamente a fundamentação desta distribuição das cargas de produção de prova. Visto que o processo de verificar a situação de ônus probandi é uma situação complexa e com diversas variáveis para cada prova é fundamental que o magistrado demonstre na decisão os fundamentos que justificaram a alteração ou manutenção do ônus, trabalhando com a dialógica e dialética em relação aos argumentos aduzidos pelas partes. Somente assim o processo estará efetivamente saneado e as partes terão efetiva compreensão do motivo de terem as incumbências que possuem. Isto parte propriamente do dever de esclarecimento derivado da boa-fé processual, além de ser disposição legal cediça. Já observando as sentenças estas igualmente devem ser fundamentadas observando todas as provas produzidas no processo, independentemente de quem as produziu, considerando o princípio da comunhão das provas. O magistrado não pode ignorar as provas em seu convencimento, devendo justificar casos em que as afasta de suas razões de convicção, especialmente considerando a existência da previsão da prova legal no CPC/15, dado o fato que determinadas situações só podem ser comprovadas por via probatório, obrigando o juiz a passar por esta modalidade, ainda que seja para desqualificá-la. (ABELHA, 2016, p. 562-563) Portanto, para ver existente o devido processo legal, o juiz tem verdadeiro dever jurídico, previsto constitucionalmente, voltado para estabelecer limites de seu exercício e impor que exerça seu papel visando o bem comum e perspectivas das normas fundamentais do processo. (DINAMARCO, 2019, p. 238) Na sentença, a valoração das provas e as razões de decidir devem ser claras. Conforme Arruda Alvim e Clarissa Diniz Guedes: As partes – e a sociedade – têm direito à prova em contraditório também no sentido valorativo, o que significa dizer que este direito não se resume à possibilidade de propor e produzir os meios de prova, mas também está relacionado com a valoração justa, fundamentada e lógica dos elementos probatórios. Valorados estes elementos, a análise fática deverá levá-los em consideração, indicando o juiz a razão do acolhimento de alguns em detrimento de outros. (ALVIM; GUEDES, 2020, p. 21) Em complemento, aponta Sérgio Luís Wetzel de Mattos: Em síntese: o direito fundamental ao devido processo legal deve ser concebido como direito fundamental a um processo justo, vale dizer, como direito a um processo legal e informado por direitos 37 fundamentais, realizado em clima de boa-fé e lealdade de todos aqueles que dele participam. adequado ao direito material e às exigências do caso concreto, e, enfim, voltado para a obtenção de uma proteção judicial efetiva. (DE MATOS, 2009, p. 201) É, portanto, claro o papel da decisão fundamentada: é o elo dos princípios e normas fundamentais do processo civil. Sem este elemento de nada bastaria o agir correto das partes em trazer as provas e pouco ajudaria uma decisão estipulando uma dinâmica do ônus da prova se esta não respeitasse a devida fundamentação. Esta não estaria clara para as partes e não estaria respeitando a própria argumentação que requereu a mudança ou manutenção do ônus. Sem efetivamente ouvir as partes inexiste a boa-fé no processo e cai por terra toda a sugestão de sistematização e racionalização de um procedimento e teoria de provas que aqui se tentou fazer. É necessária a dialética e dialógica entre magistrado e partes para que primeiro o ônus fique claro e justo e depois as provas sejam produzidas e efetivamente consigam impactar na decisão do juiz, possibilitando assim um processo que se enquadre em todos os termos no denominado due process of law. 5. Conclusões Verifica-se portanto que a boa-fé, advinda do direito civil, de fato está presente no processo civil e igualmente no direito probatório. Esta presença cria uma série de regras de conduta para as partes e para o juiz, estabelecendo um como agir antes, durante e após a produção das provas. Para a produção das provas, propôs-se uma sistematização de regramentos para a modificação da dinâmica do ônus da prova, estipulando uma racionalidade do magistrado baseado na boa-fé e na análise argumentativa das partes comparando tais argumentos a cada prova que se pretende alterar o ônus e estabelecendo a relevância de cada argumento para alterar o status quo probandi do processo. Concluiu-se, por fim, que sem a motivação de todas as decisões do magistrado a essência de toda a propositura perde o sentido visto que as partes perdem seu norte no tangente às provas e ao próprio processo, visto que em decisão sobre o ônus pode esta não ser clara ou ser de convencimento insuficiente e, na sentença, ao não avaliar todos os argumentos e provas trazidos pelas partes, será simplesmente insatisfatória, gerando recursos e não trazendo o que busca o processo, que é a tutela justa, efetiva e célere. 6. Referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012. 38 ABELHA, Marcelo. Manual de Direito Processual Civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. ÁVILA, Humberto. O que é “devido processo legal”. Revista de processo. v. 163. set. 2008. p. 50-59. CARNELUTTI, Francesco. Instituciones de Proceso Civil. v. 1. 4. ed. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1950. COUTURE, Eduardo. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. 3. ed. Buenos Aires: Roque de Palma Editor, 1958. DALL’AGNOL JUNIOR, Antonio Janyr. Distribuição dinâmica dos ônus probatórios. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 788, n. 92, 2001. DE AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Proteção da boa-fé subjetiva. Revista da AJURIS, v. 39, n. 126, p. 187-234, 2012. DE AZEVEDO, Antonio Junqueira. A boa-fé na formação dos contratos. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 87, p. 79-90, 1992. DE LUCCA, Rodrigo Ramina. O dever de motivação das decisões judiciais. Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2019. DE MATTOS, Sérgio Luís Wetzel. Devido processo legal e proteção de direitos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. DIDIER JUNIOR, Fredie. Multa coercitiva, boa-fé processual e supressio: aplicação do duty to mitigate the loss no processo civil. Revista de Processo. v. 171/2009. mai/2009. pp. 35-48. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. v. 1. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2020. ______. Instituições de Direito Processual Civil. v. 2. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2019. ______. Instituições deDireito Processual Civil. v. 3. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2019. DINAMARCO, Cândido Rangel. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. LOPES, Bruno Vasconcellos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2020. D’OTTAVIANO, Ítala Maria Loffredo; FEITOSA, Hércules de Araújo. Sobre a história da lógica, a lógica clássica e o surgimento das lógicas não clássicas. 2009. LARROCAU TORRES, Jorge. Acciones reales y estándares de prueba. In: Revista Ius et Praxis, Talca, Año 21, No 2, 2015, pp. 109-160. LINS, Arthur Orlando. A primazia do julgamento de mérito no processo civil brasileiro. Fundamentos concretização e limites dogmáticos. Salvador: JusPodivm, 2019. 39 MARCONI, Marina de Andrade. LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos da Metodologia Científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003. MARRO, Alessandro Assi. SOUZA, Alyson Matheus de Carvalho. CAVALCANTE, Everton de Sousa. BEZERRA, Giuliana Silva. NUNES, Rômulo de Oliveira. Lógica fuzzy: conceitos e aplicações. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), 2010. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé como modelo (uma aplicação da Teoria dos Modelos, de Miguel Reale). Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito– PPGDir./UFRGS, v. 2, n. 4, 2004. MITIDIERO, Daniel. Processo justo, colaboração e ônus da prova. 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Derecho PUCP, n. 82, p. 35-59, 2019. 40 Prova e verdade Gilberto Fachetti Silvestre Professor do Departamento de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Pós-Doutorado em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Pós-Doutorado em Direito pela Școala Doctorală da Facultatea de Drept da Universitatea „Alexandru Ioan Cuza” din Iași, Romênia; Pós-Doutorado em Educação pelo Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Coordenador do Grupo de Pesquisa “Desafios do Processo”; Advogado. Lattes iD: http://lattes.cnpq.br/7148335865348409. Orcid iD: http://orcid.org/0000-0003-3604-7348. E-mail: gilberto.silvestre@ufes.br. Como consequência do reconhecimento do método abdutivo de valoração das provas, tem-se que a análise do raciocínio judicial permite constatar a superação da dicotomia entre verdade real X verdade formal, para dar relevância a uma verdade provável no âmbito do processo civil, baseada num juízo de probabilidade. Sobre a dicotomia entre verdade formal e verdade material, Carreira Alvim (2007, p. 279-280) assim escreve: O juiz, tendo por ofício aplicar a lei ao caso concreto, precisa saber da verdade; persegue a verdade dos fatos. A verdade, no processo, costuma ser considerada pela doutrina sob um duplo aspecto: formal e material. Chama-se verdade formal aquela que resulta do processo, embora possa não encontrar exata correspondência com a realidade. Assim, prescreve o art. 302 do CPC que ‘presumem-se verdadeiros os fatos não impugnados’. Deixando de impugnar determinado fato, este se torna incontroverso, e a parte que deveria prová-lo fica isenta do ônus da prova. Se o autor afirmou que o fato ocorreu num dia chuvoso, e o réu deixa de negar esta circunstância, não importa que, na realidade, naquele dia, o sol tenha secado os rios (Lopes da Costa). Por outro lado, chama-se verdade material aquela a que chega o julgador, reveladora dos fatos tal como ocorreram historicamente e não como querem as partes que tenham ocorrido. 41 Como adverte Rosito (2007, p. 21), a investigação judiciária adotando por excelência o método abdutivo, “não partindo da certeza do fato, mas somente do resultado conhecido, não se pode conceber outra coisa a não ser que a investigação judiciária adota o método abdutivo, visando a remontar a causa que o produziu. Dessa forma, a construção representa o resultado de uma série de inferências abdutivas, que, combinadas entre si, contribuem para a formação de uma hipótese provável, com caráter propriamente inventivo e de descoberta”. Trata-se da chamada verdade histórica, definida por Mittermaier (1959, p. 79) como “aquela que procuramos obter sempre que queremos nos assegurar da realidade de certos acontecimentos, de certos fatos realizados no tempo e no espaço”. No processo é suficiente a formulação da convicção com base em um juízo de probabilidade ou verossimilhança, obtido a partir da reconstrução dos fatos. E aí se encontra, mais uma vez, a experiência humana como determinante para a construção racional dessa “verdade provável”, como destaca Lebre de Freitas (2006, p. 175): No âmbito do princípio da livre apreciação da prova, não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma absoluta certeza, raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verossimilhança, que o necessário recurso às presunções judiciais (arts. 349 e 351 CC) por natureza implica, mas que não dispensa a máxima investigação para atingir, nesse juízo, o máximo de segurança. É preciso compreender que esse método reconstrutivo, empregado no raciocínio do juiz, não segue um catálogo de regras jurídicas. O juiz é livre para formar seu convencimento, analisando as provas e as probabilidades. Ao valorar os fatos, o juiz não é guiado por um catálogo de normas que possam instruir como deve raciocinar. De acordo com Couture (1969, p. 272): “El juez, nos permitimos insistir, no es una máquina de razonar, sino, esencialmente, un hombre que toma conocimiento del mundo que le rodea y le conoce a través de sus procesos sensibles e intelectuales. La sana crítica es, además de lógica, la correcta apreciación de ciertas proposiciones de experiencia de que todo hombre se sirve de la vida”. Isso significa que o juiz formula sua convicção sob fatores ou pré-conceitos de caráter supra-legal, originados da experiência vivencial e cultural do meio em que vive, quais sejam, as máximas de experiência. Mittermaier (1959, p. 83-86), por exemplo, reconhece o papel da experiência na averiguação da verdade. Segundo escreve, ao averiguar a verdade, o juiz ou o intérprete, se subordinam a certas regras decisivas; seguem vias que são traçadas pela razão e pela experiência. Quando o entendimento sobre os fatos é tido por 42 verdadeiro, apoiando-se em motivos sólidos, forma-se a chamada convicção. A convicção se torna certeza a partir do momento em que todos os motivos contrários são afastados e as hipóteses se confirmam. Mas, para que haja certeza, é preciso atender às seguintes condições essenciais, assim enumeradas (MITTERMAIER, 1959, p. 86): Existência de um conjunto de motivos creditados pela razão e pela experiência para servir de base à convicção. Veja o papel da experiência (expressa nas máximas ou regras de experiência) para confirmaras impressões históricas que constituem a base da convicção judicial; A convicção deve ser precedida de um esforço imparcial, profundo, que separe os meios que tendam a fazer admitir uma solução contrária; Não existirá certeza até serem afastados todos os motivos dos resultantes dos autos que deem um resultado positivamente contrário aos demais motivos subministrados; O entendimento não poderá olvidar as circunstâncias simplesmente imaginárias, desde que existam indícios na causa que estabeleçam uma probabilidade ainda que distante de negar os motivos sobre os quais se baseiam a convicção histórica. Entretanto, Mittermaier (1959, p. 87-88) conclui que a certeza não existe, vez que se exime do vício da imperfeição humana, e que sempre o contrário pode ser suposto em relação àquilo que se admite como verdadeiro. O que existe, então, é uma certeza razoável: En efecto: en cualquier caso puede imaginarse tal combinación extraordinaria de circunstancias, que venga a destruir la certeza adquirida. Pero a pesar de esta combinación posible, no dejará de quedar satisfecho el entendimiento cuando motivos suficientes estableciesen la certeza, cuando todas las hipótesis razonables hubiesen desaparecido o sido rechazadas después de un maduro examen: el Juez entonces creerá ciertamente estar en posesión de la verdad, único objeto de sus investigaciones. Además, el legislador ha querido que en esta certeza razonable estuviese la base de la sentencia. Pretender más, sería querer lo imposible, porque no puede obtenerse la verdad absoluta en aquellos hechos que salen del dominio de la verdad histórica. Si la legislación rehusara sistemáticamente admitir la certeza siempre que pudiera imaginarse una hipótesis contraria, se verían quedar impunes los mayores culpables, y, por consiguiente, la anarquía se introduciría fatalmente en la sociedad. 43 Por tais razões, trata Mittermaier (1959, p. 88-89) de distinguir entre certeza e probabilidade. Esta última existe quando a razão, apoiando-se em motivos consistentes, tem por verdadeiro um fato, mas, no entanto, ainda há motivos com o poder de negar a verdade desse fato, que não desaparecem completamente da base circunstancial da situação: Resulta la probabilidad, o de que las pruebas que debieran por sí mismas establecer la verdad no se presentan por sí mismas establecer la verdad no se presentan a primera vista con las condiciones necesarias, o de que, en oposición a los motivos suministrados por ella, existen otros también, muy fundados, en sentido contrario, o de que la convicción no descansa sino en ciertos datos, que a pesar de su reunión, no son todavía bastante poderosos para producir la certeza. En ninguno de estos casos puede tomarse la probabilidad por base de una condena, porque siempre queda lugar a la duda, y la conciencia no puede quedar satisfecha de tal modo que parezca haberse desvanecido la posibilidad de lo contrario. En cambio, la probabilidad recobra toda su importancia en el curso del proceso, dirige la instrucción y autoriza plenamente, las graves medidas que es necesario tomar. Sabido es, en efecto, que el procedimiento de inquisición sigue una marcha mesurada y concienzuda, y que, para agravar la suerte del acusado con nuevos rigores, es, ante todo, preciso que éstos se justifiquen por el resultado de la información que precede. Por eso nunca se decreta la prisión sin que existan graves presunciones; por eso, para pasar a la información especial o principal, es preciso que el punto de hecho aparezca fundado, por lo menos, en grandes probabilidades, y que se alcen terribles cargos contra el acusado. Sólo, pues, la probabilidad existente puede poner al Juez en movimiento dentro de los límites de sus atribuciones, y ella sola aparece a menudo en el curso del proceso. Gradúase también según su valor; así, cuanto más numerosos y dirimentes son los motivos de la afirmativa, menor es la influencia de los motivos en contrario. Citemos, para concluir, un ejemplo: un solo testigo que venga a corroborar muchos indicios del cargo, da mucha más fuerza a la probabilidad que si prestara solamente una declaración desnuda, aislada, o si los objetos robados que se encontrasen en poder del acusado depusieran por sí solos contra él. Como a certeza não é possível de ser alcançada pela inteligência humana, a probabilidade, segundo Mittermaier (1959, p. 88-89), recobra sua importância no 44 curso do processo, dirigindo a instrução e autorizando plenamente as medidas necessárias de serem tomadas. Referências bibliográficas. CARREIRA ALVIM, J. E. Teoria geral do processo. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. COUTINHO, Jair Pereira. Verdade e colaboração no processo civil (ou a prova e os deveres dos sujeitos processuais). In AMARAL, Guilherme Rizzo; CARPENA, Márcio Louzada (Coords.). Visões críticas do processo civil brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 3ª ed. Buenos Aires: Depalma, 1969. FREITAS, José Lebre de. Introdução ao processo civil: conceito e princípios. 2ª ed. Coimbra: Coimbra, 2006. MITTERMAIER, C. J. A. Tratado de la prueba en materia criminal o exposición comparada de los principios en materia criminal y de sus diversas aplicaciones en Alemania, Francia, Inglaterra, etc. 9ª edición. Madrid: Reus, 1959. ROSITO, Francisco. Direito probatório: as máximas da experiência em juízo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. 45 Res ipsa loquitur e clear and convincing proof ou clear and convincing evidence (more probable than not) Gilberto Fachetti Silvestre Professor do Departamento de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Pós-Doutorado em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Pós-Doutorado em Direito pela Școala Doctorală da Facultatea de Drept da Universitatea „Alexandru Ioan Cuza” din Iași, Romênia; Pós-Doutorado em Educação pelo Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Coordenador do Grupo de Pesquisa “Desafios do Processo”; Advogado. Lattes iD: http://lattes.cnpq.br/7148335865348409. Orcid iD: http://orcid.org/0000-0003-3604-7348. E-mail: gilberto.silvestre@ufes.br. Res ipsa loquitur (ou “a coisa fala por si”) é uma teoria com origens no Common Law que entende que na falta de provas, as evidências e as circunstâncias da lesão sofrido indicam quem foi o agente violador do dever. Por exemplo, alguém é encontrado com a perna mutilada após um acidente de trem: considera-se evidente que tal dano físico decorreu do sinistro. Outro exemplo: o paciente que falece em uma cirurgia já apresentava estado de saúde debilitado, de modo ser difícil ter havido erro médico. O clear and convincing proof or evidence (prova ou evidência clara e convincente) — às vezes nomeado more probable than not (muito mais provável que não) —, serve para o juiz decidir quando a parte não tem como produzir os meios de prova admitidos em direito. A res ipsa loquitur e o more probable than not constituem meios para a probatio levior; logo, devem ser aplicados nas situações de probatio diabolica, quais sejam: quando a prova é impossível ou difícil de ser produzida. Sobre a teoria do more probable than not, Max Kennerly (2007) assim descreve sua aplicação no Common Law: To establish causation, a tort plaintiff must show that it is “more probable than not” that the harm would not have occurred if the defendant had followed the relevant standard of care. Statistical evidence, based on aggregatedata, is sometimes introduced to show that the defendant’s conduct created a statistically significant increase in the likelihood that the harm would occur. But there is a 46 serious problem with the use of such evidence: It does not establish that in the particular case, the injury was more likely than not to have occurred because the defendant behaved negligently. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), na decisão monocrática do Agravo em Recurso Especial nº 1.793.930/DF, o res ipsa loquitur e o more probable than not foram utilizados para solucionar um problema de provas envolvendo erro médico. Na decisão, constam as seguintes definições: [...]. 7. Há situações processuais em que são aplicáveis standars probatórios da matriz jurídica anglo-saxônica. O clear and convincing proof ou clear and convincing evidence (prova clara e convincente), também conhecido como much-more-likely-than-not (muito mais provável do que não), são instrumentos de fundamentação válidos para se decidir situações em que a parte não teria outra via senão a impossível e absurda probatio diabolica, e também para afastar as presunções ad hoc em favor de umas das partes. A prova diabólica é a prova de algo impossível de ser provado, tanto em sentido positivo (provar que existe) como em sentido negativo (provar que não existe). 8. O sistema do Common Law também instituiu uma doutrina com o objetivo de mitigar, em favor das vítimas, os efeitos do óbice imposto pela proibição da prova diabólica. Essa doutrina é conhecida pelo brocardo latino Res ipsa loquitur (A coisa fala por si), que não se confunde com o conteúdo de outro brocardo latino, In re ipsa, também utilizado no âmbito da responsabilidade civil por dano moral. 9. A doutrina da Res ipsa loquitur contém critérios de imputação objetiva pessoal de responsabilidade civil (Quis), ao passo que o critério é uma forma de objetivação e atribuição do prejuízo a ser In re ipsa reparado (Quid). 10. A doutrina da Res ipsa loquitur é aplicada para situações de difícil ou de impossível demonstração do nexo de causalidade entre a conduta e o evidente resultado (não se trata de perda de uma chance). Nesses casos, o dano final é tão evidente que dispensa a prova do nexo de causalidade, ‘ouvindo-se’ apenas a sua aparência. Por isso, a coisa fala por si, e fala contra quem tinha domínio do fato, desde que preenchidos alguns requisitos. Essa doutrina, assim como a perda de uma chance, também encontra resistência para aplicação em processos de responsabilidade médico-hospitalar. (STJ, AREsp. nº. 1.793.930/DF, Decisão Monocrática, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 09/03/2021). 47 Nessa decisão, ficou consignado que as teorias do clear and convincing proof or evidence e da res ipsa loquitur devem ser utilizadas para o convencimento do juiz e para a fundamentação válidas para decidir em situações de probatio diabolica. Ou seja, não são meios de prova, mas podem ser utilizadas pelo juiz para seu convencimento e a fundamentação de sua decisão. Por outro lado, também no Superior Tribunal de Justiça, na decisão monocrática no Agravo Interno nos Embargos de Declaração no Recurso Especial nº. 1.561.527/DF, entendeu-se que aqueles institutos do Direito Anglo-Saxão-Americano não encontram aplicação no Brasil: “A Teoria da Carga Dinâmica das Provas, oriunda do direito norte-americano, que a adota com base na ideia de que os fatos falam por si, res ipsa loquitur, e que, diante de tais fatos, cabe à parte que melhor puder produzir a prova o ônus de fazê-lo, não encontra amparo no ordenamento jurídico brasileiro, ante a ausência de previsão legal”. (STJ, AgInt. nos EDcl. no REsp. nº. 1.561.527/DF, Decisão Monocrática, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 23/09/2020). Já a decisão monocrática no Recurso Especial nº. 1.317.748/SP, entendeu que o res ipsa loquitur pôde ser aplicada em um caso concreto envolvendo erro médico: “Para o Perito a lesão é inerente ao procedimento, o que constitui resposta curiosa quando despida de substrato literário que a fundamentaria. No entanto e aplicando-se a teoria da res ipsa loquitur e que se baseia em estabelecer presunção de culpa médica do resultado anormal e notoriamente fora da previsibilidade pelo tipo de cirurgia realizada, como quando alguém se interna para curar de apendicite e sai do hospital com o ombro direito atrofiado”. (STJ, REsp. nº. 1.317.748/SP, Decisão Monocrática, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 10/12/2014). Idêntico entendimento se verifica na decisão monocrática no Agravo em Recurso Especial nº. 156.468 /SP (STJ, REsp. nº. 156.468 /SP, Decisão Monocrática, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 14/09/2012). A res ipsa loquitur também já foi aplicado no âmbito do STJ em questões criminais, como ocorreu na decisão monocrática do Habeas Corpus nº. 227.527/RO: As provas dos autos fornecem meios de se concluir pela necessidade das medidas além de deixar bem claro que não há dúvida razoável de que os delitos noticiados estão sendo praticados pelas pessoas arroladas, em especial em unidade de intenção de grupo harmônico e coeso. O deferimento não é uma questão de repugnância ao crime; é uma questão de credibilidade dos indícios delitos e indubitável autoria. Res ipsa loquitur. A coisa fala por si mesma. Com as provas inseridas nos autos, decorrentes da observação e acompanhamento da organização criminosa, conclui-se que se atingiu o ápice apropriado para deflagrar as providências previstas 48 na lei. (STJ, HC nº. 227.527/RO, Decisão Monocrática, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 12/12/2011). São requisitos da teoria da res ipsa loquitur: hipersuficiência probatória do agente a quem se imputa a causa do dano (isto é, o réu da ação), quer dizer, o agente tem provas a seu favor, superiores à prova da se dizente vítima (autor da ação); hipossuficiência probatória da se dizente vítima, ou seja, ela não tem provas a seu dispor; a perícia é dispensável porque o fato que supostamente provocou o dano é evidente; inexistência de prova excludente da ocorrência do fato; mesmo com a inversão do onus probandi, ainda persiste uma situação de probatio diabolica para uma das partes; o agente a quem se imputa a causa do dano seja o sujeito tenha o domínio do fato (direct control) na situação em que se alega ter ocorrido o dano; e a conduta do imputado agente foi culposa na modalidade negligência ou dolosa; a negligência apontada decorre do descumprimento de um dever de cuidado cujo titular é o agente a quem se imputa a conduta danosa; e não haja culpa exclusiva ou concorrente da vítima. A res ipsa loquitur se fundamenta em evidência razoável e não gera um juízo de certeza, mas um juízo de probabilidade consistente. Por isso, não é prova, mas leva o juiz a formular uma convicção. Referências bibliográficas. HECKEL, Fred E.; HARPPER, Fowler V. Effect of the doctrine of res ipsa loquitur. Illinois Law Review, vol. 22, p. 724-747, 1928. Disponível em: . Acesso em 4 jan. 2022. KENNERLY, Max. ‘More Probable Than Not Can’t Be Shown by Probability’. Litigation & Trial. October 30, 2007. Disponível em: . Acesso em 4 jan. 2022. WILHELM, Kate. Clear and Convincing Proof. Toronto: Mira Books, 2003. WYNNE, M. Richard. The Doctrine of Res Ipsa Loquitur in New York. St. John’s Law Review, vol. 11, n. 2, p. 280-289, Apr. 1937. Disponível em: . Acesso em 4 jan. 2022. 49 Resenha crítica do artigo “La verdad de los hechos como conditio sine qua non de una decisión judicialjusta en el pensamento de Michele Taruffo”, de Belén Ureña Carazo André Soares de Azevedo Branco Mestrando em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Advogado. Email: aabranco@gmail.com 1. Introdução A presente resenha tem por objetivo analisar, de forma descritiva, o artigo de autoria da Professora Belén Ureña Carazo, doutora em direito pela Universidade de Jaén, na Espanha, que se propõe a analisar, a partir do pensamento de Michele Taruffo, a questão referente à determinação da verdade dos fatos como requisito necessário à obtenção de uma decisão judicial justa. Para tanto, o artigo é subdividido em quatro tópicos, destinando-se o primeiro deles a fazer uma introdução das premissas consideradas fundamentais para a compreensão da teoria da verdade proposta pelo Professor Michele Taruffo. A partir dele, nos tópicos seguintes, discorre a autora sobre a noção de verdade no processo, a relação existente entre a verdade dos fatos e do processo, e a relação entre a verdade dos fatos e prova. Por fim, no último tópico, apresenta suas conclusões. 2. Resenha descritiva No tópico introdutório do seu artigo, destaca a autora, que ao estudar a obra do Professor Michele Taruffo, encontra-se um processualista pouco menos radical, ou como prefere denominar, um processualista-filósofo ou filósofo-processualista, e que tal característica tem reflexo direto na concepção aberta do direito processual civil por ele defendida, com destaque para a influência de outros campos do saber sobre o direito processual civil, como é o caso da lógica, da epistemologia, da história, da sociologia, da política e da dogmática. Nesse sentido, destaca a autora que o Professor Taruffo, influenciado por teorias antes já defendidas por outros juristas, como por exemplo Vittorio Denti e Mauro Cappelletti, defende que a justiça é um fenômeno social diretamente relacionado aos 50 problemas sociais existentes na sociedade, cabendo ao processo civil, por meio da apuração dos fatos para a correção do julgamento, a garantia da justiça social. Em resumo, sintetiza a autora que para o Professor Michele Taruffo, o processo tem por finalidade resolver as controvérsias postas por meio de decisões justas, que devem possuir, para que possam ser assim consideradas, a presença concomitante de 03 (três) condições, a saber: i) a decisão seja resultado de um processo justo; ii) exista uma correta interpretação e aplicação da norma assumida como critério de decisão; iii) a determinação verdadeira dos fatos pelos juiz. Ao final do tópico introdutório, conclui a autora que na visão do jurista italiano, a verdade se constitui como o critério validador da decisão judicial justa, sobre ela se desenvolvendo uma série de consequências relevantes, dentre as quais a função epistemológica da prova, a idéia de processo como método de resolução da controvérsia orientado para a busca da verdade, dentre outros. Pois bem, feitas essas considerações introdutórias, avança a autora propriamente na análise da teoria do Professor italiano, se dedicando, em contraponto a concepção verifobista que repudia de forma completa a noção de verdade, a defesa da existência do conceito de verdade no direito (e no processo), o que faz com fundamento em 04 (quatro) razões a seguir apresentadas. Em primeiro lugar, a verdade é um valor de caráter moral, na medida em que resta inadmissível que o sistema jurídico legitime o conceito de falsidade, pois contrário à própria essência do ser humano. É a verdade também um valor de caráter político, componente essencial do sistema democrático, que deve ser sobre ela fundado, sob pena de não permitir aos seus cidadãos a formação de opiniões corretas e/ou desenvolvimento de pensamento crítico. Seria também a verdade um valor de caráter epistemológico, ou seja, cujo fim é sempre a obtenção da verdade. Por fim, seria ainda a verdade um valor de caráter jurídico, uma vez que a finalidade do direito é resolver controvérsias com a entrega de decisões justas, e que estas apenas se obtém quando se determinam os fatos de forma verdadeira. Em seguida, avança a autora sobre o tema, passando a expor as razões de ordem teórica, ideológica e prática pelas quais o Professor Taruffo entende ser possível o alcance da verdade no processo civil, dando especial destaque para as suas razões ideológicas, na função desempenhada pelo processo, que conforme já apontado, é produzir decisões judiciais justas, o que não ocorrerá se fundada em fatos falsos ou inaceitáveis. Feitas todas essas considerações a respeito da verdade, parte a autora para outra importante discussão existente na teoria da verdade do Professor Michele Taruffo, ao demonstrar ser ele adepto de uma concepção correspondentista da verdade, única possível segundo afirma, no qual entende-se que algo somente é verdadeiro quando corresponde ao mundo externo. 51 Nesse sentido, a partir da concepção adotada pelo Professor italiano, mostra-se necessário abandonar a tão difundida distinção entre as espécies de verdade formal (endoprocessual) e material (extraprocessual), uma vez que inexiste nesses espaços diferentes tipos de verdades, sendo ela apenas uma. Aqui, afirma a autora que o processualista italiano defende que o único sentido possível de entender a verdade no direito é a partir do conceito de verdade relativa, ou seja, que a verdade “processual” tem características relevantes derivadas de um contexto específico, não sendo isso, contudo, suficiente para a criação de uma distinção conceitual. Desta forma, verdade, certeza, verossimilhança e probabilidade, em que pese serem conceitos aproximados, não se identificariam, correspondendo o signo verdade a um conceito eminentemente objetivo e relacionado à realidade dos fatos, ao passo que o conceito de certeza corresponderia a um estado psicológico, a uma convicção subjetiva do sujeito que a apresenta. Em contrapartida, verossimilhança corresponderia ao grau da capacidade representativa da descrição da realidade, enquanto que probabilidade corresponderia à suficiência de elementos para julgar como verdadeiro ou falso um enunciado. Por todo o exposto, conclui a autora que a finalidade do processo reside na busca da verdade – verdade essa relativa, objetiva, razoável e como correspondência -, uma vez que um processo sem verdade, na realidade, seria um processo injusto. No tópico seguinte a autora se preocupa com a questão da verdade dos fatos no processo, oportunidade em que questiona, de forma retórica, qual seria a finalidade do processo civil, e para a qual necessário seria o conhecimento da existência de duas diferentes concepções processuais. A primeira delas, tradicional e fundada sobre os dogmas da ideologia liberal do século XIX, cujo maior exemplo é o processo adversarial americano, defende que o único objetivo do processo é resolver a controvérsia existente entre as partes. Em contraposição, existiria uma outra concepção de processo, considerada moderna ou garantista, cujo desenvolvimento remonta a Alemanha do final so século XIX, e cujo objetivo não é apenas a resolução da controvérsia existente entre as partes, mas a sua resolução justa. Portanto, voltando a questão posta, o Professor Taruffo filia-se à segunda concepção de processo, que entende que o seu objetivo principal não é apenas resolver conflitos postos, mas investigar e conhecer os fatos para resolver de forma justa o conflito posto. Para tanto, para que seja possível resolver os conflitos postos de forma justa, afirma a autora ser necessário compreender o direito probatório a partir de uma perspectiva racional (ou epistêmica), no qual serve o prova como instrumento colocado a 52 disposição das partes e dos juiz para a descoberta da verdade dos fatos narrados, e consequetemente decisões judiciais mais justas. Assim, destacaa autora um problema do direito à prova apresentado pelo Professor Taruffo, que seria a relação existente entre a proposição probatória, o princípio da demanda e o poder probatório do magistrado, que levaria a uma limitação do direito à prova. Por fim, aborda a autora no último tópico do seu artigo as conclusões obtidas. Em primeiro lugar, afirma ser essencial no Estado Constitucional de Direito em que vivemos, regido pelo princípio da legalidade, que a decisão judicial seja considerada apropriada e justa, e portanto satisfatória para as partes, e que para tanto seria fundamental a determinação da verdade dos fatos para a correta aplicação da norma jurídica ao caso proposto. Em segundo lugar, afirma que no direito, e também no processo civil como parte integrante deste, o conceito de verdade não é apenas possível, mas necessário. Para tanto, deve-se entender que: i) se trata da uma verdade relativa enquanto realidade humana; ii) objetiva, e por isso dependente das realidade dos fatos sobre os quais se fala; iii) razoável, pois produzida num contexto de incerteza; iv) única, a verdade é apenas única, não comportando diferenciações, conforme defendido por muitos; v) correspondência, uma vez que algo somente é verdadeiro quando corresponde ao mundo externo. Em terceiro lugar, é preciso aceitar que as provas são o instrumento à disposição das partes e do juiz para a preparação da decisão final e do alcance da verdade dos fatos. Por último, deve restar entendido que o processo civil não é um instrumento existente tão somente para resolver conflitos postos, mas sim para investigar e conhecer os fatos para que seja possível a resolução do conflito posto de forma justa. 3. Referência URENA CARAZO, Belén. La verdad de los hechos como conditio sine qua non de una decisión judicial justa en el pensamiento de Michele Taruffo. Bol. Mex. Der. Comp.[online]. 2016, vol. 49, n. 146, pp. 281-304. ISSN 2448-4873. 53 A teoria da verossimilhança preponderante no ordenamento jurídico brasileiro André Soares de Azevedo Branco Mestrando em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Advogado. Email: aabranco@gmail.com. Flávio Cheim Jorge Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Titular da Universidade Federal do Espírito Santo (Graduação e Mestrado). Advogado. Email: flavio@cjar.com.br. Mariana Fernandes Beliqui Mestranda em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Advogada. Email: mariana@cjar.com.br. Sumário: 1. Introdução; 2. Premissas inciais para a compreensão do tema: conceito de ônus; 3. Contexto histórico de formação; 4. Ônus da prova: conceito e dimensões; 5. Teorias sobre o ônus da prova: Giuseppe Chiovenda, Francesco Carnelutti e Leo Rosenberg; 6. Teoria da verossimilhança preponderante; 7. Teoria da verossimilhança preponderante e o ordenamento jurídico brasileiro; 8. Considerações finais; 9. Referências bibliográficas. 1. Introdução O ônus da prova como regra de julgamento encontra lugar de destaque na realidade jurídica contemporânea, já que a partir dele define-se o que cada um dos sujeitos processuais deve provar (como regra ao autor compete a prova dos fatos constitutivos do seu pedido, e ao réu os fatos impeditivos, modificativos e extintivos daquele), permitindo assim ao juiz decidir com “justiça” o conflito posto, evitando o non liquet. 54 Há muito discute-se na doutrina sobre a correção das regras de ônus da prova, pois essa, em essência, não é justa, na medida em que presume que aquele que não possui determinada prova comprobatória dos fatos que alega, em realidade, mente.1 A partir dessa premissa, a doutrina tem criticado o instituto do ônus da prova e desenvolvido, por consequência, alternativas para serem utilizadas em sua substituição. Uma dessas alternativas, objeto deste trabalho, é a teoria da verossimilhança preponderante, desenvolvida na Escandinávia nos anos 1960. Para tanto, faremos uma análise inicial do conceito de ônus, contextualizando historicamente o surgimento da regra do ônus da prova. Em sequência, e ônus da prova, defini-lo, analisando suas dimensões e principais teorias a respeito. Por fim, trataremos especificamente da teoria da verossimilhança preponderante e sua recepção/aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. 2. Premissas iniciais para a compreensão do tema: conceito de ônus Ao longo da história, o conceito de ônus sempre envolveu intenso debate. O primeiro a teorizar sobre o tema, ainda no ano de 1906, foi Giovanni Brunetti que defendia a não imperatividade de todas as regras jurídicas, o que, contrario sensu, implicaria na existência de regras jurídicas cujo descumprimento não implicaria em violação ao ordenamento jurídico, pois tal comportamento estaria dentro do âmbito de escolha do sujeito. Segundo aponta Artur Thompsen Carpes, apesar das ideias apresentadas por Brunetti, não terem prosperado por razões que fogem ao objeto deste estudo2, estas serviram como fundamento para o desenvolvimento da categoria do ônus: A impossibilidade de justificar a categoria do dever livre na moldura dogmática por ele desejada não impediu Brunetti, no entanto, de colaborar decisivamente para a construção da categoria do ônus. Ao descrever o dever livre como fenômeno que outorga liberdade ao sujeito para escolher entre adotar ou não adotar como certa a conduta determinada pelo ordenamento jurídico sem receio de estar cometendo ilicitude, Brunetti 1 NIEVA FENOLL, Jordi. La carga de la prueba: una reliquia histórica que debiera ser abolida. In: NIEVA FENOLL, Jordi; FERRER BELTRÁN, Jordi; GIANNINI, Leandro J.. Contra la carga de la prueba. Madri: Marcial Pons, 2019, p. 43. 2 Para o exame detalhado das críticas formuladas ao pensamento de Giovanni Brunetti, v. RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da prova no processo civil: do ônus ao dever de provar. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018 p. 59-61. 55 acabou desenhando, mesmo que possivelmente sem querer, os fundamentos dogmáticos da categoria do ônus.3 Outro autor que deixou importante contribuição para a definição daquilo que viria a ser entendido por ônus foi Francesco Carnelutti, em suas reflexões sobre o exercício dos poderes jurídicos. Para o jurista italiano, o desenvolvimento do processo dependia da vontade das partes e, por isso, era essencial que elas fossem estimuladas. Este estímulo poderia se dar de duas diferentes formas e graus de intensidade: na forma de sanção (obrigação ou dever) ou perda dos efeitos do próprio ato (ônus). Para Carnelutti, portanto, ambos os conceitos estão calcados em uma necessitas, uma impotência do sujeito. Entretanto, o sujeito de um dever pode somente escolher entre “sacrifício espontâneo” ou “sacrifício forçado” de seu interesse, ao passo que o sujeito onerado pode escolher qual de seus interesses quer sacrificar.4 Como destaca Vitor de Paula Ramos5, as premissas trazidas por Brunetti e Carnelutti, ainda que incipientes, foram essenciais para o desenvolvimento do instituto do ônus da prova, na medida em que estabeleceram os fundamentos do que modernamente se entende por ônus. 3. Contexto histórico de formação Antes de tratarmos propriamente nas teorias que moldaram o instituto do ônus da prova ao longo do século vinte, necessário, ainda que brevemente, traçar o contexto histórico da sua formação. O instituto do ônus da prova encontra a sua origem no processo romano clássico, em sua fase formular, quando nas consultas e decisões dos magistrados da época já apareciam regras de valor universal como: actore non probante, reus absolvitur, probatio incumbit qui dicit, non qui negat, in excipiendo reus fit actor e negativa non sunt probanda.63 CARPES, Artur Thompsen. Ônus da prova no novo CPC: do estático ao dinâmico. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2017, p. 29. 4 RAMOS, 2018, p. 61. 5 RAMOS, 2018, p. 57-66. 