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SALO DE CARVALHO
Advogado
Mestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em Direito 
Professor Titular de Direito Penal e Criminologia da PUCRS
Professor Convidado do Doutorado ‘Derechos Humanos
y Desarrollo’ da UPO (Sevilha)
Coordenador de Pesquisa do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais
PENA E GARANTIAS
3a edição, revista e atualizada
A CRISE DO DIREITO E DO PROCESSO PENAL
O GARANTISMO JURÍDICO
AS TEORIAS DA PENA
OS SISTEMAS DE EXECUÇÃO
A LEI DE EXECUÇÃO PENAL
OS CONFLITOS CARCERÁRIOS
OS DIREITOS (DE RESISTÊNCIA) DOS PRESOS
EDITORA LUMEN JURIS
Rio de Janeiro
2008
www.lumenjuris.com.br
EDITORES
João de Almeida
João Luiz da Silva Almeida
CONSELHO EDITORIAL
Alexandre Freitas Câmara
Amilton Bueno de Carvalho
Cezar Roberto Bitencourt
Cesar Flores
Cristiano Chaves de Farias
Carlos Eduardo Adriano Japiassú
Elpídio Donizetti
Fauzi Hassan Choukr
Firly Nascimento Filho
Francisco de Assis M. Tavares
Geraldo L. M. Prado
Guilherme Peña de Moraes
Gustavo Sénéchal de Goffredo
J. M. Leoni Lopes de Oliveira
José dos Santos Carvalho Filho
Lúcio Antônio Chamon Junior
Manoel Messias Peixinho
Marcellus Polastri Lima
Marcos Juruena Villela Souto
Nelson Rosenvald
Paulo de Bessa Antunes
Paulo Rangel
Ricardo Máximo Gomes Ferraz
Salo de Carvalho
Victor Gameiro Drummond 
Társis Nametala Sarlo Jorge
CONSELHO CONSULTIVO
Álvaro Mayrink da Costa
Antonio Carlos Martins Soares
Augusto Zimmermann
Aurélio Wander Bastos
Elida Séguin
Flávia Lages de Castro
Flávio Alves Martins
Gisele Cittadino
Humberto Dalla Bernardina de Pinho
João Theotonio Mendes de Almeida Jr.
José Fernando de Castro Farias
José Ribas Vieira
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Capítulo VI
Garantismo e Conflitos Carcerários:
Fugas, Rebeliões e Motins
6.1. As novas funções da pena
6.1.1. A crise do Estado social e a emergência do 
Estado penitência: mirada ao centro
A perspectiva disciplinar, legitimada pelo discurso ressocializa-
dor, ingressa na esfera jurídico-penal com a crise do Estado liberal e
sua gradual transmutação em Estado Social. A negação do absenteís-
mo liberal e o incremento do intervencionismo social invadem, inclusi-
ve, as doutrinas do controle social.1
Lembra Zygmunt Bauman que o estado de bem-estar foi, original-
mente, concebido como um instrumento manejado pelo estado a fim de
reabilitar os temporariamente inaptos e estimular os que estavam aptos
a se empenharem mais, protegendo-os do medo de perder a aptidão no
meio do processo (...). O estado de bem-estar não era concebido como
uma caridade, mas como um direito do cidadão, e não como o forneci-
mento de donativos individuais, mas como uma forma de seguro coleti-
vo.2 É, portanto, na iminência e consolidação do Estado social que nas-
cem as noções de segurança e prevenção que balizarão as formas jurí-
dicas do século XX. Prevenção será entendida como uma atitude colec-
tiva, racional e voluntarista que se destina a reduzir a probabilidade de
ocorrência e a gravidade de um risco.3
213
1 François Ost percebe claramente esta transposição das funções estatais que definirá o
câmbio da estrutura penal: é pois como Estado protector que o Estado moderno se iden-
tifica. No século XIX, esta protecção assumirá a forma minimalista da garantia generali-
zada da sobrevivência, com o Estado liberal a deixar à esfera privada a gestão das condi-
ções materiais de existência. No século XX, em compensação, as missões do Estado alar-
gam-se, na medida em que ele toma a seu cargo, para além da simples sobrevivência, a
garantia de certa qualidade de vida: fala-se então de Estado-providência ou de Estado
social (Ost, O Tempo do Direito, p. 336).
2 Bauman, O Mal-estar da Pós-modernidade, p. 51.
3 Ost, ob. cit., p. 344.
dência social e, principalmente, ações contra as exorbitantes taxas de
desemprego e exclusão social).
Assim, pode-se constatar que a conjuntura estruturada sob a
égide da liberdade de mercado tem produzido um modelo ‘neo-
absolutista’ com ‘tentações autoritárias’.6 O efeito deste processo,
situado aparentemente na esfera da economia, é a descartabilidade do
valor ‘pessoa humana’ e o retorno a um estado pré-civilizatório no qual
impera a lei do mais forte.
A análise de Ralf Dahrendorf, no ensaio Economic opportunity,
civil society, and political liberty (1995), é precisa. Como contextualiza
Jacinto Coutinho, em precioso comentário à obra,7 Dahrendorf conse-
guiu captar o sentimento central, produzindo um best seller que sinte-
tiza as propostas de ‘enquadramento do círculo’ para a construção de
uma sociedade democrática do primeiro mundo: bem-estar econômico,
coesão social e liberdade política. 
O custo do ‘enquadramento do círculo’, porém, seria o fato de que
alguns países subdesenvolvidos (como os latinos) não conseguiriam
acompanhar o processo. Todavia, independente deste fato, deveriam
dividir os ônus e as dificuldades do centro com os países desenvolvidos.8
O primeiro passo para o processo de globalização econômica seria
a flexibilização, isto é, a desregulamentação e a limitação das interfe-
rências governamentais, principalmente no que diz respeito aos tribu-
tos e ao mercado de trabalho.
Dahrendorf, ao profetizar como irreversível o processo, alerta que
a globalização econômica parece estar associada a novos tipos de exclu-
são social.9 E a ‘irreversibilidade’ deste processo acaba sendo consumi-
da, como assinala Jacinto Coutinho,10 com a naturalidade de um obje-
to que se possa degustar satisfatoriamente.
As renovadas formas de exclusão seriam caracterizadas pela
perda do status de cidadão por algumas pessoas, não somente em
Pena e Garantias
215
6 Dahrendorf, Quadrare il cerchio, pp. 45-56.
7 Coutinho, Jurisdição, psicanálise e o mundo neoliberal, pp. 40-77. Sobre o texto de
Dahrendorf e os efeitos do neoliberalismo, conferir, igualmente, Grau, A ordem econômi-
ca na Constituição de 1988, pp. 37-48.
8 Lembra Enrique Dussel que Friedrich von Hayek – inspirador de Milton Friedman y con-
tinuador metódico de Popper en la economía – ‘habría expresado la recomendación de que
en caso de una aguda crisis de recursos habría que dejar librados a la muerte por hambre
a los pueblos del Tercer Mundo que no supieran autoayudarse (Apud Coutinho,
Atualizando o discurso sobre Direito e neoliberalismo no Brasil, p. 29).
9 Dahrendorf, ob. cit., p. 33.
10 Coutinho, ob. cit., p. 69.
Notório, neste quadro, que o direito penal não passou imune às
novas obrigações demandadas pela sociedade civil e política.
Ao ser chamado a operar políticas preventivas – no que tange à
prevenção dos riscos inerentes à sociedade industrial e aos instrumen-
tos de garantia de efetivação dos direitos dela decorrentes –, o direito
penal, e conseqüentemente o processo penal, foi instigado a ampliar
seu espectro de incidência e, através dos modelos ideológicos de
Defesa Social (Prins e Marc Ancel), solidificou uma política criminal
profilática a partir da identificação e gestão da periculosidade indivi-
dualpacíficas, que contes-
tam determinada ordem constituída com intuito de transgredi-la, seja
para estabelecer nova prática política seja para reestruturar pretérita.
O ato contrariado deve, necessariamente, lesar direitos, restringindo o
status de cidadão e o ideal democrático.79
Hannah Arendt demonstra que a desobediência civil aparece no
período pós-Segunda Guerra Mundial como forma de reivindicação de
necessidades da sociedade civil à sociedade política. Ao constatar a
profunda crise da lei e dos canais tradicionais de comunicação entre os
cidadãos e os governantes, Arendt vê nos atos de desobediência civil
uma resposta à crise de participação da sociedade na tomada das deci-
sões políticas. Assim, a desobediência civil aparece quando um número
significativo de cidadãos se convence de que, ou os canais normais para
mudanças já não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas nem
terão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de
efetuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja legali-
dade e constitucionalidade estão expostas a graves dúvidas.80
Dessa forma, o ato de transgressão às leis e/ou decisões adquiri-
riam dupla funcionabilidade: pode servir tanto para mudanças necessá-
rias e desejadas como para preservação ou restauração necessária e
desejada do status quo.81
John Rawls define desobediência civil como um ato ilegal público,
não-violento, de consciência, mas de caráter político, realizado com o fim
de provocar uma mudança na legislação ou na política governamental.82
Passerin d’Entrêves segue a mesma trilha de Rawls e a define como
ação ilegal, coletiva, pública e não violenta, que se atém a princípios éti-
cos superiores para obter uma mudança nas leis.83
Tradicionalmente, a desobediência civil poderia ser conceituada
como ato coletivo, de caráter público e pacífico, impulsionado por reivin-
dicações dirigidas à modificação ou manutenção de direitos consagra-
dos. Seria conduta em ultima ratio, caracterizada pela ilegalidade que
sujeita os manifestantes às sanções previstas no ordenamento jurídico.