6 BUZAID, Alfredo. Do ônus da prova. Revista de Direito Processual Civil. São Paulo, v. 04, 1961, p. 117. A respeito do não previsão legal da matéria, afirma o autor que existiam apenas dois títulos a ela 56 Naquele tempo, o instituto do ônus da prova não encontrava tratamento sistematizado nos documentos jurídicos, competindo aos operadores do direito aplicar regras até então existentes e consideradas universais. Mais à frente, o direito germânico também contribuiu para o desenvolvimento do instituto, ao prever em seu procedimento regra própria de distribuição do ônus da prova, em sua dupla perspectiva. Em uma primeira fase, por regra de distribuição do ônus, o magistrado determinava a quem cabia o ônus de prova. Em seguida, àquele que foi imputado o ônus, cabia- lhe a produção da prova: Conforme o antigo direito germânico, o processo era dividido em duas fases; uma relativa à sentença de prova, denominada Beweisurteil, na qual o juiz declarava a quem cabia o ônus, que geralmente era do réu, porque o autor não reclamava um direito seu, antes atacava a injustiça do comportamento do devedor; e a segunda, na qual a parte, sujeita ao ônus da prova, devia produzi-la.7 A partir das contribuições derivadas do direito romano e germânico, posteriormente desenvolvidas e aprimoradas nas lições de Brunetti e Carnelutti, a regra do ônus da prova foi tomando forma e ganhando corpo, amadurecendo para o estágio que hoje, modernamente, conhecemos. É sobre o ônus da prova que passaremos a tratar a seguir. 4. Ônus da Prova: conceito e dimensões O instituto do ônus da prova pode ser entendido como o encargo atribuído abstratamente pela lei (estático), ou distribuído diretamente pelo magistrado à luz do caso concreto (dinâmico), no sentido de demonstrar a veracidade de determinado enunciado fático8. O seu fundamento, portanto, encontra-se na função distributiva da justiça, na igualdade entre as partes, ao permitir que cada uma delas demonstre a veracidade do enunciado fático que alegou. destinados: “Conquanto as fontes sejam geralmente esparsas, havendo, ao que parece, dois únicos títulos no Corpus Iuris Civilis, que se ocupam com a matéria, (...).” 7 BUZAID, 1961, p. 120-121. 8 DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada, processo estrutural e tutela provisória. 15 ed. Salvador: Juspodvim, 2020, p. 135. 57 É, portanto, antes de tudo, uma razão de oportunidade que compele a repartir o ônus da prova. Mas há mais, para fazê-lo, um princípio de justiça distributiva, o princípio da igualdade das partes. No processo civil, com efeito, prevalece o princípio dispositivo. E, dado que, em regra, como sabemos, às partes incumbe a tarefa de preparar o material de cognição, de alegar e provar ao juiz aquilo que pretendem que êle tome em consideração; dado que o juiz, em regra, não pode ter em conta circunstâncias que não ressaltem dos autos (...) e, enfim, que deve respeitar a igualdade das partes no processo, daí resulta que o encargo de afirmar e provar se distribui entre as partes, no sentido de deixar-se à iniciativa de cada uma delas fazer valer os fatos que ela pretende considerados pelo juiz.” (...)9 Para tanto, deve o instituto ser analisado sob uma dupla função, uma subjetiva (ou formal) e outra objetiva (ou material).10 Do ponto de vista formal, constitui o ônus da prova regra de procedimento dirigida às partes, que previamente tem conhecimento dos fatos que a elas compete provar, ao passo que sob o seu ponto de vista objetivo, constitui regra de julgamento dirigida ao julgador, que para evitar o non liquet, acaba por julgar contrariamente aquele que não provou fato que lhe competia. Essa dupla função subjetiva-objetiva da regra do ônus da prova é sintetizada com clareza por Artur Thompsen Carpes11: O ônus da prova consubstancia-se, assim, não apenas em critério de julgamento, a ser utilizado quando as provas não são suficientes para a constatação quanto à probabilidade prevalente do enunciado fático, mas também critério de organização da atividade probatória, que informa às partes quanto à sua parcela de responsabilidade na formação da prova destinada à construção do juízo de fato. Em outras palavras: a distribuição do ônus da prova exerce dupla função: a um, desempenha importante papel no que tange à estruturação da atividade probatória (função subjetiva); a 9 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil vol. II. 2. ed. Trad. J. Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 379. 10 A distinção terminológica adotada, contudo, não é livre de críticas. YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônoma à prova. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 65-66. “Primeiro, sob o prisma puramente lógico, desvincular essa posição jurídica dos sujeitos parciais importaria descaracterizá-la como um autêntico ônus, que a toda evidência não pode ser de titularidade do juiz (que, no processo, exerce essencialmente poderes e se sujeita a deveres). Para operar tal desvinculação, sob aquele prisma, seria preciso encontrar outra forma de qualificar o fenômeno, adequando-se a terminologia, dada a impropriedade de qualificar como “objetivo” algo que conceitualmente é subjetivo.” 11 CARPES, 2017, p. 40-41. 58 dois, funciona como regra de julgamento, a ensejar, no caso de insuficiência de provas aptas a constatação da probabilidade prevalente, sentença contrária aos interesses da parte que não cumpriu o seu encargo (função objetiva), na medida em que é vedado ao juiz pronunciar-se pelo non liquet. 5. Teorias sobre ônus da prova: Giuseppe Chiovenda, Francesco Carnelutti e Leo Rosenberg O ônus da prova sempre foi considerado um dos problemas mais complexos do direito processual12, a sua coluna vertebral13, razão pela qual, segundo afirma Alfredo Buzaid, “há mais de um século a ciência procura rever-lhe o conceito, dando lugar a uma floração de teorias, que se esforçam a explicar o instituto à luz do direito positivo.” 14 Essas teorias, segundo ensina o Professor Paulista, podem ser divididas em dois grupos15, aquelas de inspiração-natureza civil (Weber e Bethmann-Hollweg), hoje já completamente superadas pela ciência processual, e aquelas de natureza processual (Chiovenda, Carnelutti, Rosenberg e Micheli). Giuseppe Chiovenda fundamenta sua teoria em questão de justiça distributiva, afirmando que o ônus de alegar e provar os fatos deveria ser distribuído entre ambas as partes, competindo a cada uma delas provar aqueles por ela alegados. Em síntese, pode-se enunciar: o autor deve provar os fatos constitutivos, isto é, os fatos que normalmente produzem determinados efeitos jurídicos; o réu deve provar os fatos impeditivos, isto é, a falta daqueles fatos que normalmente concorrem com os fatos constitutivos, falta que impede a estes produzir o efeito que lhes é natural.16 Para Carnelutti, o ônus da prova encontra justificativa no interesse da afirmação, consistindo a divisão entre fatos constitutivos e extintivos mero desdobramento deste. 17 Enquanto que para Rosenberg, o ônus da prova se localiza na teoria da 12 TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a reconstrução dos fatos. Trad. Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2016, p. 260. 13 ROSENBERG, Leo. Tratado de derecho procesal civil Tomo. II. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1955, p. 228:“La importancia de las normas sobre la distribución de la carga de las afirmaciones y de la prueba es muy grande; se la ha denominado con razón “la columna vertebral del proceso civil.” 14 BUZAID, 1961, p. 114. 15 BUZAID, 1961, p. 133. 16 CHIOVENDA, 1965, p. 382. 17 JUNIOR, José Américo Zampar. As teorias sobre o ônus da prova e o CPC/15. In: DIDIER JR., Fredie; JOBIM, Marco Félix; FERREIRA, William Santos. Coleção Grandes Temas do Novo CPC: Direito 59 aplicação do direito 18 , encontrando no direito material papel fundamental na distribuição do ônus da prova19. Desse modo, caberia ao juiz, em cada processo, aplicar o direito objetivo ao caso. Para tanto, segundo afirma, saber qual das partes deveria suportar a falta de prova exigiria a existência de uma regra geral e abstrata20. Nesse sentido, como resume Luiz Eduardo Boaventura Pacífico, a distribuição do ônus da prova para Rosenberg funcionaria da seguinte forma: Em síntese, a distribuição do ônus da afirmação e do ônus da prova baseia- se nessa diferença de preceitos jurídicos. O autor deve provar a realização dos pressupostos fáticos do preceito sobre o qual funda sua pretensão. E o réu deve provar os pressupostos da norma em virtude da qual alcança o rechaço da demanda.21 Assim, observamos que todas essas teorias tratam a questão do ônus da prova sob uma perspectiva estática, prevendo, de início, a qual parte compete o ônus de provar qual alegação fática e uma vez entendido o funcionamento tradicional das regras de repartição do ônus da prova, podemos adentrar na teoria da verossimilhança preponderante, proposta por Per Olof Ekelöf. 6. Teoria da verossimilhança preponderante A doutrina da verossimilhança preponderante surgiu na Escandinávia, nos anos 1960, e desenvolvendo-se especialmente na Suécia, a partir da obra de Per Olof Ekelöf22. Probatório. 3ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2018, p. 456: “A distribuição do encargo deveria ser realizada sobre uma regra de experiência, fundamentada no interesse da afirmação, ou seja, “colui che ha interesse as affermare un fatto, ha pure il maggior interesse di darne la prova; se non la dá, è probabile che non possa dare perchè il fatto non è vero.” 18 ROSENBERG, Leo. La carga de la prueba. Buenos Aires: Editorial BdeF, 2019, p. 11-12: “Así pues, la doctrina de la carga de la prueba es una parte de la teoría de la aplicación del derecho.” 19 PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. O ônus da prova. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 127. 20 ROSENBERG, 2019, p. 101-102. “Pero la cuestión de saber qué parte debe soportar la consecuencia desfavorable de la falta de prueba de una afirmación de hecho importante y discutida necesita una contestación basada en una regla de derecho fija, abstracta. La ciencia no puede ni debe renunciar a buscar esta regla, la prática tiene necesidadd de ella y exige de la ciencia que se la procure.” 21 Ibid, p. 135. 22 WALTER, Gerhard. Libre apreciación de la prueba: investigación acerca del significado, las condiciones y límites del libre convencimento judicial. Buenos Aires: Ediciones Olejnik, 2019, p. 149: (...), una orientácion procedente de Escandinavia, y que es conocida em nuestro medio principalmente por los nombres de sus sostenedores BOLDING y Ekelöf.” No mesmo sentido, ver MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e convicção: de acordo com o CPC de 2015. 3ª ed. São Paulo: 60 Segundo a teoria desenvolvida por Ekelöf, em diversas situações a parte se vê impossibilitada de provar determinado fato por ela alegado, o que, por razões óbvias, traz-lhe consequências negativas. Com o fim de evitar prejuízos às partes, o autor sueco sustenta uma menor importância da regra do ônus da prova, que funcionaria como o fiel da balança23 para o convencimento do juiz, que decidiria, a partir de um juízo de verossimilhança, a favor daquela parte que conseguisse provar, ainda que minimamente, o seu argumento (nesse caso com um grau mínimo de 51%2425). Para fundamentar o seu pensamento, traz o autor como exemplo um caso de investigação de paternidade, na qual a autora busca o reconhecimento pelo seu companheiro da paternidade do seu filho. Ocorre que a autora manteve relações sexuais com outro homem, que não o seu companheiro, o que tornaria ambos os homens potenciais pais da criança, com um grau de probabilidade de cinquenta por cento. Contudo, atribuiu a paternidade ao seu companheiro, uma vez que criança seria detentora de uma característica específica presente em apenas cinco por cento da população, da qual ele também seria detentor. Assim, por um juízo de probabilidade ou verossimilhança, as chances de o pai da criança ser de foto o seu companheiro seria de aproximadamente noventa e cinco por cento, sendo por isso procedente a demanda proposta, no sentido de ser reconhecida a paternidade do seu companheiro.26 Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 103: “A teoria que se estabeleceu na Escandinávia, e foi desenvolvida mais intensamente na Suécia, especialmente em razão da obra de Per Olof Ekelöf (...)”. 23 Essa analogia com o fiel da balança ou centro da régua é feita por WALTER, 2019, p. 150. “Esa solución consiste en que la carga de la prueba no pese sobre ninguna de las dos partes, o sea que el punto de esa carga esté en el centro del módulo, y que, por tanto, sea suficiente el predominio de prueba mínimo: la verosimilitud preponderante. Este principio es llamado por tanto, principio de la preponderancia.” 24 WALTER, 2019, p. 151. 25 Neste ponto reside uma das críticas a tese proposta por Ekelöf, no sentido da impossibilidade da graduação matemática das provas. Precisas, pois, na exposição dessa crítica são as palavras de MARINONI e ARENHART, 2015, p. 107: “Aliás, mesmo aqueles que desejam que o juiz dê ganho de causa à parte cujo direito é mais verossímil, encontram um obstáculo insuperável nas sustentação dessa teoria. É que não é possível medir, em termos matemáticos, a graduação de uma prova ou de um conjunto de provas, o que impediria a devida justificação da “verossimilhança preponderante”.” 26 EKELÖF, Per Olof. Free Evaluation of evidence. In: TWINING, William; STEIN, Alex. Evidence and proof. Nova Iorque: New York University press, 1992, p. 52-53. “If confronted by two incompatible assertions, the court will often be unable to decide which of them is true; it has to choose the more probable one. What does this mean, then, and how does the court proceed to determine which statement has the greater probability ? Suppose that the court has to decide who is the father of a child. To simplify our example, we will make the unrealistic assumption that it has been made clear in the action that during the period of conception, the child’s mother has had intercourse only with the defendant and another man, about whom there is no information, and that there is no other evidence about the former man’s paternity than a genetic paternity test, wich is based upon the fact that the child must have received from his father a feature found in only 5 per cent of the population and that 61 A teoria proposta pelo autor sueco, em que pese a sua aparente complexidade, é explicada de forma bastante didática por Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, cuja lição, por sua clareza, merece ser reproduzida: Melhor explicando: se a posição de uma das partes é mais verossímil do que a da outra, ainda que minimamente, isso seria suficiente para lhe dar razão. Nessa lógica, ainda que a prova do autor demonstrasse com um grau de 51% a verossimilhança da alegação, isso tornaria a sua posição mais próxima da verdade, o que permitiria – segundo a doutrina escandinava – um julgamento mais racional e mais bem motivado do que aquele que, estribado na regra do ônus da prova,considerasse a alegação como não provada. Nesse sentido, a doutrina fala em verossimilhança preponderante – na Suécia em Överviktsprincip e na Alemanha em Überwiegensprinzip -, para significar a suficiência de um grau de probabilidade mínimo. Aí, como é fácil perceber, a ideia de ônus da prova acaba assumindo importância não como mecanismo de distribuição desse ônus, e muito menos como regra de juízo, mas como uma espécie de régua que indicaria a parte que deve obter êxito. O ônus da prova constituiria o ponto central dessa régua e, assim, o ônus de produzir prova não pesaria sobre nenhuma das partes. A parte que conseguisse fazer a régua pender para o seu lado, ainda que a partir de um mínimo de prova, mereceria ganhar da causa, quando então prevaleceria o princípio da “verossimilhança preponderante”.27 Feitas essas considerações, essenciais para a compreensão do tema proposto, podemos passar à análise do ônus da prova e da teoria da verossimilhança preponderante no ordenamento jurídico brasileiro. the defendant also possesses this feature. The probability that this is also the case with the unknown man obviously amounts to no more than 5 per cent. We assume that this admits the conclusion that there is a probability amounting to 95 per cent for the paternity of the defendant. (...) If the constellation of hereditary features found in the child and the two parties is called K and the alleged paternity is indicated by an F, the evaluation of evidence may be performed according to the following pattern: In 95 per cent of all those cases where K is found to exist, this is the case also with F. In this case, K has been found. It follows that the probability for F in the case amounts to 95 per cent. The paternity of another person is not incompatible with this conclusion. This may be the case even if both the premises are true. In fact the conclusion should not be understood as a statement about the actual paternity but about our knowledge with regard to that relation. Strictly speaking, all that this statement tells us is the convincing force of the constallation of hereditary features, considered as evidence. This, however, is quite sufficient to enable the court to render a decision on the action, provided it knows what measure of convincing force the law requires from the evidence.” 27 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 104. 62 7. Teoria da verossimilhança preponderante e o ordenamento jurídico brasileiro A teoria da verossimilhança preponderante, como regra geral, não é admitida pelo Código de Processo Civil em decisões de mérito, mas apenas em decisões relacionadas à tutela de urgência (probabilidade do direito) e/ou requerimento de inversão do ônus da prova (verossimilhança).28 O fundamento dessa afirmação encontra-se no juízo de certeza adotado como paradigma pelo legislador nacional, que decide naquelas hipóteses em que certo sobre a ocorrência ou não de determinada hipótese fática. Naqueles casos em que inexiste no julgador certeza sobre a ocorrência ou não de determinada hipótese fática, aplica-se a regra do ônus da prova, estabelecida no artigo 373 do Código de Processo Civil, e na qual compete ao autor a prova do fato constitutivo do seu direito, e ao réu a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Em que pese a regra acima exposta, a respeito da inaplicabilidade no ordenamento jurídico brasileiro da utilização da teoria da verossimilhança preponderante como fundamento de decisões judiciais de mérito, na prática, em hipóteses excepcionais como aquelas envolvendo direitos do consumidor e direito ambiental, sua utilização tem sido admitida. Neste sentido, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pela Ministra Nancy Andrighi, com fundamento na teoria da verossimilhança preponderante, condenou uma montadora ao pagamento de indenização em decorrência de acidente causado por defeito na roda de um veículo por ela produzido: RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE REPARAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. ÔNUS DA PROVA. TEORIA DA VEROSSIMILHANÇA PREPONDERANTE. COMPATIBILIDADE, NA HIPÓTESE ESPECÍFICA DOS AUTOS, COM O ORDENAMENTO PROCESSUAL VIGENTE. CONVICÇÃO DO JULGADOR. LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA. PERSUAÇÃO RACIONAL. ARTIGOS ANALISADOS: 212, IV, DO CC; 126, 131, 273, 333, 436 E 461 DO CPC. 1. Ação de reparação por danos materiais e compensação por danos morais ajuizada em 22/7/1999. Recurso especial concluso ao Gabinete em 7/20/2011. 2. Controvérsia que se cinge a definir se o julgamento do mérito da presente demanda, mediante aplicação da teoria da verossimilhança preponderante, violou a regra da distribuição do ônus da prova. 28 Marinoni, Luiz Guilherme. Tutela de urgência e tutela de evidência: soluções processuais diante do tempo da justiça. 3ª ed. São paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 135. 63 3. De acordo com o disposto no art. 333 do CPC, ao autor incumbe provar os fatos constitutivos de seu direito; ao réu, os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor. 4. O ônus da prova, enquanto regra de julgamento – segundo a qual a decisão deve ser contrária à pretensão da parte que detinha o encargo de provar determinado fato e não o fez -, é norma de aplicação subsidiária que deve ser invocada somente na hipótese de o julgador constatar a impossibilidade de formação de seu convencimento a partir dos elementos constantes dos autos. 5. Em situações excepcionais, em que o julgador, atento às peculiaridades da hipótese, necessita reduzir as exigências probatórias comumente reclamadas para formação de sua convicção em virtude de impossibilidades fáticas associadas à produção da prova, é viável o julgamento do mérito da ação mediante convicção de verossimilhança. 6. A teoria da verossimilhança preponderante, desenvolvida pelo direito comparado e que propaga a ideia de que a parte que ostentar posição mais verossímil em relação à outra deve ser beneficiada pelo resultado do julgamento, é compatível com o ordenamento jurídico-processual brasileiro, desde que invocada para servir de lastro à superação do estado de dúvida do julgador. É imprescindível, todavia, que a decisão esteja amparada em elementos de prova constantes dos autos (ainda que indiciários). Em contrapartida, permanecendo a incerteza do juiz, deve-se decidir com base na regra do ônus da prova. 7. O juiz deve formar seu convencimento a partir dos elementos trazidos a juízo, mas constitui prerrogativa sua apreciar livremente a prova produzida. 8. No particular, infere-se da leitura do acórdão recorrido que os fatos alegados no curso da fase de instrução foram examinados pelo Tribunal de origem e que a prova produzida foi devidamente valorada, de modo que a formação da convicção dos julgadores fundou-se nas circunstâncias fáticas reveladas pelo substrato probatório que integra os autos. 9. Negado provimento ao recurso especial. (REsp 1738015/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/02/2019, DJe 15/02/2019). 8. Considerações finais As regras de ônus da prova encontram-se intimamente ligadas ao desenvolvimento da tradição jurídica ocidental, com referência, ainda que de forma embrionária, no processo romano clássico e direito germânico. Modernamente, define-se o ônus da prova como o encargo atribuído abstratamente pela lei (estático) ou distribuído pelo magistrado à luz do caso concreto (dinâmico) com o objetivo de demonstrar a veracidade do enunciado fático, sob pena de improcedência da alegação. Tal premissa, contudo, encontra-se equivocada, sob a falsa ideia de que aquilo que não é provado é mentira. 64 Neste sentido, a fim de alterar o paradigma apresentado,27. As provas ilícitas Ana Beatriz Costa da Graça de Araujo Beatriz Carvalho Clímaco.............................................................................................202 28. Procedimento probatório no processo de conhecimento Anselmo Bacelar..........................................................................................................208 29. Exibição de provas no Código de Processo Civil Sandro Bortoluzzi Madeira Lamêgo Rodrigues...........................................................215 30. Limitações probatórias Caio da Silva Ávila..........................................................................................................225 31. Fases do procedimento de valoração da prova pelo juiz Gilberto Fachetti Silvestre............................................................................................231 32. Prova na tutela coletiva João Antonio Schmith Barcellos João Vitor dos Santos de Souza...................................................................................234 33. Presunções e indícios Gilberto Fachetti Silvestre............................................................................................243 34. Máximas de experiência Gilberto Fachetti Silvestre...........................................................................................250 35. Fatos incontroversos Felipe Sardenberg Guimarães Trés Henriques............................................................265 36. Fatos relevantes e controversos Felipe Sardenberg Guimarães Trés Henriques.............................................................271 37. Fatos notórios: notoria non egent probatione Alexandre Pezzin Passos Gilberto Fachetti Silvestre............................................................................................277 38. A prova e o juiz Anselmo Bacelar Felipe Sardenberg Guimarães Trés Henriques............................................................282 39. Convencimento judicial Gilberto Fachetti Silvestre............................................................................................293 40. Proibição de surpresa: o advento do art. 10 do Código de Processo Civil Bernardo Dias Lopes Nunes.........................................................................................299 41. A decisão do juiz e a influência da mídia e a (in)eficácia da prova divulgada pelos meios de comunicação para o processo penal e civil Anselmo Bacelar Isabela Loss Lopes.......................................................................................................304 42. Competência probatória do juiz das garantias Tiago Loss Ferreira........................................................................................................310 43. A inserção de standards jurídicos na competência probatória do juiz penal: semelhanças e diferenças com o Direito Processual Civil Tiago Loss Ferreira........................................................................................................316 44. Probatio diabolica no processo civil Sandro Bortoluzzi Madeira Lamêgo Rodrigues Bruna Figueira Marchiori..............................................................................................321 45. Probatio levior no processo civil como solução para a prova diabólica Sandro Bortoluzzi Madeira Lamêgo Rodrigues Bruna Figueira Marchiori..............................................................................................327 46. Aspectos probatórios da colaboração premiada Tiago Loss Ferreira.......................................................................................................330 47. A aplicabilidade do método do além da dúvida razoável (beyond a reasonable doubt) no processo penal brasileiro Tiago Loss Ferreira.......................................................................................................336 48. Teoria da perda de uma chance probatória Igor Gava Mareto Calil..................................................................................................341 49. Prova da simulação Pedro Lube Sperandio.................................................................................................349 50. A prova da urgência no habeas corpus para tutela dos direitos da personalidade Gabriel Pereira Garcia...................................................................................................359 Apresentação Este livro resulta das pesquisas dos alunos da disciplina Processo, Justiça e Verdade: os meios de prova e de obtenção de prova, oferecida no semestre letivo 2020/01 no Mestrado em Direito Processual da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Aos trabalhos dos mestrandos, juntam-se os frutos das pesquisas realizadas pelos alunos de graduação (pesquisadores de iniciação científica e independentes) do grupo de pesquisa Desafios do Processo: impactos do Código de Processo Civil no ordenamento jurídico civil. Também conta com a participação de ex-mestrandos — hoje mestres, com carreira acadêmica consolidada — que empreenderam reflexões e realizaram investigações sobre questões probatórias em sua pesquisa e dissertação. O livro conta com 50 capítulos relacionados ao Direito Probatório. E nem assim se conseguiu abranger todos os assuntos, dada a riqueza do regime jurídico probatório e seus problemas. Os capítulos foram escritos com uma preocupação didática, sem deixar, contudo, de se aprofundar nas questões problemáticas, complexas e sofisticadas sobre temas variados da Prova. O objetivo é que esse livro seja uma leitura preliminar para a compreensão de conceitos básicos do Direito Probatório. O livro é disponibilizado gratuitamente para download na Internet. Com isso, pretendemos socializar os resultados das pesquisas no âmbito dos cursos de bacharelado e mestrado em Direito da UFES. A intenção é democratizar e tornar fácil o acesso à nossa produção acadêmica e levar o conhecimento aqui produzido para outras instituições, sem burocracias editoriais para os autores e sem custos para os interessados no tema. Desejamos a todos uma boa leitura e que esse material ajude a compreender a matéria probatória em seus aspectos materiais e processuais. Vitória – ES, janeiro de 2022. Prof. Dr. Francisco Vieira Lima Neto Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFES Prof. Dr. Gilberto Fachetti Silvestre Coordenador-Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFES 9 10 Noções introdutórias sobre prova Gabriela Azeredo Gusella Advogada e Professora de Direito Civil e Processo Civil na Faculdade Pitágoras. Mestra em Direito Processual pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Graduada em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pesquisadora acadêmica do Grupo de Pesquisa Desafios do Processo (UFES). E-mail: gabrielagusella@gmail.com Ana Julia Dias Batista Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Integrante do Núcleo de Estudos em Processo e Tratamento de Conflitos (NEAPI – UFES). Integrante do Grupo de Pesquisa Laboratório de Processo Penal (LAPP – UFES). Integrante do Grupo de Pesquisa Fundamentos do Processo Civil Contemporâneo (FPCC – UFES) (2019). E-mail: anajuliadias6@gmail.com Sumário: 1. Introdução. 2. Definição de prova. 3. Acepções da palavra prova. 4. Objeto, Finalidade e Destinatário da prova. 5. Conclusão. 6. Referências. 1. Introdução O direito à prova possui índole constitucional, motivo pelo qual o estudo das temáticas que circunscrevem a prova no Direito pátrio assume especial relevância. Para que sejam possíveis o aprofundamento de questões sensíveis atinentes ao direito probatório e a correta interpretação dos enunciados prescritivos, entretanto, o exegetadesenvolveu-se na Escandinávia uma teoria que buscou relativizar a rigidez dessa premissa, estabelecendo que o convencimento judicial deveria ser realizado sobre um juízo de probabilidade, como critério de justiça. É a chamada teoria da verossimilhança preponderante, por meio do qual deve o juiz decidir sempre a favor daquele que conseguir provar o alegado, ainda que de forma mínima (nesse caso correspondente a um percentual de 51 por cento de certeza). Essa teoria, ao menos no que se refere ao julgamento do mérito, não foi recepcionada, como regra geral, pelo direito brasileiro, que não admite a tomada de decisão fundada em verossimilhança (mas apenas em certeza). Contudo, o Superior Tribunal de Justiça vem flexibilizando a regra da tomada de decisão de mérito fundada apenas em juízo de certeza, admitindo-a, em hipóteses excepcionais como as envolvendo o direito do consumidor e direito ambiental, seja tomada apenas em juízo de verossimilhança, conforme se destacou. 9. Referências bibliográficas BUZAID, Alfredo. Do ônus da prova. Revista de Direito Processual Civil. São Paulo, v. 04, 1961. CARPES, Artur Thompsen. Ônus da prova no novo CPC: Do estático ao dinâmico. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2017. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil vol. II. 2. ed. Trad. J. Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva, 1965. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada, processo estrutural e tutela provisória. 15 ed. Salvador: Juspodvim, 2020. DINAMARCO, Cândido Rangel; Badaró, Gustavo Henrique Righi Ivahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do processo. 32 ed. São Paulo: Malheiros, 2020. EKELÖF, Per Olof. Free Evaluation of evidence. In: TWINING, William; STEIN, Alex. Evidence and proof. Nova Iorque: New York University press, 1992. NIEVA FENOLL, Jordi. La carga de la prueba: una reliquia histórica que debiera ser abolida. In: NIEVA FENOLL, Jordi; FERRER BELTRÁN, Jordi; GIANNINI, Leandro J.. Contra la carga de la prueba. Madri: Marcial Pons, 2019, p. 23-52. JUNIOR, José Américo Zampar. As teorias sobre o ônus da prova e o CPC/15. In: DIDIER JR., Fredie; JOBIM, Marco Félix; FERREIRA, William Santos. Coleção Grandes Temas do Novo CPC: Direito Probatório. 3ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2018, p. 447/474. 65 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e convicção: de acordo com o CPC de 2015. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela de urgência e tutela de evidência: soluções processuais diante do tempo da justiça. 3ª ed. São paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela de urgência e tutela de evidência: soluções processuais diante do tempo da justiça. 3ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. O ônus da prova. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da prova no processo civil: Do ônus ao dever de provar. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. ROSENBERG, Leo. Tratado de derecho procesal civil Tomo. II. Trad. Angela Romera Vera. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1955. ___. La carga de la prueba. Buenos Aires: Editorial BdeF, 2019. TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a reconstrução dos fatos. Trad. Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2016. WALTER, Gerhard. Libre apreciación de la prueba: investigación acerca del significado, las condiciones y límites del libre convencimento judicial. Buenos Aires: Ediciones Olejnik, 2019. YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônoma à prova. São Paulo: Malheiros, 2009. 66 Eventualidade e provas Guilherme Santos Neves Abelha Rodrigues Graduando em Direito pela Universidade federal do Espírito Santo (UFES). Curriculum Lattes: 1322897749619572. Email: guilhermeabelha@hotmail.com. Sumário: 1. Eventualidade e provas; 2. Referências bibliográficas. 1. Eventualidade e provas O ordenamento jurídico regula abstratamente uma série de fatos que julga relevantes, por meio da denominada norma jurídica. Assim, a partir do momento em que há uma norma jurídica, qualquer fato que venha a concretizar-se no mundo real da maneira que a norma havia anteriormente previsto passará a ser mais do que mero fato do mundo: se tornará fato jurídico. Em outras palavras: quando ocorre um fato no mundo e ele guarda identidade com o fato abstratamente previsto na parte da norma jurídica denominada suporte fático (isto é, a parte da norma jurídica que descreve os fatos relevantes), ocorre o fenômeno da incidência, com a consequente produção da eficácia legal, que transforma aquilo que antes era mero fato do mundo em fato jurídico — não confundir a eficácia legal com a eficácia jurídica, esta decorre de fato jurídico. Essa é a lição central do genial pensamento de Pontes de Miranda. Uma vez produzido o fato jurídico, deste irradia, ou pode irradiar, uma série de categorias eficaciais características desse mesmo fato jurídico. Estas nada mais são do que aquilo que, por previsão da norma jurídica, pode vir a irradiar do fato jurídico. Por exemplo, o Código Civil prevê que o ato ilícito faz nascer o dever de reparar (art. 927, CC). Ou seja, se alguém pratica um ato que o direito prevê como ato ilícito, aquele ato se torna jurídico (ato jurídico é uma das espécies de fato jurídico) e, conforme previsão do direito, irradia o direito subjetivo de ser indenizado. Todavia, nem sempre aquilo que o ordenamento jurídico prevê é espontaneamente cumprido pelas pessoas. Veja: pode ser que uma pessoa “A” dirigindo em alta velocidade provoque um acidente, do qual resulte a completa destruição do veículo de uma outra pessoa “B” que transitava pela via. Por isso, “B” teve um alto prejuízo monetário com o conserto de seu carro. Ora, tendo “A” praticado um ato ilícito (nos moldes do art. 186, CC), surgiu para ele o dever de indenizar “B” pelos prejuízos que sofreu. A pessoa “B”, no entanto, ao exigir de “A” os valores gastos no conserto do 67 veículo, teve sua exigência prontamente atendida. Nesse caso, portanto, surgiu fato jurídico, irradiou eficácia (no caso, um direito de crédito, de ser indenizado, com o correlato dever de indenizar), o direito foi exercido, mas prontamente atendido pelo devedor. Nesse exemplo, pode-se dizer que surgiu conflito de interesses, houve exigência de subordinação do interesse alheio ao próprio — isto é, exercício de pretensão, na clássica formulação de Carnelutti —, mas essa exigência foi atendia, razão pela qual, embora tenha surgido conflito de interesses, ele não foi qualificado por uma pretensão resistida — definição clássica de lide para Carnelutti. Por outro lado, é possível que, uma vez feita a exigência de subordinação do interesse alheio ao próprio, aquele que foi exigido resista, surgindo então a lide. A partir de então, quem teve sua exigência insatisfeita pode, ou buscar a realização coativa de seu interesse, ou se resignar diante da não satisfação. Optando pela primeira opção, será necessário, imaginando que não exista o Estado, que faça valer de mão própria o interesse que almeja. Todavia, quando surge o Estado, ele assume para si o monopólio da jurisdição, ao mesmo tempo que assume o dever (criando o correspectivo direito) de prestar a atividade jurisdicional, dando solução aos conflitos de interesses qualificados por pretensões resistidas que forem a ele levados (e na extensão em que forem a ele levados) e em relação aos quais se pede uma determinada solução. Esse direito de receber do Estado a solução do conflito que a ele for levado denomina- se, na nomenclatura de Pontes de Miranda, “direito à tutela jurídica” (2013, p.566, grifo nosso) — há outras denominações para esse direito feitas por outros autores, mas utilizaremos a de Pontes de Miranda. Ensina Pontes de Miranda, ainda, que o direito subjetivo se distingue da pretensão. Esta é “a posição subjetiva de poder exigir de outrem alguma prestação positiva ou negativa.” (2013, p. 533). Perceba-se que pretensão é “posição subjetiva de poder exigir”, não é, portanto, exigência, mas possibilidade de exigir. Isso significa que posso ter pretensão sem, contudo, exercê- la, ao passo que posso também, perfeitamente, optar por exercê-la. Para ilustrar isso, posso ter direito de crédito exigível contra “A” e efetivamente exigir, como posso também escolher não exigir o crédito, ou seja, posso exercer, ou não, a pretensão. O mesmo se passa com o direito à tutela jurídica, que, inclusive, o próprio Pontes de Miranda explicita que é direito no mais rigoroso sentido: “O direito à tutela jurídica, com a sua pretensão e o exercício dessa pela "ações", é direito, no mais rigoroso e preciso sentido” (2013, p. 566). Assim, quando vou ao Judiciário e, exercendo minha pretensão à tutela jurídica, exijo que me seja prestada a tutela jurídica, também deduzo “o direito” em relação ao qual quero que o Estado se manifeste e preste a tutela jurídica — neste ponto, não adentraremos nos meandros técnicos e terminológicos que a matéria requereria, por não ser esse o objetivo desta exposição. Mas então surge a pergunta: ora, como o 68 Estado irá saber qual é o “direito”, qual é o “problema” e qual é a “solução” que estou perseguindo? Exatamente para que o Estado possa cumprir o dever de prestar a tutela jurídica, é necessário que o “autor” (no processo de conhecimento) leve ao Judiciário “o seu direito”, isto é, que indique a existência de uma norma jurídica, que ocorreu na vida real algum fato previsto pela norma, que este fato se tornou fato jurídico e que dele irradiou o direito do qual ele afirma ser titular — essa é uma exposição de caráter introdutório, por isso alguns detalhes estão sendo abstraídos da exposição para melhor fluidez). Depois, ainda é necessário que indique a existência do conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida, ou melhor, que indique a existência de um fato do demandado que viola o direito do qual ele afirmou ser titular (que se sói chamar de causa de pedir remota passiva). Depois disso, ainda, o demandante precisa pedir uma solução ao judiciário. O demandado, por sua vez, poderá, logicamente, resistir às afirmações do demandante. Poderá, por exemplo, atacá-las diretamente (o que se denomina defesa de mérito direta), ou seja, dizer que o fato alegado pelo demandante não ocorreu ou, ainda, que, embora tenha ocorrido, não passa de mero fato material, não tendo se tornado fato jurídico, ou ainda, embora seja fato jurídico, dele não irradiou as consequências jurídicas que afirma o demandante. Pode também, por outro lado, embora reconhecendo que o fato jurídico e suas consequências jurídicas afirmados pelo demandante tenham ocorrido, apresenta a ocorrência de um outro fato jurídico e de respectivas consequências jurídicas que modificam ou extinguem as consequências afirmadas pelo demandante: eis a chamada defesa indireta de mérito. Esse entendimento inicial, embora exposto de forma incipiente, é fundamental para a compreensão da temática da eventualidade e do direito probatório. Quando se ingressa no Judiciário, como já se disse, leva-se um “problema para ser resolvido” em juízo. Acontece que o Judiciário, em razão do modelo político-jurídico que vige no Brasil, deve assumir uma postura de inércia e imparcialidade diante do conflito que a ele é apresentado — embora essa postura seja relativizada em diversos aspectos. Uma das consequência disso é que o juiz somente pode julgar tendo em conta o elemento fático trazido ao processo pelas partes; ou, conforme a conhecida máxima: quod non est in actis non est in mundo (o que não está nos autos não está no mundo). Assim, cabe às partes alegar os respectivos fatos jurídicos que a lei diz ser incumbência delas alegar. No caso do demandante, o fato constitutivo de seu direito (art. 319, CPC), e no do demandado, os novos fatos (não trazidos pelo demandante) com que impugna o pedido do demandante (art. 336, CPC), isto é, os fatos impeditivos e extintivos ou impeditivos do direito do demandante — ou ainda, no caso da defesa direta de mérito, a impugnação dos fatos trazidos pelo autor (art. 341, CPC). 69 Todavia, para que o juiz julgue, não basta que o fato jurídico seja afirmado, mas é necessário também que seja provado: “ao ‘onus allegandi’ acresce o ‘onus probandi’” (RODRIGUES, 2011, p. 21, grifos do autor). O CPC determina expressamente que “Art. 373. O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.” Para além dessa regra geral, estipula também a possibilidade de distribuição diversa do ônus probatório por determinação judicial ou convenção das partes. Dito isso, é preciso ainda ter em mente que durante a relação jurídica processual são praticados diversos atos processuais, dentre os quais, por exemplo, a adução de defesa indireta de mérito ou a postulação de determinado meio probatório. A possibilidade de se praticar os atos processuais, todavia, não é uma faculdade absolutamente livre das partes, mas se submete a certos limites. Essas “limitações”, uma vez verificadas, atingem diretamente a faculdade da parte praticar determinado ato processual, aniquilando-a: é a chamada preclusão. São três as espécies de preclusão, quais sejam, a lógica, a temporal e a consumativa. Quando transportamos tal noção para o que anteriormente fora exposto, logo percebe-se que os atos processuais de alegação e prova das afirmações de fatos, seja do autor quanto ao fato constitutivo de seu direito, seja do réu quanto aos fatos constitutivos de sua exceção, também se submetem à preclusão. Por isso, tendo em vista a possibilidade de preclusão, pode-se dizer que o sistema estabelece um certo momento dentro do desenvolvimento do procedimento para que se pratique certo ato processual. Ou pratica-se o ato naquele momento determinado, ou já não será mais possível praticá-lo, porque precluso. Uma das consequências dessa possível perda de uma faculdade processual, ou do chamado princípio da preclusão, é o chamado princípio da eventualidade. Este importa em que a parte aduza no mesmo evento toda a demanda ou toda a defesa e indique os meios probatórios dos quais pretende dispor. Como explica Araken de Assis: “Objetivamente, a eventualidade importa a necessidade de se produzir, de uma só vez, todas as alegações da demanda e da defesa, e indicar todos os meios de prova [...].” (2015, p. 607). Dessa forma, se os atos processuais são passíveis de precluírem e toda as alegações de fato da demanda/defesa e dos meios de prova devem ser realizadas um só momento, então surge a pergunta: que momento é esse? Qual é o momento em que o demandante, e depois o demandado, deve praticar tais atos? Tratando primeiro das alegações de fato e de direito (genericamente: norma jurídica + fato material + incidência = fato jurídico = consequências jurídicas irradiadas), cabe ao demandante, já na petição inicial, alegar os fatos constitutivos de seu direito, conforme art. 319, III, CPC. Se não alega nenhum fundamento de fato e direito na 70 petição inicial, então será hipótese de falta de causa de pedir, razão por que implicará seu indeferimento por inépcia (art. 330, I e 330 § 1º, I, ambos CPC). Por outro lado, se há causa de pedir, mas, por exemplo, o demandante aduz apenas parcialmente a matéria de fato que poderia aduzir. Neste caso, a opção que tem é a de aditar sua petição, sem necessidade de consentimento do réu,caso o faça antes da citação deste. Se o réu já houver sido citado, então eventuais alterações dependerão do consentimento do réu. Logo, se, por exemplo, o réu não consente com a alteração da causa de pedir, então, o demandante já não poderá alegar, por exemplo, o material fático que deixou de fora da petição. Uma ressalva a ser feita: há dois prismas por que se pode observar essa questão, um mirando para dentro do processo e outro para fora. Dentro do processo, se houve citação do réu e esse não concorda com a ampliação da causa de pedir, por exemplo, o demandante já não poderá alterar seus fundamentos de fato e direito: sua faculdade precluiu. Se houver sentença de mérito, a coisa julgada impedirá a reproposição da mesma ação — agora já por um prisma fora do processo. Assim, não poderá a mesma ação ser levada ao judiciário, ainda que por nova demanda que contenha, por exemplo, um material fático singelamente ampliado. Na verdade, o problema da identificação da ação está ligado ao fato jurídico, e não exatamente a todas as alegações de fato de que se vale o demandante. Assim, caso o fato omitido no primeiro processo seja, por si só, fato jurídico do qual decorreria, também, o pedido do autor feito em outra ação, a coisa julgada não afasta a “reproposição”. Tecnicamente, não há reproposição, mas nova ação — cabe registro, embora sumariamente, de que há opinião (Por exemplo, ASSIS, 2002, p. 145), minoritária na doutrina, de que não poderia ser “reproposta” a ação, ainda que fundada em fato jurídico diverso que sozinho fosse razão suficiente para que se pedisse o mesmo que na ação anterior, isso porque a eficácia preclusiva da coisa julgada alcançaria também esses fatos jurídicos não deduzidos. (No sentido contrário, em conformidade com a doutrina majoritária, SIQUEIRA, 2020, p. 74 e p. 74, nota 137) Quanto ao demandado, ele deve alegar, como regra geral, toda a matéria de defesa na contestação, conforme art. 336, CPC. Ou seja, impugnar as razões de fato e direito do demandante, inclusive aduzindo novas alegações de fato. Dito isso, já se sabe, então, qual é o momento em que se deve alegar o material de fato e de direito. Todavia, em especial quanto a esse material fático alegado, ainda é preciso saber qual é o momento e como se dará a atividade probatória em relação a esses mesmos fatos aduzidos. Primeiramente, deve-se distinguir três momentos da prova, a proposição, o deferimento e a produção (RODRIGUES, 2016, p. 556). 71 O que importa para o presente tema em relação à preclusão e ao direito probatório é analisar especificamente a proposição da prova. É certo que o juiz pode determinar as provas que considerar necessárias de ofício (art.370, caput, CPC), mas o que se deve analisar é em que momento a parte pode, sponte sua, requerer a medida probatória — apenas uma ressalva quanto ao art. 370, CPC: há diversas interpretações desse artigo e da extensão dos poderes instrutórios do juiz, desde as que entendem possuir ele amplos poderes instrutórios, passando por outras que entendem haver ali uma autorização apenas para uma atividade judicial complementar, até outras que consideram o artigo inconstitucional (Para breve explanação desses posicionamentos, ver DIDIER JR., 2016, p. 91-93). Conforme, os arts. 319, VI e 336, o demandante deve indicar as provas de que pretende se valer na petição inicial e o demandado na contestação. É certo que uma série de meios probatórios típicos, com regramentos específicos. Contudo, a regra geral é a aquela já exposta. Assim, pelo menos em tese e em conformidade com a regra geral, se a parte não indica algum meio probatório de que pretenderia se valer, ela não poderá, passado o momento adequado, requerer sua utilização, por estar preclusa sua faculdade de o fazer. Embora, ressalve-se, haja a possibilidade de o juiz determinar, de ofício, a medida (tendo em mente que a extensão desse poder instrutório depende da interpretação que se confere ao art. 370, CPC). 2. Referências bibliográficas ASSIS, Araken de. Processo civil brasileiro. Vol. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. ASSIS, Araken de. Cumulação de Ações. 4.ª ed., rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Vol. II. 11.ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo V. Atualizado por: Marcos Ehrhardt Jr., Marcos Bernardes de Mello. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. RODRIGUES, Fernando Pereira. A Prova em Direito Civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2011. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de Direito Processual Civil. 6.ª ed., rev. e. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2016. SIQUEIRA, Thiago Ferreira. Limites Objetivos da Coisa Julgada: Objeto do processo e Questões Prejudiciais. Salvador: JusPodivm, 2020. 72 Iudex iudicare debet secundum allegata et probata non secundum conscientia Gilberto Fachetti Silvestre Professor do Departamento de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Pós-Doutorado em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Pós-Doutorado em Direito pela Școala Doctorală da Facultatea de Drept da Universitatea „Alexandru Ioan Cuza” din Iași, Romênia; Pós-Doutorado em Educação pelo Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Coordenador do Grupo de Pesquisa “Desafios do Processo”; Advogado. Lattes iD: http://lattes.cnpq.br/7148335865348409. Orcid iD: http://orcid.org/0000-0003-3604-7348. E-mail: gilberto.silvestre@ufes.br. A máxima iudex iudicare debet secundum allegata et probata non secundum conscientia se relaciona com o princípio dispositivo (também chamado de princípio da inércia ou da demanda). O princípio dispositivo impõe que o início do processo e a definição dos limites da lide competem ao arbítrio do autor (JORGE, 2004, p. 219). Para Cintra, Grinover e Dinamarco (2003, p. 64), “consiste na regra de que o juiz depende, na instrução da causa, da iniciativa das partes quanto às provas e às alegações em que se fundamentará a decisão: iudex secundum allegata et probata partium iudicare debet”. Dá à jurisdição a característica da inércia, pelo qual o juiz não pode agir ex officio. Para que este aja será necessária a provocação das partes e da manifestação de suas pretensões (PINHO, 2007, p. 43). “O princípio é de inegável sentido liberal, porque a cada um dos sujeitos envolvidos no conflito sub judice é que deve caber o primeiro e mais relevante juízo sobre a conveniência ou inconveniência de demonstrar a veracidade dos fatos alegados” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2003, p. 64). Ao dar a esse princípio um sentido absoluto, atribuiu-se ao processo um aspecto essencialmente privado, pelo qual as partes mantinham controle sobre todas as iniciativas da demanda. O juiz ocuparia um papel secundário no debate processual, cabendo-lhe, ao final, proceder à correta subsunção, quase que mecanicamente. Nesse sentido, destaca Calamandrei que a proibição de o juiz utilizar suas informações privadas sobre os fatos da causa se depreende da tradicional máxima secundum allegata et probata partium debet judex judicare, non secundum suam 73 constientiam (o juiz deve julgar de acordo com o que foi alegado e provado pelas partes, e não de acordo com a sua consciência). Desse princípio se decompõem duas proibições (PINA, 1975, p. 100): 1. Secundum allegata decidere debet: impede que o juiz amplie de ofício os limites da lide com outros fatos distintos dos suscitadospelas partes; e 2. Secundum probata decidere debet: proíbe a utilização pelo juiz de meios de prova diversos das requisitadas no processo para alcançar a verdade dos fatos alegados pelas partes. Contudo, a partir da segunda metade do século XIX tem início a superação dessa postura restritiva imposta pelo princípio dispositivo, como bem destacam Cintra, Grinover e Dinamarco (2003, p. 64): Todavia, diante da colocação publicista do processo, não é mais possível manter o juiz como mero espectador da batalha judicial. Afirmada a autonomia do direito processual e enquadrado como ramo do direito público, e verificada a sua finalidade preponderantemente sócio-política, a função jurisdicional evidencia-se como um poder-dever do Estado, em torno do qual se reúnem os interesses dos particulares e os do próprio Estado. Assim, a partir do último quartel do século XIX, os poderes do juiz foram paulatinamente aumentados: passando de espectador inerte à posição ativa, coube-lhe não só impulsionar o andamento da causa, mas também determinar provas, conhecer ex officio de circunstâncias que até então dependiam da alegação das partes, dialogar com elas, reprimir-lhes eventuais condutas irregulares etc. Dentro desses princípios, elaboraram-se os códigos processuais civis da Alemanha, da Itália, da Áustria, bem como os nossos, a partir de 1939. Nesse sentido, concluem que “o processo civil, hoje, não é mais eminentemente dispositivo, como era outrora” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2003, p. 66). Prova dessa mudança de paradigma é o debate que existe em torno do chamado princípio da cooperação processual. De acordo com Fredie Didier Jr. (2005, p. 59-63), esse princípio da cooperação orienta o magistrado a tomar uma posição de agente colaborador do processo, de participante ativo do contraditório e não mais a de um mero fiscal de regras. [...]. Encara-se o processo como o produto de atividade cooperativa: cada qual com as suas funções, mas todos 74 com o objetivo comum, que é a prolação do ato final (decisão do magistrado sobre o objeto litigioso). Traz-se o magistrado ao debate processual; prestigiam-se o diálogo e o equilíbrio. Trata-se de princípio que informa e qualifica o contraditório. [...] gera os seguintes deveres para o magistrado (seus três aspectos): a) dever de esclarecimento; b) dever de consultar; c) dever de prevenir. O dever de esclarecimento ‘consiste no dever do tribunal de se esclarecer junto às partes quanto às dúvidas que tenha sobre as suas alegações, pedidos ou posições em juízo’, para evitar decisões tomadas em percepções equivocadas/apressadas. [...]. Não pode o magistrado decidir com base em questão de fato ou de direito, ainda que possa ser conhecida ex officio, sem que sobre elas sejam as partes intimadas a manifestar-se. Deve o juiz consultar as partes sobre esta questão não alvitrada no processo, e por isso posta em contraditório, antes de decidir. Eis o dever de consultar. Trata-se de manifestação da garantia do contraditório, que assegura aos litigantes o poder de tentar influenciar na solução da controvérsia. [...]. Tem o magistrado, ainda, o dever de apontar as deficiências das postulações das partes, para que possam ser supridas. Trata-se do chamado dever de prevenção. ‘O dever de prevenção tem âmbito mais amplo: vale genericamente para todas as situações em que o êxito da ação a favor de qualquer das partes possa ser frustrado pelo uso inadequado do processo’. [...]. Dessa mudança de paradigma resultará a adoção pelos sistemas processuais do princípio da livre investigação das provas. Referências bibliográficas. BERIZONCE, Roberto. Recientes tendencias en la posición del juez. In Revista de Processo, nº. 96, São Paulo, 1999. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. DIDIER JR., Fredie. Direito processual civil: tutela jurisdicional individual e coletiva. 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2005. JORGE, Flávio Cheim. Teoria geral dos recursos cíveis. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. PINA, Rafael de. Tratado de las pruebas civiles. 2ª ed. México: Porrúa, 1975. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Teoria geral do processo civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. 75 Nemo tenetur se detegere: o direito de não produzir provas contra si mesmo Tiago Loss Ferreira Acadêmico de Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Pesquisador do Programa Institucional de Iniciação Científica (UFES/PIIC/CNPq) e dos Grupos de Pesquisas “Desafios do Processo” e “Medicina Defensiva”. E-mail: tiago.loss@hotmail.com. Lattes iD: http://lattes.cnpq.br/0731528987176134. Orcid iD: http://orcid.org/0000-0003-1566-9869. Sumário: 1. Definição; 2. Incidência; 3. Aplicabilidade; 4. Referências bibliográficas. 1. Definição. O direito de não produzir provas contra si mesmo (nemo tenetur se detegere) consiste na proibição de se forçar um indivíduo a fornecer informações que possam lhe causar sanções jurídicas. Por inúmeras vezes, esse direito é classificado como um princípio jurídico por possuir uma elevada densidade normativa quanto às suas possibilidades de incidência, de modo que a sua aplicação depende de exame casuístico em conjunto com outros princípios jurídicos (legalidade; presunção de inocência; contraditório; cooperação; etc.). É nesse contexto que Maria Elizabeth Queiroz Queijo (2012, p. 77) defende que: Nessa ótica, o princípio nemo tenetur se detegere, como direito fundamental, objetiva proteger o indivíduo contra excessos cometidos pelo Estado, na persecução penal, incluindo-se nele o resguardo contra violências físicas e morais, empregadas para compelir o indivíduo a cooperar na investigação e apuração de delitos, bem como contra métodos proibidos de interrogatório, sugestões e dissimulações. Como direito fundamental, o nemo tenetur se detegere insere-se en- tre os direitos de primeira geração, ou seja, entre os direitos da liberdade. O titular de tais direitos é o indivíduo diante do Estado. Sob essa base, Marcellus Polastri Lima (2009, p. 419) explica que “o princípio do nemo tenetur se detegere seria extraído do princípio do devido processo legal, do direito à 76 ampla defesa e do princípio da presunção de inocência, tendo ainda relação com a proteção da dignidade humana”. Assim sendo, o direito de não autoincriminação é uma garantia processual do ordenamento jurídico brasileiro que visa ampliar a proteção do indivíduo em face de sanções jurídicas. A atribuição desse caráter garantista pretende assegurar que nenhuma pessoa seja coagida – por autoridade estatal ou indivíduo particular – a fornecer contra a sua vontade prova que possa incriminá-lo (RAFIH; BATICH, 2021). 2. Incidência. Demonstrada a conceituação adotada em relação ao direito de não produzir provas contra si mesmo, interessa analisar o seu âmbito de incidência. Luiz Flávio Gomes (2021) explica que o referido direito se aplica: [...] tanto para a fase investigatória (qualquer que seja ela: inquérito policial, CPI etc.) como para a fase processual (propriamente dita). Vale também perante qualquer outro juízo (trabalhista, civil, administrativo etc.), desde que da fala ou do comportamento ativo do sujeito possa resultar uma persecução penal contra ele. Em síntese, o direito de não auto-incriminação não projeta seus efeitos apenas para o âmbito do processo penal ou da investigação criminal ou civil. Perante qualquer autoridade ou funcionário, de qualquer um dos poderes, que formule qualquer tipo de imputação penal (ou se suspeita) ao sujeito, vigora o princípio (a garantia) da não auto- incriminação (que consiste no direito de não falar ou de não se incriminar, sem que disso possa resultar qualquer prejuízo oupresunção contra ele). Se a garantia citada não tivesse essa extensão sua importância seria quase nenhuma. É irracional imaginar que alguém possa invocar a garantia perante o juízo penal, sendo obrigado a se incriminar perante um juízo trabalhista, civil, administrativo etc. A prova decorrente dessa auto-incriminação lhe compromete seriamente. Sua incidência, entretanto, não se limita ao indivíduo que está sob investigação (suspeito ou réu), mas sim a qualquer pessoa que pelo fornecimento de informações ou pela prática de comportamentos ativos pode ser sancionada. Um desdobramento dessa possibilidade é que uma testemunha ou um informante utilize o nemo tenetur se detegere para se negar a declarar acerca de fatos que podem gerar repercussões negativas a si mesmo. Esse desdobramento é bem explicado por Marcella Alves Mascarenhas Nardelli (2015): O direito à não autoincriminação pode ser compreendido tanto no enfoque daquele contra quem já pesa uma acusação e figura, portanto, como réu em determinado processo, como também no 77 enfoque de qualquer pessoa chamada a depor como testemunha. No primeiro caso é intuitivo que o acusado tem a prerrogativa de não produzir prova contra si mesmo como decorrência da presunção de inocência e da distribuição do ônus probatório no processo penal. Seguindo esta lógica, em sendo o acusado presumidamente inocente por determinação constitucional, incumbe ao órgão acusatório a comprovação da imputação e não é cabível compelir o acusado a contribuir nesse intento. Daí decorre o direito ao silêncio e de não responder as perguntas formuladas, tanto na fase extrajudicial, de investigação, como na fase processual, de não participar ativamente de procedimentos investigatórios com a finalidade de obter prova de sua culpabilidade, como a reconstituição do crime e, até mesmo, de ter a mentira tolerada, como pressuposto da autodefesa. Por outro lado, em relação à testemunha chamada a depor, também lhe vem sendo reconhecido o direito de não revelar informações potencialmente autoincriminatórias. Assim, visando a uma máxima efetividade da garantia, o titular do direito de não produzir prova contra si mesmo deve ser qualquer pessoa que possa se autoincriminar. Portanto, conclui-se que o âmbito de incidência do nemo tenetur se detegere abarca qualquer pessoa que possa ser prejudicada com informações ou comportamentos ativos que possam lhe resultar sanções. 3. Aplicabilidade. É incontestável que a aplicação do direito de não produzir provas contra si mesmo possui maior incidência na seara criminal, pois nesta há um conjunto de garantias materiais e processuais a favor do réu que explicitamente se encaixam na incidência do referido direito – tais como: ônus probatório da autoria e da materialidade do fato criminoso pertencer à acusação; a dúvida favorecer o réu (princípio in dubio pro reo); a inexistência de crime sem lei anterior que o preveja (princípio da legalidade); a presunção de inocência até o transito em julgado da decisão condenatória; etc. Entretanto, há inúmeras discussões que merecem ser exploradas acerca da possibilidade de aplicação do nemo tenetur se detegere em searas jurídicas para além do processo penal, como no direito processual civil e no direito administrativo. De início, em relação ao processo penal, Renato Brasileiro de Lima defende que: “a Constituição da República impede que se extraia qualquer conclusão desfavorável àquele que, suspeito ou acusado de praticar alguma infração penal, exerce o direito de não produzir prova contra si mesmo (princípio nemo tenetur se detegere)” (LIMA, 2020, p. 1226). 78 Interessa ressaltar que a proibição abarca o fornecimento de qualquer tipo de informações acerca de situação incriminadora, principalmente no que tange à realização de depoimentos ou interrogatórios e à imposição de comportamentos ativos do investigado (reconstituição do crime; fornecimento de amostras de sangue ou de DNA; exame de escrita; dentre outros). Diante disso, Roberto Antônio Darós Malaquias (2014) pontua que: A recusa em prestar declarações ou informações é legítima e fundamentada no princípio nemo tenetur se detegere, decorrendo daí o direito ao silêncio, a vedação de determinadas técnicas e métodos de interrogatório, a inexistência do dever de dizer a verdade e a inexistência do dever de comparecimento, configurando-se como interesse público na apuração dos delitos que deve se harmonizar com a persecução penal, a proteção e o respeito à dignidade da pessoa humana. Soma-se a isso os ensinamentos de Rhasmye El Rafih e Filipe Lovato Batich (2021): O princípio da não autoincriminação tem ampla abrangência, compreendendo o direito ao silêncio e o direito de não apresentar provas autoincriminadoras. O primeiro se desdobra em: i) direito de não ser obrigado a depor contra si; ii) direito de não se declarar culpado (confessar); e, iii) direito de mentir, mas sem prejudicar terceiros. O segundo, por sua vez, integra o: i) direito de não colaborar com a investigação/instrução, abrangendo o direito de não ceder o corpo para a produção de prova incriminadora contra si; e ii) direito à não participação ativa nos procedimentos sancionatórios. No âmbito administrativo, o exercício do poder de polícia estatal na limitação de direitos individuais prevê a possibilidade de imposição de sanções-penas como multas, apreensão de permissões, negativas de alvarás, dentre outras. Por conta da possibilidade de imposição dessas sanções, também há incidência da garantia do nemo tenetur se detegere para permitir ao indivíduo se negar a fornecer informações comprometedoras ou a praticar comportamentos ativos. Nessa seara, a principal discussão acerca da aplicação do direito à não autoincriminação se refere aos exames de alcoolemia em casos de embriaguez na condução de veículos automotores – no tradicionalmente conhecido “teste do bafômetro” – que gera comprometimentos criminais, para além das penalidades administrativas. Ao explorar o tema, Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 1229) explica que: Ao contrário do que ocorre no âmbito criminal, em que, por força do princípio da presunção de inocência, não se admite eventual inversão do ônus da prova em virtude de recusa do acusado em se 79 submeter a uma prova invasiva, no âmbito administrativo, o agente também não é obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere), porém como não se aplica a regra probatória que deriva do princípio da presunção de inocência, a controvérsia pode ser resolvida com base na regra do ônus da prova, sendo que a recusa do agente em se submeter ao exame pode ser interpretada, em seu prejuízo, no contexto do conjunto probatório, com a consequente imposição das penalidades e das medidas adminsitrativas previstas no art. 165 do CTB.. Portanto, ausente a proteção decorrente da presunção de inocência do âmbito criminal, na seara administrativa a negativa do indivíduo em fornecer informações ou praticar comportamentos ativos pode acarretar na presunção de que tenha cometido conduta punível, desde que amparada por dados concretos. Essencial frisar que não há a imposição de sanção automática pela negativa do indivíduo, mas sim uma inversão do ônus probatório acerca da comprovação de que não realizou ato ilícito. Nessa situação, é o indivíduo que deve produzir as provas que entender pertinentes à sua defesa administrativa para afastar a presunção do cometimento do ilícito. Por outro lado, no direito processual civil, a aplicação do nemo tenetur se detegere demanda aplicações mais restritivas por conta das normas fundamentais da boa-fé processual e do dever de cooperação. Com isso, surge um embate entre o direito de não produzir provas contra si mesmo e os deveres da boa-fé e da cooperação, por conta da aparente incompatibilidade desses (NARDELLI,2015). Expondo seu ponto de vista sobre esse conflito, Sandoval Alves da Silva (2017) defende que: A parte deve produzir provas inclusive contra si mesma, ressalvados os limites trazidos especificamente pela lei processual, pois a vedação de produção de provas contra si tem aplicação forte no âmbito do direito penal, visto que não há presunção de inocência cível, mas o artigo 379 do CPC (LGL\2015\1656) muda isso, porque preserva o direito de não produzir prova contra si própria. Se levássemos essa interpretação literal à risca, como se faria, por exemplo, se o empregador não apresentasse o cartão de ponto para não produzir provas contra si? Como ele pode ser responsabilizado por não produzir prova contra si? O mesmo código que garante à parte o direito de não produzir provas contra si, impõe a presunção contra a parte que não for à audiência. A regra é contribuir com a verdade dos fatos, conforme prescrição literal do artigo 378 do CPC (LGL\2015\1656), cabendo a recusa em regime de exceção nos termos dos artigos 388 e 404 (fatos criminosos ou torpes, sigilosos 80 em razão de estudo ou profissão, familiares ou próprios desonrosos ou que os coloque em risco de vida etc.). Se a parte não produzir provas, comete ato atentatório à dignidade da justiça (art. 80), viola um dever processual e deve ser multado. Em sentido semelhante, Marcella Alves Mascarenhas Nardelli (2015) sustenta que: O processo civil é regido pelos princípios da cooperação e da boa-fé, estando as partes e terceiros comprometidos com a verdade e com o dever de colaboração para a sua obtenção. Uma vez que a invocação do direito à não autoincriminação pelas partes ou testemunhas não tem como alvo direto o próprio processo em que as declarações forem produzidas ou as provas reveladas, não há porque ocultar elementos relevantes nesta sede e frustrar uma cognição mais apurada, sendo que existem outros meios de garantir que não haja danos à parte que revela as informações. Em outras palavras, não é proporcional a incidência da limitação no processo civil pois estar-se-ia assim, indiretamente, ampliando o alcance da proteção do instituto para além do processo penal. A visão dos autores acima transcritas está prevista no Enunciado 51 do Vº Encontro do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “51. (art. 378; art. 379) A compatibilização do disposto nestes dispositivos com o art. 5º, LXIII, da CF/1988, assegura à parte, exclusivamente, o direito de não produzir prova contra si em razão de reflexos no ambiente penal”. Com o exposto, verifica-se que o âmbito de aplicação do nemo tenetur se detegere possui plena sistematização na seara criminal, entretanto, muito embora se entenda que a sua aplicação é extensível a outras searas jurídicas, ainda não existem contornos claros de como deve ser realizada a sua aplicação no direito processual civil e no direito administrativo – questões que devem ser resolvidas pela doutrina e pela jurisprudência pátrias. 4. Referências bibliográficas. GOMES, Luiz Flávio. Princípio da não auto-incriminação: significado, conteúdo, base jurídica e âmbito de incidência. Disponível em: . Acesso em 15 de novembro de 2021. LIMA, Marcellus Polastri. Manual de processo penal. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 8ª ed. Salvador Juspodivm, 2020. 81 MALAQUIAS, Roberto Antônio Darós. Princípio nemo tenetur se detegere no estado democrático de direito. Revista dos Tribunais, v. 941, 2014. NARDELLI, Marcella Alves Mascarenhas. O direito à prova e à não autoincriminação em uma perspectiva comparada entre os processos civil e penal. Revista de Processo, v. 246, 2015. QUEIJO, Maria Elizabeth Queiroz. O direito de não produzir prova contra si mesmo - o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. RAFIH, Rhasmye El; BATICH, Filipe Lovato. O princípio da não autoincriminação e a interpretação da corte européia de direitos humanos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 179, 2021. SILVA, Sandoval Alves da. O dever fundamental da persecução da verdade possível ou provável no CPC de 2015. Revista dos Tribunais, v. 980, 2017. 82 O direito ao silêncio e sua extensão no ordenamento jurídico brasileiro Bernardo Dias Lopes Nunes Graduando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa “Observatório do Processo Civil – Partes e Terceiros”. Pesquisador do Programa Institucional de Iniciação Científica da UFES. Curriculum Lattes: 4716370297529099. E-mail: bernardo.dlnunes@gmail.com. Júlia D’Amato Nitz Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa “Observatório do Processo Civil – Partes e Terceiros” Curriculum Lattes: 0554557806315112. Email: juliadamatonitz@gmail.com. Sumário: 1. Considerações iniciais sobre o direito ao silêncio; 2. O direito ao silêncio no âmbito do Processo Penal; 3. O direito ao silêncio e sua aplicabilidade na seara do Processo Civil; 4. Referências bibliográficas. 1. Considerações iniciais sobre o direito ao silêncio O direito ao silêncio foi constitucionalmente consagrado por meio de expressa disposição do art. 5º, inciso LXIII, o qual prevê que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e do advogado”. Faz-se mister pontuar, contudo, que o direito em apreço nem sempre foi garantido às partes. Nessa esteira, é possível constatar uma longa e gradativa evolução legislativa em torno da garantia do imputado de manter-se em silêncio. Até a Constituição de 1824, era permitido o emprego de tortura para alcançar a confissão do acusado. A Constituição posterior (1891), apesar de seus ideais republicanos e iluministas, somente dispôs acerca do direito à ampla defesa, deixando de manifestar-se acerca do direito ao silêncio. Portanto, recaiu sobre os doutrinadores a responsabilidade de disseminar tal garantia na literatura jurídica. Somente com o advento do Código de Processo Penal de 1941, o direito ao silêncio passou a ser legalmente disciplinado. (VIOLIN, 2011, p. 29). 83 É preciso pontuar, porém, a existência de significativas diferenças entre o diploma supracitado e a Constituição de 1988. Originalmente, o Código de Processo Penal de 1941 previa, nos termos do art. 186, que o silêncio poderia ser interpretado em desfavor do imputado. Todavia, como será examinado futuramente, a Lei n. 10.792/2003 trouxe uma nova redação para o dispositivo em voga. Remanescem, contudo, incoerências no tocante à possibilidade de utilização do silêncio para a formação do convencimento do juiz (art. 198, do CPP). A nova ordem constituinte, portanto, seguindo orientação da Convenção Americana de Direitos Humanos, consolidou o direito ao silêncio como uma garantia individual do acusado. Assim sendo, nenhum indivíduo pode ser obrigado a depor e produzir provas contra si mesmo, não podendo sequer se autodeclarar culpado. Percebe-se, pois, uma significativa carga principiológica em torno do direito sob exame - envolvendo, principalmente, os princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa. (LIMA, 2002, p. 10). Vale ressaltar, também, a íntima conexão com o princípio nemo tenetur se detegere, o qual tem sido considerado direito fundamental do imputado. Isso porque, ao garantir o direito à não auto-incriminação, tutela-se a esfera da liberdade individual, extrapolando, assim, o “simples” direito ao silêncio. (QUEIJO, 2003, p. 54-55). Ainda nesse diapasão, Aury Lopes Jr. leciona que: “odireito ao silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, esculpida no princípio nemo tenetur se detegre, segundo o qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum tipo de prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silêncio quando interrogado.” (JUNIOR, 2017, p. 446). É garantido ao réu, ainda, o direito de prestar declarações falsas e inverídicas, sem que possa ser criminalmente responsabilizado, em razão da inexistência do crime de perjúrio no ordenamento nacional. Ademais, nota-se que o silêncio do acusado não poderá ser considerado como confissão ficta, uma vez que, como disposto anteriormente, o silêncio não poderá ser interpretado em desfavor do réu. Isto posto, depreende-se que a cláusula constitucional brasileira é ainda mais generosa que a tradicional disposição do direito norte-americano, prevista na 5ª Emenda à Constituição. Isso porque, no ordenamento jurídico deste país, não é permitido que o réu faça declarações falsas e inverídicas, sob pena de responsabilização criminal. (LIMA, 2002, p. 10). 84 Constata-se, todavia, que a despeito da amplitude e generosidade do legislador, a realidade prática é outra. Em razão da inobservância e do desrespeito da norma constitucional em apreço, relevantes críticas têm sido tecidas pela literatura jurídica pátria. Nessa toada, Wolgran Junqueira Ferreira destacou o caráter repressivo da atuação das autoridades policiais, ao salientar que: “como aqui a prisão é seguida de agressões, não sabemos se o preso, em primeiro lugar, irá apanhar, e depois, ouvir o dispositivo constitucional, ou se primeiro escuta atentamente seus direitos e depois vai para ‘pau-de-arara’”. (FERREIRA, 1997, p. 447). Por último, conclui-se que o direito ao silêncio constitui uma barreira intransponível ao direito à prova de acusação e, portanto, na redação de Antônio Magalhães Gomes Filho, “sua denegação, sob qualquer disfarce, representará um indesejável retorno às formas mais abomináveis da repressão, comprometendo o caráter ético-político do processo e a própria correção no exercício da função jurisdicional”. (GOMES FILHO, 1997, p. 113). 2. O direito ao silêncio no âmbito do Processo Penal O direito ao silêncio aplica-se, precipuamente, à seara do Direito Processual Penal, afigurando-se como uma das principais garantias constitucionais do réu - que se encontra positivado no art. 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal. Em que pese o constituinte referir-se expressamente ao preso no texto do mencionado dispositivo normativo, imprescinde compreender que o direito de permanecer calado abrange qualquer indivíduo submetido à investigação ou processo criminal. Tal prerrogativa, relacionada ao princípio da não autoincriminação, pode ser invocada em todas as etapas da persecução penal. Seu fundamento volta-se à impossibilidade de induzir qualquer indivíduo a causar danos a seu status de liberdade. Tem-se, pois, a proteção do réu no que tange a tentativas de obtenção de declarações autoincriminatórias por meios enganosos ou forçados (NARDELLI, 2015, p.8). Ademais, averigua-se que o direito ao silêncio apresenta contorno específico no Código de Processo Penal, por meio do art. 186, que veda a interpretação do silêncio em desfavor do acusado. Sob tal perspectiva, destaca-se que o silêncio do acusado não pode influenciar a formação do convencimento do julgador. Isso porque, ao manter-se calado, o réu não confere ao magistrado material instrutório algum. Assim, em face da ausência de contribuições à atividade cognitiva do juiz, tem-se a inviabilidade de utilizar o silêncio como fundamento para condenar ou absolver o arguido (CARVALHO, 2004, p. 4-6). 85 Contudo, o art. 198 do CPP aduz que o silêncio do acusado pode constituir elemento para a formulação da convicção do magistrado. Nesse sentido, afere-se que, a despeito das reformas instauradas no Código de Processo Penal com o fito de adequá-lo à Constituição Federal de 1988, ainda subsistem incoerências entre os dois diplomas normativos (CARVALHO, 2004, p. 4-6). Tem-se, pois, que o art. 198 do CPP representa afronta ao princípio da presunção de inocência e ao direito ao silêncio, devendo prevalecer a interpretação conferida a tal dispositivo legislativo sob a ótica constitucional - na medida em que a Carta Magna é dotada de supremacia incondicional em relação a todo ordenamento jurídico (LIMA, 2002, p. 11). É necessário considerar, ainda, que o direito de permanecer calado relaciona-se intrinsecamente à inexistência de ônus probatório para a defesa no Processo Penal, na medida em que é atribuída ao acusado unicamente a presunção de inocência. Dessa forma, segundo preceitua Ada Pellegrini Grinover, o interrogatório configura- se como meio de defesa do acusado, não apresentando valor meramente probatório: “Se o acusado pode calar-se, se não mais é possível forçá-lo a falar, nem mesmo por intermédio de pressões indiretas, é evidente que o interrogatório não pode mais ser considerado "meio de prova", não é mais pré-ordenado à colheita de prova, não visa ad veritatem quaerendam. Serve, sim,como meio de autodefesa.” (GRINOVER, 2005, p. 01). A partir da elucidação proposta, é possível compreender a importância do direito ao silêncio como forma de concretização das garantias fundamentais do réu no Processo Penal. Dessa maneira, observa-se que tal instituto pode ser concebido como manifestação da autodefesa do acusado, cujas origens remetem ao princípio da dignidade da pessoa humana. Outrossim, imprescinde salientar que o direito ao silêncio e à não autoincriminação estende-se a qualquer indivíduo chamado a depor como testemunha. Depreende-se, portanto, que todas as pessoas capazes de se autoincriminar apresentam-se como titulares do direito de não produzir provas contra si mesmo. Ressalta-se, também, que a testemunha que, no processo criminal, omite fatos passíveis de gerar responsabilização penal em prejuízo próprio não comete o delito de falso testemunho, conforme cristaliza a jurisprudência pátria (RHC 66.908/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 10/11/2016, DJe 25/11/2016). Assim, pretende-se a máxima efetivação da garantia constitucional sob exame (NARDELLI, 2015, p. 9). 86 3. O direito ao silêncio e sua aplicabilidade na seara do Processo Civil A análise acerca da aplicabilidade do direito ao silêncio no que concerne ao Direito Processual Civil mostra-se relevante para compreender a extensão de tal garantia constitucional no ordenamento jurídico brasileiro. Em razão disso, é preciso examinar seus limites e repercussões a partir da comparação entre o tratamento conferido ao instituto no âmbito penal e cível. Tem-se que o direito de permanecer calado manifesta-se, principalmente, nos momentos em que a parte deve prestar esclarecimentos diante do julgador - seja por meio do interrogatório penal, seja por intermédio do depoimento pessoal, na seara cível. Destaca-se que esses procedimentos apresentam naturezas jurídicas distintas e divergem no tocante a suas finalidades processuais (NARDELLI, 2015, p. 12). Sob esse viés, na perquirição penal encontram-se sob ameaça direitos individuais de grande significação, o que concede proteção especial à defesa tendo em vista o princípio do favor rei e do favor decisionis. Dessa forma, o legislador visa promover mais eficiência à atuação defensiva. Observa-se, pois, a concepção do interrogatório como ferramenta para a autodefesa do réu (GRINOVER, 2005, p. 01-03). Enquanto isso, na esteira do Processo Civil, atribui-se aos litigantes o dever de servir como meio de prova. Sob tal perspectiva, o depoimento pessoal objetiva a descoberta da verdade, que deve prevalecer mesmo em face do interesse de ver a lide solucionada em benefício próprio. Assim, éimperioso considerar que os princípios da lealdade e da boa-fé objetiva estabelecem limites rígidos para o relato das partes em juízo, sendo vedada a manipulação dos fatos em prol da obtenção de vantagens individuais. Tampouco é cabível que um dos polos da demanda se isente de relatar fatos que, apesar de apresentarem importância à cognição processual, podem gerar responsabilização penal às partes. Nesse sentido, com o fito de permitir o decurso normal do Processo Civil, busca-se evitar as consequências jurídicas no âmbito criminal derivadas de informações reveladas na ação civil. Para tanto, impõe-se o segredo de justiça a esses processos, que são regidos pelo dever de sigilo e pela proibição de utilização das provas produzidas para qualquer outra finalidade (NARDELLI, 2015, p.12). Evidencia-se que os processos cuja publicidade restringe-se às partes e aos seus procuradores não podem ser objeto de empréstimo de provas. Nesse caso, tal hipótese configurar-se-ia como prova ilícita, porquanto produzida em face de violação ao direito de intimidade. Os elementos probatórios colhidos nas condições mencionadas devem ser desentranhados do processo e desconsiderados para fins de convencimento do julgador (TALAMINI, 1998, p. 157). Dessa maneira, garante-se a proteção dos litigantes sem obstaculizar a adequada resolução do conflito submetido a juízo, de modo a dirimir as consequências 87 inerentes à limitação do direito ao silêncio no âmbito do Processo Civil. Isto é, vislumbra-se a possibilidade de satisfação do princípio da não autoincriminação nesse ramo do direito. Possibilita-se, ainda, o exercício de cognição ampliada dos fatos pelo magistrado, na medida em que as partes estão vinculadas ao princípio da colaboração. A partir do exposto, percebe-se que o direito ao silêncio não se manifesta tão intensamente no Direito Processual Civil, diferentemente do que se observa na seara do Processo Penal. Isso porque os princípios norteadores do Processo Civil impedem a sua aplicação plena, tendo em vista que as partes têm a obrigação de esclarecer os fatos em juízo de maneira irrestrita - mesmo que as suas declarações possam autoincriminá-las. Assim, a imunidade conferida aos litigantes volta-se, precipuamente, à possibilidade de limitar a publicidade processual, de modo a impedir que a sua colaboração para a solução da lide resulte em responsabilização penal contra si. 4. Referências bibliográficas CARVALHO, José Theodoro Corrêa. As inovações no interrogatório no Processo Penal. In: RT Online, v. 828, p. 463 - 477, 2004. Disponível em: . Acesso em: 29 de nov. 2021. FERREIRA, Wolgran Junqueira. Direitos e garantias individuais. Bauru: Edipro, 1997. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. GRINOVER, Ada Pellegrini. O interrogatório como meio de defesa. In: RT Online, v. 53, p. 185-200, 2005. Disponível em: . Acesso em: 19 de nov. 2021. JÚNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 16. ed., São Paulo: Saraiva, 2019. LIMA, Wanderson Marcello Moreira. A constitucionalização dos direitos fundamentais e seus reflexos no direito ao silêncio do acusado. 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Pós- graduado em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV. Graduado em Direito pela Faculdade Estácio de Vitória - FESV. Membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/ES. Advogado. E-mail: iuribcardoso@outlook.com. Eduardo Figueiredo Simões Acadêmico de Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Pesquisador voluntário (PIVIC) do Programa Institucional de Iniciação Científica da UFES – Período 2021/2022; Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Desafios do Processo”. E-mail: eduardofsimoes@hotmail.com. Lattes iD: http://lattes.cnpq.br/4588917736946889 Sumário: 1. Noções propedêuticas: o onus probandi e suas funções; 1.1. Probatio diabolica e algumas técnicas de superação. 2. Distribuição legal do ônus da prova; 2.1. Inversão ope legis do ônus probatório. 