As principais características do ato de desobediência seriam, por-
tanto, a politicidade, publicidade e coletividade, utilizadas pacifica-
mente como último recurso, sujeitando os desobedientes às sanções.
Pena e Garantias
241
79 Carvalho, O direito de resistência e o seu alcance constitucional, pp. 87-115.
80 Arendt, A Desobediência Civil, p. 68.
81 Arendt, ob. cit., p. 69.
82 Rawls, A Theory of Justice, p. 364.
83 Bobbio, Dicionário de Política, p. 336.
sistência como sói acontecer nos trabalhos sobre o tema. A análise que
se pretende realizar é puramente conceitual e classificatória.
Segundo Norberto Bobbio, a resistência compreende todo tipo de
ruptura contra a ordem constituída, que põe em crise o sistema pelo fato
de produzir-se, como acontece em um tumulto, uma sublevação, uma
rebelião, uma insurreição, até o caso limite da revolução.77
Afirma o politólogo que o direito de resistência é um dos mecanis-
mos jurídicos que servem para tutelar os direitos primários. Sua carac-
terística principal é de intervenção subsidiária, ou seja, quando são
violados os bens jurídicos fundamentais: juridicamente, o direito de
resistência é um direito secundário, do mesmo modo que são normas
secundárias aquelas que dispõem a proteção das normas primárias: é
um direito secundário que intervém em um segundo momento, quando
são aviltados os direitos de liberdade, de propriedade e de segurança,
que são primários. Diferente, também porque o direito de resistência
tutela os outros direitos, mas não pode ser por sua vez tutelado, e por-
tanto deve ser exercido com risco e perigo próprios.78
Mais que um ‘direito’, a resistência à opressão é um mecanismo
tipicamente garantista, pois sua natureza reflete instrumentalidade à
satisfação dos direitos humanos individuais, sociais e/ou transindivi-
duais. É que o sentido do termo ‘garantias’ deve ser empregado para
expressar as técnicas previstas, explícita ou implicitamente, que objeti-
vam minimizar o vácuo entre normatividade e efetividade dos direitos.
O exercício do direito de resistência para tutela de direitos indivi-
duais representa um dos traços mais característicos do pensamento
liberal clássico – resistência armada contra usurpação, conquista ou
exercício abusivo do poder. A atualização do instituto no século XX
ocorreu com a luta pela tutela dos direitos sociais manifestados por
movimentos que vão desde as reivindicações de minorias excluídas
(minorias raciais, etárias, de gênero et coetera) aos conflitos laborais
(v.g. greves). No âmbito dos direitos transindividuais, as manifestações
das ONG’s ecológicas e dos movimentos de luta pela terra e espaço
urbano parecem ser o melhor exemplo de prática resistente.
Imprescindível nota a ser feita diz respeito às diferenças entre os
termos direito de resistência, desobediência civil e objeção de cons-
ciência. Mister ressaltar o entendimento de constituirem a desobediên-
cia civil e a objeção de consciência espécies do gênero direito de resis-
Salo de Carvalho
240
77 Bobbio, ob. cit., p. 159.
78 Bobbio, La Rivoluzione Francese e i Diritti dell’Uomo, p. 106.
fenômeno da violência carcerária, caracterizada pelo total desrespeito
aos direitos do apenado, aproxima o sistema de cumprimento de pena
privativa de liberdade aos mais atrozes modelos de penalidade já
conhecidos pela humanidade; e (2o) as únicas possibilidades de
(re)ação dos condenados contra a brutalidade do sistema (fugas, rebe-
liões e/ou motins) implicam sanções (administrativas ou penais) que
agudizam ainda mais sua permanência na instituição de apartação.
Os tipos penais de evasão e motim, a disposição dos atos de sedi-
ção nas normas penitenciárias e o desenvolvimento jurisprudencial e
dogmático sobre a matéria descartam qualquer possibilidade de justi-
ficação do ato, independentemente da finalidade ou da situação de fato
que motivou a conduta.
Na órbita do injusto penal, a inviabilidade interpretativa advém do
fato de que na construção da norma penal inexistiu inclusão de ele-
mento normativo do tipo descaracterizador – ‘justa causa’, por exem-
plo; e, também, pela inexistência de teoria que possibilite a construção
de causas descriminantes para os referidos conflitos, refletindo o desin-
teresse da dogmática jurídico-penal tradicional em apreender a com-
plexidade social.
Os elementos normativos do tipo, constitutivos e integrantes da
ilicitude, representam juízos de menor grau de antijuridicidade; são ele-
mentos de conteúdo variável, aferidos a partir de outras normas jurídi-
cas, ou extrajurídicas, quando da aplicação do tipo ao fato concreto.87
Inúmeros tipos penais do CP brasileiro apresentam juízos axiológicos
de referência à ilicitude.88 A inexistência destes elementos de valora-
ção da conduta na estrutura formal da norma exclui qualquer forma de
descontrução de sua tipicidade. Ao contrário dos artigos 153 (divulga-
ção de segredo), 154 (violação de segredo profissional), 244 (abandono
material), 246 (abandono intelectual) e 248 (induzimento a fuga, entre-
ga arbitrária ou sonegação de incapazes) do CP, que são integrados
pelo elemento ‘justa causa’, possibilitando a exclusão da tipicidade da
conduta quando comprovado ter sido o fato praticado em ‘defesa de
direito ou interesse legítimo’, os delitos previstos nos artigos 352 e 354
não possuem essa composição. Impossível, pois, a justificação dos atos
Pena e Garantias
243
87 Reale Jr., Teoria do Delito, pp. 42-48.
88 Alguns autores, inclusive, atribuem ao elemento normativo do tipo forma especial de ili-
citude. Sobre o assunto e as devidas críticas, conferir Fragoso, Lições de Direito Penal I,
pp. 183-184; e Marques, Tratado de Direito Penal I, pp. 141-142.
Pressuporia, pois, a aceitação da legitimidade do ordenamento jurídico
vigente. 
Hannah Arendt sustenta, porém, ser desnecessário o concurso.
Avaliando a participação de Ghandi no movimento de independência
da Índia, a autora lembra que o arauto da prática políticada desobe-
diência civil e da não-violência em nenhum momento aceitou a legiti-
midade do modelo jurídico autoritário imposto pelo domínio britânico.
Corrobora-se a afirmação, e entende-se necessária, para configuração
do ato, a publicidade de ação realizada com o intuito de aperfei-
çoar/garantir os direitos individuais, coletivos ou difusos não respeita-
dos pelos poderes públicos constituídos. 
Desde esta caracterização, pode-se estabelecer, junto a Rawls, a dife-
renciação da objeção de consciência: a objeção de consciência não se baseia
necessariamente em princípios políticos; pode fundar-se em princípios reli-
giosos ou de outro caráter, desconformes com o ordenamento constitucional.
A desobediência civil é a invocação de uma concepção comunitária de justi-
ça, enquanto que a objeção de consciência pode ter outros fundamentos.84
Rawls afirma ser a objeção de consciência o não cumprimento de
preceito legal ou administrativo mais ou menos categórico.85 A conduta
de refutação pode estar fundamentada em princípios de ordem religio-
sa, moral, ideológica, ética ou filosófica. O fundamental, contudo, é que
contrarie dispositivo de lei ofensivo aos princípios do agente. 
Cuervo-Arango define objeção de consciência como la actitud de
aquel que se niega a obedecer un mandato de la autoridad, un impera-
tivo jurídico, invocando la existencia, en el seno de su conciencia, de un
dictamen que le impide realizar el comportamiento prescrito.86
Assim, a objeção de consciência difere da desobediência civil basica-
mente por ser ato individual. Mais, o objetor de consciência, além de atuar
em nome próprio, não teria o intuito de modificar a lei em questão, simples-
mente deseja não cumpri-la devido a imperativos éticos personalíssimos. 
6.3.3. Direito de resistência, legítima defesa e estado 
de necessidade: aproximações e diferenças
Nos últimos apontamentos, chamou-se a atenção para duas ques-
tões cruciais para o desenvolvimento das hipóteses do trabalho: (1o) o
Salo de Carvalho
242
84 Rawls, ob. cit., p. 369.
85 Rawls, ob. cit., p. 368.
86 Cuervo-Arango, La Objeción de Conciencia al Servicio Militar, p. 11.
faculdade de intervenção protetora de um particular em favor de outro,
pouco importando que haja, ou não, uma relação especial entre ambos.92
Todavia, a formulação legal das eximentes é estruturada em rígi-
dos pressupostos que inviabilizam sua utilização aos casos de confliti-
vidade transindividual, no caso ora avaliado aos problemas dos confli-
tos carcerários.
Os institutos oriundos de situações de necessidade (legítima defe-
sa e estado de necessidade) são moldados no interior de uma concep-
ção meramente interindividual, na qual inexiste possibilidade de rea-
ção coletiva contra ato que coloca em perigo ou que agride bens trans-
pessoais (v.g. conflitos carcerários, saques, ocupações de terras, apro-
priação de prédios públicos e/ou privados et coetera). 