3. Dinamização do onus probandi; 3.1 Requisitos da inversão ope judicis do ônus probatório; 3.2. Negócio jurídico processual sobre provas; 4. Postura judicial perante a dinâmica probatória. 1. Noções propedêuticas: o onus probandi e suas funções. Para adentramos no conceito de “ônus da prova”, é necessário antes analisar a definição de “ônus”, per se. Embora comumente confundido com a noção de “dever” ou de “obrigação”, o ônus é essencialmente um encargo (carga, fardo ou peso), cuja inobservância ou não cumprimento pelo sujeito onerado (a quem é atribuído o ônus) o colocará em situação de desvantagem processual ou, ainda, o impedirá de alcançar o resultado inicialmente pretendido. Apresentando as perspectivas tradicionais sobre o tema, Carnelutti inaugurou o que hoje é a distinção clássica entre “ônus” e “obrigação”, concebida a partir das diferentes consequências da não observação de cada um dos institutos. Nas palavras do autor: “existe somente obrigação quando a inércia dá lugar à sanção jurídica (execução ou pena); entretanto, se a abstenção do ato faz perder somente os efeitos úteis do próprio ato, temos a figura do ônus" (CARNELUTTI, 2001, p. 255). 90 Desse modo, o ônus da prova podeser definido como “um encargo que se atribui a um sujeito para demonstração de determinadas alegações de fato” (DIDIER JUNIOR, 2017, p. 131). Como o ônus não é um dever, o seu cumprimento não pode ser exigido. Porém, frise- se: normalmente, o sujeito a que se impõe o ônus tem interesse em observá-lo, justamente para evitar a desvantagem que pode advir da sua inobservância (DIDIER JUNIOR, 2017, p. 131). Por isso mesmo que, quando atribuído o ônus probatório a um sujeito, fala-se em uma “liberdade condicionada” conferida à parte, pois permite-se que ela pratique determinado ato processual, conforme seu próprio interesse, mas, em caso de inércia, a mesma parte poderá ver sua posição prejudicada (CASTRO, 2018, p. 111). No mesmo sentido, leciona Didier Junior (2017, p. 135) que, como a parte que alega é a maior interessada no acolhimento da sua tese, ela é quem deve “buscar os meios necessários para convencer o juiz da veracidade do fato deduzido como base da sua pretensão/exceção”. Outrossim, o ônus da prova também é entendido como uma “posição jurídica”, voltada para um interesse próprio do sujeito, conforme descreve Flávio Luiz Yarshell (2009, p. 49): “tendo a parte liberdade de produzir prova, ao deixar de fazê-lo não pratica ato ilícito (a ensejar uma sanção em sentido estrito), mas apenas se sujeita, somente ela, a eventuais consequências desfavoráveis em virtude de sua inércia”. A partir disso, pode-se analisar a duplicidade inerente à estrutura e funcionalização do ônus da prova: ele exerce tanto uma função objetiva quanto uma função subjetiva1. Em sua dimensão objetiva, o onus probandi opera como regra de julgamento a ser aplicada pelo órgão jurisdicional no momento de julgamento da demanda, quando se constatar a insuficiência ou inexistência probatória. Por isso, a função objetiva do ônus da prova não é fenômeno de ocorrência garantida, sendo exercida na última fase processual, a fase decisória, e apenas nos casos em que as provas produzidas forem reputadas insuficientes para apurar a veracidade das alegações fáticas. Logo, constatada a insuficiência, caberá ao julgador “lançar mão do critério de julgamento e decidir desfavoravelmente à parte que deixou de cumprir com o seu ônus probatório” (CARPES, 2016, p. 138/139). Em regra, enaltece Humberto Theodoro Junior (2021, p. 785), a sanção será, nesses casos, “a rejeição da arguição de mérito daquele que deixou de dar cumprimento ao ônus probatório”. 1 “Dimensões”, “aspectos” ou “sentidos” são termos alternativos utilizados pela literatura jurídica no lugar de “função”. Também é comum o emprego das expressões “ônus subjetivo” e “ônus objetivo” da prova. 91 Nesse ponto, oportuna é a observação feita por Didier Junior (2017, p. 134): As regras do ônus da prova, em sua dimensão objetiva, não são regras de procedimento, não são regras que estruturam o processo. [...] vale observar que o sistema não determina quem deve produzir a prova, mas sim quem assume o risco caso ela não se produza. Por outro lado, a função subjetiva do ônus probatório se trata de uma regra de instrução, isto é, preestabelece uma referência, um critério para as partes processuais acerca da forma pela qual devem agir em torno da prova. Segundo Artur Carpes (2010, p. 52), a dimensão subjetiva do onus probandi tem justamente como finalidade “dar conhecimento a cada parte de sua parcela de responsabilidade na formação do material probatório destinado à construção do juízo de fato”. Ao contrário da função objetiva, dirige-se às partes e aplica-se ao longo de todo o procedimento probatório. Há quem questione a relevância ou ainda a existência de uma função subjetiva do ônus probatório2. Entretanto, parcela majoritária da doutrina advoga pela importância de tal função. Para a doutrina majoritária, as regras de ônus da prova criam expectativas para as partes, influenciando o comportamento destas na condução do processo. O ônus probatório opera, aqui, como um “estímulo qualitativo”, que é “dirigido às partes para que estas forneçam as provas destinadas à confirmação de suas alegações de fato” (CARPES, 2015, p. 136). Ademais, parte da literatura jurídica sustenta que as regras do ônus também podem influenciar na convicção do próprio magistrado, ao verificar o vínculo da parte com a prova que foi por ela produzida (DIDIER JUNIOR, 2017, p. 133/134). A título exemplificativo, Flávio Yarshell apresenta a seguinte comparação: [...] na mesma medida em que as declarações da testemunha que favoreçam a parte que a arrolou possam eventualmente ser vistas com algum cepticismo decorrente da mencionada origem, declarações prestadas em desfavor da parte que arrolou podem ser tidas como mais rigorosamente isentas e, portanto, dignas de maior consideração (YARSHELL, 2009, p. 64). A partir disso, Artur Carpes, com a precisão costumaz, enaltece a relevância dimensão subjetiva do onus probandi: 2 Defendendo o ônus da prova como um “dever”, afasta a importância da função subjetiva: RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da prova no processo civil: do ônus ao dever de provar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. Em proposição semelhante, Daniel Neves entende que “o aspecto subjetivo só passa a ter relevância para a decisão do juiz se ele for obrigado a aplicar o ônus da prova em seu aspecto objetivo: diante de ausência ou insuficiência de provas, deve indicar qual das partes tinha o ônus de provar e colocá-las numa situação de desvantagem processual”: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 13. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2021, p. 725. 92 A parte que deduz determinada alegação de fato normalmente se encontra em posição de maior proximidade com as fontes de prova e normalmente possui melhores condições de prová-la. [...] Rejeitar a existência, ou mesmo a relevância da função subjetiva do ônus da prova, desse modo, significa não outra coisa senão solapar a importância que a atividade probatória das partes possui para a adequada formação do juízo de fato (CARPES, 2015, p. 136). De outro modo, analisar o ônus por sua dimensão subjetiva permite avaliar o comportamento da parte em seu empenho e comprometimento com o processo, o que pode determinar, em termos de influência sobre a formação da convicção do magistrado, o acolhimento ou rejeição da tese defendida (DIDIER JUNIOR, 2017, p. 134). Em suma: na sua função ou acepção subjetiva, o ônus da prova opera como regra de procedimento, de modo a orientar as partes na produção probatória; em sua dimensão objetiva, deve ser tratado como regra de julgamento, direcionada ao juiz quando constatar-se a inexistência ou insuficiência probatória. Cabe pontuar ao final apenas que, não há motivos para crer que uma perspectiva do ônus da prova exclua a outra e vice-versa (BUENO, 2020, p. 226). As perspectivas do ônus da prova apresentadas, subjetiva e objetiva, devem ser observadas cumulativamente no desenvolvimento da relação jurídico-processual, pelas partes e pelo juiz, respectivamente, com vistas a possibilitar o resultado final do processo, qual seja, a prestação da tutela jurisdicional a quem de direito. Sendo o ônus um encargo atribuído a um sujeito para comprovar a veracidade de alegações fáticas, é preciso analisar de quais formas tal atribuição pode ser feita. 1.1. Probatio diabolica e algumas técnicas de superação. Antes, no entanto, de avançar sobre o tema, é necessária realizar alguns esclarecimentos a respeito da probatio diabolica, devil’s proof ou, simplesmente, prova difícil. Essa denominação se dá a uma hipótese em que a prova se mostra impossível ou excessivamente difícil de ser alcançada pelas partes. Por vezes, essas situações acabam sendo confundidas com a prova de fato negativo, o que, concessa venia, não sugere ser a melhor associação, pois nem todo fato negativocarece, de antemão, de algumas premissas teóricas básicas que são encontradas no estudo de “Teoria Geral da Prova”. Objetivando-se o desenvolvimento e aplicação normativa dos institutos probatórios, considerando especialmente a multiplicidade semântica do termo “prova” e partindo de uma pesquisa bibliográfica, tem-se como objeto de estudo do presente capítulo, dentre essas premissas necessárias, a exposição das noções introdutórias basilares do direito probatório. Dentro desse escopo, pretende-se expor os conceitos de prova trazidos pela literatura jurídica, assim como quais as acepções de prova trabalhadas pelos autores pesquisados. Por fim, já estabelecido o conceito de prova, serão expostos o objeto, a finalidade e os destinatários da prova no ordenamento jurídico pátrio. 2. Definição de prova O vocábulo prova etimologicamente deriva do latim, probatio, com sentido de ensaio, verificação, inspeção, dentre outras acepções que se originam do verbo probare ou 11 probo, cujo significado liga-se às ações de verificar, examinar, persuadir, reconhecer por meio da experiência, aprovar etc. (SANTOS, 1970, p. 11). Trata-se, portanto, de um termo polissêmico ou “plurissignificante” (CAMBI, 2001, p. 46), podendo ser utilizado em diversos contextos, além da seara jurídica, para denominar as ações e condutas sinônimas de verificar, demonstrar, inspecionar, persuadir, examinar, aprovar, confirmar, argumentar, experimentar etc. No Direito, valendo-se das lições de Judith Martins-Costa (1991) e de Gilberto Fachetti Silvestre (2017), quando explicam o que são termos jurídicos vagos, não há dúvidas de que prova, quando constante na hipótese normativa, é um termo aberto que carece de complementação por parte do exegeta para a correta interpretação do enunciado prescritivo correlato, visando possibilitar a correta aplicação normativa. Independente da interpretação que será dada ao final, até mesmo porque perpassa pela existência de um processo intelectivo subjetivo, tem-se claro que no âmbito jurídico, prova relaciona-se a demonstração da veracidade de fatos que ocorreram no mundo fenomênico. Logo, em um sentido jurídico amplo, pode-se afirmar que “provar significa demonstrar a veracidade de um enunciado sobre um fato tido por ocorrido no mundo real” (LIMA, 2020, p. 657). Em um sentido estrito, quando consideradas as diversas vezes que prova ou provar aparecem expressamente no Código de Processo Civil, tem-se prova como o meio que o autor e o réu se valerão para demonstrar a verdade dos fatos alegados no processo. Nesse sentido, prova é tudo aquilo que tem o condão de influenciar na formação da convicção do magistrado para que este possa decidir, em relação à veracidade ou não dos fatos alegados, concluindo se deverá rejeitar ou acolher, integral ou parcialmente, o pedido do autor (SCARPINELLA BUENO, 2010, p. 261). Em outras palavras, conforme afirmado por Marinoni e Mitidiero (2011, p. 334) prova é o “meio retórico, regulado pela legislação, destinado a convencer o Estado da validade de proposições controversas no processo, dentro de parâmetros fixados pelo direito e de critérios racionais”. Nessa compreensão de prova como meio utilizado pelos litigantes em um processo judicial com o intuito de formar o convencimento do juiz acerca da veracidade dos fatos controvertidos alegados. Destaca-se, entretanto, que na concepção de alguns autores, somente serão realmente consideradas provas aquelas que são relevantes para o processo e para influenciar na formação da convicção do magistrado (GONÇALVES, 2021, p. 517; GRECO, 2004, p. 242-243). Vê-se, portanto, que são as provas que possibilitam a reconstrução, no processo, dos acontecimentos que embasam o litígio que instou a atuação do Estado-juiz, possibilitando, após a sua qualificação jurídica, a existência de um julgamento justo (MARQUES, 1990, p.310). 12 3. Acepções da palavra prova Como afirmado no tópico anterior, provar “consiste no conjunto de atividades de verificação e demonstração, mediante as quais se procura chegar à verdade dos fatos relevantes para o julgamento” (DINAMARCO, 2001, p.43). A palavra prova no Direito Processual, portanto, pautado nesse conjunto de atividades, pode ter mais de uma acepção a depender do enfoque que está sendo dado na análise desse instituto processual. A prova no processo, em um sentido objetivo, é vista como um instrumento ou meio hábil, capaz de demonstrar a existência de um fato, enquanto do ponto de vista subjetivo, é a certeza quanto ao fato que é originada no destinatário da produção das provas, considerada, portanto, enquanto a convicção formada no estado psíquico do julgador acerca daquele fato que as partes pretendem demonstrar (THEODORO JÚNIOR, 2018, p. 896). Em outras palavras, a acepção objetiva está relacionada aos elementos que permitem ao juiz alcançar, ou ao menos chegar próximo desse desiderato, a chamada “verdade dos fatos” enquanto a acepção subjetiva relaciona-se à convicção do juiz diante da produção probatória, a sua conclusão sobre os fatos controvertidos que as partes pretenderam demonstrar no processo (RODRIGUES, 2016, p. 553). Ademais, além dessas acepções subjetiva e objetiva, ao trabalhar o conceito de prova, Michele Taruffo (1992) evidencia três acepções de prova: prova como atividade probatória, prova como meio e prova como resultado. A prova pode ser entendida como atividade probatória, quando considerado que as partes têm um direito à prova que deve ser entendido como um “desdobramento natural do direito de ação, não se reduzindo ao direito de propor ou ver produzidos os meios de prova, mas, efetivamente, na possibilidade de influir no convencimento do juiz” (LIMA, 2020, p. 657). Assim, quando falado que do conceito de prova se depreende sua a real influência na formação da convicção do magistrado (GONÇALVES, 2021, p. 517), está sendo adotada uma acepção de prova que parte da análise conceitual enquanto atividade probatória. Ademais, como citado por Marinoni e Mitidiero (2011, p. 334) prova pode ser entendido como o meio capaz de formar a convicção do Estado-juiz acerca da veracidade dos fatos alegados. Nesse ponto, tem-se a acepção de prova como um meio, ou seja, como instrumento jurídico idôneo a formar a convicção do magistrado (TARUFFO, 1992; CAMBI, 2001. p. 48). Por fim, no conceito de prova, pode-se adotar a acepção de prova como resultado, quando observada a formação da convicção quanto à existência daquela situação fática narrada, ressaltando-se, entretanto, reforça Renato Brasileiro de Lima que quando se fala em verdade, está se falando do conhecimento processual que se pode alcançar dentro do processo por meio da atividade probatória (2020, p. 658). 4. Objeto, Finalidade e Destinatário da prova 13 Após identificar o que se deve entender por prova, mister esclarecer qual é o seu objeto, finalidade e quais são os seus destinatários. Conforme elucida Marcelo Abelha Rodrigues “toda prova possui um objeto sobre o qual recairá a prova (thema probandum)” (2016, p. 553). Dessa forma, tem-se como objeto da prova os fatos controvertidos, sendo entendidos como aqueles fatos que o Estado-juiz precisará formar a sua convicção, sendo, portanto, fatos que necessitam de elucidação para se chegar à solução da controvérsia levada à apreciação judicial (GONÇALVES, 2021, p. 518). Ao tratar do objeto da prova como os fatos relevantes e controvertidos, Leonardo Greco traz que fatos relevantes são aqueles dos quais as partes poderão extrair consequências jurídicas que são favoráveis às suas pretensões, sendo para o autor, os fatos constitutivos do seu direito e para o réu, os fatos extintivos, modificativos ou impeditivos deste mesmo direito (2004, p. 242-243). Renato Brasileiro de Lima, ao tratar sobre o tema esclarece que, embora o objeto do processo seja entendido amplamente como os fatos controvertidos, ao seu entender, o objeto da provacorresponde a uma prova impossível (DIDIER JUNIOR; BRAGA; DE OLIVEIRA, 2016, p. 118). Mas então, o que seria a famigerada probatio diabolical? Paula Silva e Costa e Nuno Trigo dos Reis (2013, p. 152) explicam que a expressão em questão remete-se aquelas situações é que se torna difícil a prova do fato probando, ou seja, da comprovação da realidade e, por consequência, torna-se excessivamente complicada assegurar a certeza ao juiz quanto a ocorrência de determinado fato3. 3 Interessante pontuar que nos sistemas de civil law a prova objetiva assegurar um maior grau de certeza sobre a ocorrência de determinados fatos que ocorreram, sendo muitas vezes atribuído a um 93 São as características específicas do fato ou de sua ocorrência, somados aos meios a disposição para a sua comprovação que tornam possível verificar no caso concreto se as partes estão diante de uma prova difícil. (SILVA; DOS REIS, 2013, p. 152) Mas não só. Partindo de uma visão com maior carga da subjetividade, para analisar se está-se diante de uma prova diabólica pode ainda ser utilizado o critério de dificuldade (a contrario sensu, facilidade) para obtenção da prova (SILVA; DOS REIS, 2013, p. 152) Ou seja, para uma das partes a obtenção da prova poderá se mostrar excessivamente onerosa ou, eventualmente, impossível, ao passo que para a parte adversa a produção da prova seria plenamente possível e mais facilitada. Nesse caso, a prova é difícil não em função dos fatos ou circunstâncias objetivas inerentes ao facto probadum, mas sim em razão da relação subjetiva das partes com o fato que se objetiva comprovar em juízo. Diante desses cenários distintos em que pode-se afirmar a existência de uma prova diabólica, a doutrina, aliada as inovações legislativas e a evolução jurisprudencial, tem alcançado técnicas para superação dessas situações de excessiva dificuldade para a produção da prova. Para os casos onde a prova difícil decorre de uma análise subjetiva da relação das partes com as provas, utilização da técnica de “manipulação dos níveis de persuasão que permitem ao decisor considerar o facto como provado” (SILVA; DOS REIS, 2013, p. 152-153). Por meio dessa técnica, vale-se das provas indiciárias, provas por amostragem ou a probatio levior, sobre as quais se passa a expor. Eduardo Cambi (2006, p. 361) explica que o indício seria um fato conhecido, indicador de outro não conhecido, pois seria a sua decorrência lógica, em uma espécie de relação de causa e efeito. Assim, a prova indiciária indica, de forma lógica, a existência de um fato reputado secundário que, por sua vez, induz a conclusão de existência do fato que se objetiva provar4. Ao se deparar com as provas indiciárias será necessário o desenvolvimento do raciocínio presuntivo e a construção de uma lógica para ao perito ou ao próprio magistrado o dever de afirmar a sua ocorrência ou não para o deslinde do julgamento. Já no âmbito dos sistemas em que impera o sistema comon law, admite-se uma maior mitigação do grau de certeza, aplicando-se a regra da prepoderance of the proof que, em outras palavras, busca alcançar a situação mais provável ao invés de cravar a ocorrência de determinado fato. Sobre o tema, ver: CLERMONT, Kevin M.; SHERWIN, Emily. A compartive view of standads of proof. Cornell Law Faculty Publications. Paper 222. Ano: 2002. 4 Sobre o tema a respeito das presunções judiciais e prova indiciária, válidas são as lições de Luiz Guilherme Marinoni, Sergio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero (in: Curso de Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. 7ª ed. rev. e atual. São Paulo, Thomson Reuters. Ano: 2021. p. 306) para quem: “[...] o princípio do raciocínio presuntivo calca-se na verificação concreta de outro fato (do qual se extrairá a ocorrência do fato principal). Esse fato secundário cuja verificação é possível pelos meios probatórios normais, é que se chama de indicio (razão pela qual as presunções também são denominadas de “provas indiciárias”, embora a presunção, em análise mais correta, não constitua nem fato nem prova, mas apenas a conclusão do raciocínio presuntivo). 94 final ser possível dar o fato como provado pela parte a partir das provas apresentadas. O juiz, portanto, deverá realizar uma análise a partir do senso comum, ou seja, do que está em consonância com aquilo que ocorrer hodiernamente em sociedade e o que há muito já encontra-se pacificado como verdade ou praxe do meio social, abrindo aqui grande espaço para utilização das regras de experiência (art. 375 do Código de Processo Civil de 2015), não excluindo-se desses casos o que também encontra confirmação em fontes idôneas (MARINONI; ARENHART; e MITIDIERO, 2021, p. 308). A prova por amostragem tem espaço quando o juiz permite elaborar o seu convencimento a partir da demonstração de um conjunto de outros fatos (fatos secundários) que induzem a conclusão de que o fato que se objetiva comprovar realmente ocorreu, ou seja, através da prova por amostragem do fato que baliza a pretensão externada em juízo5. Por último, tem-se a hipótese de probatio levior que, em síntese, consiste na “degradação ou abaixamento do grau de convicção necessário acerca da correspondência entre o relato e a realidade de um facto” (SILVA; DOS REIS, 2013, p. 159), de modo que se possa aceitar em sede de julgamento como verificado determinado fato. Trata-se de uma conclusão alcançada a partir de um juízo de aparência sobre a ocorrência ou não de determinado fato. Todas essas técnicas possuem estreita correspondência, podendo, nas mais variadas vezes, serem cumuladas pelo juiz para superação do obstáculo da prova diabólica. Nada obstante as formas de superação da dificuldade do enfrentamento da prova diabólica apresentadas, é ainda possível o juiz e as partes se valerem das técnicas de dinamização do ônus probatório, conforme se passará a expor. 2. Distribuição legal do ônus da prova A atribuição determinada em lei (ope legis) é prévia e estática, isto é, não varia de acordo com as circunstâncias do caso. O atual Código de Processo Civil, a exemplo de seu antecessor (Código de Processo Civil de 1973), manteve a distribuição de maneira fixa entre as partes do processo – autor e réu. De acordo com o enunciado do artigo 373 do Código de Processo Civil de 2015, incumbe ao autor comprovar os fatos constitutivos de seu direito e, por outro lado, ao réu comprovar os fatos extintivos, modificativos e impeditivos do direito supostamente alegado pelo autor. Art. 373. O ônus da prova incumbe: 5 A respeito da natureza da prova por amostragem, Paula Costa e Silva e Nuno Trigo dos Reis (2013, p. 161) afirmam que trata-se de prova direta dos fatos que integram a amostra, porém, caso o objeto da prova não seja por ela contemplado, tratar-se-á de prova indiciária do facto probandum, havendo clara aproximação neste último aspecto entre as provas por amostragem e provas indiciárias. 95 I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Nesse momento inicial de distribuição dos respectivos ônus probatórios, não foi levada em consideração qualquer consequência da imposição dos respectivos ônus, apenas foram impostas as regras ordinárias processuais para o desenvolvimento do processo6. A análise da adequação do processo às situações peculiares ficou reservada para um segundo plano, sobre o qual será abordado na sequência. Verifica-se, portanto, que essa distribuição do ônus probatório pelo legislador se dá de forma abstrata e, como anteriormente mencionado, estática, priorizando a clareza das normas processuais que legitimam a função jurisdicional exercidaatravés do processo7. Assim, cuidou o legislador de atribuir a incumbência a cada um dos sujeitos parciais do processo, instituindo o dever de produzir as respectivas provas que fundamentem e/ou confirmem as suas alegações de fato que vierem a produzir no curso da relação jurídico-processual (DIDIER JUNIOR; BRAGA; DE OLIVEIRA, 2016, p. 114). Tal incumbência, perceba, se mostra uma distribuição justa diante daquilo que se compreende como a finalidade do processo, qual seja, o alcance da pacificação do litígio, a aplicação do direito objetivo e a afirmação do poder soberano estatal (SICA, 2017, p. 07). Diz-se isso, pois as partes é que efetivamente são os sujeitos interessados em verem reconhecidos os seus direitos e, portanto, interessadas no convencimento do juiz a respeito dos fatos que alegam, tanto no que diz respeito ao ato de propositura da demanda, especificamente com relação ao autor, mas também em sede de defesa apresentada pelo réu. 6 À luz do Código de Processo Civil de 1973 tal regra de distribuição ordinária também era prevista no artigo 333, I e II, e, conforme a doutrina contemporânea, essas premissas básicas objetivavam o atendimento da segurança jurídica no âmbito da relação processual, concebendo regras proporcionadas e invariáveis. Entretanto, a formatação estanque de distribuição do ônus probatório não atendia de forma adequada para os casos levados à apreciação do Poder Judiciário, razão pela qual se demandava uma possibilidade de flexibilização do procedimento para conceber regras justas de distribuição do ônus da prova. Sobre o tema ver: KNIJNIK, Danilo. As (perigosíssimas) doutrinas do “ônus dinâmico da prova” e da “situação de senso comum” como instrumentos para assegurar o acesso à justiça e superar a probatio diabólica. In: Processo e constituição ensaios em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira. Org.: FUX, Luiz; NERY JUNIOR, Nelson; e WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. São Paulo, Revista dos Tribunais. Ano: 2006. 7 Atualmente, a segurança jurídica não pode mais ser vista apenas sob o enfoque do que se atribui como segurança-cognoscibilidade, isso é, que o Direito apresente clareza de suas normas e previsibilidade sobre as situações jurídicas. Sobretudo se tratando de processo, é necessário que o ordenamento ampare e garanta aos cidadãos os meios eficazes para a tutela adequada dos seus direitos. À essa segunda perspectiva atribui-se a ideia de segurança-realização, que baliza a adoção de novas práticas processuais a fim de adequar o procedimento a forma mais eficiente para o seu objeto final. Sobre o tema ver: DE OLIVEIRA, Paulo Mendes. Segurança jurídica e processo: da rigidez à flexibilização processual. São Paulo, Thomson Reuters. Ano: 2018. 96 Nesse sentido já prelecionavam Cândido Rangel Dinamarco e Bruno Lopes (2018, p. 184): [...] a distribuição dos ônus probatórios é feita pelo sistema processual com base no critério do interesse – e a mais ampla das regras integrantes dessa disciplina é a de que compete a cada um dos sujeitos litigantes a comprovação dos fatos cujo reconhecimento possa conduzir ao julgamento favorável à sua pretensão. Assim, pode-se dizer que distribuição legal do ônus probatório realizada pelo legislador observou alguns critérios: i) a posição das partes na relação jurídico- processual, ii) a natureza dos fatos e iii) o interesse em provar o fato. (DIDIER JUNIOR, 2017, p. 152) Com relação ao primeiro critério, trata-se de simples técnica de diferenciação da posição na relação jurídica processual – se autor ou réu – aplicando-se, para cada uma das posições, a regra correspondente dos incisos do artigo 373 do Código de Processo Civil. O segundo critério remete-se para análise da natureza do fato probando. Caso esteja- se diante de um fato constitutivo de direitos, a competência para demonstração perante o julgador é atribuída ao autor ou titular do direito sub examen. Por outro lado, tratando-se de fatos que obstam, alteram ou extinguem a prevalência ou eficácia do direito postulado, a competência é atribuída ao réu. Essa é a “regra geral” da distribuição do ônus prevista pela sistemática processual civil, estabelecida pelo caput do artigo 373do Código de Processo Civil de 2015. Segundo Cassio Scarpinellla Bueno (2020, p. 226), fato constitutivo é “o suporte fático a partir do qual pretende o autor a tutela jurisdicional de seu direito”, e pode ser extraído da causa de pedir apresentada na petição inicial. Já ao réu recairia o ônus de provar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Significa, portanto, que se o réu contesta apenas negando o fato em que se baseia a pretensão do autor, todo o ônus probatório recairá sobre este último. Em suma, para fins práticos: o ônus da prova cabe à parte que alega, e não àquela que simplesmente nega. Esse critério, segundo Artur Carpes (2015, p. 141), segue a lógica de que, normalmente, “quem alega a existência de determinado fato possui melhores condições de prová-lo do que aquele que simplesmente o nega”. Nas palavras de Humberto Theodoro Junior (2021, p. 786), “mesmo sem nenhuma iniciativa de prova, o réu ganhará a causa, se o autor não demonstrar a veracidade do fato constitutivo do seu pretenso direito”. É a concretização do brocardo actore non probante absolvitur réus. Essa, portanto, seria a modalidade de defesa direta do réu, 97 exercida pela simples negação dos fatos trazidos pelo autor, ocasião na qual não será a ele atribuído qualquer encargo probandi. Por outro lado, se o réu se defende por meio de defesa indireta, trazendo, em contestação, fatos novos aptos a modificar, extinguir ou impedir o direito do autor, a regra clássica é invertida e ao réu recairá o ônus de prová-los. Isso porque, quando o réu se baseia em fato modificativo, extintivo ou impeditivo do direito do autor, ele está implicitamente admitindo como verídico o fato básico da petição inicial. Nessas ocasiões, o fato constitutivo do direito do autor torna-se incontroverso, independendo de prova de sua veracidade, conforme dispõe o art. 374, III do CPC/20158. Como bem pontua Theodoro Junior, “a controvérsia se desloca para o fato trazido pela resposta do réu e a este, pois, tocará o ônus de prová-lo”. Desse modo, verbi gratia, se o réu na ação de despejo por ausência de pagamento nega a existência da relação ex locato, o ônus probatório será atribuído ao autor; todavia, se a defesa for baseada em suposto pagamento prévio dos aluguéis reclamados ou na inexigibilidade destes, o encargo de provar esses fatos (que limitam o pleito autoral) recairá exclusivamente sobre o réu (THEODORO JUNIOR, 2021, p. 786 - 787). Por fim, o terceiro critério remete-se a ideia sobre qual pesa a hipótese de descumprimento do ônus, ou seja, sobre quem ficará sujeito aos efeitos negativos do descumprimento do ônus probatório, pois, conforme já apresentado, o não atendimento do ônus implicará em consequências negativas para a parte. Trata-se da observância da dimensão objetiva do ônus probatório. 2.1. Inversão ope legis do ônus probatório. Nada obstante a exposição anterior a respeito da regra geral de distribuição do ônus da prova realizada pelo legislador a partir do enunciado do artigo 373 do Código de Processo Civil, antecipando-se aos cenários em que há necessidade de tratamento diferenciado às posições jurídicas relevantes, a legislação cuidou de distribuir de modo diverso o ônus probatório. À essas exceções à regra é que se denomina de inversão ope legis do ônus da prova. Fredie Didier Junior, Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira (2016, p. 117) alertam que, a rigor, não há nesta modalidade de dinamização do ônus da prova qualquer hipótese de inversão. O que haveria, na verdade, seria uma disposição diversa à regra geral, uma técnica de adequação do procedimento redimensionandoà parte mais apropriada a produção de determinado fato probando. 8 Art. 374. Não dependem de prova os fatos: III - admitidos no processo como incontroversos; 98 Essa distinção entre atribuição e inversão/modificação do ônus probatório é relevante para fins de compreensão do instituto. Isso porque, havendo desde já a atribuição pela lei do dever de comprovar, não há necessidade de intervenção judicial para a aplicação da norma (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2021, p. 281). Assim, as partes já possuirão a plena ciência sobre quem recairá o fator negativo em caso de descumprimento do ônus probatório. É o caso, por exemplo, onde a fornecedora de produtos ou prestadora de sérvios está imbuída do dever de demonstrar a regularidade da propaganda veiculada, conforme expressa previsão no artigo 38 do Código de Defesa do Consumidor: Art. 38. O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina. Portanto, nesses casos, havendo ajuizamento de demanda judicial para revisão da relação de consumo em razão da possível prática ilícita resultante da veiculação de propaganda enganosa, o autor-consumidor não terá o ônus de comprovar a irregularidade das ações publicitárias patrocinadas pela fornecedora-ré. A legislação consumerista já dispôs inversamente aquilo que propõe a regra geral de produção das provas, atribuindo a ré neste tipo de demanda judicial o dever de comprovar a regularidade de sua prática. Com isso, é o correto afirmar que, a rigor, não há qualquer inversão do ônus da prova, mas sim uma distribuição atípica do encargo probatório nos casos em que o legislador privilegiou determinada posição jurídica em razão do interesse público e social ou outros critérios, tal como a própria hipossuficiência do consumidor em relação ao prestador de serviço/fornecedor de produtos. 3. Dinamização do onus probandi. O Código de Processo Civil, em tom inovador, “abriu duas portas para a flexibilização da regra geral da distribuição legal do ônus probatório” (DINAMARCO; BADARÓ; LOPES, 2020, p. 436), ao: (i) autorizar o juiz a distribuir o encargo probandi de modo diferente do previsto em lei, conforme as peculiaridades do caso concreto; e (ii) permitir às partes que convencionem sobre a distribuição de modo diferente do previsto em lei. A primeira hipótese trata da distribuição dinâmica do ônus da prova, feita pelo juiz (ope judicis) e assim denominada pois, ao contrário da distribuição legal (considerada “estática”), é realizada sob um contexto de um caso concreto, considerando as suas peculiaridades. Tal previsão encontra esteio nos §§ 1º e 2º do art. 373, in verbis: Art. 373. O ônus da prova incumbe: § 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção 99 da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. § 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil. A redistribuição do ônus da prova, nesses casos, é determinada por decisão judicial recorrível por meio de agravo de instrumento (regra do art. 1.015, XI, do CPC/20159). Muito embora já houvesse no Código de Processo Civil anterior a possibilidade de inversão do ônus probatório por convenção entre as partes, a distribuição dinâmica deste por ato imperativo do juiz é uma novidade introduzida no sistema pelo estatuto de 2015 (DIDIER JUNIOR, 2017, p. 436). Nas palavras de Theodoro Junior (2021, p. 789), a alteração dinâmica do ônus probatório é “um mecanismo de que se vale o juiz para, na busca da verdade, contar com a cooperação da parte que tem melhores condições de trazer para os autos os elementos de convencimento mais adequados à revelação da verdade”. Ademais, parte da literatura jurídica aponta ser preferível o emprego do termo “dinamização” em detrimento do vocábulo “inversão”. Conforme explana Artur Carpes, a palavra “dinamização” expressa melhor o fenômeno da fluidez do regime do ônus da prova à luz das circunstâncias concretas: Embora a lei se utilize da expressão “inversão” para denominar a modificação do regime de distribuição ordinário, o certo é que, rigorosamente, inversão não ocorre: o réu não passa a ser onerado da prova das alegações táticas do autor e vice-versa. Ao contrário do que a expressão também faz supor, o autor nem sempre fica sem qualquer ônus probatório (CARPES, 2015, p. 143). Há de se fazer uma ressalva, também, quanto à “inovação”, em termos legislativo, da distribuição dinâmica do onus probandi: a possibilidade de inversão do ônus da prova foi positivada em 1990 com a edição do Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 6, VIII. Litteris: Art. 6º São direitos básicos do consumidor: VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências. Trata-se de regra especial que autoriza, em determinados casos, a inversão do ônus probatório, transferindo-o do autor (consumidor) para o réu (fornecedor). Como 9 Art. 1.015. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre: XI - redistribuição do ônus da prova nos termos do art. 373, § 1º. 100 requisito para a concessão do excepcional benefício legal nas ações consumeristas, é necessário que o juiz afira, in casu, a verossimilhança das alegações ou a hipossuficiência do consumidor10 (THEODORO JUNIOR, 2021, p. 800). Na nova sistemática inaugurada pelo CPC/2015, embora seja uma liberdade conferida ao magistrado e às partes, podendo ser, inclusive, determinada ex officio pelo juiz, a distribuição do ônus probatório também tem sua possibilidade de concretização condicionada ao preenchimento de certos requisitos. Sendo a “regra” a distribuição legal do ônus da prova, a dinamização deste, quando não for convencionada, só poderá ser determinada por decisão judicial, de ofício ou a requerimento de uma das partes. Em outras palavras: é uma medida excepcional que depende do reconhecimento dos pressupostos do 1º do art. 373 para sua concretização11. A estes pressupostos dedicar-se-ão as próximas linhas. 3.1. Requisitos da inversão ope judicis do ônus probatório. Segundo Fredie Didier Junior (2017, p. 146 et. seq.), a distribuição judicial do ônus da prova estaria condicionada ao preenchimento de três pressupostos formais, ou requisitos processuais, quais sejam: (i) decisão motivada; (ii) o momento da redistribuição; e (iii) proibição de a redistribuição implicar prova diabólica reversa. Quanto à (i) decisão motivada, é premente a sua necessidade para que a medida excepcional não seja aplicada de modo arbitrário pelo juiz; este deverá “proferir um julgamento lógico, capaz de revelar e fazer compreender, por meio de adequada fundamentação, como formou de maneira racional sua convicção e quais os elementos que a determinaram” (THEODORO JUNIOR, 2021, p. 787). Ademais, o julgador deverá sempre discriminar sobre que fatos se aplicará a modificação probatória, de modo que os fatos não referidos expressamente na decisão do juiz não terão seus encargos probatórios alterados, permanecendo, em relação a estes, a regra geral da distribuição legal do ônus (DIDIER JUNIOR, 2017, p. 147). No tocante ao (ii) momento de redistribuição do ônus, este deverá ocorrer deverá ocorrer sempre antes das oportunidades de produção da prova, demodo a permitir 10 Cândido Rangel Dinamarco e Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes (2018, p. 185), em contraposição a Theodoro Jr., entendem que a inversão do ônus da prova em demandas consumeristas somente se justifica “quanto presentes os requisitos da hipossuficiência do consumidor e da verossimilhança de suas alegações”. 11 Salvo nas ocasiões nas quais incide regra especial, como nas ações consumeristas, em que se aplica a regra prevista no art. 6, VIII do Código de Defesa do Consumidor (verossimilhança das alegações do consumidor ou sua hipossuficiência). No caso do CPC/2015, considerou-se, para fins da dinamização do ônus probatório, apenas o requisito de constatação de hipossuficiência da parte, não estabelecendo- se o requisito da verossimilhança. 101 que as partes possam se desincumbir dos respectivos ônus que lhes foram atribuídos. Ou seja: a redistribuição não pode representar surpresa para a parte. Idealmente, a distribuição ocorre no início da fase instrutória do processo, por meio do denominado “despacho saneador”. Essa exigência, contida no art. 373, §1º, in fine12, do Código de Processo Civil destaca a função subjetiva do ônus da prova e privilegia o princípio do contraditório, ressaltando a necessidade da prévia informação à parte a respeito dos novos encargos probatórios redistribuídos, para que, assim, ela possa efetivamente desincumbir-se do novo ônus a ela atribuído (DIDIER JUNIOR, 2017, p. 148). Por fim, em relação ao pressuposto negativo da (iii) proibição de a redistribuição implicar prova diabólica reversa, trata-se de vedação expressamente prevista pelo §2º do art. 373 do codex em vigor, segundo o qual a distribuição dinâmica do ônus “não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil”. Desse modo, ao deparar-se com hipótese de prova diabólica para ambas as partes, o juiz não deve proceder à dinamização do ônus probatório. Além dos pressupostos formais, já elencados, pode-se vislumbrar dois requisitos materiais para a distribuição dinâmica do ônus da prova, contidos no art. 373, §1º, ab initio, do Código de Processo Civil vigente: Art. 373. O ônus da prova incumbe: § 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz [...]. Extraem-se dois pressupostos materiais da redação do dispositivo legal: o primeiro, com relação a impossibilidade ou excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos estáticos da lei. E, em segundo, a maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, essa considerada na perspectiva “daquele a quem a lei ordinariamente não impunha o ônus da prova” nos termos estáticos da lei. Humberto Theodoro Junior (2021, p. 790-791) sustenta a possibilidade de o juiz promover alteração dinâmica do ônus valendo-se, também, do comportamento da parte, quando esta cria obstáculos ao adversário para comprovação dos fatos relevantes à sua defesa, ofendendo, assim, o princípio da boa-fé processual. Defende o autor que: Não se trata de revogar o sistema do direito positivo, mas de complementá-lo à luz de princípios inspirados no ideal de um processo justo, comprometido sobretudo com a verdade real e com 12 “ [...] desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído”. 102 os deveres de boa-fé e lealdade que transformam os litigantes em cooperadores do juiz no aprimoramento da boa prestação jurisdicional. Já Lucas Buril de Macêdo e Ravi Peixoto (2016, p. 601) entendem haver três pressupostos materiais a ensejarem de dinamização do ônus probatório: os conhecimentos técnicos da parte, as informações específicas sobre fatos e/ou a maior facilidade em sua demonstração. Trata-se, pois, de uma das leituras possíveis das exigências determinadas pelo §1º do art. 373, considerando-as na perspectiva da parte a quem o ônus seria redistribuído. Além dos três requisitos, os autores consideram também o pressuposto material negativo, isto é, a condição de que a distribuição não implique na excessiva dificuldade de produção probatória pela parte adversa. Ademais, soa oportuna a observação feita por Humberto Theodoro Junior (2021, p. 792) quando afirma que a parte que suporta o redirecionamento não fica encarregada de provar o fato constitutivo do direito do adversário, mas sim de esclarecer o fato controvertido apontado pelo juiz, de modo que, se não o fizer, será favorecido aquele que foi aliviado, pelo juiz, da prova completa do fato controvertido. A título exemplificativo, a literatura jurídica aponta as ações de responsabilidade civil promovidas contra médicos em cirurgias ou em tratamentos especializados como as ocasiões em que se constata com mais recorrência o requisito da “maior facilidade probatória” de uma das partes. Como explana Didier Junior (2017, p. 150), isso se dá em tais casos porque quando se discute a culpa no procedimento cirúrgico ou no tratamento o médico terá, em regra, melhores condições de demonstrar regularidade ou não de sua atuação profissional. 