Crê-se, no entanto, desde uma concepção garantista do direito e
da prática jurídica, da viabilidade teórica para solução da problemáti-
ca que envolve a questão carcerária a partir da assunção do ius resis-
tentiae como causa supralegal de exclusão da ilicitude. 
Afirma Ferrajoli que é justo rebelar-se quando a lei é injusta; mas
também é juridicamente legítimo quando os poderes públicos violam os
direitos fundamentais e os meios e as garantias legais se revelam inefi-
cazes em sancionar sua invalidade.93
Não se pode olvidar que o objeto de análise é a violação por parte
do poder público de direitos individuais (vida, liberdade, saúde, inte-
gridade física e moral) partilhados por grupo homogêneo (massa carce-
rária), caracterizando, pois, lesão transindividual. Daí resultam a inefi-
cácia e a impossibilidade de assunção dos mecanismos tradicionais, ou
seja, da causas de exclusão de ilicitude previstas no Código Penal.
A diferença entre estado de necessidade e legítima defesa é que
na primeira o bem jurídico é colocado em perigo, enquanto na segunda
há agressão. Se no estado de necessidade existe conflito entre bens em
ações legítimas, na legítima defesa há lesão (ou ameaça) ao bem. Em
ambas, contudo, a ação somente é admitida se impulsionada por con-
duta humana – excluindo reação advinda de força natural ou irracional
no estado de necessidade. Inadmissível, pois, ser o Estado incitador do
ato que requer garantia (sujeito ativo da lesão).
Os pressupostos formais do estado de necessidade são o perigo
atual, o salvamento de direito próprio ou de terceiro, a impossibilidade
de evitar o perigo e a razoável inexigibilidade de sacrifício do direito
Pena e Garantias
245
92 Hungria, Comentários ao Código Penal I, p. 275.
93 Ferrajoli, ob. cit., pp. 989-990.
de fuga e motins quando praticados em defesa de direito, decorrentes
da inação do Estado no cumprimento de suas obrigações legais.
A inviabilidade de justificação da conduta, porém, perpassa o pro-
blema da tipicidade e atinge, principalmente, a esfera da antijuridici-
dade, não obstante a íntima relação existente entre ambas.
A tipicidade é ratio cognoscendi, adquirindo função indiciária da
ilicitude. Esta, por sua vez, apresenta-se como juízo de contrariedade
entre o fato típico e o ordenamento jurídico; daí se deduz que, na práti-
ca, a função do juízo de antijuridicidade fica reduzida a uma constata-
ção negativa desta antijuridicidade, isto é, a determinação de se ocorre
ou não alguma causa de justificação.89 Muito embora determinados
atos sejam considerados típicos, descritos negativamente e subsumi-
dos à norma jurídico-penal, não existe relação necessária, desde a con-
cepção tripartida do delito, entre a sua tipicidade e a sua ilicitude. Em
determinadas situações específicas, o legislador, apesar de previamen-
te desvalorar a conduta na elaboração do tipo, emite juízos permissivos
devido às circunstâncias que compuseram o caso, avalisando a violên-
cia individual em nome próprio ou de terceiro pela ausência de sua pre-
sença tutelar – papel de garantidor. 
Apesar do pressuposto da modernidade estar centrado no mono-
pólio estatal da violência, sendo tipificado como delito o exercício arbi-
trário das próprias razões (art. 345, CP), existem determinadas situa-
ções-limite nas quais o cidadão está legitimado a usar da violência con-
tra bens jurídicos tutelados.
No que diz respeito à garantia dos direitos individuais, a autoriza-
ção da violência como forma de autotutela é prevista, legal ou suprale-
galmente, nos casos de exclusão de ilicitude, como causa de justifica-
ção de atos que, de outra forma, seriam punidos como crimes.90
As descriminantes, como leciona Fragoso, podem defluir de situa-
ções de necessidade (legítima defesa e estado de necessidade), de
atuação conforme o direito (exercício regular de direito e estrito cum-
primento de dever legal) ou de ausência de interesse pelo titular do
bem protegido (consentimento do ofendido).91 Afirma-se, portanto, que
a lei penal não podia deixar de reconhecer que, na impossibilidade de
imediata e eficiente assistência do poder de polícia do Estado, deve ser
outorgada (em acréscimo à permissão de autotutela do indivíduo) a
Salo de Carvalho
244
89 Muñoz Conde, Teoria Geral do Delito, pp. 85-86.
90 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 954.
91 Fragoso, ob. cit., p. 185.
de que o sujeito ativo da violação é o Estado e o sujeito passivo é um
grupo de pessoas. Imprescindível, pois, seria perceber a ‘massa car-
cerária’ como sujeito de direitos. 
O grande problema é que o processo de jurisdicionalização da exe-
cução, que traz em seu bojo o reconhecimento dos presos como sujei-
tos históricos em relação, não se capilarizou pelo sistema. Os presos,
mesmo após a Constituição de 1988, ainda são vistos como objeto de
execução. A dogmática jurídica deve, a partir da interpretação consti-
tucional da LEP e do CP, romper com esta visão e, enquanto não visua-
liza formas de normatizar os conflitos prisionais motivados por justas
reivindicações, urge recepcionar o ius resistentiae como descriminante
supralegal de ordem transindividual.A conseqüência advém da referi-
da situação de violência constante provocada pelo Estado, colocando
em perigo concreto ou causando dano efetivo e irreversível aos bens
jurídicos da ‘massa carcerária’.
Os presídios brasileiros são guetos de barbárie institucionalizada.
Locais onde a civilização não se fez presente, por inércia ou desinteres-
se do poder público. Em casos extremos como este, no qual o Estado
rompe os vínculos com a democracia e institucionaliza a violência, a
contra-resposta deve ser admitida como legítima, isentando os agentes
das conseqüências legais previstas.
Motins, rebeliões e fugas, realizados conscientemente contra
situações injustas como superlotação, falta de assistência material e
atraso injustificado da prestação jurisdicional (que inviabilizam o gozo
de direitos públicos subjetivos), não podem ser qualificados como deli-
tos em decorrência da causa supralegal da resistência à opressão.
Juarez Cirino dos Santos, quando avalia o problema da superlota-
ção carcerária, é claro: o problema da fuga de presos (na verdade, um
direito do encarcerado, especialmente nas condições carcerárias referi-
das) constitui forma ilegal (embora legítima) de correção das distorções
do processo de criminalização, incidente sobre as classes dominadas (os
marginalizados crônicos e eventuais do mercado de trabalho), consti-
tuindo elemento de alívio ou de redução das tensões geradas pela super-
população carcerária.96 No mesmo sentido Dotti, ao afirmar que confi-
guram atos de desobediência civil as reivindicações de presidiários que
se rebelam contra a falta de atendimento de seus direitos humanos.97
Pena e Garantias
247
96 Santos, Direito Penal, p. 296.
97 Dotti, Curso de Direito Penal, p. 428.
ameaçado (art. 24, CP). Na legítima defesa, os pressupostos elencados
são a agressão atual ou iminente e injusta, a preservação de direito
próprio ou de outrem e o emprego moderado dos meios necessários à
defesa (art. 25, CP). 
Os critérios de validação do estado de necessidade inviabilizam a
justificativa de contra-reações coletivas. Note-se, por exemplo, a ques-
tão da ilicitude do ‘saque famélico’. O requisito formal do perigo atual
encontra na dogmática referência ao eminente perigo de dano, aquele
cuja falta de ação instantânea do agente provoca lesão ou destruição do
bem. Tratar-se-ia, pois, de questão de sobrevivência perante o inequívo-
co gravame ao bem jurídico. Neste sentido, Muñoz Conde argumenta
que a conduta de necessidade não pode ser utilizada como a panacéia
de todos os conflitos de interesses, não podendo (por exemplo) o desem-
pregado assaltar um supermercado.94 Não bastaria que houvesse uma
necessidade de alimentos, medicamentos, terras para plantar, empregos
etc. Urge que a conduta, em face da iminência de lesão ou destruição de
um bem (vida, p. ex.), seja necessária (inexigibilidade de comportamento
diverso) e realizada em situação grave e atual, exigindo-se prova cabal e
não mera alegação.95 A contida extensão dada à descriminante do esta-
do de necessidade pela dogmática e jurisprudência reflete total e abso-
luta falta de percepção da realidade latino-americana. 
No caso das lesões aos direitos dos presos, não haveria, desde o
ponto de vista tradicional, situação de perigo que justificasse o estado
de necessidade; ou ainda injusta agressão, atual ou iminente, que via-
bilizasse a legítima defesa.
É que, diferente da formulação legal liberal, se está diante de
situação permanente de violência e lesão constante de direitos, o que
não se enquadra nos requisitos mencionados. Mais, os sujeitos envol-
vidos no conflito impedem a admissibilidade do recurso às causas de
exclusão da ilicitude, notadamente porque o sujeito ativo da violação é
a Administração Pública. A reação dos apenados à constante violência
deflagrada pelo poder público não admite, pois, legítima defesa ou
estado de necessidade. Os pressupostos convencionais das descrimi-
nantes previstas para os conflitos interindividuais estão descartados.
Exsurge assim, como justificativa do ato, o ius resistentiae.