3.2. Negócio jurídico processual sobre provas. Como mencionado alhures, o Código de Processo Civil de 2015 acentuou os poderes das partes para fins de conformação do processo na medida da necessidade das próprias partes e o direito material posto à exame do julgador. A cláusula geral de negócios jurídicos processuais (art. 190 do Código de Processo Civil) reforça essa ideia. A verdade é que o sistema processual contemplado pela novel legislação confere às partes, de forma atípica, o poder de construir ou reconstruir o procedimento na melhor forma que lhes aprouver, sempre com vistas ao melhor atendimento do caso em análise (DE OLIVEIRA, 2018, p. 191). 103 Nesse contexto, admite-se a possibilidade de se realizar as convenções processuais, que, de acordo com as lições de Antônio do Passo Cabral (2016, p. 68), podem ser compreendidas como: negócio jurídico plurilateral, pelo qual as partes, antes ou durante o processo e sem a necessidade de intermediação de nenhum outro sujeito, determinam a criação, modificação e extinção de situações jurídicas processuais, ou alteram o procedimento. Assim, repita-se, a legislação processual vigente autoriza e incentiva que as partes, por meio de convenções processuais, adequem o procedimento na medida dos seus interesses e com vistas a obtenção do melhor resultado a partir do processo. Confirma-se essa constatação a partir da própria disposição sobre provas pelo Código de Processo Civil de 2015, pois há expressa previsão/autorização para que as partes convencionarem a respeito do ônus probatório: Art. 373. [...] § 3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando: I - recair sobre direito indisponível da parte; II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito. § 4º A convenção de que trata o § 3º pode ser celebrada antes ou durante o processo. Vê-se, portanto, que às partes é lícito convencionarem de forma diversa aquela prevista originariamente em lei. Veda-se, todavia, a realização de convenção sobre a redistribuição do ônus probatório nos casos em que tais negócios jurídicos versem sobre direitos indisponíveis e tornem excessivamente difícil para uma das partes o exercício do direito probatório no curso do processo. Tal restrição se impõe de forma legitima sob as partes, pois o direito à prova advém da garantia fundamental da ampla defesa e do contraditório (NERY JUNIOR, 2017, p. 251), que, segundo a ótica mais atual da ciência processual, consiste em oportunizar de forma isonômicao direito às partes em influírem nas decisões judiciais (GAIO JUNIOR, 2021, p. 69). Desse modo, o direito à produção de provas deve ser enxergado como uma garantia mínima do due process of law e, portanto, preservada, não sendo legítima a sua mitigação sob o argumento de exercício de liberdade das partes em contratar/convencionar. Não poderiam as partes, a pretexto de fazer valer a sua extrema liberdade conferida pelo Código de Processo Civil, convencionar de forma que inviabilizasse o exercício de uma garantia mínima processual por uma delas ou por ambas. A realização das convenções processuais deve, necessariamente, respeito às garantias mínimas do devido processo legal (CABRAL, 2016, p. 336). Assim, respeitadas as garantias fundamentais processuais das partes e tratando-se de objeto disponível, podem as partes realizar as suas convenções para atribuir de forma diversa o ônus probatório. 104 As convenções processuais a respeito do ônus probatório podem ocorrer de forma prévia ou no curso do processo, ex vi art. 373, § 4º, do Código de Processo Civil. A doutrina especializada alcunha a realização de convenções processuais de forma prévia a instauração do processo como uma “técnica de antecipação procedimental” (CABRAL, 2016, p. 75), pois – em tese – o mesmo instrumento utilizado para deliberar sobre o direito material também é utilizado para pré-estabelecer as regras procedimentais, inclusive sobre distribuição do ônus probatório, em caso de instauração de processo jurisdicional. Nos casos em que já há processo em curso, diz tratar-se das convenções processuais incidentais, que objetivam a gestão do processo, com vistas a obtenção da solução pelo Poder Judiciário (CABRAL, 2016, p. 80). Por fim, é importante ressaltar que, muito embora o ordenamento tenha conferido às partes grande poder em distribuir de forma livre o ônus da prova entre si, não foram retirados os poderes instrutórios do juiz. O poder instrutório que detém o juiz perante o caso em análise não possui qualquer vinculação com o negócio jurídico processual realizado pelas partes a respeito do ônus probatório, de modo que, a distribuição inversa aquela prevista pela legislação não irá obstar que o Estado-juiz produza as provas que entender pertinente para a solução do caso posta e exame (DE OLIVEIRA, 2018, p. 249). A convenção processual, no entanto, deverá necessariamente ser observada pelo magistrado quando insuficiente o conteúdo probatório produzido pelas partes, pois diante da necessária prolação de uma decisão judicial, deverá o juiz se valer da dimensão objetiva do ônus probatório enquanto técnica de julgamento, atribuindo à parte sob quem recaiu o ônus probatório em razão do negócio jurídico processual os efeitos negativos do seu descumprimento (DIDIER JUNIOR; BRAGA; DE OLIVEIRA, 2016, p. 124). 4. Postura judicial perante a dinâmica probatória. No processo civil contemporâneo, a figura do Estado-juiz não é mais aquela concebida anteriormente, de um sujeito expectador do desenvolvimento da relação jurídico-processual. Atualmente, vê-se que o modelo processual colaborativo adota tanto propostas do sistema dispositivo, como é por exemplo a possibilidade do juiz se valer da distribuição legal do ônus da prova como regra de julgamento, mas também do sistema inquisitivo, vez que é facultado ao magistrado a instrução do feito de ofício (MITIDIERO, 2019, 53-54), ex vi artigo 370 do Código de Processo Civil13. Os poderes atribuídos ao juiz no processo civil moderno que prima pela busca por resultados, têm por objetivo suprir a eventual deficiência das partes, o que inclusive 13 Art. 370. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito. 105 ressalta a ampla possibilidade de instrução do feito pelo magistrado (DINAMARCO, 2020, p. 424). Além disso, a posição do juiz enquanto condutor cooperativo do processo é reforçada a partir da ideia do Estado Constitucional de Direito, cujas molas propulsoras são a construção de uma sociedade justa, igualitária e livre, além da garantia à dignidade da pessoa humana. Espera-se, portanto, que sob esses fundamentos, o juiz atue de forma paritária para com as partes ao conduzir o processo, porém, ao proferir suas decisões, adote uma posição assimétrica, de maneira que imponha o Poder Jurisdicional e a soberania do Estado. Forma-se, assim, a comunidade de trabalho entre os participantes do modelo cooperativo de processo. (MITIDIERO, 2019, p. 64-65) É por essa razão que se admite que mesmo diante de uma fixação de maneira diversa entre as partes a respeito do ônus da prova, não se afasta a possibilidade de o juiz instruir o feito. Essa atribuição do dever instrutório do juiz e da sua autonomia perante as partes para a produção das provas necessárias na busca e na aproximação da verdade no âmbito do processo é uma tendência internacional, pois, conforme as constatações de Michele Taruffo (2008, p. 179), “los distintos ordenamentos procesales han utilizado técnicas normativas diversas y se han inclinado em mayor o menor medida por la extensión de podes de instrucción del juez”. Muito se discutiu a respeito da possível quebra de imparcialidade do juiz ao determinar a produção de provas de ofício no âmbito da relação jurídico-processual. Crê-se, no entanto, que a situação é solucionada a partir da constatação de que, tanto a atuação positiva do juiz como a negativa em relação a instrução do feito podem resultar na prolação de uma decisão injusta à alguma das partes (GODINHO, 2016, p. 354), contribuindo para o afloramento das desigualdades entre as partes, sobretudo quando a ação do juiz for negativa com relação a instrução do feito. É dos clássicos escritos de Barbosa Moreira (1975, p. 113-114) a compreensão completa da função – mais que necessária – que exerce o Estado-Juiz na etapa instrutória: Nada mais natural: é intuitivo, em linha de princípio, que um bom julgamento descansa na correta aplicação da norma e fatos reconstituídos com a maior exatidão possível; e julgar bem é preocupação que não pode ser estranha ao órgão judicial. Nessa perspectiva, ao contrário do que insinuam certas fórmulas tradicionais, recusar-lhe a possibilidade de comprovar espontaneamente os fatos parece tão pouco razoável, afinal de contas, quanto negar-lhe a de procurar por si mesmo a norma aplicável [...] Assim, evidente que muito embora o ordenamento pátrio tenha conferido às partes a maior liberdade possível para disporem sobre a distribuição do ônus probatório, não se negou ao juiz a plena possibilidade de instrução do feito para alcançar a 106 solução mais justa e adequada ao caso concreto, sem que isso signifique quebra de sua imparcialidade. Há, no entanto, que se ressaltar a ressalva anteriormente apresentada, pois, havendo insuficiência probatória, deve necessariamente o juiz observar a regra do ônus da prova pactuada pelas partes sob a sua perspectiva objetiva, hipótese em que, muito embora presente a possibilidade de instrução do feito pelo juiz, este não está isento de observar aquilo que acordaram as partes a respeito dos ônus probatórios. Por fim, é importante esclarecer que não há preclusão para que o juiz exerça o seu poder instrutório no curso do processo. Conforme lecionam Fredie Didier Junior, Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira (2016, p. 137), é exatamente essa a compreensão que se deve ter do artigo 370 do Código de Processo Civil, que mesmo após deferida a produção de provas prévias e proferido despacho de organização do processo, poderá o magistrado determinar a realização de outras provas que entenda por necessário para julgamento da lide, em complemento a instrução anteriormente realizada caso se mostra insuficiente. Afinal, a própria legislaçãoprocessual vigente autoriza a conversão do julgamento do recurso em diligência instrutória, ex vi 938, § 3º, do Código de Processo Civil, o que reforça a ideia de inexistência de preclusão do poder instrutório do juiz. Referências. BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil, vol. 2. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação. Ano: 2020. CABRAL, Antônio do Passo. Convenções processuais. Salvador, JusPodivm. Ano: 2016.CAMBI, Eduardo. A prova civil: admissibilidade e relevância. São Paulo, Revista dos Tribunais. Ano: 2006. DE OLIVEIRA, Paulo Mendes. Segurança jurídica e processo: da rigidez à flexibilização processual. São Paulo, Thomson Reuters. Ano: 2018. DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; DE OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 11 ed. Salvador, JusPodivm. Ano: 2016. DIDIER JUNIOR, Fredie. A distribuição legal, jurisdicional e convencional do ônus da prova no novo código de processo civil brasileiro. In: Revista Direito Mackenzie, v. 11, n. 2. jul/dez. 2017. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, p. 129-155. Ano: 2017. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições do direito processual civil: volume I. 10. ed. rev. e atual. São Paulo, Malheiros. Ano: 2020. 107 DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivany; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do processo. 32. ed. São Paulo: Malheiros. Ano: 2020. DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do novo processo civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2018. GAIO JUNIOR, Antônio Pereira. Processo civil, direitos fundamentais processuais e desenvolvimento: flexos e reflexos de uma relação. Londrina, Thoth. Ano: 2021. GODINHO, Robson Renault. Reflexões sobre o poder instrutório do juiz. In: Novo CPC doutrina selecionada, volume 3: provas. DIDIER JUNIOR, Fredie; et. al. Salvador, JusPodivm. Ano: 2016. MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi. O CPC/2015 e a dinamização do ônus da prova. In: Novo CPC doutrina selecionada, volume 3: provas. DIDIER JUNIOR, Fredie; et. al. Salvador, JusPodivm. Ano: 2016. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito processual civil: tutela dos direitos mediante o procedimento comum. 7 ed. rev. e atual. São Paulo, Thomson Reuters. Ano: 2021. MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: do modelo ao princípio. 4 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo, Thomson Reuters. Ano: 2019. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Os poderes do juiz na direção e na instrução do processo. In: Revista Brasileira de Direito Processual. São Paulo, ano: 75, vol. 48, jan. a mar. 1975. p. 111/118. Ano: 1975. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 13 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais. Ano: 2017. SICA, Heitor Vitor Mendonça. Novas reflexões em torno da teoria geral dos procedimentos especiais. GENJURIDICO, 2017. Disponível em: . Acesso em: 01 de nov 2021. SILVA, Paula Costa e. REIS, Nuno Trigo dos. A prova difícil: da probatio lebior à inversão do ônus da prova. Revista de Processo. vol. 222, ago. 2013, p. 149-170. São Paulo: Revista dos Tribunais. Ano: 2013. TARUFFO, Michele. Poderes probatórios de las partes y del juez en Europa. La Prueba (apêndice I). MANRÍQUEZ, Laura; BELTRÁN, Jordi Ferrer (trad.). Madrid, Marcial Pons. Ano: 2008. THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. vol.1. 62. ed. Rio de Janeiro: Forense. Ano: 2021. 108 Ônus da prova: conceito, dinamização e convenção processual Matheus Campos Pompermayer Vieira Acadêmico de Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Pesquisador dos Grupos “Observatório do Processo Civil” e “Direito Civil & Processo – Desafios”; Email: matheus99pompermayer@gmail.com; Lattes ID: http://lattes.cnpq.br/8212598216944861. Sumário: 1. Conceito de ônus da prova. 2. Dinamização do ônus da prova no CPC/15. 3. Convenção processual e ônus da prova. 4. Conclusões. 5. Referências bibliográficas. 1. Conceito de ônus da prova Preambularmente, é imprescindível definir o conceito de ônus, que não pode ser confundido com obrigação ou dever, sendo a primeira premissa para compreender o tema, haja vista que, corretamente, prevalece o entendimento na doutrina de que o instituto tem autonomia conceitual (PACÍFICO, 2011). De acordo com Francesco Carnelutti (1936) ônus é uma faculdade cujo exercício se faz necessário para obtenção de uma vantagem. A partir desta concepção, embora o autor tenha identificado que ônus e obrigação se assemelham pelo elemento formal (vínculo de vontade), este é para tutela de interesse alheio, no caso, do titular do direito subjetivo e aquele é destinado para satisfação de interesse próprio. Além disso, o jurista italiano demonstra que enquanto a ausência de cumprimento da obrigação resulta em sanção jurídica (execução ou pena), a inércia do onerado não impõe referida sanção, porquanto inexiste a configuração de ato ilícito, considerando que se trata de mera manifestação de liberdade (CARNELUTTI, 1936). Humberto Theodoro Júnior (2020, p. 193), em consonância com o exposto, sintetiza a diferença dos institutos com clareza: A diferença entre ônus, de um lado, e deveres e obrigações, de outro lado, está em que a parte é livre de adimplir ou não o primeiro, embora venha a sofrer dano jurídico em relação ao interesse em jogo no processo. Já com referência às obrigações e deveres processuais, a parte não tem disponibilidade, e pode ser compelida coativamente à respectiva observância, ou a sofrer uma sanção equivalente. É que, nos casos de ônus, está em jogo apenas o 109 próprio direito ou interesse da parte, enquanto, nos casos de deveres ou obrigações, a prestação da parte é direito de outrem. A inobservância do ônus, portanto, como visto, poderá acarretar em prejuízos de ordem processual, o que motiva a doutrina em dividir o ônus em perfeito e imperfeito, justamente tendo em vista tais consequências negativas para a parte onerada. Haroldo Lourenço (2015), aduz que o primeiro se dá quando a consequência jurídica não pode ser evitada, como, por exemplo, a formação de coisa julgada sobre a decisão que não for impugnada por meio de recurso. Por sua vez, o segundo ocorre se o efeito negativo for provável, categoria que se enquadra o onus probandi, pois, sem dúvida, apesar de aumentar o risco de um julgamento desfavorável, este não é automático: Como visto, o ônus da prova é impróprio, assim, representa apenas prejuízos processuais e não o insucesso na lide, até porque o juiz pode julgar favorável a pretensão em prol daquele que descumprir o ônus da prova, pelo princípio da persuasão racional (art. 93, IX, da CR/1988, art. 131 do CPC/1973 e art. 371 do CPC/2015), bem como pelo princípio da comunhão da prova (LOURENÇO, 2015, p. 37). Cumpre registrar que prevalece na doutrina nacional a perspectiva objetiva do ônus da prova, ou seja, como regra de julgamento, na medida em que auxilia o magistrado a proferir sua decisão na hipótese dos fatos discutidos no processo não estarem devidamente esclarecidos, pois é vedado o non liquet, sendo as normas de distribuição do ônus essenciais para a resolução dos casos de insuficiência probatória (DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, 2016). Neste sentido, Alexandre Câmara (2021) aduz que caso a parte tenha comprovado a veracidade da alegação, o juiz considerará o fato em sua decisão. Lado outro, se a parte adversa apresentou provas suficientes para atestar que a alegação é falsa, da mesma forma, será afirmado pelo magistrado e o mesmo levará em consideraçãoao julgar a lide. Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Nery (2015, p. 1081), por conseguinte, defendem que “a sentença, portanto, é o momento adequado para o juiz aplicar as regras sobre o ônus da prova. Não antes”, exceto de se for a hipótese de inversão (art. 371, §1º, do CPC/15), razão pela qual se verifica na obra dos autores o destaque para a faceta objetiva. Ocorre que, contudo, parcela da doutrina, situada no modelo cooperativo de processo, adota conclusão diversa, demonstrando a importância do ônus da prova como norma de instrução, em atenção a perspectiva subjetiva, a fim de estimular as partes no encargo probatório de suas alegações para o alcance de uma decisão justa, in verbis: 110 Observe-se o ponto: ao lado da caracterização clássica do ônus da prova como regra de julgamento, cujo objetivo central está no evitar-se o arbítrio no processo, tem ganhado renovado fôlego a caracterização do ônus como regra de instrução, o que se leva a efeito com o fito declarado de forrar-se o processo com todos os elementos necessários à formação da convicção judicial. Dupla função, portanto, que se acomete ao ônus da prova no processo civil cooperativo. (MITIDIERO, 2019, p. 140). Em outro estudo, destinado a examinar especificamente o ônus da prova, Daniel Mitidiero (2020, p. 4) critica aqueles que diminuem o aspecto subjetivo do ônus da prova, pois “significa apagar do conteúdo do direito de ação e do direito de defesa o valor estratégico que a prova carrega na conformação do processo: como é evidente, as partes adotam determinados comportamentos projetando as possíveis consequências futuras previstas em lei”. No mesmo sentido, Humberto Theodoro Júnior (2020, p. 869) aduz que tais normas também são direcionadas às partes e salienta que “a regulamentação do ônus da prova é parcela importante do sistema democrático de prestação jurisdicional, baseado no princípio da cooperação, que preconiza a efetiva participação de todos os sujeitos do processo na formação do provimento judicial (CPC/2015, art. 6º)”, o que é essencial para a análise da dinamização do ônus da prova, conforme se passa a observar. 2. Dinamização do ônus da prova no CPC/15 De acordo com o art. 373, incisos I e II do Código de Processo Civil de 2015, incumbe ao autor comprovar fato constitutivo de direito e a parte ré incumbe o ônus de demonstrar de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da parte autora, deduzido na petição inicial. A princípio, vale mencionar as lições de Alexandre Câmara (2021) acerca do conceito de cada um dos fatos supramencionados. O primeiro é originário do direito autoral, sendo a causa de pedir remota da demanda, enquanto o segundo é aquele que não permite que o direito do autor efetivamente se constitua. Lado outro, os fatos modificativos e extintivos são, respectivamente, o fato superveniente que altera o direito do autor e aquele que extingue o direito do mesmo. A regra geral que distribui o ônus da prova no direito brasileiro é a fixada pelo legislador nos incisos I e II do art. 373. O critério, como se observa, é fixado ope legis, sendo referida técnica processual, que já existia no Código de 1973, denominada de ônus estático da prova, pois o ordenamento prevê com precisão como será dividido o ônus da prova entre as partes, na qual a interferência do juiz é mínima (MACHADO, 2012). 111 A distribuição legislativa é abstrata e cumpre o papel relevante de trazer previsibilidade para as partes, “pois, ainda que a omissão da parte não redunde necessariamente em seu prejuízo, não há como negar que a parte deve ter ciência prévia daquilo que lhe cabe fazer para estar em posição de receber um julgamento favorável” (MITIDIERO; ARENHART; MARINONI, 2019, p. 270). Contudo, conforme já lecionava Marcelo Pacheco Machado (2012), à luz do Código revogado, a atribuição estanque do onus probandi, apesar de garantir maior segurança jurídica, não leva em conta as possíveis desigualdades materiais entre as partes de determinado caso concreto, a depender, especialmente, da capacidade de acesso à determinados meios de prova e econômica ou técnica para produzir a prova. Deste modo, exsurge a necessidade de flexibilização da regra de distribuição do ônus da prova, teoria também acolhida pelo CPC/15, que “chama-se de dinâmica, tendo em vista que se contrapõe à noção estática de prova até então conhecida. Agora, com base nesta teoria, há um dinamismo (mobilidade) para que o sistema se adapte ao caso concreto, atendendo às circunstâncias especiais” (LOURENÇO, 2015, p. 114). O critério, por sua vez, é ope judice. Entretanto, não se pode confundir a dinamização do onus probandi com inexistência de critérios. Na verdade, há sim maior subjetividade, pois o magistrado decidirá sobre o ônus da prova a partir das circunstâncias do caso concreto, porém, está vinculado a atribuir o ônus à parte que terá mais facilidade em produzir a prova (MACHADO, 2012). No Código de Processo Civil de 2015, a distribuição dinâmica do ônus da prova encontra guarida no art. 373, §1º. Todavia, parcela da doutrina tem defendido que seria perfeitamente possível sua aplicação mesmo na ausência de referida norma. Se não, vejamos: Seria possível defender a sua aplicação a partir da defectibilidade da norma geral que prevê a distribuição fixa do ônus da prova (...) a norma geral não contempla os casos de inequívoca dificuldade probatória para o onerado e inquestionável facilidade probatória para a parte contrária, sendo a ocasião de superá-la no caso concreto, sob pena de violação da igualdade, desde que se informe à parte onerada ex novo, oportunizando-se a produção de prova, antes da prolação da sentença (MITIDIERO, 2020, p. 6). Luiz Eduardo Boaventura Pacífico (2011) aduz que não é novo na doutrina a atribuição do ônus da prova de forma dinâmica. A inovação do CPC/15 é usá-lo subsidiariamente, ou seja, somente se a regra geral do ônus estático resultar em injustiça no caso concreto. Neste ponto, Marcelo Abelha Rodrigues (2016) critica a opção do legislador em fixar a distribuição estática como regra geral, a propósito, defende que sequer deveria 112 existir a previsão do art. 373, I e II, do CPC/15, pois incompatível com o devido processo legal, a igualdade, e a nova concepção do Estado-juiz diante da prova. A distribuição dinâmica do ônus da prova está em consonância com o princípio da cooperação, tendo como fundamento a necessidade de igualdade material entre as partes (arts. 7º e 373, §1º, do CPC/15), além de decorrer do dever de auxílio do magistrado para com as partes (MITIDIERO, 2019). Neste sentido, convém destacar que “a colaboração determina o novo equilíbrio de forças no processo civil brasileiro” (MITIDIERO, 2019, p. 112), e conforme salienta o professor Hermes Zaneti Júnior (2018), estabelece um novo modelo de processo civil no Brasil (art. 6º, do CPC/15), transcendendo aos modelos adversarial e inquisitório. Por fim, vale ressaltar a diferenciação que Haroldo Lourenço (2015, p. 125) faz sobre dinamização do ônus da prova e inversão, porquanto em sua visão não se confundem, algo que não é pacífico na doutrina. Porém, parece ser adequada a conclusão do autor, porque na teoria dinâmica do ônus da prova “o juiz não vai determinar uma “troca” de ônus, pois não teríamos ônus subjetivos previamente estabelecidos, o que ocorre é a determinação de quem deve produzir determinada prova, sempre observando as peculiaridades do caso concreto”. 3. Convenção processual e ônus da prova Conforme se depreende do art. 373, §3º e §4º, o ônus da prova pode ser distribuído de forma diversa se as partes convencionarem sobre, desde que que não recaia sobre direito indisponível da parte ou torne excessivamente difícil para uma parte o exercício do direito, ipsis literis: § 3º A distribuição diversa do ônus da prova também podeocorrer por convenção das partes, salvo quando: I - recair sobre direito indisponível da parte; II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito. § 4º A convenção de que trata o § 3º pode ser celebrada antes ou durante o processo. Ocorre que, todavia, referido dispositivo é alvo de severas críticas por parte da doutrina mais conservadora, tendo alguns autores defendido até mesmo a sua inconstitucionalidade, pois não poderia o legislador permitir que as partes convencionem sobre o ônus da prova: Sendo a atividade probatória própria do magistrado na formação do seu livre convencimento, não há de se tolerar a possibilidade de convenção sobre as regras de distribuição do ônus probatório, malgrado a redação do parágrafo único do art. 333 do CPC/1973 (art. 373, § 3º, CPC/2015), eis que, fatalmente, a isonomia material seria 113 ferida, bem como o devido processo legal. Não existem partes iguais, nesse sentido, uma convenção, provavelmente, somente agravaria essa desigualdade (...) temos, então, um dispositivo que fatalmente gerará uma inconstitucionalidade (LOURENÇO, 2015, pp. 135-136). – Grifo nosso. Há muito, foi totalmente rechaçada a ideia de que as partes podem interferir nas normas de natureza processual. Isso porque, no século XX surgiu com muita força o movimento de publicização do processo civil, tendo como fundamento a prevalência do interesse público sobre o privado, na medida em que ao juiz são conferidos amplos poderes na condução do processo e a disponibilidade processual das partes é desvalorizada, rigidez acolhida no Código de 1973 (CABRAL, Trícia Navarro Xavier, 2019). Destarte, entre as consequências normativas do publicismo extrai-se a concepção de que as normas destinadas a regulamentar o processo são de ordem pública, logo, cogentes, não sendo o processo “coisa das partes” (CABRAL, Antonio do passo, 2018). Contudo, o CPC/15 rompe com esse dogma, prestigiando a liberdade das partes no âmbito dos atos processuais, o que também é reflexo do modelo cooperativo de processo já abordado (CABRAL, Trícia Navarro Xavier, 2019). Neste sentido, mesmo que as partes não consigam resolver o conflito mediante a autocomposição, “haverá espaço de deliberação em que as convenções das partes convirjam para disciplinar parcialmente algumas interações processuais de que participam” (CABRAL, Antonio do Passo, 2018, p. 217) Mas no que consiste as convenções processuais? É evidente que não há um consenso na doutrina acerca da definição do instituto. O presente capítulo não tem a pretensão de abordar com profundidade o tema, mas, sem dúvida, não é possível falar da possibilidade de convenção sobre a distribuição do ônus da prova, sem analisá-lo brevemente. Para Antonio do Passo Cabral (2018, p. 74) a “convenção (ou acordo) processual é o negócio jurídico plurilateral, pelo qual as partes, antes ou durante o processo e sem necessidade da intermediação de nenhum outro sujeito, determinam a criação, modificação e extinção de situações jurídicas processuais, ou alteram o procedimento”. As convenções processuais podem ser típicas, ou seja, quando previstas em Lei, caso do art. 373, §3º e §4º do CPC/15, acerca da possibilidade de convenção sobre o ônus da prova, ou atípicas a partir da cláusula geral de convenção processual prevista no art. 190 do CPC/15 (CABRAL, Trícia Navarro Xavier, 2019). Deste modo, as partes têm liberdade de convencionar acerca da distribuição do ônus da prova, desde que respeitem as limitações expressas dos incisos I e II do §3º, art. 114 373 do CPC/15, inexistindo forma prescrita em Lei para sua validade, mas, consoante alerta Humberto Theodoro Júnior (2020), é óbvio que o requerimento deve ser feito por escrito para ser apresentado ao magistrado. De acordo com o §4º do referido dispositivo, as partes podem negociar sobre a distribuição do ônus da prova antes ou depois do processo, o que permite a convenção processual em instrumento público ou particular referente a determinado negócio jurídico material das partes. Percebe-se que as partes podem por estratégia, anteriormente ao conflito, já se organizarem acerca da partilha do onus probandi. 4. Conclusões O presente capítulo buscou abordar o ônus da prova de forma sintética, mas trazendo ao leitor três aspectos essenciais: (i) o conceito, que consiste na premissa para o desenvolvimento do tema, (ii) a teoria de dinamização, sendo realizada sua comparação com a distribuição estática do ônus da prova, e (iii) a possibilidade de convenção processual. A princípio, estabeleceu-se o conceito de ônus. Este é, conforme a melhor doutrina, uma faculdade e o seu exercício depende exclusivamente do onerado que, caso escolha permanecer inerte, deverá estar ciente de que poderá sofrer prejuízos de ordem processual. A doutrina costuma chamar o ônus de imperativo do próprio interesse, pois seu cumprimento beneficia a própria parte e não um terceiro, como se dá no adimplemento de uma obrigação. No tocante ao ônus da prova, observou-se que, sem dúvida, é uma das matérias que foram substancialmente renovadas no Código de Processo Civil de 2015. Isso porque, conforme apresentado, o Código revogado adotava a distribuição estática do ônus da prova. Atualmente, embora a distribuição estática seja a regra geral, o magistrado pode distribuir o ônus da prova de forma diversa, atento as peculiaridades do caso concreto, em especial à capacidade técnica e econômica das partes, sendo aplicada a técnica da dinamização quando necessária. Outrossim, ao estabelecer o modelo cooperativo de processo, o CPC/15 permite uma leitura do onus probandi de forma totalmente diferente, notadamente de sua faceta subjetiva, pois o instituto não pode ser interpretado apenas como uma regra de julgamento, direcionado a auxiliar ao magistrado a decidir quando verificar insuficiência de provas de determinado fato. A norma que estabelece o ônus da prova também é para estimular as partes e cumpre a função de ser regra de instrução, sobretudo em razão do modelo cooperativo de processo. 115 Neste sentido, verificou-se que todos os sujeitos devem colaborar entre si para o alcance de uma decisão de mérito justa, efetiva e tempestiva ao final do processo, o que também precisa ocorrer na fase probatória, em particular do juiz para com as partes, observando o seu dever de auxílio, que também decorre do princípio da cooperação. Ressaltou-se, por fim, a possibilidade de que as partes do processo convencionem acerca da distribuição do ônus da prova, respeitando as limitações expressas no Código, sendo uma norma que confere liberdade aos litigantes, podendo, inclusive, decidirem a respeito antes do surgimento do conflito de forma estratégica e preventiva. 5. Referências bibliográficas CABRAL, Antonio do passo. Convenções processuais. 2. Ed. Salvador: Juspodivm, 2018. CABRAL, Trícia Navarro Xavier. 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Rio de Janeiro: Forense, 2018. 117 A distribuição dinâmica do ônus probatório na esfera processual trabalhista Eduardo Figueiredo Simões Acadêmico de Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Pesquisador voluntário (PIVIC) do Programa Institucional de Iniciação Científica da UFES – Período 2021/2022; Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Desafios do Processo”. E-mail: eduardofsimoes@hotmail.com. Lattes iD: http://lattes.cnpq.br/4588917736946889 Sumário: 1. Regras do ônus da prova no Código de Processo Civil de 2015. 2. A regra geral da distribuição estática do ônus da prova na Consolidação das Leis do Trabalho. 3. A possibilidade de dinamização do ônus probatório no Processo Laboral e nova redação do art. 818 da legislação celetista. 4. O momento processual para a distribuição dinâmica do ônus probatório no processo trabalhista. Referências. 1. Regras do ônus da prova no Código de Processo Civil de 2015 O conceito de ônus pode ser definido como um encargo cujo não cumprimento pelo onerado (sujeito a quem se atribui o ônus) possivelmente o colocará em situação de desvantagem. De modo inteligível, Humberto Theodoro Junior (2021, p. 782) assevera que o ônus da prova consiste na “conduta processual exigida da parte para que a verdade dos fatos por ela arrolados seja admitida pelo juiz”. Sendo o ônus probatório um encargo distribuído às partes, tal distribuição pode ser feita segundo critérios específicos, estabelecidos em lei e/ou projetados a partir da análise das particularidades do caso concreto. Para Cândido Dinamarco, Gustavo Badaró e Bruno Lopes (2020, p. 434), a distribuição do ônus da prova repousa principalmente na premissa de que, visando à vitória na causa, “cabe a cada uma das partes desenvolver perante o juiz e ao longo do procedimento, uma atividade capaz de criar em seu espírito a convicção necessária para julgar favoravelmente”. Por isso, o interesse na demonstração da efetiva ocorrência de um fato controvertido é sempre da parte a quem o reconhecimento dessa ocorrência beneficiará, razão pela 118 qual, em regra, recairá sobre ela o ônus de provar esse fato, sob pena deste ser reputado inexistente (DINAMARCO; BADARÓ; LOPES, 2020, p. 434). A regra geral da distribuição legal do ônus da prova, prevista no Código de Processo Civil em seu art. 373, caput e incisos I e II, é a de “que quem alega um fato atrai para si o ônus de prová-lo”. Desse modo: 1. ao autor cabe a prova do fato constitutivo do seu direito; e 2. ao réu incumbe provar a existência de fato que impeça, modifique ou extinga o direito do autor. Todavia, como bem pondera Theodoro Junior (2021, p. 788), não são raras as situações em que a parte onerada não se encontra, in casu, em condições favoráveis de acesso aos meios demonstrativos da verdade acerca dos fatos alegados na fase postulatória. Considerando tais situações, o Código de Processo Civil, em tom inovador, consagrou em seu art. 373, §1º a flexibilização da regra geral da atribuição do encargo probatório, conferindo ao juiz a possibilidade de distribuí-lo conforme as peculiaridades do caso concreto. Tal previsão passou a ser denominada de distribuição dinâmica do ônus probatório: Art. 373. O ônus da prova incumbe: [...] § 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. Embora seja a inversão do ônus probatório uma técnica processual já compreendida no ordenamento jurídico pátrio desde 1990, com amparo legal no artigo 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor1, a teoria da distribuição dinâmica do ônus probatório, consagrada e inaugurada (em termos legislativos) pelo estatuto de 2015, concretizou uma sistemática processual pautada no princípio cooperativo e da isonomia, permitindo a aplicação de uma tutela mais adequada aos direitos fundamentais materiais e processuais das partes. 1 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências; 119 Ademais, a dinamização do ônus nos termos do Código de Processo Civil de 2015, embora se trate de medida excepcional, trouxe pressupostos objetivos e seguros para sua aplicação de tal forma que passou a ter previsão expressa na legislação trabalhista, conforme observar-se-á em linhas seguintes. 2. A regra geral da distribuição estática do ônus da prova na Consolidação das Leis do Trabalho. Originalmente, a Consolidação das Leis do Trabalho previa em seu art. 818 a regra clássica e geral da distribuição do ônus probatório, dispondo que “a prova das alegações incumbe à parte que as fizer”. Tal regra, de notável simplicidade e concebida em 1943, cedeu lugar à aplicação sistemática do art. 373 do Código de Processo Civil de 2015, segundo o qual cabe ao autor a demonstração dos fatos constitutivos do seu direito e ao réu, a dos fatos impeditivos, extintivos ou modificativos do alegado direito do autor (LEITE, 2020, p. 951-952). Assim, com a reforma promovida pela Lei nº 13.467, de 2017 (Reforma Trabalhista), o art. 818 da CLT teve sua redação substancialmente alterada, passando a estatuir a mesma regra de distribuição do ônus probatório contida no CPC/2015 e garantindo sua aplicação às ações trabalhistas. Ipsis litteris: Art. 818. O ônus da prova incumbe: I – ao reclamante, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II – ao reclamado, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do reclamante. O art. 818, I e II, da CLT consagra o critério da distribuição estática do encargo probandi. Dessa forma, verbi gratia, se na hipótese de trabalho exercido aos domingos a reclamada, admitindo os trabalhos aos domingos, alega que era compensado nas segundas-feiras, caberá a ela demonstrar que havia folgado naquele dia, pois estaremos diante de fato impeditivo. Também a título exemplificativo, agora de um fato extintivo, pode-se elencar a situação em que a reclamada admite que o reclamante trabalhava aos domingos, sem compensação, mas aduz ter pagos os valores devidos a este título, hipótese na qual o encargo de provar os pagamentos efetuados recairá sobre a reclamada (MARQUES, 1999, p. 19-20). 3. A possibilidade de dinamização do ônus probatório no Processo Laboral e nova redação do art. 818 da legislação celetista. A distribuição legal do ônus probatório na esfera processual trabalhista segue os mesmos regramentos estatuídos no diploma processual civil. Outrossim,a Lei nº 120 13.467/2017 também incluiu nos §§1º, 2º e 2º do art. 818 da CLT a teoria da distribuição dinâmica do encargo probandi, in verbis: Art. 818. O ônus da prova incumbe: [...] § 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos deste artigo ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juízo atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. §2º A decisão referida no § 1o deste artigo deverá ser proferida antes da abertura da instrução e, a requerimento da parte, implicará o adiamento da audiência e possibilitará provar os fatos por qualquer meio em direito admitido. § 3º A decisão referida no § 1o deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil. Observa-se que a redação dos dispositivos supracitados, com exceção do §2º, são idênticas às dos parágrafos do art. 373 do CPC/2015, de modo a evidenciar a total recepção do instituto da dinamização do ônus probatório pela legislação celetista, não havendo que se falar em quaisquer incompatibilidades na aplicação desta técnica processual nas ações trabalhistas. Isso porque, como bem pontuam Bruno Freire e Camila do Bem (2019, p. 7), os princípios processuais que fundamentam esta técnica, quais sejam, o direito fundamental à prova, o contraditório, fomentando a participação, o diálogo e a influência nas decisões, a verdade real, a lealdade, a cooperação e a boa-fé, informam também o processo do trabalho. E continuam: Assim, a distribuição dinâmica do ônus da prova se consolida no Processo do Trabalho como uma técnica necessária à solução justa do litígio naqueles casos nos quais a produção da prova se torne impossível ou muito difícil para uma das partes, como em casos de ações individuais de acidente do trabalho ou ações coletivas de danos ao meio ambiente do trabalho. No mesmo sentido, Bezerra Leite (2020, p. 962): Acreditamos que no processo do trabalho há amplo espaço para a adoção da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, especialmente pelo fato de que nas demandas judiciais é justamente o empregador, e não o empregado, que se encontra em melhores 121 condições de produzir a prova, razão pela qual a adoção da teoria tradicional da distribuição estática do ônus da prova, em tais casos, pode inviabilizar a prestação da tutela jurisdicional justa, adequada e efetiva. O que se busca com a consagração expressa do ônus dinâmico da prova na legislação trabalhista é o mesmo que se alcançou com a sua previsão no diploma processual civil: que o juiz possa, observando que uma das partes possui dificuldade evidente em se desonerar do ônus probatório, enquanto outra possui maior facilidade de se desincumbir da mesma prova, redistribuir o encargo probandi de forma a melhor garantir a demonstração da veracidade das alegações e exposição da verdade real. E a correta aplicação da dinamização do onus probandi no Processo Laboral, assim como na sistemática do CPC/2015, depende da observância de certos requisitos pelo juiz. Na visão de Humberto Theodoro Junior (2021, p. 793), são estes: 1. A parte que suporta o redirecionamento não fica encarregada de provar o fato constitutivo do direito do adversário, mas de esclarecer o fato controvertido apontado pelo juiz; 2. A redistribuição do ônus deverá recair sobre prova que a parte possua condições de produzir; caso contrário, manter-se-á a regra da distribuição legal estática; 3. A redistribuição não pode representar surpresa para a parte onerada, de modo que a intimação do novo encarregado do ônus da prova esclarecedora seja feita a tempo de proporcionar-lhe oportunidade de se desincumbir a contento do encargo; e 4. Aplicada a técnica da distribuição dinâmica do ônus, deve ser oportunizada à parte onerada o direito à prova, com o fito de evitar decisões surpresas e impedir que a redistribuição funcione como mecanismo de prejulgamento da causa. Em suma, pode-se dizer que a aplicação da distribuição dinâmica requer a presença de dois requisitos mínimos e cumulativos: que se esteja diante da impossibilidade ou da excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos da regra geral; e que se esteja diante da maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário (PAMPLONA FILHO; SOUZA, 2019, p. 598). No entender de Bezerra Leite (2020, p. 963), muito embora a lei estabeleça que o juiz “poderá” atribuir o ônus da prova de modo diverso, a distribuição dinâmica prevista pelo §1º do art. 818 da CLT se trata, na verdade, de um poder-dever conferido ao magistrado, de modo que, quando constatar estarem presentes os requisitos elencados, caberá a ele proferir decisão interlocutória fundamentando os motivos da necessidade da inversão da distribuição do ônus probatório de acordo com as aptidões das partes. 