Não obstante a constância da violência, outra diferença entre o
direito de resistência e as demais causas justificadoras radica no fato
Salo de Carvalho
246
94 Apud Jesus, Código Penal Anotado, p. 96.
95 Jesus, ob. cit., p. 96.
qualquer legitimidade. A violência anularia a ‘civilidade’ da conduta.
Desde esta noção, a doutrina política deslegitima atos sediciosos não-
pacíficos, excluindo-os da esfera do direito à resistência. 
Contudo, nota Nélson Nery Costa que a não-violência restringe-se
somente às pessoas, não alcançando, por exemplo, propriedades: os
desobedientes só se comportam com violência, em geral, como resposta
às ações repressivas da polícia, ainda assim em circunstâncias especiais.
A utilização da força não deve, de modo algum, ameaçar às pessoas,
principalmente terceiros não envolvidos, porque ao se atentar contra as
liberdades dos outros, perde-se a legitimidade do caráter civil. A violên-
cia pode dirigir-se apenas contra as propriedades, como ocupações for-
çadas de terrenos ou fábricas, quando for imprescindível para o êxito da
campanha. A desobediência civil possui índole pacífica, mas está facul-
tada a tática de empregar a força, quando esta significar o fortalecimen-
to dos meios de expressão democráticos.100
Assim, a abrangência do requisito não-violência limitar-se-ia tão-
somente à violação de direitos individuais (v.g. vida, integridade física
e liberdade), não atingindo a propriedade material – patrimônio públi-
co ou privado. 
Muito embora relativizados os requisitos publicidade e não-violên-
cia, em face das circunstâncias particulares das instituições totais,
entende-se como absolutos os pressupostos da proporcionalidade entre
os bens em litígio e o emprego racional dos meios. Na relação de propor-
cionalidade entre os bens, a situação de violência imposta pela
ação/omissão estatal não justifica o emprego da violência contra a vida
ou a integridade física das pessoas implicadas no problema (funcioná-
rios da administração carcerária ou terceiros) – a esfera do outro fica
intocada.101 No entanto, excluindo os direitos fundamentais das pes-
soas, qualquer outro bem jurídico pode ser danificado pela inexigibili-
dade de sacrifício daquele ameaçado/lesado. 
Quanto à utilização dos meios, a admissibilidade da violência con-
tra o patrimônio é instrumental, visto ser uma das únicas formas de
ação disponível no interior do cárcere. Ou seja, ocupação de prédios,
depredação e/ou incêndio de bens da instituição ou de uso pessoal,
fugas individuais ou coletivas, greves de fome entre outros, constituem
meios idôneos. Exclui-se, no entanto, por falta de racionalidade e pro-
Pena e Garantias
249
100 Costa, ob. cit., p. 51.
101 Viana, Direito de Resistência, p. 84.
Na atual situação dos presídios brasileiros, os conflitos prisionais
adquirem feição de ato político reivindicatório e, assim como foram as
greves na década de setenta, adquirem a característica da licitude,
como visualiza Armida Bergamini Miotto.98
6.3.4. Direito de resistência: condições de possibilidade 
da descriminante supralegal
Da diferenciação entre direito de resistência, estado de necessida-
de e legítima defesa decorre a necessidade de formulação de pressu-
postos de aceitabilidade da ação tutelar, sob pena de legitimação de
condutas bárbaras.
As particularidades da situação existente no interior das institui-
ções totais inviabilizam, e por conseqüência descartam, alguns dos
pressupostos tidos como necessários pelos doutrinadores do direito de
resistência.
O primeiro requisito que se encontra prejudicado pela peculiarida-
de da situação fática é a publicidade da conduta. Por se tratar de insti-
tuição total, cujo princípio configurador é o do isolamento, sendo decor-
rência natural a não visibilidade, a necessidade de publicização da
ação inviabilizaria totalmente o ato reivindicatório. Apesar de el carác-
ter público ser uno de los rasgos definitórios de la desobediencia civil
que deriva directamentede la filosofía que subyace a esta forma de pro-
testa,99 entende-se como relativa a publicização da conduta devido às
circunstâncias particularíssimas do cárcere. 
O requisito da publicidade diz respeito à negativa de ocultação do
fato e de sua autoria, ou seja, é a forma com a qual a sociedade apreen-
de a manifestação. No caso prisional, porém, a ocultação decorre da
ação do próprio sujeito violador, excluindo, assim, a absolutização do
requisito.
O segundo pressuposto a ser analisado é a questão do alcance do
termo não-violência, visto ser um dos pontos pacificamente partilhados
pelos autores que tratam o tema.
A expressão não-violência é tradução do vocábulo sânscrito ahim-
sa. Seu fundamento é radicado nos julgamentos éticos que concebem a
violência como negação da humanidade, retirando-lhe, pois, toda e
Salo de Carvalho
248
98 Miotto, ob. cit., p. 300.
99 Estévez Araujo, ob. cit., p. 146.
Os autores contemporâneos consideram imprescindível o elemen-
to subjetivo nas causas de justificação,106 por entenderem que a atual
estrutura da teoria do delito exige avaliação do aspecto cognitivo e
volitivo na relação entre a conduta do agente e o resultado por ele pro-
duzido. Requisitos objetivos e subjetivos são constantes em todos os
níveis de avaliação no estudo estratificado do delito (tipicidade, ilicitu-
de e culpabilidade), sobretudo após o finalismo welzeliano.
6.3.5. Direito de resistência: efeitos jurídicos
Estévez Araujo sustenta que toda doutrina que nega a justificação
jurídica do direito de resistência sólo puede sustentarse desde los pre-
supuestos de un positivismo estricto o de un decisionismo de corte auto-
ritario.107
O ius resistentiae está inserido no rol dos direitos fundamentais do
cidadão como instrumento subsidiário de tutela dos direitos primários
– de todos direitos é abrigo, é instrumento, é braço o direito de resistên-
cia: abrigo e escudo para a defesa passiva da imobilidade expectante;
instrumento e braço para a reacção activa pela força.108
Entretanto, ao contrário do que é anunciado com freqüência pela
teoria política, sustenta-se a tese de que não há fundamentação legíti-
ma da decisão que submete os resistentes às sanções previstas em lei. 
Os tradicionais teóricos da desobediência afirmam que a aceita-
ção da penalidade por parte do agente seria pré-condição do ato, ou
seja, a submissão do indivíduo à lei contrariada seria pré-requisito da
ação desobediente, pois reafirmaria o respeito do grupo pela legalida-
de estatal.
Ora, se se trabalha na esfera dos direitos fundamentais (‘direito’
de resistência) – e com razão Maria Garcia afirma ter sido este direito
incorporado pela Constituição em seu art. 5o, § 2o, como direito público
subjetivo109 –, se se fala de reivindicações ‘justas’ contra a violação de
Pena e Garantias
251
106 Entre os autores nacionais que adotam esta postura, conferir Fragoso, ob. cit., p. 185;
Santos, Teoria do Crime, pp. 49-58; Reale Jr., ob. cit., pp. 218-219; Mestieri, ob. cit., pp.
183-184; Pierangelli, O Consentimento do Ofendido na Teoria do Delito, pp. 48-49; Toledo,
Princípios Básicos de Direito Penal, p. 173. Zaffaroni & Pierangeli, Manual de Direito Penal
Brasileiro, pp. 577-578.
107 Estévez Araujo, ob. cit., p. 145.
108 Barbosa, ob. cit., p. 293.
109 Garcia, Desobediência Civil, pp. 259- 265. No mesmo sentido, Repolês, Desobediência
Civil como direito fundamental no Estado Democrático brasileiro, pp. 143-149 e Esteves,
A constitucionalização do Direito de Resistência, pp. 195-224.
porção, por exemplo, a tomada de reféns e o sacrifício de companheiros
de cela.102
Todos os requisitos avaliados até o momento são de ordem objeti-
va: (a) publicidade possível da ação, (b) não-violência contra a pessoa,
(c) proporcionalidade entre os bens em litígio e (d) emprego racional
dos meios. Cabe, porém, realizar o debate da necessidade da ação ser
realizada conscientemente (cognição da realidade fática que legitima a
conduta) com o fim de defender-se, ou seja, a (im)prescindibilidade do
elemento subjetivo.
Nélson Hungria103 chama atenção para o fato de que as justifican-
tes seriam mais propriamente conceituadas como descriminantes ou
‘causas objetivas de exclusão de crime’. Com a presença de tais cau-
sas, o fato exsurge intrinsecamente lícito (e não apenas justificado in
concreto), inexistindo crime. Diz o autor que a doutrina penal dominan-
te é aquela que exclui qualquer interferência do ‘estado psicológico’ do
agente. Para tanto, cita Pozzolini, o qual sustenta que a ação que exter-
namente tem as características de ação criminosa torna-se legítima
quando ocorre aquela determinada situação de fato, constituída pelos
assim chamados casos de justificação. Todo conceito de imputabilidade
e de elemento subjetivo é estranho a esta definitiva concepção das cau-
sas de justificação: é a natureza intrínseca da ação, objetivamente con-
siderada, que a faz legítima em si e por si.104
Desde outro ponto de vista, Muñoz Conde defende que para justi-
ficar uma ação típica não basta que se dê objetivamente a situação jus-
tificante, sendo preciso, ademais, que o autor conheça essa situação e,
inclusive, quando assim se exija, tenha as tendências subjetivas espe-
ciais que a lei impõe para justificar sua ação.105
Salo de Carvalho
250
102 Wanda de Lemos Capeller, ao avaliar o relatório da HRW/Americas de 1989, lembra:
sobre las condiciones materiales de vida dentro de las cárceles, podemos leer que ‘en Rio,
en particular, el sistema carcelário generalmente trata a los seres humanos peor que al
ganado recogido para ser llevado al matadero’. Y, dicen incluso que ‘la única forma efecti-
va de protesta que tienen los presidiários para denunciar las pésimas condiciones en que
viven es asesinar a un compañero de prisión. Solamente así consiguen atraer la atención
de las autoridades (Capeller, Derechos Humanos y Cárcel, pp. 98-99). De igual modo, rela-
ta Kiko Goifman que na capital mineira institucionalizou-se a ‘ciranda da morte’, justifi-
cada pela escassez de espaço: em celas superlotadas é feito um sorteio, na maior parte
simulado, de onde sairá o nome do preso que morrerá. Violenta estratégia para chamar
atenção de autoridades para a precariedade institucional, a eficácia dessa conduta esbar-
ra na banalização da morte (Goifman, Sobre o Tempo na Prisão, p. 15).
103 Hungria, ob. cit., pp. 267-268.
104 Apud Hungria, ob. cit., p. 268.
105 Muñoz Conde, ob. cit., p. 94.
das é a exclusão da ilicitude do ato em face da recepção do direito de
resistência como causa supralegal.112
As causas de exclusão (dirimentes ou exculpantes) positivadas
representam, em realidade, exercícios de direito. Contudo, ensina
Pierangelli que as descriminantes não constituem sistema unívoco e
formal que se exaure nos limites dos Códigos.
Seria errôneo, nota o autor, pensar-se que as justificativas conti-
das no Código Penal estabelecem as fronteiras divisórias do lícito com
o ilícito. Podem representar uma delimitação expressa, mas não esgo-
tam as causas de justificação. Assim, em todos os casos em que a con-
duta não contradiz o direito, carece da essência antijurídica; tanto assim
é, que não se apresentam antijurídicas quando subsumível em algumas
causas de justificação que o Código Penal recolhe e regulamenta.113
As categorias supralegais de exclusão do delito, em nível de tipi-
cidade (princípio da insignificância e princípio da adequação social),
ilicitude (consentimento do ofendido) e culpabilidade (inexigibilidade
de comportamento diverso), informam e possibilitam ao direito penal
um grau de comprometimento e harmonia com a realidade social.
São teorias elaboradas a partir de recorte jurídico-sociológico,
estruturadas em concepções materiais de racionalidade, que viabili-
zam a inclusão e recepção de novas demandas sociais pelo direito
penal, restabelecendo o vínculo genético entre as instituições jurídicas
e a estrutura social.
Neste sentido, Frederico Marques, ao analisar a questão das cau-
sas supralegais nos atos sem ofensa, sustenta: tal problemaestá liga-
do ao das fontes das regras jurídico-penais, e, por isso, não nos parece
que se possa, a priori, repelir a possibilidade de justificativa supralegal.
O legislador não é onisciente, não lhe sendo dado o dom de prever todas
as hipóteses e casos que a vida social possa apresentar nos domínios do
Direito Penal. Se as limitações do princípio da legalidade, impostas no
Estado de Direito para salvaguarda do jus libertatis, não permitem
suprir as omissões e lacunas das normas penais incriminadoras amplian-
do-se-lhes o campo de incidência através da analogia e dos instrumen-
tos de heterointegração normativa (os costumes e os princípios gerais de
Pena e Garantias
253
112 Interessante discussão sobre a localização do direito de resistência entre as descrimina-
tes ou exculpantes em Roxin, Derecho Penal, pp. 532-536, e Jacobs, Derecho Penal, pp.
731-733. Na literatura nacional, em Santos, A Moderna Teoria do Fato Punível, pp. 264-267
e Dotti, Curso de Direito Penal, p. 428.
113 Pierangelli, ob. cit., p. 56.
bens jurídicos fundamentais por inadimplemento estatal, não se pode
aceitar tal assertiva. Advoga-se, pois, que a exigência de submeter o
cidadão ao poder repressivo é despótica.
O direito de resistência, como leciona Canotilho, é a ultima ratio do
cidadão que se vê ofendido nos seus direitos, liberdades e garantias, por
actos do poder público ou por acções de entidades privadas.110 Logo, ine-
xigível seria submeter os atores aos efeitos penais e/ou administrativos. 
No caso penitenciário brasileiro, a observação empírica permite
constatar a brutal violação da legalidade constitucional pelos organis-
mos públicos responsáveis pela execução da pena. O direito de resis-
tência, representado pela politicidade das condutas desobedientes
(fugas, rebeliões e motins), exsurge, pois, como possibilidade única, e
última, de resgate dos direitos dos encarcerados.
A propósito, lembra Lenio Streck,111 ao apreciar a lei que estabe-
leceu a obrigatoriedade do Estado em indenizar os familiares das pes-
soas mortas ou desaparecidas em razão de atividade política contra o
regime militar, que o próprio Estado reconhece, em certas ocasiões, o
direito ao exercício da resistência, confessando formalmente práticas
ilegítimas contrárias ao Estado democrático de direito.
Com o labor investigativo da sociologia jurídica contemporânea
direcionada ao reconhecimento da existência de novos sujeitos e de
novas fontes produtoras de juridicidade face à insuficiência das fontes
clássicas, criam-se novas possibilidades para o resgate da cidadania
do preso. O paradigma garantista impõe à estrutura normativa a recep-
ção destes direitos que muitas vezes contrapõem a legalidade estrita e
o positivismo rasteiro.
A inventividade democrática em seu processo de criação, ruptura
e renovação de direitos e garantias, vincula o pensamento humanista
ao reconhecimento de um sistema de necessidades humanas funda-
mentais que, se violadas, independentemente do status jurídico da
pessoa, legitimam a resistência. Somente poderá ser legítima, porém,
se ancorada por motivação justificada no total e absoluto respeito à
cidadania.
Em harmonia com os caminhos sugeridos pela teoria crítica do
direito, entende-se que a forma de justificar as condutas da massa car-
cerária contra a situação de violência constante a que estão submeti-
Salo de Carvalho
252
110 Canotilho, Direito Constitucional, p. 676.
111 Streck, O ‘Caso Marighella’ e a Lei 9.140/95, p. 54.
de tudo quanto possa ocorrer, de futuro, ao serem postos em vigor os
preceitos que a regra legislativa contém.116
Defendendo as fugas, rebeliões e motins como uma das poucas
ações possíveis, no universo prisional, para manifestação e publiciza-
ção das reivindicações em virtude da obstaculização fomentada pelos
mecanismos de (re)produção do poder, classificam-se tais atos como
formas de exercício de direitos.
Presumir a legalidade das ações administrativas em sede de exe-
cução penal é padecer daquela mesma ingenuidade que supõe a cons-
titucionalidade das leis pelo simples fato de serem Lei. Não só o labor
legislativo, mas, principalmente, o exercício do poder tende à ilegalida-
de. Afirmava o jurisconsulto italiano Orlando que, quando o funcioná-
rio age ilegalmente, perde sua qualidade; ele se assemelha a um priva-
do qualquer, que moleste a outro.117 Nestes casos, sustentava Rui
Barbosa, nenhum outro limite deverá o indivíduo lesado respeitar senão
aquele da legítima defesa, não se verificando nenhum dos dois elemen-
tos constitutivos do delito: não o elemento intencional, visto que a resis-
tência se determinou pela ilegitimidade do acto; não o elemento objecti-
vo, porquanto não se tolheu um acto de justiça, antes se obstou à consu-
mação de um acto injusto.118
Assim, os conflitos carcerários previstos nos tipos dos arts. 352 e
354 do CP e nos dispositivos da LEP, quando justamente motivados,
teriam (deveriam ter) sua ilicitude excluída. Apesar de típico, o fato
estaria sob a chancela da cláusula supralegal, tornando-se lícito.
Passível de resposta penal restariam apenas as ações de violência pra-
ticadas contra as pessoas durante os conflitos.
Pena e Garantias
255
116 Marques, ob. cit., p. 144.
117 Apud Barbosa, ob. cit., p. 290.
118 Idem, pp. 289-290.
direito), – o mesmo não sucede com os preceitos contidos na lei penal
sobre a esfera dos atos sine injuria praticados no exercício do que Arturo
Rocco denominava de direito penal de liberdade.114
É natural, pois, que emerjam dinamicamente na sociedade, em
contraste com a produção e manutenção estática das normas penais,
novos sujeitos de direito com novas demandas cujo teor democrático
das reivindicações deve ser recepcionado como instrumento de resolu-
ção dos conflitos contemporâneos.
Importante salientar, contudo, que a recepção das causas suprale-
gais limita-se exclusivamente à restrição da incidência do direito
penal, ou seja, são causas de exclusão da tipicidade (insignificância e
adequação social), culpabilidade (inexigibilidade de comportamento)
e, no caso, de ilicitude (consentimento do ofendido e direito de resis-
tência). Nunca, porém, de inclusão. 