122 Vale ressaltar, ainda, que a inversão do ônus probatório a que se refere o art. 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor2 é uma técnica que já vinha sendo largamente aplicada ao Processo do Trabalho, a partir da noção de empregado como “parte hipossuficiente”, em posição semelhante à ocupada pelo consumidor segundo o microssistema consumerista. Apesar disso, o sistema de dinamização do ônus da prova inaugurado pelo CPC/2015 surge, nas palavras de Bruno Freire e Camila do Bem (2019, p. 8), “para modificar e aperfeiçoar ainda mais os sistemas estáticos de distribuição de ônus, de modo a contribuir com a busca da verdade no processo e uma melhor tutela jurisdicional”. Ademais, com advento do diploma processual civil, houve uma releitura do critério de hipossuficiência: este deve ter relação direta com a produção de prova, e não somente com a posição da parte em um contexto abstrato. Outra diferença da distribuição dinâmica em relação à inversão do ônus probatório prevista pela legislação consumerista é em relação aos sujeitos sobre os quais pode recair o encargo probandi. Enquanto a inversão permite apenas a opção de atribuir o ônus da prova ao réu – o “fornecedor”, nas ações consumeristas; e o “empregador”, nas ações trabalhistas – , a distribuição dinâmica permite que a inversão no caso concreto possa ser aplicada tanto para onerar o empregador, quanto para onerar o empregado. Isso porque o princípio da igualdade processual, que informa também o Processo do Trabalho, haja vista que o princípio da proteção do trabalhador se aplica apenas em sede de direito material (SILVA; BISSOLI DO BEM, 2019, p. 8) Ademais, como bem observam Pamplona Filho e Tercio Souza (2019, p. 598), não interessa à distribuição dinâmica a posição assumida pela parte no processo (se sujeito ativo ou passivo), ou mesmo a natureza do fato (constitutivo, modificativo, impeditivo ou extintivo), tampouco o interesse em prová-lo, mas sim quem tem mais possibilidade de fazer a prova. Por essa lógica, verbi gratia, encontrando-se o empregador em situação de hipossuficiência informacional, poderá ser beneficiado pela redistribuição do ônus probatório, lhe desonerando de produzir prova que se apresente demasiadamente difícil para ele (SILVA; BISSOLI DO BEM, 2019, p. 8). Em sentido contrário, Carlos Henrique Bezerra Leite advoga pelo entendimento de que a distribuição dinâmica (ou inversão) do ônus da prova nunca poderá ser 2 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...] VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;não são os fatos em si, mas a verdade ou falsidade da afirmação realizada no processo acerca de um fato que é relevante à solução da controvérsia que foi submetida pelas partes à apreciação judicial (LIMA, 2020, p. 666). Nesse sentido, nos termos do artigo 374 do Código de Processo Civil de 2015, não serão objeto de prova os fatos: “I - notórios; II - afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária; III - admitidos no processo como incontroversos; IV - em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade”. A finalidade da prova, por sua vez, é a formação da convicção do órgão julgador, pois, por meio da atividade probatória objetiva-se a reconstrução narrativa dos fatos buscando chegar o mais próximo possível da demonstração dos fatos ocorridos no mundo fenomênico que estão sendo postos à apreciação do Estado-juiz por meio das alegações processuais (THEODORO JÚNIOR, 2018, p. 897; LIMA, 2020, p. 660-661). Quanto ao destinatário da prova, por fim, considerando que a prova se destina a formação da convicção judicial a respeito dos fatos controvertidos, tem-se que o juiz é o destinatário da prova (GRECO, 2004, p. 230). Com base nessa constatação, inclusive, afirma-se que como a prova é direcionada ao magistrado, este deve adotar uma postura cooperativa em conjunto com as partes, decidindo no processo quais são as provas que tem utilidade e são necessárias para que se possa esclarecer os fatos que precisam ser elucidados (GONÇALVES, 2021, p. 520). Vê-se, portanto, que o magistrado tem um papel fundamental enquanto destinatário da prova de aglutinar os diálogos processuais em contraditório (RODRIGUES, 2021, p. 233). 5. Conclusão Com base no exposto, dentre as várias acepções do conceito de prova, deve-se adotar a definição mais ampla que engloba a análise da prova como meio, resultado 14 e atividade probatória, não ignorando, entretanto, a existência de uma compreensão subjetiva e objetiva da prova. Diante do exposto, pode-se conceituar prova como o meio de que as partes dispõem para influenciar na formação da convicção do magistrado acerca dos fatos por elas alegados no processo, a fim de que este possa decidir, ao final, em relação à veracidade ou não destes fatos, possibilitando, consequentemente, o julgamento pela rejeição ou acolhimento, integral ou parcialmente, do pedido do autor. Finalmente, em relação ao objeto da prova, tem-se que são as alegações de fato que sejam controvertidos na causa submetida à apreciação judicial. Por sua vez, em relação à finalidade da prova, esta é a formação da convicção do magistrado e, por fim, seu destinatário é o juiz. 6. Referências CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001. v. III. GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil. Coord. Pedro Lenza. 12. ed. 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Prova judiciária no cível e comercial.4. ed. São Paulo: Max Limonad, 1970. v. 1. SCARPINELLA BUENO, Cassio. Curso sistematizado de direito processual civil. 3.e d. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 2. SILVESTRE, Gilberto Fachetti. Parte geral do Código Civil brasileiro: princípios, cláusulas gerais, conceitos jurídicos indeterminados e questões polêmicas. In: 15 BATISTA, Alexandre Jamal. (Coord.). Princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados nos institutos de direito privado: homenagem ao professor doutor Francisco José Cahali. 1. ed. São Paulo: Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, 2017. TARUFFO, Michele. La prova dei fatti giuridici. Milano: Giuffré, 1992. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 59. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018. v. 1. 16 Princípios do Direito Probatório Guilherme Santos Neves Abelha Rodrigues Acadêmico de Direito pela Universidade federal do Espírito Santo (UFES). Curriculum Lattes: 1322897749619572. Email: guilhermeabelha@hotmail.com. Sumário: 1. Os princípios do direito probatório; 2. Referências bibliográficas. 1. Os princípios do direito probatório O direito probatório é formado por diversas normas jurídicas. Estas, quando observadas em conjunto, de forma sistemática, acabam por revelar alguns princípios gerais a que se submetem. Ou seja, de máximas regentes do sistema probatório brasileiro. Não se trata de máximas universalizáveis, mas de normas politicamente determinadas e aplicáveis em determinado ordenamento jurídico no qual elas estão vigentes (sobre esse tema, distinguindo os conceitos “lógico-jurídicos” dos “jurídico- positivos”, ver DIDIER JR., 2016, passim). Assim, quando se fala em princípios do direito probatório, se está falando em balizas norteadoras do direito probatório brasileiro. Dessa forma, conforme lição de Marcelo Abelha Rodrigues, há alguns “postulados regentes” (RODRIGUES, 2016, p. 559) do direito probatório. O autor primeiro trata da garantia da ampla defesa, garantida em sede constitucional, que, no direito probatório, se consubstancia no “direito à prova” (RODRIGUES, 2016, p. 559) e à contraprova. Na sequência, trata do princípio da proibição da prova ilícita, também previsto em sede constitucional. Esse princípio, todavia, como explica o autor, pode ser relativizado em certos casos (RODRIGUES, 2016, p. 559). Esse princípio, deve-se dizer, é altamente relevante, principalmente quando se tem em vista que atualmente vige no Brasil um modelo de ordenamento jurídico fundado na Constituição e tendo como plenamente eficazes os princípios e garantias individuais fundamentais constitucionais. Além disso, uma interessante observação feita por Hernando Devis Echandia é que se deve ter “cuidado de no confundir este principio [principio de la obtención 17 coactiva de los medios materiales de prueba] com el anterior [principio de la naturalidad o espontaneidad y licitud de la prueba y del respeto a la persona humana].” (ECHANDIA, 2000, p. 44). Segundo o autor, pelo segundo desses dois princípios, as testemunhas não podem ser submetidas a meios de indução, mas estar livres para espontaneamente se manifestarem. Por esse princípio, também, mais genericamente, se excluem todos os procedimentos ilícitos para obtenção de provas. Já pelo outro, o da “obtenção coativa dos meios materiais de prova”, o juiz pode exigir que objetos, documentos etc. sejam disponibilizados a ele quando digam respeito às provas no processo. A diferença, logo, é que um deles tem em vista a não manipulação da própria prova, enquanto o outro garante que a prova (ela em si não maculada) seja disponibilizada ao juiz. Interessante que esse princípio da obtenção coativa é recepcionado pelo CPC, por exemplo, quando diz, no art. 400, § único, CPC, que “Sendo necessário, o juiz pode adotar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para que o documento seja exibido.”123 atribuída ao trabalhador, ainda que figure como réu da demanda trabalhista, sob pena de ferir o princípio da proteção processual. Nesse sentido, assevera: A relação processual trabalhista é estabelecida entre partes materialmente desiguais, razão pela qual nos parece que inverter-se o onus probandi em desfavor do trabalhador implicará violação ao princípio da vedação do retrocesso social, porquanto o caput do art. 7º da CF (progressividade do sistema normativo de proteção aos trabalhadores) também se aplica aos direitos processuais dos trabalhadores urbanos e rurais, e não apenas aos seus direitos materiais (LEITE, 2020, p. 965). Não obstante parte da literatura jurídica pragmaticamente tratar, em certos casos, como conceitos quase idênticos, fato é que a distribuição dinâmica difere da inversão do ônus da prova essencialmente porque a primeira considera a aptidão para a prova, e permite a distribuições dos ônus entre as partes, de forma livre, de acordo com as peculiaridades inerentes ao caso concreto; enquanto, na segunda, a redistribuição é operada necessariamente conforme os parâmetros previamente fixados em lei, apenas invertendo-se o sentido dos ônus (PAMPLONA FILHO; SOUZA, 2019, p. 599). No mesmo parecer, já apontava Eduardo Cambi (2015, p. 191) para uma intepretação adequada da teoria da distribuição dinâmica do ônus probatório, diferenciando-a da técnica da inversão (na qual o ônus é estabelecido prévia e abstratamente): O magistrado continua sendo o gestor da prova, agora com poderes ainda maiores, porquanto, ao invés de partir do modelo clássico (CPC-73, art. 333), para depois inverter o onus probandi (CDC, art. 6o, inc. VIII), cabe verificar, no caso concreto, quem está em melhores condições de produzir a prova e, destarte, distribuir este ônus entre as partes (CPC, art. 373, § 1o). A distribuição dinâmica do ônus é uma técnica processual agora formalmente integrante da sistemática do Processo Laboral, diante das reformas introduzidas pela Lei nº 13.467/2017. Os operadores do Direito do Trabalho passam a contar, assim, com uma nova ferramenta para a solução justa dos litígios trabalhistas, utilizada em conformidade com os parâmetros e limites legais com o fito de promover uma tutela jurisdicional trabalhista mais eficiente (SILVA; BISSOLI DO BEM, 2019, p. 15). 4. O momento processual para a distribuição dinâmica do ônus probatório no processo trabalhista. Em um momento inicial, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (EREsp n. 422.778-SP, 2012) apontava que a decisão judicial que determina a redistribuição do ônus da prova deveria ser proferida preferencialmente na fase de saneamento do 124 processo, de modo a garantir, no mínimo, que a parte a quem fora atribuído o encargo probandi tivesse oportunidade para manifestar-se acerca da referida redistribuição. Todavia, com o advento da Lei n. 13.467/2017 e a introdução do §2º à redação do art. 818 da CLT, o legislador passou a condicionar a distribuição dinâmica do ônus a momento processual específico para sua ocorrência: “[ a decisão que a determina] deverá ser proferida antes da abertura da instrução e, a requerimento da parte, implicará o adiamento da audiência e possibilitará provar os fatos por qualquer meio em direito admitido”. Trata-se, pois, de uma regra expressa apenas na legislação celetista, não constante no diploma normativo civil: a decisão que determinar a redistribuição do ônus probatório deverá ser necessariamente proferida antes da abertura da instrução; havendo a possibilidade, ainda, de se adiar a audiência de instrução com o fito de permitir à parte desincumbir-se do ônus a que lhe foi redistribuído. Imprescindível destacar, outrossim, que o adiamento da audiência somente ocorrerá a pedido de uma das partes. Logo, havendo o requerimento, o juiz não poderá prosseguir com a audiência, sob pena de limitar o direito de defesa da parte a quem fora atribuído o onus probandi (LEITE, 2020, p. 964). Referências. CAMBI, Eduardo. Teoria das cargas probatórias dinâmicas (distribuição dinâmica dos ônus da prova) – exegese do artigo 373, § 1º e 2º do CPC-2015. In: DIDIER JR., Fredie (coord. geral); FERREIRA, Willian Santos Ferreira; JOBIM, Marco Félix (coord.). Grandes temas do novo CPC: direito probatório. v. 5. Salvador: Ed. JusPodivm, 2015. DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivany; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do processo. 32. ed. São Paulo: Malheiros. Ano: 2020. MARQUES, Heloisa Pinto. A prova no processo do trabalho. In: Revista Ciência Jurídica, Belo Horizonte, n. 14, p. 19 e s., mar./abr. 1999. PAMPLONA FILHO, Rodolfo; SOUZA, Tercio Roberto Peixoto. Curso de direito processual do trabalho. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. SILVA, Bruno Freire e; BISSOLI DO BEM, Camila de Castro Barbosa. A distribuição dinâmica do ônus da prova no processo do trabalho. In: Revista de Processo. vol. 287, p. 93-117, jan. 2019. THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. vol.1. 62. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 125 Meios e fontes de prova Caio da Silva Ávila Acadêmico de Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo; Direito Processual Civil; Desafios do Processo: impactos do Código de Processo Civil no ordenamento jurídico civil; e-mail: cdsavila017@gmail.com; http://lattes.cnpq.br/6561896054933191. Sumário: 1. Introdução; 2. Meios de prova; 3. Fontes de prova; 4. Conclusão; 5. Referências. 1. Introdução Dentro de um diálogo é inegável que cada alegação deve ser acompanhada de uma garantia, caso contrário corre-se o risco de se permitir que uma informação falsa seja levada a frente, o que, por sua vez, acarreta prejuízos às relações. Ao passo que a perpetuação de uma mentira, permite que mais e mais pessoas lhe deem crédito, assumindo que tal fato errôneo é verdade. Isto posto, a fim de evitar a propagação de embustes, deve-se provar o que é afirmado, trazendo a correspondência entre alegação e a realidade, não só no âmbito do Direito, mas em todas as relações humanas. No entanto, no presente trabalho explora-se a prova dentro da ciência do Direito, mais precisamente no Direito Civil, a fim de esclarecer como surge a prova e como ela pode ser trazida à tona. Por conseguinte, a decisão judicial só terá validade se, ao final do processo, as partes tenham participado do convencimento do magistrado com todas os instrumentos possíveis. Os meios de prova fazem parte de tais instrumentos, visto que a comprovação é extremamente relevante para tomada de decisão. Como escreve Sérgio Cruz Arenhart: “A prova assume, então, um papel de argumento retórico, elemento de argumentação, dirigido a convencer o magistrado de que a afirmação feita pela parte, no sentido de que alguma coisa efetivamente ocorreu, merece crédito.” (ARENHART, 2005,pág. 23). Logo, a prova é essencial para o processo, figurando como direito fundamental das partes. Com efeito, os meios de prova permite o embasamento das alegações, demonstrando os fatos ocorridos, auxiliando o convencimento do juiz acerca do pleito de cada uma das partes. 126 2. Meios de prova Inicialmente, é cediço que as mais diversas alegações feitas dentro do processo necessitam dos mais diversos meios para sua confirmação. Logo, os meios de prova não podem nem devem se limitar a um rol taxativo, visto que um mesmo fato pode ser comprovado de várias maneiras. Portanto, define-se meios de prova como os mecanismos genéricos utilizados dentro do processo para demonstração dos fatos. Entende-se como as diferentes classes de prova aplicáveis ao iter procedimental, tais como: a prova testemunhal, a prova pericial, a prova documental, a confissão, dentre outras. Por conseguinte, o Código de Processo Civil prevê o uso de quaisquer meios de prova legais e moralmente legítimos, como se lê:“Art. 369 As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.”(BRASIL, 2015). Neste ponto, percebe-se que o legislador permitiu que a parte que alegue determinado fato possa usar qualquer meio de prova que encontre ou elabore, desde que feito de acordo com a lei vigente e a moralidade, abrindo uma extensa gama de material utilizável a fim de comprovar determinada alegação. Assim, diante de tal vagueza na definição dos possíveis meios de prova, é razoável que se aplique meios típicos e atípicos para produção de provas, sendo a primeira classe, os meios previstos expressamente na legislação, e a segunda, os meios que não estão explícitos na lei mas que não a contrariem, estando em conformidade com o ordenamento jurídico. Sobre os meios típicos, tem-se: “Os meios típicos probatórios nada mais são do que aqueles tipificados na lei. O CPC/2015 elenca diversas hipóteses, tais como: (i) a ata notarial (art. 384); (ii) o depoimento pessoal (art. 385); (iii) a confissão (art. 389); (iv) a exibição de documentos ou coisa (art. 396); (v) o documento (art. 405); (vi) a testemunha (art. 442); (vii) a perícia (art. 464); e (viii) a inspeção judicial (art. 481). Perceba-se que o regramento do NCPC é mais extenso do que o do Código Civil (art. 21215). Entretanto, isso não significa que haja qualquer incompatibilidade entre as leis, até porque, no direito brasileiro, não prevalece a existência de um rol taxativo de provas.” (PESSOA, 2021, pág. 88327). Tais meios de prova existem para nortear a atividade probatória, ao passo que, os meios de prova atípicos, por sua vez, permitem que as partes vão além do formalismo processual. Os meios de prova não previstos diminuem as restrições à busca pela 127 verdade, tornando possível que uma parte alcance comprovação dos fatos alegados por outras vias, sem infringir a lei de qualquer modo. Neste ínterim, o referido dispositivo impede a utilização de meios de prova que diretamente infrinjam a lei, ou seja, as provas ilícitas, as quais não possuem nenhuma eficácia no processo. Quanto aos meios de prova lícitos e “moralmente legítimos”, Leonardo Greco escreve: “Estes últimos, inicialmente percebidos como extensivos a provas inominadas, como a prova emprestada, com a emergência do primado dos direitos fundamentais foram associados à proibição das provas ilícitas, ainda que nominadas. Essa evolução só foi possível graças à juridicização, através dos chamados direitos da personalidade, de uma série de regras morais protetivas da honra, da vida privada, do pudor, da imagem, da liberdade de consciência etc.”(GRECO, 2002, pág.99-100). Salienta-se que tal excerto foi retirado de obra acerca do Código Civil de 2002 no início de sua vigência, no entanto, a afirmação feita pode ser aplicada aos conceitos do Código de Processo Civil de 2015. Interessante trazer a tona que a produção dos meios de prova pode ser moldada pelo magistrado, a fim de conferir maior celeridade ao processo, conforme o art. 139, inciso VI, do CPC/2015. Podendo o juiz alterar a ordem de produção dos meios de prova, para adequá-la às necessidades do processo (FUGA, 2019). Em adição, o autor Franceso Carnelutti alerta seus leitores que não há problema em entender meios de prova como a atividade do juiz, uma vez que, na época da ciência processual civil em que escreveu sua obra, sem a atividade do magistrado não se lograria qualquer conhecimento. Assim como não está errado entender meios de prova como o fato imprescindível para atividade do juiz. Só se deve tomar cuidado para não colocar os dois vocábulos em um mesmo contexto (CARNELUTTI, 2005). Inclusive, o autor, por sua vez, conceitua meios de prova como “a atividade do juiz mediante a qual busca a verdade do fato a provar […]” (CARNELUTTI, 2005, pág. 99). 3. Fontes de prova Após o entendimento do conceito de meios de prova, passa-se à análise das fontes de prova, uma vez que esta deriva da outra. Ao passo que os meios de prova são classes genéricas de material probatório, fontes de prova são as coisas, pessoas e fenômenos específicos que serão utilizando dentro de um processo, para dar garantia de determinado fato (DIDIER, 2016). Pode-se exemplificar fonte de prova, para melhor compreensão, como o depoimento de determinada testemunha que presenciou o fato. Sendo que, a prova testemunhal será o meio de prova e o depoimento in concreto será a fonte da qual se extrai a prova. 128 Ademais, Francesco Carnelutti expõe em sua obra que as fontes de prova podem ser divididas em duas classes. A primeira é fonte de prova em sentido estrito, que constitui a representação do fato a provar. Já a segunda é fonte de presunção, que não constitui a representação do fato a provar (CARNELUTTI, 2005). As fontes de prova em sentido estrito são os fatos úteis à dedução do fato a ser comprovado, já que se constituíram para sua representação. Tais meios de prova, conforme certos estudiosos, se tratam de fatos constituintes da fonte de conhecimento que remetem imediatamente ao fato a ser provado (CARNELUTTI, 2005). Já as fontes de presunção são os fatos úteis a comprovar a probabilidade do fato analisado no processo, sendo possível analisar tais fontes pela verossimilhança que apresentam em relação ao acontecimento que gerou a lide. Neste sentido, Carnelutti escreve: “O certo é que um fato aparece como fonte de presunção quando acerca da existência de outro ofereça o grau de certeza que o ordenamento jurídico exige para que o juiz possa determiná-lo na sentença; se não se obtém este resultado, o fato não representativo não é fonte de presunção, do mesmo modo que o fato representativo não é fonte de prova.” (CARNELUTTI, 2005, pág. 127). 4. Conclusão Expostas as premissas necessárias para compreensão do assunto em análise, qual seja, os meios e fontes de prova, bem como o direito ao seu emprego. Conclui-se que 0 objetivo deste trabalho, qual seja apresentar o conceito de meios e fontes de prova e sua aplicação, foi alcançado. Observa-se que o estudo das provas é algo que já vem sendo feito há séculos, devido a sua importância dentro do processo civil. Assim, não é surpresa que tal assunto esteja presente nas codificações processuais civis nacionais, tanto a passada quanto a vigente, bem como as internacionais. Desta forma, entende-se que os meios de prova são instrumentos genéricos utilizados no processo para comprovar fato, sendo o gênero do qual a ata notarial, o depoimento pessoal, a perícia, dentre outras fontes de prova, são espécies. Já as fontes de prova mencionadas são os objetos, bens, pessoas e acontecimentos utilizados para demonstrar a veracidade de fato, não podendo ser confundido com meios de prova. 5. Referências ARENHART, Sérgio Cruz. A verdade e a prova no processo civil. 2005. Academia Brasileira de Direito Processual Civil – ABDPC, v. 27. Disponível em: 129 , acesso em: 28/11/2021. BRASIL. Lei n° 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 16 mar. 2015. Disponível em: , acesso em: 28/11/2021. CAMBI, Eduardo. O direito à prova no Processo Civil. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 34, 2000. CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Ed. 4. Campinas, Bookseller, 2005. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. Vol. 2. Ed. 11. Salvador, Editora Jus Podivm, 2016. FUGA, Bruno Augusto Sampaio. A prova no processo civil:Principais inovações e aspectos contraditórios. Ed. 3, atual. revis. e ampl. Londrina, Editora Thoth, 2019. GAVA FILHO, João Miguel; FAZANARO, Renato Vaquelli. Os novos ares da (a) tipicidade no processo civil: meios de prova e medidas executivas no CPC/2015. Revista dos Tribunais, v. 1015, n. 2020, p. 213-239, 2020. GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil. Coord. Pedro Lenza. Ed. 12. São Paulo, Saraiva Educação, 2021. GRECO, Leonardo. A prova no processo civil: do Código de 1973 ao novo Código Civil. Scientia iuris, v. 5, p. 93-123, 2002. JOBIM, Marco Felix; MEDEIROS, Bruna Bessa de. O impacto das convenções processuais sobre a limitação de meios de prova. Revista eletrônica de direito processual, v. 18, n. 1, 2017. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado [livro eletrônico]. Ed. 7. São Paulo, Thomson Reuters Brasil, 2021. PESSOA, Marcos Serejo de Paula. Meios de prova típicos e atípicos. Brazilian Journal of Development, v. 7, n. 9, p. 88324-88338, 2021. 130 Confissão André Soares de Azevedo Branco Mestrando em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Advogado. Email: aabranco@gmail.com. Trata a confissão do terceiro meio de prova previsto no Código de Processo Civil, imediatamente após o depoimento pessoal, com previsão expressa entre os artigos 389 e 395. Em razão da sua intima vinculação à figura do depoimento pessoal, que tem por objetivo, como visto, provocar a confissão da parte adversa, optou o legislador por dela tratar em sequência. O conceito de confissão é apresentado logo no artigo que abre a seção sobre esse meio de prova, ao dispor que “há confissão, judicial ou extrajudicial, quando a parte admite a verdade de fato, contrário ao seu interesse e favorável ao do adversário”. Do conceito legal posto, conclui-se, de início, que a confissão é ato exclusivo da parte (praticado pessoalmente ou por representante, naquelas hipóteses em que cabível), não se podendo admitir, em nenhuma hipótese, a sua realização por terceiros. Quanto a sua natureza jurídica, podemos dizer, que possui ela natureza de declaração representativa, formando-se pela união de uma declaração de ciência e uma declaração de vontade.1 Já com relação aos seus elementos, temos na confissão a presença concomitante de três elementos, sem o quais não se poderá ela ser considerada eficaz: um elemento subjetivo, que é a parte que declara (parte capaz ou procurador com poderes especiais), um elemento objetivo, manifestado por meio dos fatos 1 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e convicção: de acordo com o CPC de 2015. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 499. Registre-se, contudo, que NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 18ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 1038 entendem diversamente. “É meio de prova que tem natureza de negócio jurídico unilateral, não receptício, processual ou não, conforme seja realizado dentro ou fora do processo.” 131 (desfavoráveis ao confitente), e um elemento intencional, que nada mais é do que a vontade livre e consciente daquele que confessa.2 Pois bem, superadas essas premissas iniciais, necessário se mostra, nessa oportunidade, distingui-las de alguns outros institutos afins. Em primeiro lugar mostra-se necessário diferenciar o reconhecimento jurídico do pedido da confissão. Enquanto no reconhecimento jurídico do pedido existe disposição sobre o direito material, aceitando uma parte a pretensão que lhe foi dirigida pela outra, dipensando o julgador análise sobre a controvérsia inicial em razão da autocomposição, na confissão existe apenas a admissão como verdadeiros de fatos contrários ao interesse daquele que confessa, sem qualquer vinculação do magistrado quanto ao fato confessado. Na prática, contudo, em algumas situações na qual a confissão incide sobre a totalidade do fato principal da causa, acaba ela equivalendo a verdadeiro reconhecimento do pedido.3 Outra distinção necessária é aquela existente entre confissão e admissão. Enquanto a confissão é conduta positiva da parte (pratica ato, declarando a ciência de um fato), a admissão decorre de sua omissão (parte deixa de, em momento oportuno, contestar a verdade de fato afirmado pela parte adversária).4 Já com relação as espécies de confissão, estas podem ser classificadas como efetiva ou ficta, judicial ou extrajudicial, espontânea ou provocada e simples, complexa ou qualificada.5 Primeiramente, com relação a classificação da confissão entre efetiva e ficta, ainda que não sejam propriamente diferentes espécies de confissão, mas sim espécie e efeito, necessário um breve esclarecimento. A confissão efetiva é verdadeiro meio de prova, realizado através de ato positivo da parte (que declara fato desfavorável a si e favorável à parte contrária), enquanto a confissão ficta não é meio de prova, mas mera ficção jurídica estabelecida pelo legislador com o objetivo de estimular a parte depoente a comparecer em juízo e prestar depoimento sobre fatos da causa. 2 DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada, processo estrutural e tutela provisória. 15ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2020, p. 201/202. 3 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 505. 4 Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart trazem uma analogia bastante simples, porém suficientemente clara, para explicar a diferença entre a confissão e a admissão. MARINONI e ARENHART, 2015, p. 506: “O que diferencia a admissão da confissão é o “sinal” que qualifica a conduta. A confissão é uma conduta ativa, ao passo que a admissão configura uma conduta passiva.” 5 DIDIER JR., BRAGA e OLIVEIRA, 2020, p. 206/207. 132 Nesse sentido, diferenciam-se a confissão efetiva e ficta quanto à real força da confissão (a confissão efetiva é ponto de prova robusto e quase insuperável, equiparando-se, como visto, a um reconhecimento do pedido, enquanto a confissão ficta representa mera imposição legal decorrente do não depoimento sobre fatos da causa) e quanto ao seu âmbito de extensão (enquanto a confissão efetiva opera para todos os demais processos futuros entre as mesmas partes, a confissão ficta somente tem eficácia no processo em que ocorreu). A confissão pode ainda, segundo exposto, ser judicial ou extrajudicial, conforme seja realizada perante autoridade que exerce função jurisdicional ou pessoa que não esteja investida de jurisdição no momento da confissão. A confissão pode também ser espontânea ou provocada. Será espontânea, segundo dispõe o §1º do art. 390 do Código de Processo Civil, a confissão obtida por iniciativa própria da parte ou por procurador com poderes especiais para confessar 6 , a qualquer tempo, sem qualquer interferência de agente externo, sendo provocada, nos termos do §2º do mesmo dipositivo, quando obtida exclusivamente durante o depoimento pessoal da parte, em resposta aos questionamentos formulados pelo julgador ou parte adversa. Registre-se que na hipótese de confissão provocada, por ser ela necessariamente obtida durante a tomada de depoimento pessoal da parte, inadmissível que se realize por meio de procurador, ainda que com poderes específicos para confessar, uma vez que se trata o depoimento pessoal de ato personalíssimo da parte depoente.7 Por fim, a confissão ainda pode ser classificada em simples, complexa ou qualificada. Será simples quando apenas tratar do fato contrário ao confitente. Complexa quando aquele que confessar trouxer ao processo fatos novos. E qualificada quando aquele que confessa negar os efeitosjurídicos que a parte adversária pretende obter do fato confessado. Quanto aos efeitos da confissão, a matéria foi disciplinada nos arts. 391 e 392 do Código de Processo Civil, que trataram, respectivamente, sobre a sua eficácia subjetiva e sua eficácia objetiva. Neste sentido, dispõe o art. 391 que a confissão judicial, como ato personalíssimo, somente faz prova contra o confitente (e seu adversário), não prejudicando eventuais litisconsortes. 6 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 516. Segundo afirmam os autores, a mera existência de cláusula genérica de outorga de poderes especiais para confessar não satisfaz o requisito legal exigido, devendo especificar exatamente os fatos que podem ser confessados. 7 Em sentido contrário, admitindo tal possibilidade, ver NERY JUNIOR e NERY, 2019, p. 1034. 133 Contudo, a correção dessa disposição depende da espécie de litisconsórcio a ser formado.8 Nas hipóteses de litisconsórcio simples, os fatos comuns a todos os litisconsortes somente fazem prova contra todos se por todos for confessados, enquanto os fatos exclusivos de cada um deles, embora admitidos como verdadeiros pela confissão, não importam qualquer reflexo para o interesse dos demais. Já no litisconsórcio unitário, exatamente porque a decisão da causa deverá ser indêntica para todos os litisconsortes, para que a confissão tenha algum efeito, devem os fatos ser confessados por todos os litisconsortes. Por último, o parágrafo único do art. 391 trata da hipótese de confissão do cônjuge ou companheiro, trazendo para o campo do direito processual civil deveres já estatuídos na legislação civil.9 Nestes termos, a confissão de um dos cônjuges ou companheiros, relativamente a ações sobre bens imóveis ou direitos sobre imóveis alheios, só é válida se o outro proceder da mesma forma, excetuada a hipótese de casamento cujo regime seja o da separação absoluta de bens. No que diz respeito aos limites objetivos da eficácia da confissão, tratou a lei deles expressamente em três situações (confissão de direitos indisponíveis, confissão feita por quem não pode dispor do direito relacionado ao fato confessado, confissão feita por representante), nas quais a admissão do fato não tem força de confissão (a confissão é válida, apenas não possui efeitos – Ineficácia da confissão), funcionando tão somente como prova apta a balizar o convencimento do julgador. Em sequência, tratou o art. 393 do código do princípio da irrevogabilidade da confissão, inadmitindo a sua reconsideração ou arrependimento sobre os fatos 8 DIDIER JR., BRAGA e OLIVEIRA, 2020, p. 207. 9 NERY JUNIOR e NERY, 2019, p. 1040. 134 confessados, salvo se decorrentes de erro de fato10 ou coação11, hipóteses em que se admitirá, a depender do momento processual, o ajuizamento de ação anulatória de confissão ou ação rescisória para a sua invalidação.12 Com relação as vias processuais existentes para a invalidação da confissão, algumas considerações de natureza processual precisam ser feitas. No que diz respeito à ação anulatória de confissão, deve ela ser apresentada como questão prejudicial para o julgamento da ação em que houve a confissão, devendo ser reconhecida a conexão entre as ações para a reunião no mesmo juízo, com a consequente suspensão do processo no qual ela tenha ocorrido até que seja proferida decisão definitiva a respeito da sua validade.13 Ainda em relação à ação anulatória de confissão, tem-se que a legitimidade ativa para a sua propositura, por se tratar de ação personalíssima, é exclusiva daquele que vai confessar, com a possibilidade do seu prosseguimento pelos seus sucessores, nos termos do parágrafo único do art. 393 do código, quando iniciada a confissão vier o confitente a óbito. Em ambas as hipóteses de invalidação da confissão, entretanto, não basta a simples a demonstração da ocorrência do erro de fato ou coação moral, devendo restar comprovada a inexistência do fato confessado, sob pena de restar ausente interesse processual na anulação da confissão.14 Concluindo, estabelece ainda o art. 395 do Código de Processo Civil o princípio da indivisibilidade da confissão, ou seja, que não pode a parte que quiser invocá-la 10 Registre-se que ao tempo do código revogado, este apenas dispunha como hipótese de invalidação da confissão o erro, sem qualquer diferenciação entre os casos de erro de fato e erro de direito, o que levava a doutrina a questionar se possível a sua invalidação sobre ambas as modalidades. O Código Civil Brasileiro, bem como o atual Código de Processo Civil, resolvendo a questão, passaram a dispor expressamente que seria possível a invalidação da confissão apenas nos casos de erro de fato. As razões para tanto, segundo DIDIER JR., BRAGA e OLIVEIRA, 2020, p. 215, são muito simples: “a) a confissão é declaração de ciência de um fato, e não o reconhecimento de incidência da hipótese normativa no suporte fático concreto; b) erro de direito não destrói a verdade do fato, não podendo desfazer a prova feita na confissão, pois o fato confessado não deixa de ser existente porque o confitente desconhecia as suas consequências jurídicas; c) tratar-se-ia de verdadeira contradictio in adiecto, pois, se de confissão se trata, não é possível haver erro de direito; d) o erro de direito somente é relevante para a invalidação do ato jurídico quando, não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal do negócio jurídico (art. 139, III, Código Civil).” 11 Já com relação a coação, cumpre destacar que apenas a coação moral relativa é capaz de determinar a invalidação da confissão, e desde que seja ela determinante para a sua prática. A coação moral absoluta e a coação física, pela sua gravidade, retiram do confitente o elemento vontade, essencial à pratica do ato, razão pela qual tornam nula a confissão realizada. Neste sentido, para uma análise mais detalhada sobre a questão posta, MARINONI e ARENHART, 2015, p. 534/536. 12 DIDIER JR., BRAGA e OLIVEIRA, 2020, p. 213. 13 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Op. Cit., p. 538. 14 Ibid, p. 538. 135 aceitá-la no tópico que a beneficiar e recusá-la no que lhe for desfavorável, salvo naquelas hipóteses em que forem apresentados fatos novos capazes de constituir fundamento de defesa de direito material ou reconvenção. Bibliografia DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada, processo estrutural e tutela provisória. 15ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2020, p. 201/216. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e convicção: de acordo com o CPC de 2015. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 495/549. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 18ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 1038/1042. 136 Depoimento pessoal André Soares de Azevedo Branco Mestrando em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Advogado. Email: aabranco@gmail.com. Trata o depoimento pessoal do segundo meio de prova tratado no Código de Processo Civil, imediatamente depois da ata notarial, com previsão expressa entre os artigos 385 e 388. Contudo, de início, uma primeira observação precisa ser feita no que se refere ao termo adotado pelo código, uma vez que a expressão “depoimento pessoal” escolhida pelo legislador não parece a mais adequada, recebendo críticas doutrinárias em razão da sua redundância1, uma vez que todo o todo depoimento é sempre pessoal, seja ele da parte ou de testemunha, razão pela qual o melhor seria utilizar a expressão “depoimento da parte”, na forma comofeito pelo Código de Processo Civil Português. Ultrapassado esse primeiro problema terminológico, uma outra consideração ainda precisa ser feita. É que o Código de Processo Civil brasileiro, seguindo o modelo adotado pelo direito italiano, disciplinou duas diferentes espécies do gênero depoimento da parte, que não se confundem entre si 2 : de um lado o interrogatório livre, previsto no art. 139, VIII do Código de Processo Civil3, e do outro 1 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e convicção: de acordo com o CPC de 2015. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 432. 2 DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada, processo estrutural e tutela provisória. 15ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2020, p. 188. Registre-se, contudo, que o Código de Processo Civil revogado tratava ambas as espécies de depoimento da parte conjuntamente, no capítulo referente ao depoimento pessoal, o que levou a doutrina processual a tecer diversas críticas sobre referida opção legislativa, já que referidas espécies de depoimento da parte, por terem objetivos distintos, não poderiam se submeter a um regime jurídico único. 3 Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições des Código, incumbindo-lhe: (...) VIII – determinar, a qualquer tempo, o comparecimento pessoal das partes, para inquiri-las sobre os fatos da causa, hipótese em que não incidirá a pena de confesso. 137 o depoimento da parte por provocação, previsto a partir do art. 385 do mesmo diploma processual4. Em linhas gerais, o interrogatório livre não é considerado um meio de prova em si mesmo, pois o seu principal objetivo não é a constituição de prova no processo (obtenção de confissão), mas tão somente o esclarecimento do julgador quanto aos fatos do processo.5 Todavia, mesmo restando inaplicável ao interrogatório livre a pena de confissão ficta da parte, conforme dito, o não comparecimento e/ou sua recusa em responder os questionamentos formulados pelo juiz podem ser consideradas abusivas, constituindo infração ao dever de colaboração processual, podendo a parte responder por litigância de má-fé em razão da alteração da verdade dos fatos6, ato atentatório à dignidade da justiça em razão do descumprimento e/ou embaraço ao cumprimento de decisão judicial7 ou mesmo crime de desobediência decorrente do descumprimento da ordem judicial de esclarecimento dos fatos da ação8. Já o depoimento da parte, ao contrário, tem nítido e específico fim probatório, configurando verdadeiro dever da parte depoente, cujo objetivo principal é obter a sua confissão, que ocorrerá de forma ficta naquelas oportunidades em que ela não comparecer ou se recusar a responder. É sobre a espécie depoimento da parte que trataremos a seguir. Contudo, um último registro precisa ser feito. Adotaremos neste trabalho, em que pese a distinção das espécies do gênero antes apresentada, o termo depoimento pessoal, por ser ele o utilizado pelo legislador no Código de Processo civil. Pois bem, o depoimento pessoal pode ser conceituado como o “meio de prova que tem como principal finalidade fazer com que a parte que o requereu obtenha a confissão, espontânea ou provocada, da parte contrária sobre fatos relevantes à solução da causa.”9 4 Art. 385. Cabe à parte requerer o depoimento pessoal da outra parte, a fim de que esta seja interrogada na audiência de instrução e julgamento, sem prejuízo do poder do juiz de ordená-lo de ofício. 5 Por essa razão, segunda destacam MARINONI e ARENHART, 2015, p. 441, Mauro Cappelletti entendia ser mais correto denominar esse instituto de interrogatório ad clarificandum, uma vez que a sua intenção seria simplesmente o esclarecimento do juiz, no sentido de possibilitar o mais perfeito cumprimento da sua função jurisdicional. 6 DIDIER JR., BRAGA e OLIVEIRA, 2020, p. 189. 7 DIDIER JR., BRAGA e OLIVEIRA, 2020, p. 189. 8 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 452/453. 9 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 18ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 1033. 