A produção normativa não-institucionalizada nasce da ampliação
dos espaços de participação democrática, dos espaços públicos não-
estatais. Cabe, assim, filtrar negativamente estas demandas a partir
de um rol principiológico valorativo para avalizar as condições de sua
recepção e do seu reconhecimento pelo ordenamento jurídico.
Os limites da aceitação de reivindicações pelos novos sujeitos de
direito, localizados à margem do ordenamento jurídico como a ‘massa
carcerária’, estão restringidos no valor tolerância. Wolkmer chama
atenção que excluem-se da legitimidade aqueles movimentos sociais
não identificados com as ações civis e políticas justas, e com os interes-
ses do povo marginalizado, oprimido e espoliado, bem como aqueles gru-
pos associativos voluntários que não questionam a ordem injusta e a
estrutura de dominação.115
Desde esta concepção, plenamente possível a inclusão das reivin-
dicações dos presos na esfera da juridicidade, visto serem suas deman-
das absolutamente legítimas, fundamentalmente porque seu escopo é
o de efetivação da própria legalidade estatal sonegada. 
Assim, olhar para o art. 23 do Código Penal e concluir, em segui-
da, que ali estão previstas, de maneira exaustiva e perfeita, todas as
formas de exclusão da ilicitude, é supor que os fatos sociais se amol-
dam submissamente às categorias abstratas da legislação. Ou ainda,
que a elaboração da lei sempre se realiza com perfeita e integral visão
Salo de Carvalho
254
114 Marques, ob. cit., p. 143.
115 Wolkmer, Pluralismo Jurídico, p. 289.sob a perspectiva de medidas sanitárias e educacionais – a linha
de um Estado social preventivo, multiplicam-se as políticas sociais sus-
ceptíveis de conter o crime antes de acontecer: as questões da habita-
ção, dos bairros difíceis, da droga, do abandono escolar são objeto de
uma enorme atenção.4
Todavia, com a crise do Estado providência, desde a gradual pre-
dominância da razão mercadológica em detrimento das garantias
sociais, o discurso (oficial) sobre a segurança pública, e nele o carcerá-
rio, é novamente alterado.
Segundo os gestores da crítica ao modelo político-econômico
social, sobretudo Hayek e Friedman, as possibilidades de arcar com os
compromissos do Estado providência seriam irreais. Como lembra
Jacinto Coutinho,5 na visão dos corifeus do discurso neoliberal o
Estado de bem-estar tornara-se um mastodonte, incapaz de cumprir
suas promessas (segurança-prevenção).
A saída para a proclamada crise seria a minimização do Estado, a
flexibilização dos direitos (individuais e sociais) e a privatização das
empresas públicas prestadoras de serviços, como forma de reduzir o
déficit fiscal.
O incremento do projeto político de enxugamento do Estado pro-
duziu, fundamentalmente a partir da década de 80, nos países centrais
de economia avançada, o desmonte do Welfare State. Não obstante,
inviabilizou, nos países periféricos, nos quais o Estado social foi um
simulacro, a possibilidade de atingirem relativo grau de justiça social
com a implementação de políticas públicas imprescindíveis à organiza-
ção da vida cotidiana (distribuição equânime de riqueza, reforma agrá-
ria, erradicação da miséria, otimização e acesso das populações caren-
tes aos serviços de saúde e educação, melhoria nos sistemas de previ-
Salo de Carvalho
214
4 Idem, p. 381.
5 Coutinho, O papel do pensamento economicista no direito criminal de hoje, p. 300.
de consumo para o rápido desaparecimento dos dispositivos do estado
de bem-estar.14
Assim, na atualidade, a resposta estatal ao desvio punível adqui-
re, cada vez mais, uma função de neutralização dos inconvenientes,
operando, sob uma perspectiva econômica, na gestão da miséria e da
exclusão social. Não obstante, agregando à pena a exigência de auto-
conservação do sistema político, as doutrinas funcionalistas potencia-
lizarão este quadro, fornecendo eficaz discurso de justificação ao ‘efi-
cientismo penal’.
Ao optar por esquemas pré-seculares de robustecimento moral, os
modelos justificacionistas sistêmicos direcionarão a pena à manuten-
ção da fidelidade dos cidadãos nas instituições.15
Vê Ferrajoli que, ao reduzir o indivíduo a um ‘subsistema físico-
psíquico’, funcionalmente subordinado às exigências do sistema social
geral, tal doutrina é acompanhada inevitavelmente de modelos de direi-
to penal máximo e ilimitado, programaticamente indiferentes à tutela
dos direitos da pessoa.16 No mesmo sentido Baratta: la teoria de la pre-
vención-integración es funcional respecto del actual movimiento de
expansión del sistema penal y de incremento, tanto en extensión como
en intensidad, de la respuesta penal.17
As ‘novas’ doutrinas penais de viés sistêmico-funcionalista,18
auferindo à sanção funções de integração social pelo fortalecimento da
Pena e Garantias
217
14 Bauman, O mal-estar da Pós-modernidade, p. 78.
15 Sustenta Jakobs que não se pode considerar como missão da pena evitar lesões de bens
jurídicos, pois su misión es más bien reafirmar la vigencia de la norma, debiendo equipa-
rarse, a tal efecto, vigencia y reconociminto. El reconocimiento puede tener lugar en la
conciencia de que la norma es infringida; la expectativa (también la del autor futuro) se
dirige a que resulte confirmado como motivo del conflicto la infracción de la norma por el
autor, y no la confianza de la víctima en la norma. En todo caso, la pena da lugar a que la
norma siga siendo un modelo de orientación idóneo. Resumiendo: misión de la pena es el
mantenimiento de la norma como modelo de orientación para los contactos sociales.
Contenido de la pena es una réplica, que tiene lugar a costa del infractor, frente al cues-
tionamiento de la norma (Jakobs, Derecho Penal, pp. 13-14).
16 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 264.
17 Baratta, Integración-prevención: una ‘nueva’ fundamentación de la pena dentro de la teo-
ria sistemica, p. 15.
18 Segundo Ferrajoli, no plano sociológico, a teoria sistêmica de Jakobs não acrescenta
nada à teoria do desvio de Durkheim, que havia concebido a pena como fator de esta-
bili-zação social, reafirmando os sentimentos coletivos e deixando coeso o corpo social.
No entanto, a teoria de Durkheim nunca pretendeu oferecer uma justificação, apenas
dar uma explicação à pena. Ao contrário, o modelo sistêmico converte-se, na atualida-
de, em uma ideologia de legitimação apriorística do direito penal e da pena (Ferrajoli,
ob. cit., p. 264).
razão das restrições econômicas, mas por qualquer característica que
as possa diferenciar (raça, nacionalidade, religião et coetera). Contudo,
o autor é ainda mais drástico em sua anamnese: certas pessoas (por
mais terrível que seja colocar no papel) simplesmente não servem: a eco-
nomia pode crescer sem a sua contribuição; de qualquer modo que se
lhes considere, para o resto da sociedade tais pessoas não representam
um benefício, mas um custo.11
Ao descartar a pessoa como valor, visto supérflua nesta nova
ordem, projeta-se a necessidade de maximização dos aparatos de con-
trole penal/carcerário. A alternativa ao Estado providência, portanto,
passa a ser o ‘Estado penitência’, configurando uma máxima que pare-
ce ser a palavra de ordem na atualidade: Estado social mínimo, Estado
penal máximo. Tudo porque, ‘algum’ lugar deve ser reservado aos
‘inconvenientes’ – nas atuais circunstâncias, o confinamento é antes
uma alternativa ao emprego, uma maneira de utilizar ou neutralizar
uma parcela considerável da população que não é necessária à produção
e para a qual não há trabalho ‘ao qual se reintegrar’.12 Gesta-se, no inte-
rior dessa ideologia, uma saída plausível para aqueles que foram des-
tituídos da cidadania: a marginalização social potencializada pelo
incremento da máquina de controle penal, sobretudo carcerária. 
Como percebe Eduardo Faria, com o processo de globalização e a
gradual simbiose entre marginalidade social e marginalidade econômi-
ca, as instituições jurídicas dos Estados são obrigadas a concentrar
sua atuação na preservação da ordem e da segurança, assumindo
papéis eminentemente punitivo-repressivos. Os ‘não-cidadãos’, porém,
apesar de destituídos de seus direitos subjetivos públicos, não são dis-
pensados de suas obrigações estabelecidas nas leis penais. Dessa
forma, enquanto o Estado no âmbito dos direitos sociais e econômicos
vive hoje um período de refluxo, no direito penal a situação é oposta. O
que aí se tem é a definição de novos tipos penais, a criminalização de
novas atividades em inúmeros setores da vida social, o enfraquecimento
dos princípios da legalidade e da tipicidade por meio do recurso a regras
sem conceitos precisos, o encurtamento das fases de investigação crimi-
nal e instrução processual e a inversão do ônus da prova.13
Idêntica é a conclusão de Bauman, ao diagnosticar que a incrimi-
nação parece estar emergindo como o principal substituto da sociedade
Salo de Carvalho
216
11 Dahrendorf, ob. cit., p. 33.
12 Bauman, Globalização: as conseqüências humanas, pp. 119-120.
13 Faria, Globalização e direitos humanos, p. 12.
chamadas de espaços disciplinares. Façamos uma visita a nossas dele-
gacias, onde muitos detentos cumprem penas irregularmente, e vejamos
que eles estão literalmente amontoados – aqueles corpos promiscuamen-
te misturados, sem qualquer atividade, sem classificação, sem número,
permanecendo ali por meses ou até anos. Ou mesmo em penitenciárias,
onde o diretor freqüentemente não sabe qual é o efetivo carcerário, não
sabe quantos presos têm direito a benefícios, o que configura uma reali-
dade bem pouco ‘panóptica’.21 Seguindo a perspectiva da autora,
poder-se-ia afirmar quenosso sistema de execução penal encontra-se,
ainda, numa fase de ostentação dos suplícios, em momento de rituali-
dade artística na imposição de dor e sofrimento, num verdadeiro perío-
do de selvageria gótica. 
Se Rossi constatou que o modelo inquisitorial era a poesia de Dante
posta em lei,22 entende-se possível a paráfrase de que o sistema peni-
tenciário brasileiro se traveste na poesia de Dante posta em execução.
Advogar, porém, que o sistema executivo não constitui empirica-
mente espaço disciplinar não significa falar em vazios de poder. Trata-
se de um campo social não homogêneo, organizado em mosaico, onde
norma e repressão se agenciam de modo bizarro, produzindo no entan-
to dispositivos de elevada eficácia no sentido de seus efeitos de controle
social.23 O discurso disciplinar incorporado pela LEP perpassa trans-
versalmente as práticas e, legitimado normativamente, impede qual-
quer possibilidade de resistência dos apenados contra as violências do
poder público.
A tese ganha concretude na metáfora proposta por Marcos Rolim:
se os presídios podem ser equiparados ao labirinto da mitologia grega,
onde o Rei Minos recebia, anualmente, seu tributo de sangue, podería-
mos afirmar que o Estado cumpre aqui a função da terrível criatura –
metade homem, metade touro. Primeiro, assegura que os presos experi-
mentem o cárcere como privação absoluta. Amontoados como restos em
corredores úmidos e fedorentos, os presos gaúchos, em regra, experi-
mentam a pena em galerias; onde estão, às vezes, mais de uma centena
deles. Entenda-se: o regime prisional efetivo no Brasil – absolutamente
ilegal – é o da prisão coletiva onde estão todos os tipos de delinqüentes
separados não pela gravidade dos crimes pelos quais foram condenados,
mas, normalmente, pelos laços de pertencimento, fidelidade, ou submis-
Pena e Garantias
219
21 Rauter, Manicômios, Prisões, Reformas e Neoliberalismo, p. 72.
22 Apud Foucault, Vigiar e Punir, p. 34.
23 Rauter, ob. cit., p. 72.
crença nos aparelhos de controle formal, atuam como sustentáculo
deste Estado penal.
6.1.2. O carcerário: perspectiva periférica
O grau de irracionalidade dos aparelhos repressivos do Estado na
América Latina, fruto das novas relações político-econômicas, coloca
em dúvida o processo civilizatório da região.
Na execução da pena, constantes e insolúveis problemas revelam
fatos cuja simples observação faz transparecer os mais fortes traços da
barbárie: o irracionalismo, a inexistência de garantias e a tolerância às
práticas penais genocidas.19 A tese ultrapassa o âmbito acadêmico e é
percebida pelos operadores do direito.20
Desde esta perspectiva, lícito seria afirmar que o discurso discipli-
nar estaria em baixa sintonia com o cotidiano das instituições carcerá-
rias. Assim, a realidade prisional brasileira revelaria formas de exercí-
cio de poder que não poderiam ser catalogadas como ‘disciplinares’.
Cristina Rauter, em esclarecedor ensaio, revela: lancemos um olhar
sobre nossas prisões e veremos que elas não podem rigorosamente ser
Salo de Carvalho
218
19 Para Zaffaroni, a atuação de nossos sistemas penais caracteriza um genocídio em anda-
mento dado o fato de que o genocídio colonialista e neocolonialista, em nossa região mar-
ginal, não acabou: nossos sistemas penais continuam praticando-o e, se não forem detidos
a tempo, serão eles os encarregados de um genocídio tecnocolonialista (Zaffaroni, Em
Busca das Penas Perdidas, pp. 123-125).
20 Em carta aberta, publicada pelo periódico espanhol ‘Jueces para la Democracia’, Amilton
Bueno de Carvalho alerta Perfecto Ibañez sobre a situação carcerária brasileira: la situa-
ción penitenciaria en Rio Grande do Sul (y en el resto del país) es caótica. El presidio
Central de Porto Alegre tiene capacidad para alojar a 660 personas, pero está ocupado por
1.800 aproximadamente. Celdas de ocho metros cuadrados albergan a seis personas. En
determinadas penitenciarias, los presos duermen por turnos, devido a la falta de camas
(unos por la mañana, otros por la noche, otros por la tarde); unos duermen en el suelo, otros
de pie, atándose a las rejas; la alimentación es propia de animales (algunos comen con las
manos). Las violación de los derechos humanos es algo escandaloso y corriente (un colega
encontró en una celda un preso herido de bala treinta días antes, que no había sido socor-
rido; otro apeleado por agentes penitenciarios, con fracturas, también sin atención). Los
familiares de los presos, con ocasión de las visitas, sea cual fuera la edad, sufren examen
visual ginecológico y anal, por parte de los encargados de la seguridad, que, según ellos,
están preocupados por la entrada de drogas en el presidio (es la revista íntima). Además,
está el problema del SIDA, que alcanza a un porcentaje de en torno al 25 por 100 de los
presos (aquí el drama es fuerte: condenar alguien a presidio, donde probablemente será
victima de violencia sexual, implica la probabilidad de resultar contaminado). Pero hay
más, mucho más, que necesitaría un libro para ser descrito. En suma, casi todo recuerda,
para peor, a las mazmorras de la Edad Media (Carvalho, Sobre la Jurisdicción Criminal em
Brasil, p. 84).
a normatividade e o cotidiano acaba por gerar situação indescritível: a
brutalização genocida da execução da pena.
Contra este regime de ilegalidades toleradas pelo poder público
restam poucas alternativas aos apenados vítimas da violência oficial. 
Ademais, as reações às péssimas condições de vida nas prisões
são tipificadas penal e administrativamente. Em casos extremos, quan-
do da agudização das relações intramuros, os ‘indisciplinados’ são eli-
minados em execuções extrajudiciais – no correr da última década as
condições vigentes nos presídios brasileiros desencadearam uma onda
de protestos, rebeliões e tentativas de fuga. A maioria dos casos de rebe-
lião de presos foi esmagada pela polícia, muitas vezes com o uso de força
letal. É comum o espancamento em represália pela revolta de presos e
há provas de ter a polícia, no passado, levado a cabo execuções extraju-
diciais em conseqüência de rebeliões em presídios.26
Mesmo assim, ciente das conseqüências do ato sedicioso, a massa
carcerária acaba por encontrar em condutas ilícitas (fugas, rebeliões e
motins)27 a única maneira eficaz de romper com o silêncio totalitário
dos muros prisionais. Tais manifestações geram o fenômeno da ‘confli-
tividade carcerária’.28
Pena e Garantias
221
as Prisões) da Pastoral Carcerária da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB);
em 1998, do documento da Human Rights Watch (HRW/Americas – O Brasil Atrás das
Grades); e, em 1999, o relatório sobre os presídios brasileiros divulgado pela Anistia
Internacional (Aqui Ninguém Dorme Sossegado: Violações dos Direitos Humanos contra
Detentos’).
No entanto, a falta de periodicidade do Censo Penitenciário e o direcionamento do traba-
lho das ONG’s de direitos humanos para outros campos mitigou a possibilidade de atua-
lização, o que levou à opção de suprimir os relatórios.
26 Anistia Inernacional, Chegou a Morte, p. 07.
27 Importante, neste momento, algumas distinções de ordem conceitual. Nomina-se três
possibilidades de conflitos carcerários: fugas, rebeliões e motins. Fuga é o ato ou efeito de
fugir, é a retirada, a saída sem consentimento (Cernicchiaro, Dicionário de Direito Penal,
p. 228). É a evasão da pessoa presa ou do inimputável submetido à medida de seguran-
ça, de forma pacífica ou mediante uso de violência contra a pessoa ou coisa, ou sob amea-
ça. Os motins e as rebeliões são atos de resistência no interior da instituição total.
Cândido Furtado Maia Neto define motim como sublevação de internos contra a adminis-
tração prisional, implicando atitudes de desordem e tumulto, sendo que rebelião é ato ou
efeito de revolta (Maia Neto, Direitos Humanos dos presos, p. 104). Percebe-se, pois, que o
motim se diferencia da rebelião pelo fato de que no primeiro os detentos (amotinados)
tomam conta ou inviabilizam a administração da unidade prisional. Em casos de rebelião
ocorre apenas‘desordem’ e incapacitação parcial das atividades normais da instituição;
é um estágio anterior e/ou preparatório do motim. Diferenciam-se, pois, pelo estágio de
aquisição do controle (parcial ou total) da instituição. Ambos, porém, são movimentos
coletivos de rebeldia e levante contra determinada situação de fato.