138 Sendo assim, somente pode prestar depoimento aquele que é parte no processo, ou seja, que formulam ou tem contra si formulados pedidos. Algumas posições processuais contudo merecem uma maior atenção. Sendo assim, além do autor e réu, também se submetem ao depoimento pessoal, sem qualquer discussão, o denunciado à lide, o chamado ao processo e o opoente.10 Já com relação a figura do assistente, a sua submissão ao depoimento pessoal variará conforme a espécie de assistência presente no caso: se assistente litisconsorcial (pois parte (no sentido material), que apenas não assumiu o polo da relação processual) admitir-se-á a prestação de depoimento pessoal, ao passo que se assistente simples (uma vez que terceiro com mera função auxiliatória) o depoimento pessoal não será admitido. Outra questão que parece apresentar problemas diz respeito ao problema da representação da parte. Regra geral, por se tratar de ato personalíssimo dela, não se admite o depoimento pessoal do seu representante, quando tratando-se de pessoa física, que deve figurar, necessariamente, como testemunha.11 Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery12, contudo, divergem da posição acima exposta, afirmando que o depoimento pessoal pode sim ser prestado por representante de pessoa física, desde que possua ele poderes especiais para depor e confessar, nos termos do art. 661, §1º do Código Civil.13 Quanto a possibilidade do depoimento pessoal de representante legal de pessoa jurídica o tratamento é distinto, admitindo a jurisprudência tal possibilidade, desde que possua o representante conhecimentos sobre os fatos discutidos e poderes especiais para confessar.14 Uma outra situação também interessante é aquela envolvendo o incidente de desconsideração de personalidade jurídica, no qual se admite o depoimento 10 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 435. 11 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 437. 12 NERY JUNIOR e NERY, 2019, p. 1034. 13 Art. 661. O mandato em termos gerais só confere poderes de administração. §1º. Para alienar, hipotecar, transigir, ou praticar quaisquer atos que exorbitem a função de administração ordinária, depende de procuração com poderes especiais e expressos. 14 DIDIER JR., BRAGA e OLIVEIRA, 2020, p. 191. MARINONI e ARENHART, 2015, p. 439, com fundamento nas lições de Pontes de Miranda, criticam tal possibilidade, afirmando, em resumo, não caber o depoimento pessoal de representante de pessoa jurídica justamente por não ser ele propriamente parte. Além disso, haveria por parte daqueles que admitem tal possibilidade um tratamento incoerente, na medida em que inadmitem o depoimento pessoal de representante da pessoa natural, mas o admitem para o representante da pessoa jurídica. 139 pessoal dos sócios intervenientes, contudo, limitado este apenas aos limites da desconsideração.15 Por fim, pode ainda surgir dúvida sobre a possibilidade do depoimento pessoal do estrangeiro. Essa, contudo, não parecer apresentar maiores discussões, uma vez inexistir qualquer vedação a essa possibilidade, bastando que, no caso da impossibilidade de sua manifestação adequada na língua nacional, seja disponibilizado intérprete.16 Superadas todas as questões antes apresentados envolvendo o depoimento pessoal dos sujeitos processuais, passaremos, agora, à análise da sua natureza jurídica. Segundo apontam Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, existiram ao longo do tempo três correntes a respeito da natureza jurídica do depoimento pessoal. Uma primeira corrente entendia o depoimento pessoalcomo declaração de vontade (semelhante ao contratos em geral). Uma segunda corrente entende o depoimento pessoal como comunicação de vontade. Uma terceira corrente, prevalente no direito brasileiro, vê o depoimento pessoal como declaração de conhecimento (com o único propósito de prova).17 Uma vez estabelecida a natureza jurídica do depoimento, e definido o seu objetivo, cumpre esclarecer, agora, a quem cabe requerer o depoimento pessoal da parte. Nesse sentido, nos termos do disposto no art. 385 do Código de Processo Civil, cabe apenas à parte requerer o depoimento da parte adversa, com a possibilidade de o julgador, de ofício, também requerer a realização de depoimento pessoal de qualquer das partes. A parte final do referido dispositivo, contudo, evidencia nítido excesso legislativo, na medida em que não compete ao magistrado a provocação da parte para confessar, mas apenas a obtenção dos esclarecimentos necessários a formação do seu convencimento, para o qual existe, conforme apontado, a figura do interrogatório livre.18 Uma outra questão problemática diz respeito a possibilidade do requerimento do depoimento pessoal da parte ser feito pelo seu litisconsorte. 15 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 436. 16 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 450. 17 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 440. Registre-se, apenas, que em que pese a orientação dominante, o próprio CPC possui dispositivos que não se compatibilizam com essa natureza jurídica, como o previsto no art. 393 CPC, que estabelece a possibilidade de anulação da confissão emanada de erro ou coação, que configura um contrasenso, já que a vontade não deveria importar se diante de uma simples declaração de conhecimento. 18 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 449. 140 Segundo entendem Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, o litisconsorte não possui legitimidade para requerer o depoimento pessoal do seu litisconsorte, pois entre eles não existe lide, e portanto fatos controvertidos a serem confessados.19 Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, ao contrário, admitem tal possibilidade, entendendo que a vedação somente vale para o litisconsórcio unitário, mas não para as demais hipóteses nas quais possui o litisconsorte lide própria contra o outro, como ocorre na denunciação da lide e chamamento ao processo, oportunidades em que o requerimento pessoal da parte feito pelo seu litisconsorte deveria ser admitido.20 Prosseguindo, no que tange a intimação da parte para a realização de depoimento pessoal, estabelece o Código de Processo Civil, no §1º do art. 38521, que deverá ela ser pessoal, em razão da consequência decorrente da sua ausência, qual seja a confissão “ficta” dos fatos narrados. Contudo, mesmo que seja a parte depoente devidamente intimada para o ato, caso haja a sua ausência justificada (devidamente analisada e acolhida pelo juiz), referida consequência, por óbvio não se aplica, oportunidade que deverá o juiz fixar nova data para o depoimento. De toda forma, é preciso também restar registrado que nem sempre a ausência injustificada (ou recusa em depor) acarretará ao depoente a consequência da confissão ficta, uma vez que esta não se aplicará, por exemplo, quando em discussão direitos indisponíveis, se tratar de litisconsórcio unitário (decisão da causa deve ser idêntica para todos os sujeitos do polo) e fato dependa de prova documental específica (como p.e. qdo a lei exige certo meio de prova, como o instrumento público) Por fim, ainda no que diz respeito à intimação da parte para a realização do depoimento pessoal, questiona a doutrina se essa, apesar de pessoal, deverá ser obrigatoriamente feita por oficial de justiça ou poderá ser feita via postal. Sendo feita a referida intimação via carta registrada com aviso de recebimento devidamente assinado, não parece existir qualquer óbice para a sua admissão, pois possível concluir a partir da assinatura que a parte intimada efetivamente teve ciência do ato.22 19 NERY JUNIOR e NERY, 2019, p. 1033. 20 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 449/450. 21 §1º. Se a parte, pessoalmente intimada para prestar depoimento pessoal e advertida da pena de confesso, não comparecer ou, comparecendo, se recusar a depor, o juiz aplicar-lhe-á a pena. 22 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 454. 141 Para tanto, não basta que a intimação do depoente seja pessoal, conforme dito, sendo necessário, ainda, que o mandado estipule, de forma expressa, a a razão da necessidade do comparecimento da parte, bem como indique o local, a data e a hora em que se deva fazer presente, sendo ainda entregue com ao menos quarenta e oito horas de antecedência do ato, sob pena, assim não sendo, de não ser obrigatório o seu comparecimento. Neste ponto parece figurar uma importante discussão acerca da validade da intimação para o ato de depor, com possíveis efeitos práticos, qual seja a necessidade de constar expressamente na intimação o efeito da recusa ou não comparecimento ao ato. Neste sentido, defendia José Carlos Barbosa Moreira a nulidade da intimação para depoimento pessoal da parte sem a menção a cláusula expressa de sanção de confissão ficta, enquanto, em sentido contrário, defendem Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart a possibilidade de superação do vício, desde que antes do início da tomada do depoimento seja esclarecida as consequências do silêncio, nos termos da redação do §1º.23 Seguindo, trata o caput do art 385 do Código de Processo Civil do momento de produção do depoimento pessoal, que somente pode ser colhido uma única vez, na audiência de instrução e julgamento, após a prestação dos esclarecimentos pelos peritos e assistentes técnicos. Já no que diz respeito à forma de colheita do depoimento pessoal, o Código de Processo Civil, diferentemente do diploma revogado24, nada dispôs, motivo pelo qual aplica-se a regra prevista no diploma revogado, no qual a colheita do depoimento pessoal da parte se dá na forma prevista para a colheita da prova testemunhal. De toda forma, registre-se que para a colheira do depoimento pessoal, mostra-se desnecessária a qualificação do depoente, uma vez que esta já foi realizada, seja pelo autor na inicial ou pelo réu em sua defesa. Em segundo lugar, observa-se que o depoimento pessoal deve ser prestado de forma oral, sem que seja possível ao depoente a utilização de escritos anteriormente preparados, salvo em hipóteses excepcionais, devidamente justificadas pelo julgador. Desta forma, conforme visto, evidencia-se a importância da oralidade, considerada como princípio fundamental que rege o depoimento pessoal. 23 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 456. 24 Art. 344. A parte será interrogada na forma prescrita para a inquirição de testemunhas. 142 Admite-se, contudo, sem que se desnature a essência da oralidade, e desde que com o objetivo de esclarecimento de alguns fatos, a consulta a breves notas, quando autorizadas previamente pelo juiz, nos termos do disposto na parte final do art. 387 do Código de Processo Civil. Nestes casos, restando autorizada a consulta a eventuais notas, antes que sejam elas utilizadas, em respeito ao princípio do contraditório, devem ser submetidas ao advogado da parte adversa do depoente.25 Ainda quanto ao regime do depoimento pessoal, observa-se que não se aplica a ele o disposto no art. 459 Código de Processo Civil, pois se a sua razão é obter a confissão daquele que depõe, falta ao seu advogado interesse em formular perguntas. A ele cabe, pelas mesmas razões, tão somente a fiscalização da inquirição da parte. Por último, estipula ainda o código que cada parte seja ouvida separadamente, sem a presença dos demais sujeitos que devem depor. Assim, nos termos da regra do §2º do art.385, ouve-se o autor, sem a presença do réu (que deve ser mantido em sala separada), somente após ouvindo aquele, oportunidade em que admitida a presença do autor. Tal regra, contudo, pode ser flexibilizada por meio da celebração de convenção processual, permitindo-se assim que uma parte assista ao depoimento da outra. Nesse sentido a parte final do enunciado 19 do FPPC.26 O problema, entranto, se apresenta naquelas hipóteses de atuação de advogado- réu atuando em causa própria, no qual entrariam em conflito as regras da impossibilidade de o réu assistir o depoimento do autor e o direito de defesa do réu. Buscando resolver o referido conflito, os Professores Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, com fundamento nas lições do Prof. Moniz de Aragão, indicam como solução do problema a necessidade da constituição de advogado 25 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 477. 26 São admissíveis os seguintes negócios processuais, dentre outros: pacto de impenhorabilidade, acordo de ampliação de prazos das partes de qualquer natureza, acordo de rateio de despesas processuais, dispensa consensual de assistente técnico, acordo para retirar o efeito suspensivo de recurso, acordo para não promover execução provisória; pacto de mediação ou conciliação extrajudicial prévia obrigatória, inclusive com a correlata previsão de exclusão da audiência de conciliação ou de mediação prevista no art. 334; pacto de exclusão contratual da audiência de conciliação ou de mediação prevista no art. 334; pacto de disponibilização prévia de documentação (pacto de disclosure), inclusive com estipulação de sanção negocial, sem prejuízo de medidas coercitivas, mandamentais, sub-rogatórias ou indutivas; previsão de meios alternartivos de comunicação das partes entre si; acordo de produção antecipada de prova; a escolha consensual de depositário-administrador no caso do art. 866; convenção que premirta a presença da parte contrária no decorrer da colheita de depoimento pessoal. 143 para representá-lo no ato, ou nomeação de advogado dativo, sob pena de não restar representado no ato por impossibilidade legal do seu comparecimento.27 Por fim, resta ainda necessário tratar daquelas situações em que é lícito aos depoentes se recusarem a depor. Conforme exaustivamente visto, uma vez requerida pela parte o depoimento pessoal do seu adversário, e sendo este deferido pelo juiz, cumpre ao depoente prestar os esclarecimentos devidos, sob pena de confissão. Contudo, em algumas situações excepcionais legalmente previstas, a recusa da prestação do depoimento é lícita, não se lhe aplicando, aquele que se recusar, a pena de confissão. Essas formas legais de recusa ao dever de prestar depoimento encontram-se previstas no diploma processual de duas formas distintas. A primeira delas, prevista no art. 386 do Código, estabelece uma regra geral de desoneração do dever de depor, permitindo ao depoente recursar-se a depor sempre que existente justo motivo.28 Conforme se observa, trata-se entretanto a expressão “justo motivo” de conceito jurídico indeterminado, cuja concretização será investigada pelo juiz no caso concreto. A segunda forma de desoneração do dever de depor encontra-se prevista no art. 388 do código, oportunidade em que o legislador elencou hipóteses específicas de desoneração.29 A primeira das hipóteses legais de desoneração do dever de depor trata da imputação de fatos criminosos ou torpes (fatos considerados vergonhosos, desonestos ou impudicos em relação à vida do depoente) contra o próprio depoente. Tal desoneração, assim como no âmbito penal, encontra fundamento no direito ao silêncio/não auto-incriminação, de origem norte-americana, previsto na quinta emenda da Constituição daquele país (privilege against self-incrimination). 27 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 471. 28 Art. 386. Quando a parte, sem motivo justificado, deixar de responder ao que lhe for perguntado ou empregar evasivas, o juiz, apreciando as demais circunstâncias e os elementos de prova, declarará, na sentença, se houve recusa de depor. 29 Art. 388. A parte não é obrigada a depor sobre fatos: I – criminosos ou torpes que lhe forem imputados; II – a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo; III – acerca dos quais não possa responder sem desonra própria, de seu cônjuge, de seu companheiro ou de parente em grau sucessível; IV – que coloquem em perigo a vida do depoente ou das pessoas referidas no inciso III. 144 No Brasil, encontra-se previsto no art. 5º, LXIII da CR e no art. 8º, §2º, g do Pacto de San Jose da Costa Rica (convenção americana sobre direitos humanos). A segunda hipótese de desoneração do dever de depor refere-se ao dever de sigilo, decorrente da proteção concedida por nosso ordenamento jurídico ao sigilo profissional, como corolário legal da proteção ao direito constitucional a intimidade, cuja violação encontra tipo penal previsto no art. 154 Código Penal. Uma interessante observação é que esse dever não é exclusivo do profissional, estendendo-se também aos auxiliares daquele, que também devem guardar o sigilo da informação (por exemplo, secretária de advogado).30 Já a terceira desoneração trata da proteção à honra do depoente e/ou pessoas a ele próximas, tais quais o seu cônjuge, companheiro ou parente em grau sucessível, e deve dizer respeito a algum fato desabonador daquela pessoa, suficientemente grave ao ponto de efetivamente causa-lhe desonra. Por fim, têm-se ainda a desoneração decorrente do risco de vida do depoente ou parente em grau sucessível, cujo objetivo, nada mais é do que tutelar o seu direito à vida. Bibliografia AMENDOEIRA JR., Sidnei. Depoimento pessoal e confissão no novo CPC. In: DIDIER JR., Fredie; JOBIM, Marco Félix; FERREIRA, William Santos. Coleção Grandes Temas do Novo CPC: Direito Probatório. 3ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2018, p. 1001/1018. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada, processo estrutural e tutela provisória. 15ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2020, p. 187/200. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e convicção: de acordo com o CPC de 2015. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 431/494. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 18ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 1033/1037. 30 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 489. 145 Prova documental André Soares de Azevedo Branco Mestrando em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Advogado. Email: aabranco@gmail.com. Trata a prova documental de meio de prova previsto entre os artigos 405 e 438 do Código de Processo Civil. É preciso, contudo, para uma melhor compreensão do tema que a seguir será investigados, seja feita uma distinção fundamental, entre os significados de prova documental e prova documentada, evitando assim confusões desnecessárias. Prova documental seria o efetivo meio de prova previsto e regulamentado no Código de Processo Civil, enquanto prova documentada, ao contrário, seria a simples forma de representação no processo de algum meio de prova, a sua materialização, consequência da opção feita pelo nosso ordenamento em favor do princípio da escrituração.1 Superada a questão terminológica envolvendo os significados de prova documental e prova documentada, necessário, neste momento, definir o que é a prova documental. Nesse sentido, “documento é toda coisa capaz de representar um fato”2, sendo, por consequência, prova documental toda “aquela através da qual se tem a representação imediata do fato a ser reconstruído”3.Contudo, não basta a representação de um fato para a sua consideração como documento, sendo necessária a concorrência de três elementos: conteúdo (qual a 1 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e convicção: de acordo com o CPC de 2015. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 609. 2 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 611. 3 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 610. 146 idéia transmitida)4 , suporte (forma de manifestação do documento) 5 e autoria (pessoa a quem se atribui a criação do documento).6 Quanto ao último elemento formador do documento, ou seja, a sua autoria, poderão eles ser considerados particulares ou públicos, a depender de quem tenha participado da sua formação. Nesse sentido, será considerado particular todo aquele documento para o qual não tenha nenhum agente público em exercício da função participado da formação, sendo, ao contrário, considerado público todo aquele documento no qual agente público no exercício da função tenha participado para a sua formação. Ainda com relação à autoria do documento, outra questão que merece atenção diz respeito a sua comprovação, que é feita, via de regra, por meio da subscrição, ou seja, pela “aposição de um sinal exclusivo – uma assinatura manuscrita ou uma impressão digital (utilizada, por exemplo, por analfabeto) – que identifica o autor do documento.”7 A subscrição, em que pese se mostre a forma mais comum de comprovação da autoria de um documento, não é a única forma, sendo admitida também a sua autênticação mecânica (como aquelas realizadas por instituições bancárias) ou assinatura digital.8 4 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 612. Neste sentido afirmam os autores: “Os documentos compõem-se de dois elementos. Haverá sempre um conteúdo e um suporte. O primeiro equivale ao aspecto intrínseco do documento, à idéia que pretende transmitir.” 5 MARINONI e ARENHART, 2015, p. 612. Neste sentido afirmam os autores: “Os documentos compõem-se de dois elementos. Haverá sempre um conteúdo e um suporte. (…) Já o suporte constitui o elemento físico do documento, a sua expressão exterior, manifestação concreta e sensível; é, enfim, o elemento material, no qual se imprime a ideia transmitida.” 6 Discute-se na doutrina se a autoria seria elementos essencial do documento. Aqui, defendendo a sua não essencialidade, DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada, processo estrutural e tutela provisória. 15ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2020, p. 229. “Há quem entenda tratar-se a subscrição (identificação) de elemento essencial à própria existência do documento. Assim não nos parece, porém. Um documento pode existir independentemente de subscrição: é o que se dá, por exemplo, com os que, conforme a experiência comum, não se costumam assinar, como ocorre com os livros empresariais e assentos domésticos (art. 410, III, CPC), com o testamento militar (art. 1.893, Código Civil) ou com a nota escrita pelo credor, ainda que não assinada, no corpo do documento representativo da obrigação (art. 416, CPC) 7DIDIER JR., BRAGA e OLIVEIRA, 2020, p. 228/229. 8 DIDIER JR., BRAGA e OLIVEIRA, 2020, p. 229. Registre, neste ponto, que MARINONI e ARENHART, 2015, p. 619, entendem que em determinadas situações será será impossível a existência de subscrição do documento no suporte do documento, como por exemplo em fotos, devendo ser a subscrição (ou seu substitutivo) ser feita através de escrito em apartado. 147 Questão ainda diretamente relacionada à autoria do documento é aquela referente à sua autenticidade. Aqui, o próprio Código de Processo Civil disciplinou a questão, afirmando que a autenticidade se presume em relação ao documento público (art. 405)9, enquanto que, para os documento particulares, a sua autenticidade decorre do reconhecimento da firma do signatário feita pelo tabelião, da identificação da sua autoria realizada por qualquer meio legal de certificação ou quando não exista impugnação da parte em relação à autenticidade do documento produzido (art. 411)10. Registre-se, contudo, que essa presunção de autenticidade e veracidade dos documentos (tanto documentos particulares quanto públicos) é relativa, já que sempre pode ceder diante de provas em contrário. Já o art. 406 do código tratou da exigência de forma solene do instrumento público, determinando que, naquelas hipóteses na qual a lei exigir instrumento público como substância do ato, nenhuma outra prova, por mais especial que seja, poderá suprir-lhe a falta.11 Em sequência, o art. 407 do Código tratou dos chamados documentos públicos irregulares, como sendo aqueles feito por oficial público incompetente ou sem a observância das formalidades legais”. Contudo, mesmo diante da ocorrência dessas irregularidades, admite o legislador, que uma vez sendo o documento subscrito pelas partes, tenha a mesma eficácia probatória do documento particular.12 9 Art. 405. O documento público faz prova não só da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o chefe de secretaria, o tabelião ou o servidor declarar que ocorreram em sua presença. 10 Art. 411. Considera-se autêntico o documento quando: I. o tabelião reconhecer a firma do signatário; II. a autoria estiver identificada por qualquer outro meio legal de certificação, inclusive eletrônico, nos termos da lei; III. não houver impugnação da parte contra quem foi produzido o documento. 11 Segundo apontam DIDIER JR., BRAGA e OLIVEIRA, 2020, p. 241, referida regra acaba por criar um espécie de tarifamento de provas. Nesse sentido dizem os autores: “Trata-se de resquício do sistema de tarifamento das provas, ou da prova legal. O legislador atribui, prévia e abstratamente, ao instrumento público um valor probatório exclusivo, colocando-o numa posição hierarquicamente superior à dos demais meios de prova.” 12 Registre-se, neste ponto, opinião de Fredie didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira, admitindo a possibilidade da manutenção da força probatória do documento público, ainda que irregular. DIDIER JR., BRAGA e OLIVEIRA, 2020, p. 243. “A despeito da disposição do art. 407, parece sim possível ao magistrado afastá-la nos casos em que ficar evidenciada a boa-fé da parte que produziu o documento irregular. Nessa situação, o documento, não obstante irregular, manteria a força probatória de qualquer documento público. Trata-se de aplicação do princípio de proteção da boa-fé, que tutela a confiança, valor fundamental de um ordenamento jurídico.” 148 É, portanto, a subscrição condição geral exigida pela lei para a conversão dos efeitos probatórios do documento público em particular, sob pena de invalidação do documento resultante, em caso de inexistência desta. Contudo, naquelas situações em que a subscrição do documento particular é dispensada ou não exigida, dispensada também será a exigência da sua subscrição para conversão, sob pena de estabelecimento de condição mais severa para a conversão do que para a própria formação do documento.13 Em seguida, inicia o código o tratamento do valor probante dos documentos particulares, dispondo em seu art. 408, como regra geral, que “as declarações constantes do documento particular escrito e assinado ou somente assinado presumem-se verdadeiras em relação ao signatário.” Já o parágrafo único do mesmo artigo, dispõe especificamente sobre a eficácia probatória dos documentos testemunhais, estabelecendo que estes provam a declaração feita, mas nunca o fato propriamente dito. Avançando, ainda tratou o código, nos seus arts. 413 e 414, a respeito da eficácia probatória dos meios de transmissão de dados (telegrama, radiogramae fac- símile), equiparando o valor destes aquele dos documentos particulares. Contudo, em caso de contestação da autenticidade do documento transmitidos em relação ao original, cabe ao julgador a determinação da conferência entre os documentos, exatamente como determina a redação do art. 222 do código civil.14 Os arts. 415, 416 e 417 do código tratam da eficácia probatória de outras modalidades de documentos particulares formados unilateralmente, que são, respectivamente, as cartas e registros domésticos, as notas lançadas pelo credor em documento representativo da obrigação e os livros empresariais e de escrituração contábil. Segundo previsto no no art. 415, “as cartas e os registros domésticos provam contra quem os escreveu quando: i – enunciam o recebimento de um crédito; ii – contêm anotação que visa a suprir a falta de título em favor de quem é apontado como credor; iii – expressam reconhecimento de fatos para os quais não se exija determinada prova.” A razão de existir desse dispositivo, conforme apontam Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, é tão somente conferir valor probatório aqueles documentos que, via regra, não recebem assinatura daqueles que os escreve.15 13 MARINONI e ARENHART, 2020, p. 658. 14 Art. 222. O telegrama, quando lhe for contestada a autenticidade, faz prova mdiante a conferência com o original assinado. 15 MARINONI e ARENHART, 2020, p. 691. 149 Isso porque, sendo tais documentos assinados, aplica-se a regra geral prevista no art. 408 do código, no qual se estabelece que “as declarações constantes do documento particular escrito e assinado ou somente assinado presumem-se verdadeiras em relação ao signatário.” O art. 416 tratou da eficácia probatória de outro tipo de documento formado unilateralmente, qual seja a nota do credor aposta no título obrigacional. Como exposto acima, a razão de ser deste dispositivo é apenas conferir valor probatório a esssa espécie documental, e naqueles casos em que não for ela assinada, pois sendo o documento assinado, aplicável também ao caso a regra geral prevista no art. 408 do código. O artigo 417 ainda dispõe a respeito da eficácia probatória de uma última espécie de documento particular unilateral, quais sejam os livros empresariais e de escrituração contábil, estabelecendo que as informações neles constantes geram presunção de veracidade. O mesmo dispositivo, em sua parte final, ainda prevê a possibilidade de que sejam produzidas outras provas no sentido de comprovar que as informações lançadas nos documentos contábeis não correspondem à realidade. Contudo, como em outras oportunidades foi destacado, o código estabeleu regra desnecessária, uma vez que o art. 369 já estabelece regra geral concedendo tal possibilidade às partes. O art. 409 trata da data do documento particular, estabelecendo em seu caput que “a data do documento particular, quando a seu respeito surgir dúvida ou impugnação entre os litigantes, provar-se-á por todos os meios de direito.” Sobre essa previsão vale a mesma crítica feita acima, uma vez que o art. 369 já estabelece regra nesse sentido, sendo, portanto, desnecessária a sa previsão. De toda forma, o parágrafo único do mesmo art. 409 dispõe que “em relação a terceiros, considerar-se-á datado o instrumento particular: (I) no dia em que foi registrado, (II) desde a morte de algum dos signatários, (III) a partir da impossibilidade física que sobreveio a qualquer dos signatários, (IV) da sua apresentação em repartição pública ou em juízo e (V) do ato ou fato que estabeleça, de modo certo, a anterioridade da formação do documento.” Em sequência, trata do art. 410 da autoria do documento particular, que pode ser, segundo disposição legal, daquele que o produziu, quando assinado, ou daquele a mando de quem foi produzido. Diretamente relacionado a noção de autoria do documento particular vem a da sua autenticidade, ou seja, certeza da sua autoria. 150 Nestes casos, dispõe o art. 411 que considera-se autêntico o documento particular quando o tabelião reconhecer a firma do signatário, a sua autoria estiver identificada por qualquer meio legal de certificação, inclusive eletrônico ou quando não houver impugnação da parte contra quem foi produzido o documento. Em sequência, trata o art. 412 da relação existente entre a eficácia probatória do documento particular e sua autenticidade, afirmando que “o documento particular de cuja autenticidade não se duvida prova que o seu autor fez a declaração que lhe é atribuída. Por último, o parágrafo único do dispositivo cria uma regra geral de presunção de unidade e indivisibilidade do documento particular, prevendo que ele deve ser interpretado unitariamente, sem a possibilidade de divisão para aproveitamento apenas da parte que interessa.16 Dando continuidade, o art. 422 do código trata das hipóteses da força probante da reprodução de documentos particulares, que em regra, conforme já apontado, é a mesmo do documento original, desde que não seja impugnada, oportunidade em que deverá a parte comparecer em cartório para conferência entre a cópia e o original. Em não havendo qualquer questionamento, a cópia possue o mesmo crédito do documento original, devendo ser livremente valorada pelo magistrado. O artigo 426 trata dos documentos defeituosos, ou seja, aqueles formados com rasuras, borrões ou emendas, determinando que o juiz os apreciará livremente, atribuindo a eficácia que considerar pertinente, caso o defeito apareça em ponto considerado substancial e sobre ele não exista nenhuma ressalva. A partir da leitura do dispositivo supra, conlui-se, a contrário sensu, que a existência de ressalva a respeito do defeito existente, será considerado íntegro o documento, e portanto inaplicável o presente dipositivo, valendo em relação ao documento as regras gerais de valoração da prova documental. A partir do art. 427, trata o legislador da questão da falsidade do documento (sejam eles públicos ou particulares), bem como do procedimento exigido para a sua arguição. 16 Observe-se que a mesma regra da indivisibilidade da prova documental é prevista no art. 419: “A escrituração contábil é indivisível, e, se dos fatos que resultam dos lançamentos, uns são favoráveis ao interesse do seu autor e outros lhe são contrários, ambos serão considerados em conjunto, como unidade.” 151 Assim, segundo prevê o art. 427, caput, em regra completamente dispensável em razão da sistemática processual nacional17, “cessa a fé do documento público ou particular sendo-lhe declarada judicialmente a falsidade.” Ou seja, em outras palavras, quis o legislador dizer o óbvio, que uma vez declarada a falsidade do documento, perde ele a fé que tinha quando apresentado, perdendo qualquer condição de sustentar decisão judicial. Para tanto, elenca o parágafo único do artigo, como hipóteses de consideração da falsidade do documento, a formação de documento não verdadeiro ou alteração de documento verdadeiro. Não bastasse o dispositivo acima destacado, o legislador ainda reservou tratamento específico quanto aos documentos particulares, dispondo em seu art. 428 que “cessa a fé do documento particular quando: i – for impugnada sua autenticidade e enquanto não se comprovar a sua veracidade; ii – assinado em branco, for impugnado o seu conteúdo, por preenchimento abusivo. Pois bem, neste ponto, pela redação dos dispositivos citados, parece existir um conflito entre as regras previstas no inciso primeiro do art. 428 e no art. 427. Contudo, segundo apontam Luiz Guilheme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, esse conflito mostra-se apenas aparente, na medida em que o a regra do inciso primeiro do art. 428 apenas exige para a suspensão da eficácia do documento particular a impugnação da assinaturaaposta, enquanto a regra do art. 427 exige, para a perda da eficácia do documento (sejam eles públicos ou particulares), a declaração da sua falsidade.18 Já a hipótese do inciso segundo do art 428 trata do chamado “abuso de folha em branco”, cuja definição encontra-se presente no parágrafo único do mesmo artigo, ao afirmar que “dar-se-á abuso quando aquele que recebeu documento assinado com texto não escrito no todo ou em parte formá-lo ou completá-lo por si ou por meio de outrem, violando o pacto feito com o signatário.” Para a configuração do chamado abuso de folha em branco, portanto, exige-se a presença de dois requisitos concorrentes, que são a posse de papel em branco e a prévia existência de pacto. Os artigos 430 a 433 tratam da arguição de falsidade, procedimento incidental feito por requerimento simples, no qual o interessado, nos termos do art. 431, expõe os motivos em que funda a sua pretensão. 17 MARINONI e ARENHART, 2020, p. 729. “A previsão é intuitiva e mesmo dispensável, podendo ser extraída de conceitos do direito material (especialmente do penal) e do princípio da convicção motivada, adotado pela lei brasileira.” 18 MARINONI e ARENHART, 2020, p. 734. 152 O momento processual para a apresentação da arguição de falsidade documental, conforme diposto no art. 430, será, para o réu, o da apresentação da sua resposta, ao passo que para o autor, será o da apresentação da réplica. Naquelas hipóteses da juntada de documentos após esses momentos, o prazo para ambas as partes arguirem a sua falsidade será de quinze dias da intimação da sua juntada. Ato contínuo, o juiz, uma vez recebido o incidente, deverá intimar a parte contrária para se manifestar no prazo de quinze dias, nos termos do art. 432 do código, oportunidade em que, ausente resposta pelo legitimado passiva na impugnação, haverá presunção relativa da veracidade do documento, com a consequente da procedência da arguição. Finalizado todo o procedimento acima, via de regra, a arguição de falsidade será resolvida como questão incidental, sem a formação de coisa julgada, nos termos do disposto no art. 430. Contudo, existindo pedido expresso para a resolução da arguição como questão principal, deve o julgador assim decidi-la, resolvendo a questão no dispositivo de sentença, fazendo assim coisa julgada, conforme previsão da parte final do parágrafo único do art. 430 e art. 433 do código. Já com relação a legitimidade para propositura da arguição de falsidade documental, nos termos do disposto no art. 431, possue legitimidade ativa a parte prejudicada pelo documento produzido, possuindo legitimidade passiva, consequentemente, a parte responsável pela apresentação do documento em juízo. Exceção quanto a legitimidade passiva surge naquelas hipóteses no qual a prova é produzida de ofício por iniciativa do julgador, quando figurará no pólo passivo do incidente o beneficiado pela prova, e não aquele que a apresentou, como poderia parecer.19 Por fim, a partir do art. 434 do código encontram-se previstas as regras relacionadas a produção da prova documental, que devem ser, sob pena de preclusão, instruidas já nas manifestações iniciais das partes (petição inicial e contestação), salvo naquelas hipóteses em que permitida a apresentação posterior. É o que dispõe o art. 435 do código, que em seu caput e parágrafo único regulamentam a regra geral estabelecida no artigo anterior, admitindo a produção posterior de prova relacionada a fatos novos, contraprova destes ou impossibilidade de acesso a ela, embora já existentes ao tempo da propositura da ação ou apresentação de resposta. 19 Ibid, p. 758. 153 Em ambos os casos, antes da admissão da prova, deve o juiz proceder a intimação da parte contrária, para que seja ouvida, nos termos do art. 437. Bibliografia DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada, processo estrutural e tutela provisória. 15ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2020, p. 217/302. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e convicção: de acordo com o CPC de 2015. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 603/786. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 18ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 1051/1077. NETO, Luiz Antonio Ferrari. Da arguição de falsidade no novo CPC. In: DIDIER JR., Fredie; JOBIM, Marco Félix; FERREIRA, William Santos. Coleção Grandes Temas do Novo CPC: Direito Probatório. 3ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2018, p. 963/981. 154 Prova pericial, prova científica e inspeção judicial Lara Abreu Assef Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa “Desafios do Processo”. Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/9434732756871769. E-mail: laraabreuassef@gmail.com. Sumário: 1. Considerações sobre a prova pericial e a prova científica; 2. Considerações sobre a inspeção judicial; 3. Referências bibliográficas. 1. Considerações sobre a prova pericial e a prova científica. Não raras vezes, a correta compreensão dos fatos narrados no processo – e, por consequência, a adjudição de uma escorreita solução para o litígio levado a juízo – dependerá do emprego de conhecimento técnico específico, não pelas partes, tampouco pelo próprio juiz, mas por um terceiro imparcial: o expert. Este, com a confiança do magistrado, será convocado a esclarecer as situações fáticas complexas, sempre que tal função demandem uma bagagem de conhecimento científico de ordem não jurídica. Cumpre destacar que será absolutamente irrelevante qualquer eventual capacitação técnica individual e específica que o magistrado venha a possuir, uma vez que a atividade jurisdicional apenas pode ser exercida nos limites daquilo que se espera de um juiz médio, ordinário, vedando-se a chamada ciência privada (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2019, p. 408). Noutras palavras, o juiz não pode utilizar seus conhecimentos pessoais, se houver, para justificar a dispensa da prova pericial ou científica, quando esta for necessária à elucidação dos fatos relevantes da causa, pois a ele incumbe tão somente a valoração dos elementos de fato e de prova constantes dos autos e a tomada de decisão final. De toda forma, em regra, os problemas não jurídicos fogem do âmbito de compreensão do juiz e do jurista em geral, situação que reclama o auxílio de um especialista (perito), a ser nomeado de acordo com os critérios legais. Ocorre que este especialista, por sua vez, não compreende a maioria dos problemas jurídicos, tais como a noção de contraditório, de atos nulos ou inválidos, etc.. Logo, já em primeira análise, percebe-se que uma dais maiores dificuldades envolvidas no tema das provas técnicas é justamente fusão de saberes diversos – razão pela qual a doutrina italiana, por exemplo, apresenta certa resistência em qualificar a perícia como meio de prova, pois todo o poder decisório caberia ao juiz e o perito seria um mero auxiliar da justiça. 155 Acontece que, sem o auxílio do expert, o magistrado sequer conseguiria compreender os fatos envolvidos no litígio, e muito menos fazer a sua correspondente valoração jurídica: é o perito que torna o fato compreensível e, assim, verdadeiramente útil para fins de decisão (BIAVATI, 2020). No sistema jurídico brasileiro, embora seja pacífico (e mesmo codificado) que a prova científica e a prova pericial constituem meios de prova, são ainda tímidos os estudos desenvolvidos na matéria, especialmente no que tange à diferenciação entre essas duas modalidades probatórias, sua admissibilidade no modeloDepois, Marcelo Abelha explana que o chamado princípio dispositivo não é absoluto, pois todos os sujeito os do processo devem cooperar entre si, e, pois, a iniciativa probatória pode vir do juiz (RODRIGUES, 2016, p. 560). Ou seja, embora esse princípio oriente uma série de normas processuais, no direito probatório ele reduz sua influência, pois o juiz pode agir para produzir provas mesmo que sem iniciativa das partes. É o que diz o art. 370, CPC: “Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.” — apenas uma ressalva a esse artigo: há diversas interpretações em relação a qual deve ser a extensão dos poderes instrutórios do juiz, desde as que entendem possuir ele amplos poderes instrutórios, passando por outras que entendem haver ali uma autorização apenas para uma atividade judicial complementar, até outras que consideram o artigo inconstitucional (Para breve explanação desses posicionamentos, ver DIDIER JR., 2016, p. 91-93). Marcelo Abelha Rodrigues, então, explica o princípio da oralidade, que se subdivide em diversos subprincípios. Entre estes, o do contato direto com a prova, pelo qual o juiz participa imediatamente da prova. O da identidade física do juiz, que determina dever ser o mesmo juiz que colhe a prova também aquele que julga a demanda (RODRIGUES, 2016, p. 561). Então, trata do princípio da comunhão ou aquisição da prova, por meio do qual a prova se incorpora ao processo, sendo irrelevante para fins de sua valoração saber qual parte a requereu ou produziu (RODRIGUES, 2016, p. 562). Disso decorre, por exemplo, que a prova postulada e produzida por uma parte pode vir a prejudicá-la. 18 Prossegue então explanando o princípio do livre convencimento motivado do juiz. Por este, o juiz pode valorar livremente a prova constante nos autos, mas deve fundamentar sua valoração (RODRIGUES, 2016, p. 562). É interessante, sobre este ponto, observar que esse modelo é, na verdade, um modelo misto entre o denominado sistema da prova legal e o sistema do livre convencimento. Pelo primeiro, “cada prova tem um valor inalterável e constante, previamente estabelecido pela lei, não sendo lícito ao juiz valorar cada prova segundo critérios pessoais e subjetivos de convencimento, de modo diverso daquele que lhe tenha sido determinado pela lei.” (BAPTISTA, 2008, p. 270). O segundo — livre convencimento — consiste em um modelo no qual o juiz é absolutamente livre para valorar a prova, podendo, inclusive, por exemplo, “basear- se em suas impressões pessoais, colhidas tanto no comportamento da própria testemunha quanto nas atividades e comportamento processual das partes.” (BAPTISTA, 2008, p. 271). O sistema do livre convencimento motivado, por sua vez, caracteriza-se principalmente pelo dever do juiz de fundamentar sua decisão, não podendo, ainda, valer-se de elementos não constantes dos autos (quod non est in actis non est in mundo). 2. Referências bibliográficas BAPTISTA, Ovídio. Curso de Processo Civil. Vol. I, Tomo I. 8.ª ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2008. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Vol. II. 11.ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016. DIDIER JR., Fredie Didier. Teoria geral do processo, essa desconhecida. 3.ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016. ECHANDIA, Hernando Devis. Compendio de la Prueba Judicial. Tomo I. Anotado y concordado por Adolfo Alvarado Velloso. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2000. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de Direito Processual Civil. 6.ª ed., rev. e. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2016. 19 Princípio dispositivo vs. princípio inquisitório Guilherme Santos Neves Abelha Rodrigues Acadêmico de Direito pela Universidade federal do Espírito Santo (UFES). Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Desafios do Processo”. Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Medicina Defensiva”. Curriculum Lattes: 1322897749619572. Email: guilhermeabelha@hotmail.com. Igor Gava Mareto Calil Acadêmico de Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Desafios do Processo”. Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Medicina Defensiva”. Curriculum Lattes: 8802836350537240. E-mail: igorgcalil@gmail.com. Lara Abreu Assef Acadêmica de Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa “Desafios do Processo”. Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/9434732756871769. E-mail: laraabreuassef@gmail.com. Sumário: 1. Considerações sobre o princípio inquisitivo e dispositivo 2. Referências bibliográficas. 1. Considerações sobre o princípio inquisitivo e dispositivo. O princípio dispositivo e o princípio inquisitório são máximas sobre as quais se alicerçam, respectivamente, o modelo adversarial e o modelo inquisitivo de organização do processual. Cada qual constitui um tipo ideal teórico que busca traduzir uma forma específica de se enxergar e ordenar o processo. Assim, a doutrina alemã do séc. XIX, mais especificamente Nikolaus Thaddäus von Gönner, concebeu duas Maximen diametralmente opostas: “Verhandlungsmaxime” e “Untersuchungsmaxime”. Cada uma delas engendraria, segundo Gönner, um tipo específico de modelo processual, dotado de características próprias na distribuição das funções aos sujeitos do processo, conforme será exposto a seguir. Conforme leciona Barbosa Moreira, na Alemanha do séc. XIX, floresceu o movimento doutrinário do Pandectismo, cujo objetivo seria “compendiar em 'princípios' (ou 'máximas') as diretrizes político-jurídicas que se podem acolher na ordenação do processo”. Neste sentido, tentando-se compreender por que e como se dividia o trabalho entre as partes e o juiz, Gönner cunhou a Verhandlungsmaxime – “princípio do debate” –, para denominar a diretriz que “subordinava a atividade do juiz à 20 iniciativa da parte”; e a Untersuchungsmaxime – “princípio da investigação” – que, por sua vez, justificaria a atuação ex officio do juiz no exercício da jurisdição, para buscar a verdade no processo (BARBOSA MOREIRA, 1986, p. 3). Com o avanço da doutrina, outras máximas surgiram, a fim de melhor especificar seu escopo de atuação – afinal, quando Gönner criou a “Verhandlungsmaxime”, esta tinha conteúdo muito amplo, sendo inclusive caracterizada pela expressão “Nichts von Amts Wegen” (em livre tradução: nada de ofício) (VAN RHEE, 2018, p. 483). Em sentido contrário, a “Untersuchungsmaxime” era bastante restrita, já que, embora atribuísse ao juiz plena hegemonia processual, reservava às partes a faculdade da instauração do procedimento (VAN RHEE, 2018, p. 484). Assim é que as diretrizes propostas por Gönner foram sendo alteradas e revisitadas pelos doutrinadores subsequentes – passando pelos termos “Dispositionsmaxime” e “Offizialmaxime” até chegar naquilo que atualmente se conhece por princípio do dispositivo e princípio do inquisitório. Como adiante se demonstrará, tais conceitos apresentam sutis distinções de significado e conteúdo em relação aos originais de Gönner, muito embora tenham conservado a essência nuclear daquelas máximas. Sobreleva antecipar que os modelos processuais que surgiram ao longo da história não são um simples produto da aplicação das referidas máximas, mas uma tentativa de explicá-las e ajustá-las aos imperativos dos tempos adventos. Ora, considerando que o Direito é um reflexo cristalino dos valores partilhados pelo tecido social, é inequívoco que o modelo de processo civil vigente há de acompanhar as transfigurações das variáveis sociais que lhe são condicionantes, quais sejam, o estágio civilizatório, a força das instituições e o modo de exercício da cidadania (ALVARO DE OLIVEIRA, 2003, p. 56). Pois bem. No modelo estritamente adversarial de processo, atribuíam-se os poderes de instauração,processual hodierno e ainda suas implicações na formação do convencimento do juiz no exercício da jurisdição civil. Por isso, prefere-se referir não a conceitos sólidos, mas a tentativas de definição de tais institutos, que costumam remontar, inclusive, às conceituações fornecidas pela literatura jurídica estrangeira. De forma geral, a doutrina acorda que a prova pericial é a instrução probatória que, por demandar conhecimento técnico ou científico específico, deve ser conduzida necessariamente com o auxílio de um especialista – o perito – ou um corpo de especialistas – órgãos técnicos e científicos –, a serem escolhidos dentre os profissionais legalmente habilitados e inscritos em cadastro mantido pelo tribunal ao qual o juiz está vinculado, conforme disposto no art. 156 do Código de Processo Civil. A peritagem enreda duas etapas principais e distintas: a um, a própria narração dos fatos constatados pelo perito; e a dois, o raciocínio do expect, que será erigido sobre os fatos a partir de premissas essencialmente técnicas ou científicas, dado o conhecimento específico daquele profissional. Importante salientar que a distinção, a todo tempo frisada, entre conhecimento técnico e científico não se revela um mero capricho. É que o auxílio prestado pelo perito a atividade cognoscitiva e/ou interpretativa dos fatos pode não ter cunho propriamente científico, mas partir de um conhecimento especial adquirido com a experiência profissional ou prática do perito, da qual o juiz seja carecedor (ARRUDA ALVIM NETTO, 2011, p. 1). Assim, exsurge a terminologia da prova científica para designar a modalidade probatória de alta complexidade que exige do perito ou do órgão especialista um conhecimento estritamente científico, isto é, adquirido ordenadamente sob o rigor estrito das ciências naturais ou humanas/sociais, observando a metodologia e os princípios que lhes são próprios. Portanto, afirma-se que os resultados por ela obtidos outorgarão aos fatos uma certeza maior do que a comumente oferecida pelos outros meios de prova (SONEGHETI, 2012, pp. 23-24). Para que uma prova seja verdadeiramente científica, devem estar presentes dois requisitos básicos, um de ordem subjetiva, a saber, a idoneidade do perito, no sentido de sua qualificação formal e conhecimento verdadeiramente científico sobre o assunto; e outro de ordem objetiva, pois o método de investigação utilizado na referida dilação probatória deve ser o mais avançado da ciência, na medida do 156 possível, permitindo-se um maior grau de certeza e aproximação da verdade no processo (ARDOY, 2008). Assim, tem-se que as provas científicas são verdadeiras espécies do gênero provas periciais – razão pela qual, sem ignorar as notas distintivas dessa modalidade, adiante se referirá ao termo “perícia” em seu sentido amplo (lato sensu), enquanto meio de prova hábil a introduzir no processo elementos de prova tanto periciais (stricto sensu) quanto científicos. Conforme o art. 464 do CPC, a perícia será realizada no processo mediante atos de (i) exame, assim entendida a inspeção feita pelo perito de pessoas ou bens móveis para a constatação dos fatos relevantes ao deslinde da causa; (ii) vistoria, quando a mesma inspeção é realizada sobre bens imóveis; e/ou (iii) avaliação, isto é, a estimação ou arbitramento de um valor patrimonial às coisas, direitos e obrigações apurados na perícia, necessária precipuamente nas ações de inventário, partilha e processos administrativos, bem como nos feitos executivos (ABELHA, 2016, p. 588). Em regra, o regime de produção da prova pericial é judicial e formal: havendo requerimento das partes na fase postulatória, ou determinando-se de ofício a realização da prova técnica, o juiz nomeará perito de sua confiança e desde logo fixará prazo para a entrega do laudo pericial (art. 465, CPC), documento este que exporá, ao final, as conclusões alcançadas pelo expert. É imprescindível que as partes (e seus respectivos assistentes técnicos) sejam devidamente intimadas do início das atividades de peritagem (art. 474, CPC), a fim de salvaguardar o contraditório amplo e o direito de participação desses indíviduos na instrução probatória, sendo-lhes facultado, por exemplo, apresentar quesitos suplementares no curso da perícia (art. 469, CPC). Todavia, nos casos em que a causa for de menor complexidade técnica, e a natureza dos fatos apurados assim permitir, adotar-se-á um regime simplificado de realização da perícia, a qual partirá da simples inquirição do especialista pelo juiz, acerca do ponto técnico controvertido, como prevê o §3º do art. 464 do CPC. Igualmente por força de disposição legal (art. 472 do mesmo código), admite-se a modalidade de perícia extrajudicial, isto é, aquela realizada pelas partes em circunstâncias alheias à esfera da jurisdição, cujos resultados serão aportados aos autos em forma de parecer ou documento elucidativo dos elementos de prova, para que o juiz tão somente realize sobre eles a devida valoração jurídica. Por fim, menciona-se uma outra classificação, estabelecida originariamente pela Corte de Cassação da Itália e albergada por doutrinadores brasileiros, que subdivide as modalidades de perícia em: (i) peritus deducendi, nas hipóteses em que o perito já recebe todo o material probatório e a ele deve apenas conferir uma explicação ou interpretação cognoscível pelo juiz – como é o caso do perito contábil que analisa tecnicamente o balanço de uma pessoa jurídica; e (ii) peritus percipiente, quando o juiz confia ao perito não só a tarefa de valorar o fato, mas também de propriamente defini-lo, ou seja, o perito desempenha função essencial na própria individuação dos 157 fatos – como ocorre com a perícia médica, que se revela fundamental para que o juiz possa conhecer dos acontecimentos verdadeiramente havidos na espécie. Uma primeira dificuldade que se revela na produção das provas periciais e científicas é delimitação do âmbito de competência do perito na atividade cognitiva: Com qual material pode trabalhar o perito? Deve se limitar aos documentos trazidos pelas partes ou pode conhecer de outros elementos de prova? Por força das regras de preclusão e também do § 2º do art. 473 do CPC, a chamada perícia explorativa não é admitida em nosso ordenamento, sendo vedado ao perito ultrapassar os limites da designação que lhe foi originalmente atribuída, a menos que haja determinação judicial expressa no sentido de realização de inspeção e pesquisa. Assim, o perito há de trabalhar exclusivamente sobre os fatos alegados no processo (adstringindo-se ao contraditório fático posto em juízo), de modo que sua atividade se circunscreve ao thema probandum e, dentro deste, apenas aos fatos exigentes de perícia (ARRUDA ALVIM NETTO, 2011, p. 3), sob pena de se legitimar uma atuação incisiva do perito na própria constituição de prova a favor ou contra os litigantes. Outra pedra de toque da prova científica diz respeito ao princípio do contraditório, corolário processual de índole constitucional e que, portanto, jamais pode ser preterido, sob pena de nulidade da prova pericial. Acontece que, como antecipado, o perito muitas vezes não tem a sensibilidade necessária para precisar o alcance do princípio do contraditório durante sua atividade probatória, de modo que o expert (justamente por não ser um jurista) poderá julgar irrelevante ou desnecessária a abertura para manifestação das partes e assistentes técnicos em determinado ponto de inquirição, acabando por ensejar a nulidade da instrução realizada. Por fim, no que diz respeito à valoração judicial da prova técnica, questiona-se em qual medida poderia o juiz se afastar do resultado do laudo pericial – considerando que, fora dos casos excepcionalissímos, o magistrado não tem conhecimento específico acerca do tema sob investigação pericial. Se, por um lado, a figura do “perito dos peritos”condução e deslinde da lide exclusivamente às partes, as quais teriam a “potestade absoluta” para a escolha do objeto, do rito e das provas que seriam produzidas nos autos (CREVELIN, 2017, p. 1). Nota-se que uma das consequências do contexto pós-absolutista foi justamente a busca pela redução do papel ativo do órgão jurisdicional, o que contribuiu para o império da visão do processo como um duelo, isto é, atinente às partes (inter pars). Sob esse prisma, exsurge a visão do juiz “boca da lei”, defendida com vigor por Montesquieu, para quem “os juízes de uma nação não são mais que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar sua força nem seu rigor” (MONTESQUIEU, 2000, p 175). Assim, no modelo adversarial ou dispositivo, as funções processuais atribuídas ao magistrado são mínimas, sendo vedada sua atuação de ofício (sem provocação) – a teor da máxima “ne procedat iudex ex officio. Nesse sistema, pois, entende-se que uma postura ativa do juiz seria incondizente com a imparcialidade que este deve ter durante o processo. Limita-se sua função àquilo que é requerido pelas partes, na 21 medida em que uma decisão imparcial seria a única forma de garantir sua justiça. Nesse modelo, o juiz está limitado a “dar o direito”, segundo, exclusivamente, aquilo que as partes alegaram e provaram no processo – da mihi factum, dabo tibi jus e iudex secundum allegata et probata partium iudicare debet. Acentua-se, portanto, o privatismo que permeou o rito processual da época, delegando ao juiz a função de mero espectador, passivo e inerte em face das partes, estas sim, as verdadeiras conducentes do procedimento. Todavia, com o transcorrer da história, o exercício irrestrito de direitos individuais gradativamente despertou a preocupação social, de forma que a ampla liberdade de atuação das partes na atividade jurisdicional acabou sendo limitada com o advento da publicização do processo. Com efeito, os Estados de Socialismo Real do século XX levaram a cabo o protagonismo da atuação do magistrado, fazendo dos órgãos jurisdicionais, em espécie de paternalismo, guardiões sublimes do interesse público (interesse público lato sensu, haja vista que os interesses privados foram também acobertados sob esse manto). Portanto, tem-se um modelo processual inquisitivo – rigidamente hierárquico –, que é diametralmente oposto ao sistema adversarial, visto que as partes não estão no controle absoluto do processo, mas sim o juiz, o qual assume uma postura ativa ao atuar ex officio para alcançar a verdade no processo (TORNAGHI, 1987, p. 157). Verbi gratia, conferiu-se ao magistrado a faculdade de determinar a produção de provas, independentemente de requerimento das partes. Sob esse prisma, chega-se a debater inclusive a possibilidade de o juiz instaurar processos de ofício, mitigando-se o principio della domanda. Em suma, nesse modelo de organização processual, reacionário às desigualdades decorrentes do advento do Estado Liberal, o juiz adquire posição de assimetria em relação às partes, figurando como responsável mor pela condução processual – acusar, defender e julgar –, enquanto se concebe o autor e réu como passivos coadjuvantes no processo. Assim como os demais atos processuais, a distribuição probatória é influenciada pelos modelos de organização do processo, o que suscita a discussão acerca da extensão dos poderes instrutórios do juiz. Em um modelo adversarial, o princípio dispositivo atribui apenas às partes a possibilidade de iniciativa probatória, recaindo sobre elas o ônus de coleta e apresentação das provas do que alegam; em um sistema inquisitorial, o juiz exerce protagonismo, cabendo-lhe uma participação ativa e efetiva na atividade instrutória (BRAGA; DIDIER JR.; OLIVEIRA, 2016, p. 86). No Brasil, o Código de Processo Civil concedeu ao juiz amplos poderes instrutórios, assegurando sua participação ativa por meio da possibilidade de determinar as provas necessárias ao julgamento de mérito – seja de ofício, seja a requerimento das partes, ex. artigo 370. Garante-se ao magistrado assumir uma posição ativa na atividade instrutória, de modo que lhe permite determinar a produção de provas, 22 “desde que o faça, é certo, com imparcialidade e resguardando o princípio do contraditório” (NERY JR.; NERY, 2018, p. 980). Diante do art. 370, do Código de Processo Civil, até se pode pensar que o Brasil adotou um modelo inquisitorial. Todavia, o que há na verdade é um modelo informado tanto pelo princípio dispositivo como pelo inquisitivo. Afinal, conforme preleciona Barbosa Moreira, “nenhum ordenamento processual pode regular a instrução probatória em termos de exclusividade absoluta, quer em favor das partes, quer do juiz: necessariamente se concede algum espaço àquelas e a este, e a respectiva dosagem varia até no interior de um mesmo sistema jurídico, ao longo do tempo, ou de acordo com a matéria (BARBOSA MOREIRA, 2007, p. 57). Costuma-se denominar o modelo vigente no Brasil de modelo cooperativo de processo. É uma concepção que ultrapassa os fins exclusivamente privados do processo e corporifica escopos sociais de interesse público em seu interior. Afinal, tendo em vista o estipulado pelo art. 6º do Código de Processo Civil de 2015, todos os sujeitos atuantes no processo devem adotar um padrão de conduta que facilite seu andamento e transforme-o em um ambiente verdadeiramente cooperativo, em que as partes e o juiz atuam conjuntamente para a extinção do processo com decisão de mérito justa, efetiva e em tempo razoável. Essa concepção cooperativa reflete-se, naturalmente, também nas disposições referentes ao direito probatório. De acordo com o art. 370, do Código de Processo Civil, “caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito”. Conforme leciona Alexandre Freitas Câmara, o processo cooperativo reconhece os poderes de iniciativa probatória do juiz, sendo este modelo de organização do processo incompatível com um juiz passivo, neutro e que se limite a valorar as provas produzidas pelas partes; em verdade, atribuir ao juiz a iniciativa probatória é comprometer-lhe com “a busca por uma decisão correta, justa e constitucionalmente legítima do caso concreto” (CÂMARA, 2016, p. 246). Dessa forma, percebe-se que tanto o princípio inquisitivo como o dispositivo exercem influência no modelo processual vigente, que se consubstancia em um processo cooperativo. Assim, as disposições relativas à questão probatória atualmente previstas pelo Código de Processo Civil são fruto da concepção cooperativa de processo, conferindo poderes instrutórios tanto às partes quanto ao juiz. 2. Referências bibliográficas ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Poderes do Juiz e Visão Cooperativa do Processo. Revista da Ajuris, v. 30, n. 90. 2003. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Correntes e contracorrentes no processo civil contemporâneo. In: Temas de direito processual, nona série, São Paulo: Saraiva, 2007. 23 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O Problema Da "Divisão Do Trabalho" Entre Juiz E Partes: Aspectos Terminológicos. In: Revista de Processo, v. 41, 1986. BRAGA, Paula Sarno; DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandre de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela, 11 ed., Salvador: Juspodivm, 2016. CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro, 2 ed., São Paulo: Atlas, 2016. CREVELIN, Diego de Sousa. O Caráter Mítico da Cooperação Processual. In: Revista Empório do Direito, 2017. Disponível em: . Acesso em 20 de novembro de 2021. TORNAGHI, Hélio. A Relação Jurídica Processual Penal. 2. ed., rev. e atual.São Paulo: Saraiva, 1987. MONTESQUIEU, Barão de. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000. NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado, 3 ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. VAN RHEE, Cornelis Hendrik (Remco). Gerenciamento de casos (case management) na Europa: uma abordagem moderna da Justiça Civil. Trad. de Daine Gonçalves lima, Hermes Zaneti Jr. e Marco Antonio Rodrigues. In: Cooperação Internacional, São Paulo: JusPodivm, 2018. 24 A boa-fé e a decisão fundamentada: uma sistematização principiológica da teoria das provas Anselmo Bacelar Mestrando em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes); Pesquisador de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Desafios do Processo” (PPGDIR/UFES); Advogado. E-mail: anselmo.bacelar@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7723820625276085. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-7367-727X. 1 Introdução A produção de provas no processo está pautada por uma enormidade de regras e princípios, estes últimos que balizam e estabelecem parâmetros de aplicação do direito cogente. Na disciplina de provas no processo civil não é diferente. Esta se pauta por uma série de princípios, mormente o devido processo legal, que tem como corolários, exempli gratia, a boa-fé e o direito de decisão fundamentada. Usando a boa-fé como prisma de observação principiológico para a compreensão de uma Teoria das Provas no processo civil e, subsequentemente, uma sistematização e diálogo com os demais princípios e regras atinentes, possibilita estabelecer os parâmetros de produção de provas para as partes em termos de ônus e deveres, e as atribuições do juízo ante a esta atividade inerente ao processo. O trabalho utiliza como metodologia a revisão bibliográfica da literatura jurídica (MORESI, 2003, p. 72), complementando, quando necessário, com a literatura de outras áreas do conhecimento, e o método indutivo e dedutivo (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 86-87) para partir da teoria da boa-fé desde o direito civil, perpassando o processo civil em geral até especificamente compreender como este princípio opera nas provas. Objetiva-se compreender como a boa-fé age nas provas no processo civil, tentando então estipular uma Teoria das Provas sistematizada em torno da boa-fé no que tange seus efeitos, observando em que a boa-fé oferta às partes em direitos e garantias ou limita seu agir no processo. Ademais, atenta-se ao papel do magistrado ante a boa-fé em torno da prova no decorrer do processo. 25 2. A boa-fé no Direito Civil e Processual Civil Para melhor compreensão do princípio1 da boa-fé é necessário primeiro um caminho pelo direito civil antes de adentrar nos dispositivos e construções teóricas processuais. A boa-fé se caracteriza como princípio ético-jurídico, de orientação na realização do direito. Tem como objetivo, em suma, trazer uma abertura aos textos legais para na interpretação e integração das regras jurídicas efetivar a sociabilidade e eticidade, princípios gerais do Código Civil. Divide-se na boa-fé objetiva e subjetiva, compondo um dever de lealdade e cooperação (AMARAL, 2014, p. 90-91). Observa-se que no direito civil a boa-fé encontrou nos negócios jurídicos campo mais fértil de aplicação, constituindo-se nos efeitos, para a boa-fé objetiva: i) interpretativo, que estabelece sentido e alcance da norma jurídica; ii) integrativo, operando para preenchimento de eventuais lacunas; iii) e limitadora, referente ao limite de exercício dos direitos subjetivos. (AMARAL, 2014, p. 90-91) (MARTINS- COSTA, 2004, p. 369-374) A boa-fé subjetiva, por outro lado, é “estado interior ou psicológico relativo ao conhecimento, ou desconhecimento, e a intenção, ou falta de intenção, de alguém” (DE AZEVEDO, 1992, p. 81). É, portanto, ligado ao íntimo psicológico do sujeito, ou, propriamente, ao dolo. (DE AGUIAR JUNIOR, 2012, 190-191) Estabelecidos a conceituação base de boa-fé há de se direcionar para sua presença no Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15), pois, pelo que foi visto até o momento, a aplicação mais intensa do instituto se dá nos negócios jurídicos. A boa-fé adentra o CPC/15 no art. 5º, que dispões ipsis litteris: “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”. É de se notar também a topografia do referido artigo: este se encontra na parte geral, no Capítulo de Normas Fundamentais do Processo Civil (arts. 1º-12). A boa-fé processual, destaca-se, aplica- se tanto às partes que integram o processo quanto ao órgão jurisdicional (o magistrado e seus auxiliares) (DIDIER JUNIOR, 2009, p. 36). Em complemento, não se pode olvidar do artigo subsequente ao dispositivo processual de boa-fé, que indica a necessidade de cooperação das partes para obtenção da tutela jurisdicional em tempo razoável, e que esta seja justa e efetiva (art. 6º, CPC/15). Definindo a cooperação no processo civil de maneira mais ampla, para compreender também seus efeitos ao magistrado, esta consistiria em deveres de: i) Esclarecimento, que é dever de natureza recíproca, atingindo as partes e o juiz, incumbindo-os de prestar esclarecimentos sobre suas manifestações sempre que 1 “Ponto de partida e fundamentos de um processo qualquer. [...]. No século XVIII, ao definir o P. [princípio] como ‘o que contém em si a razão de alguma outra coisa’, Wolff observava que esse significado estava de acordo com Aristóteles [...]. Kant, por um lado, restringia o uso do termo ao campo do conhecimento, entendendo por P. ‘toda proposição geral, mesmo extraída da experiência por indução, que possa servir de premissa maior num silogismo”. (ABBAGNANO, 2012, p. 928-929) 26 suscitados a tal; ii) Prevenção, dirigido apenas ao juiz, que passa a ter de tomar conduta de informar as partes de sua atuação processual quando eventualmente equivocada, de modo que este equívoco possa prejudicar o alcance da prestação jurisdicional, oportunizando-as a correção; iii) Consulta, que atinge o magistrado, impondo um dever de guarda ao contraditório amplo, buscando a vedação às decisões-surpresa; e iv) Auxílio, que atinge o órgão jurisdicional, que tem o dever de amparo às partes em eventual necessidade de superação de dificuldades que possam impedir o exercício de direitos, faculdades ou o cumprimento de ônus ou deveres processuais. Não é um dever genérico, mas subsidiário aplicável quando as partes não obtiverem êxito em sua tentativa originária e então encontrem a dificuldade a ser superada. (LINS, 2019, p. 66-76) Correlaciona-se a boa-fé no processo civil com a cooperação justamente pela cooperação ser uma das expressões da boa-fé processual, chegando o art. 5º e 6º a se confundirem em termos de propósito, conforme apontam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery: O parecer final do relator do projeto de lei que tratava o Novo CPC indica que este CPC 5.º tem o mesmo propósito do CPC 6.º, qual seja consagrar o princípio da cooperação, que deve nortear não só as partes litigantes, mas também os operadores do direitos e os auxiliares da justiça que participam do processo. (NERY JUNIOR; NERY, 2018, p. 226) Não é somente o efeito de cooperação que a boa-fé traz para o processo pois, apesar dessa sugestão de similitude de propósitos, a boa-fé carrega maior amplitude dentro do campo processual, atingindo efeitos próximos dos que existem no âmbito do direito civil. Exemplificando, tem-se: i) A cláusula geral de lealdade processual, que consiste em um dever de conduta (dever jurídico), extensível às partes e ao juízo, de manutenção de lealdade no procedimento, sob responsabilidadede dano processual. Este reflexo dialoga diretamente com o feixe de abstenção da boa-fé objetiva, exigindo das partes que não ajam em descompasso com o correr regular do processo ou em manifesto prejuízo ao adversário. Destaca-se que por também caber ao juízo atos tomados pelo juiz ou seus auxiliares que prejudiquem o andamento regular do processo tomando por horizonte o art. 5º do CPC/15 igualmente podem figurar como quebra dessa cláusula geral processual, observando também a preceituação do art. 7º do mesmo codex. As regras de boa-fé, especificamente na lealdade, podem ser encontradas no Código de Processo Civil nos arts. 77-81 e, pela própria lógica interpretativa e integrativa da boa-fé e o regramento previsto no art. 8º do CPC/15, as condutas previstas nos enunciados normativos codificados não são taxativas, cabendo ao juízo 27 regular no processo o adequado cumprimento desta cláusula, visto ainda o art. 139, III. (NERY JUNIOR; NERY, 2018, p. 225) (DINAMARCO, 121-122) ii) O abuso de direito processual, que consiste em atos de possível verificação de analogia com o art. 187 do Código Civil de 2002 (CC/02), tendo as partes ultrapassando limites estabelecidos pelos parâmetros da boa-fé, objetivos e a finalidade social do processo (arts. 5º e 8º, CPC/15). Neste caso a observância se dá pela ótica da boa-fé objetiva, não cabendo propriamente falar de uma litigância de má-fé, de critérios subjetivos, mas sim de um abuso de direito em abstrato legítimo mas exercido em descompasso com as conformidades do processo, estipuladas pelos supramencionados artigos. (NERY JUNIOR; NERY, 2018, p. 225-226) Estabelecida então a boa-fé desde sua origem como princípio no direito civil e sua incidência no processo é necessário portanto compreender como, no processo, esta boa-fé se comporta em matéria probatória. 3. Transposições da boa-fé para a Teoria das Provas e as regras derivadas da boa-fé na produção de provas no processo civil: ônus, direitos e incumbencias das partes e deveres do juízo A boa-fé trata-se de um princípio geral e norma fundamental do processo visto sua topografia no Código De Processo Civil, tal qual visto anteriormente. É mister, antes de adentrar na específica transposição do princípio para uma Teoria das Provas, observar como operam os princípios na regulação do processo. Cândido Dinamarco aponta: Sem princípios um conhecimento é desorganizado e só pode ser empírico, porque faltam os elos responsáveis pela interligação destes resultados. No que diz respeito às ciências jurídicas, o conhecimento os princípios é responsável pela boa qualidade e coerência da legislação e também pela correta interpretação dos textos legais [...]. São as premissas que determinam seu próprio modo de ser e dão-lhe individualmente perante outras ciências, constituindo-se em raízes alimentadoras de seus conceitos e de suas propostas. (DINAMARCO, 2020, 262-264) Conforme já anteriormente apontado na estipulação do conceito adotado por princípio e tomando por base a referência acima, vê-se que a boa-fé, nas provas2, 2 “Prova é demonstração e provar é demonstrar. [...] O resultado a ser obtido mediante a instrução probatória é o conhecimento dos fatos e consequente firmeza para proferir a decisão. Na dinâmica do processo e dos procedimentos, proa é um conjunto de atividades de verificação e demonstração, 28 deve seguir como pressuposto regulador, balizando todas as regras conforme as estipulações aplicáveis ao processo, adequando-as às realidades da prova. É o que se tenta fazer agora, compreendendo ponto a ponto de como os efeitos da boa-fé podem modificar o agir probatório das partes e do juízo. Como uma primeira consequência que pode ser observada tem-se a Teoria da Carga Dinâmica das Provas. É uma regra processual de dupla função no processo, referindo- se a uma regra de procedimento às partes e uma regra de julgamento ao juiz, que prescreve que deve provar aquele que tem melhores condições de fazê-lo. Em regra o ônus da prova recai sobre aquele que alega o fato ou busca desconstituir este, porém, a dinâmica do processo pode inverter esta situação a depender de quem pode ser o sujeito processual melhor capacitado a produzir tal prova. (ABELHA, 2016, p. 542-549) (DALL’AGNOL JUNIOR, 2001, p. 28-29) (MITIDIERO, 2012, p. 75-77) As regras de ônus da prova encontram-se previstas no art. 373 do CPC/15, sendo o parágrafo primeiro o que faculta o juiz a modificação deste ônus em casos previstos em lei ou quando houver impossibilidade ou excessiva dificuldade de cumprimento do encargo probatório. Destaca-se ainda que o dispositivo exige decisão fundamentada e oportunização de contraditório para a parte se desincumbir do ônus a que lhe recaiu. Então, há de se questionar: em que parte a boa-fé encaixa-se na distribuição do ônus da prova? Justamente nos casos não previstos em lei, observando sua função integrativa, visto que todos aqueles que participam do processo o fazem conforme a boa-fé (art. 5º, CPC/15). No que já se encontra previsto legalmente não há necessidade de maiores debates, porém, carece aprofundamento na zona de penumbra do que não foi antecipado como evento fático que justificaria eventual modificação da estrutura de encargos probatórios. Para iniciar este estudo é necessário retomar duas normas fundamentais do processo, os arts. 7º e 8º do CPC/15. Estes garantem paridade às partes nos meios de defesa e nos ônus processuais e obriga o juiz a aplicar o ordenamento conforme a proporcionalidade e a razoabilidade, dentre outras disposições dos artigos. Deste modo, levando em conta os princípios da sociabilidade e eticidade do Código Civil, bases da boa-fé, que anteriormente foi possível verificar que foram importados para o processo civil, este agir do juiz e estas garantias às partes devem ser feitas de modo a tornar estas partes mais iguais na medida de suas desigualdades no processo (BARBOSA, 1999, p. 26). Em complemento, indica Humberto Ávila: mediante as quais se procura chegar à verdade quanto aos atos relevantes para o julgamento”. (DINAMARCO, 2019, p. 47). 29 Para saber, porém, o que é um processo justo ou adequado, é preciso inelutavelmente investigar os mesmos deveres de proporcionalidade e razoabilidade. Isso porque a adequação do processo à proteção dos direitos de liberdade e de propriedade depende da adoção de comportamentos adequados, necessários, proporcionais e razoáveis à protetividade desses direitos. Não se pode saber se uma prova, um prazo ou um procedimento conduz, ou não, à proteção do direito reclamado, sem investigar se a medida adotada para protegê-lo é adequada, necessária, proporcional e razoável à sua proteção. (ÁVILA, 2008, p. 50-59) Há de se entender então o que seria este justo, proporcional, razoável e paritário que indicam os dispositivos do codex processual e Humberto Ávila. Um caminho possível seria a utilização do princípio do favor debolis civil em sua acepção contemporânea (SILVESTRE, 2018, p. 94-95) (SOTO, 2019, p. 36; 46) como fundamento no sopesar das situações de modificação do ônus probandi. Este preceito encontra-se posicionado na literatura jurídica como de viável implementação no processo civil, aplicando os regramentos do favor debolis no processo civil para equilibrar a relação das partes que se encontram nessa ausência da chamada “paridade de armas” na relação processual (SILVA, 2011), no que tange aos estudos deste trabalho, nos encargos probatórios. O que há, então, é uma igualdade formal abstrata disposta em lei que por uma desigualdade substancial deve ser equilibrada em vias formais, porém, este ato do juiz deve ser tomado com cautela para não criar um desequilíbrio processual na tentativa de estabelecimento de uma paridade. Nas situaçõesprevistas em lei as modificações de ônus são simples, porém, nestes casos em que é necessária uma observação de uma desigualdade substancial, os elementos devem ser concretos para justificar as mudanças na igualdade formal já estabelecida na relação processual. (DINAMARCO, 2019, p. 342) A valoração das provas é verdadeira valoração de direitos, e toda a dinâmica processual pode ser afetada justamente por este momento de saneamento em que os ônus são estipulados, então, a sistematização de regras e racionalidades de distribuição baseadas em princípios e normas fundamentais do processo torna-se fundamental para o bom correr do processo. Sobre a valoração de provas, aponta Carnelutti: En el proceso, en todas sus especies, el oficio tiene que valorar jurídicamente hechos. La noción de hecho jurídico, esencial para la teoría del proceso, es una de aquellas que el estudioso debe aprender de la teoría general del derecho. Cuantas veces el hecho 30 que hay que valorar no esté presente, el juez tiene que servirse de otros objetos que le permitan conocer el hecho ausente. Esos otros objetos son las pruebas. [...] Puesto que no sólo en el proceso, sino también fuera de él deben ser valorados jurídicamente los hechos, las pruebas no sirven solamente para el proceso; en general, la actividad jurídica, y no sólo la actividad judicial, se desenvuelve por medio de pruebas. (CARNELUTTI, p. 257-258) Portanto, em complemento ao favor debolis é imperativo buscar mais elementos que possibilitem esta avaliação do juiz destes critérios concretos para modificar a situação probatória. Observando a estipulação de standards de prova para ações reais encontramos uma regra de Jorge Larroucau Torres que serviria para estipular um critério objetivo de avaliação de quando o ônus de provar se manteria com o demandante ou quando os privilégios da inércia probatória deixariam o réu. Aponta o autor: Como la convicción –en su variante subjetiva– no informa sobre los grados de corroboración que se obtienen de la prueba rendida, un estándar de prueba adecuado para estos casos es la regla de la probabilidad prevaleciente, la cual exige demostrar los hechos con un grado de probabilidad que sea superior a 0,5 (en una escala en donde 0 es ignorancia y 1 es certeza). [...] Con todo, como en un juicio reivindicatorio al demandado se le presume dueño la regla P>0,5 le protege más a él, ya que será el actor quien deberá acreditar que es más probable que él sea el dueño a que lo sea el demandado; esto funciona así porque la regla de la probabilidad prevaleciente acude a la inercia de mantener las cosas tal como están si es que la persona que ejerce la acción no alcanza el umbral de 0,5. (LARROCAU TORRES, 2015, p. 143-144) Realizando um pensamento indutivo para exportar esta regra das ações reais para os demais procedimentos, na lógica do autor, é necessário compreender alguns conceitos: há um ponto inicial em que não se justificaria a modificação do ônus de prova, este seria o 0, fazendo um paralelo com o estado de ignorância apresentado pelo autor; e há um ponto de absoluta impossibilidade de produção de prova por uma das partes, que seria o 1, fazendo um paralelo com a certeza do artigo citado. Tal pensamento suscita comparativos com a lógica fuzzy, que trazem mais elementos para completude no entendimento desse intervalo de 0 a 1 entre o estado padrão do 31 processo de igualdade formal e substancial entre as partes em que nada precisaria ser alterado e a total impossibilidade de produção de provas. Para melhor compreensão do conceito é necessária uma explicação técnica: A Lógica Fuzzy (também chamada de lógica multivalorada) foi primeiramente introduzida em 1930 pelo filósofo e lógico polonês Jan Lukasiewicz. Através do estudo de termos do tipo alto, velho e quente, ele propôs a utilização de um intervalo de valores [0,1] que indicaria a possibilidade que uma declaração fosse verdadeira ou falsa. [...] Ao contrário da Lógica convencional, a Lógica Fuzzy utiliza a idéia de que todas as coisas admitem (temperatura, altura, velocidade, etc.) graus de pertinências. Com isso, a Lógica Fuzzy tenta modelar o senso de palavras, tomada de decisão ou senso comum do ser humano. [...] Dessa forma, a Lógica Fuzzy pode ser considerada como um conjunto de princípios matemáticos para a representação do conhecimento baseado no grau de pertinência dos termos (graus de verdade). [...] Assim, na Lógica Fuzzy, um elemento pertence a um conjunto com um certo grau de pertinência, fazendo com que uma determinada sentença possa ser parcialmente verdadeira e parcialmente falsa. Além do mais, um mesmo elemento pode ter graus de pertinências diferentes de 0 para mais de um conjunto fuzzy. (MARRO, 2010, p. 2-3) Nota-se então que esta teoria poderia servir como instrumento adicional para modelar a tomada de decisão do juiz nos casos não previstos em lei de modificação do ônus probatório. No caso concreto, seriam avaliados todos os argumentos sobre o estado de desigualdade substancial e ausência de equidade entre as partes no que tange a produção probatória para encontrar a pertinência da modificação do ônus probandi. Esta lógica (fuzzy) parece mais útil como ferramenta se comparada à lógica clássica, pois o binômio do terceiro excluído (verdade ou falsidade) (D’OTTAVIANO; FEITOSA, 2009) não parece condizente com as situações jurídicas encontradas na prática forense. Não é comum uma parte ser simplesmente incapaz de produzir provas, apesar de razoável a segunda hipótese que é a da paridade de armas. Em sendo uma lógica que só aceita a proposição de falsidade ou verdade: ou a parte consegue ou não consegue produzir as provas. Se este fosse o instrumento as situações em “zona de penumbra” poderiam ser olvidadas e o processo não correria 32 da forma mais justa e equânime. Deste modo, desponta a lógica fuzzy como opção viável de instrumento na análise da distribuição dos encargos. Para tanto, seria tarefa do magistrado estabelecer uma linha e toda a argumentação referente às dificuldades das partes que resultariam em eventual necessidade de distribuição distinta do ônus, sopesando os argumentos e colocando-os no intervalo de 0-1 para avaliar a pertinência da modificação do ônus de prova. Dado que o processo inicia-se como partário em abstrato, a análise deve começar pressupondo o 0 como ponto de partida. Exemplifica-se em caso hipotético: Suponha-se uma situação em que uma pessoa, hipossuficiente, sofre com um erro médico do serviço de saúde pública e em razão desse evento ingressa com ação de reparação pelos danos sofridos. Para tanto, as provas que o autor pretende produzir são periciais para indicar o erro médico. Outra prova possível é a documental, esta que somente o prestador de serviço de saúde pública tem. Encontramos então duas provas, com alguns elementos que sobre estas incidem para avaliar o ônus em cada uma. Conforme já apontado na teoria da lógica fuzzy, nem todos os elementos atingem em mesma pertinência se as análises são feitas em óticas distintas, então é necessário estabelecer dois intervalos e a listagem de argumentação e avaliar como cada argumento interfere em cada intervalo. Os intervalos são efetivamente as provas a serem produzidas, visto que é isso que o magistrado quer avaliar se cabe a modificação do ônus ou não. São os argumentos do autor: a1, a hipossuficiência; a2, a ausência dos documentos, que estão em mãos do serviço de saúde e são inacessíveis ao autor. Estabelecendo a linha de cada prova: i) produção de prova pericial 0 a1 1 a1: Atinge diretamente no intervalo, visto que a produção de prova pericial demanda custos que para parte hipossuficiente,