28 Além das fugas, rebeliões e motins, não se pode desprezar outros atos que servem como
instrumento reivindicatório. Entre os atos não violentos, lembre-se a greve de fome. No
são a grupos organizados no mundo do crime, na medida da rivalidade
entre eles. Depois de trancafiá-los assim, expondo os mais frágeis a todo
o tipo de violência física ou sexual, o Estado encarrega-se de submeter-
lhes a uma noção de disciplina totalmente heterônoma procurando
alcançar um controle interno equivalente à conduta de corpos dóceis.
Incentiva, então, procedimento como a delação e oferece tratamento pri-
vilegiado aos internos que se revelarem ‘úteis’ ao objetivo de alcançar a
dominação sobre o conjunto da massa carcerária.24
Na periferia, o discurso das disciplinas está aliado às práticas
bárbaras. Coexistem nos mesmos locais de manifestação do poder
penitência. Esta realidade carcerária (normativa e fenomênica) aca-
bou unindo duas faces perversas de modelos hipoteticamente incom-
patíveis, potencializando sua crueldade: o suplício do corpo e a peni-
tência da alma. 
Assim, poder-se-ia dizer que o sistema de controle penitenciário
nacional está empiricamente voltado à penalização corporal; enquanto,
normativamente, tem como norte a pedagogia disciplinar. Conforma,
pois, um modelo otimizado de violação dos direitos fundamentais.
6.2. A ilicitude dos conflitos carcerários
A realidade carcerária brasileira possibilita perceber o alto nível
de ilegalidade das práticas do Poder Público.25 O vácuo existente entre
Salo de Carvalho
220
24 Rolim, O Labirinto, o Minotauro e o Fio de Ariadne, pp. 44-45.
25 Suprimiu-se, nesta edição, o capítulo intitulado ‘O carcerário: a realidade da execução da
pena privativa de liberdade cumprida em regime fechado’. Naquele momento, descreveu-
se a realidade carcerária brasileira, demonstrando os déficits materiais na vida do preso
(saúde, educação, assistência jurídica, trabalho, estudo), bem como os altos índices de
superpopulação nas instituições.
Embora a experiência concreta demonstre que o sistema penal brasileiro, principalmen-
te o modelo de apartação penitenciário, revela indícios de irracionalidade crônica devi-
do às práticas ilegais (comissivas e/ou omissivas) dos poderes, naquele momento houve
a possibilidade de levantar alguns dados. Todavia, sua defasagem e a inexistência de
novos documentos nos forçaram a supressão do item.
É que apenas no final da década de noventa surgiram alguns dados, obtidos por amos-
tragem, sobre a ‘realidade’ carcerária, advindos, não episodicamente, do notável traba-
lho das Organizações Não-Governamentais. As fontes oficiais de informação reduziam-
se às estatísticas quantitativas apresentadas pelo Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária (CNPCP) que, num lapso temporal de dois anos, apresentava o
Censo Penitenciário. O material de pesquisa que possibilitou, naquele momento, razoá-
vel segurança, foram as publicações, em 1997, do ILANUD, sobre a mudança no perfil do
apenado (Sistema Penitenciário: Mudança de Perfil dos Anos 50 aos 90) e da análise final
da Campanha da Fraternidade (A Fraternidade e os Encarcerados: Cristo Liberta de Todas 
requerem sua transferência para penitenciárias, onde a maior parte
deles deveria estar conforme a lei brasileira.33
A tese é comprovada no documento final da HRW/Americas sobre
as condições das prisões brasileiras. O documento demonstra que em
1997, pior ano em registro de incidentes, ocorreram 195 rebeliões em
estabelecimentos sob o controle da Secretaria de Segurança Pública de
São Paulo. A causa dos conflitos, em sua imensa maioria, foi a superlo-
tação – várias vezes, durante todo o ano, presos nos distritos policiais em
São Paulo amotinaram-se pelo direito à transferência para presídios
menos lotados.34 Durante o mesmo período, o Rio Grande do Sul regis-
trou um total de 64 rebeliões, sendo 31 com captura de reféns.
Estudo realizado pelo ILANUD constata que as principais causas
de rebeliões são a demora do Judiciário na apreciação dos direitos dos
presos; a deficiência da assistência judiciária; a violência e injustiças
praticadas nos estabelecimentos; problemas ligados aos entorpecen-
tes; superlotação carcerária; má-qualidade da alimentação, assistência
médica e odontológica; problemas ligados à corrupção; e falta de capa-
citação dos funcionários das penitenciárias, principalmente os direto-
res. Assim, sequer a figura dos crimes contra a pessoa, em si mesmo, no
que ela oferece de negação estúpida do outro, equipara-se à lógica per-
versa que emerge naturalmente do cárcere.35 Pertinente, pois, a coloca-
ção de Cezar Bitencourt: os motins penitenciários são a prova mais evi-
dente da crise que a pena privativa de liberdade enfrenta.36
Pode-se concluir, portanto, que o fenômeno da conflitividade carce-
rária (fugas, rebeliões e motins) tem como principal fato gerador a vio-
lação, por parte das agências formais de controle, da legalidade estatal. 
Entretanto, a manifestação da massa carcerária gera novas incri-
minações, com a incidência de regime de sanções que inviabilizam a
resistência contra as ilegalidades. A ilicitude dos atos de rebeldia
encontra eco nos ordenamentos jurídicos, sujeitando os apenados a
conseqüências de ordem criminal e/ou administrativa.
Importante frisar que a conflitividade deve ser entendida desde
um ponto de vista de normalidade institucional, ou seja, são situações
não-episódicas e indissociáveis dos locais de apartação – as rebeliões
são fato comum nas prisões... se devem ao ambiente anormal, autoritá-
Pena e Garantias
223
33 Cavallaro, Observações da HRW sobre o Sistema Prisional Gaúcho, p. 384.
34 HRW/Americas, O Brasil atrás das Grades, p. 48.
35 Rolim, O Labirinto, o Minotauro e o fio de Ariadne, p. 38.
36 Bitencourt, ob. cit., p. 210.
Cezar Bitencourt, ao analisar a etiologia dos conflitos nas prisões,
chama atenção para o fato de que os motins carcerários são os fatos que
mais dramaticamente evidenciam as deficiências da pena privativa de
liberdade. É o acontecimento que causa maior impacto e o que permite
à sociedade tomar consciência, infelizmente por pouco tempo, das con-
dições desumanas em que a vida carcerária se desenvolve... O motim
rompe o muro de silêncio que a sociedade levanta ao redor do cárcere.29
Conclusões idênticas sobre os conflitos intramuros foram expostas
pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em seu rela-
tório sobre a situação carcerária: os Meios de Comunicação Social noti-
ciam indistintamente fugas, rebeliões e motins. Fugas, sempre se podem
esperar de quem se encontra preso. A rebelião geralmente é protesto con-
tra maus tratos e injustiças, péssimas condições de vida, corrupção, falta
de assistência médica ou jurídica. Pode ser também um modo de fazer
pressão para obter transferência para outro estabelecimento em casos de
violência interna... Normalmente a rebelião é o último recurso dos presos
para defender seus direitos, pois correm o risco de perder tudo: a vida, a
possibilidade de progressão de regime, benefícios judiciais... Mas há
situações em que não agüentam mais, e tentam dizer à sociedade: ‘somos
gente e queremos viver!’30 Como percebe Rolim, os motins acontecem no
lugar da fala; ou, dito de outro modo, são eles mesmos a linguagem pos-
sível daqueles a quem nunca se concedeu a palavra.31
Em realidade, percebe-se que os atos de transgressão às regras
impostas no ambiente carcerário indicam, na grande maioria dos
casos, a única possibilidade de manifestação da massa carcerária con-
tra a constante lesão dos seus direitos. Para Bitencourt, a imensa maio-
ria dos protestos reivindicatórios massivos produzidos na prisão tem sua
origem nas deficiências efetivas do regimepenitenciário. As deficiências
são tão graves, que qualquer pessoa que conheça certos detalhes da
vida carcerária fica profundamente comovida.32
Nota James Cavallaro que as rebeliões mais recentes no Brasil têm
relação direta com as péssimas condições carcerárias e os maus tratos
sofridos nos estabelecimentos prisionais. Os detentos de celas em dele-
gacias superlotadas, nas quais rebeliões são freqüentes, muitas vezes só
Salo de Carvalho
222
entanto, atos de extrema violência, como a execução de companheiros de cela, são igual-
mente utilizados como mecanismo reivindicatório.
29 Bitencourt, Falência da Pena de Prisão, p. 205.
30 CNBB, A Fraternidade e os Encarcerados, § 114-115.
31 Rolim, O que dizem os Motins, p. 01.
32 Bitencourt, ob. cit., p. 209.
como qualquer hipótese de resistência coletiva, positiva ou negativa,
contra ordens ou regulamentos. Desnecessário, portanto, que se prati-
que violência ou ameaças, não exigidos no dispositivo em estudo, confi-
gurando-se a falta também nos movimentos pacíficos de recusa ao tra-
balho, de volta às celas, de ‘greve de fome’, de algazarra etc. Não impor-
ta, também, o fim visado pelo movimento, que pode até ser considerado
‘justo’, como é o de pretender melhores condições de trabalho, oportuni-
dades de recreação etc.; tais reivindicações devem ser efetuadas na
forma dos regulamentos.40
A configuração da evasão prescinde igualmente a violência, bas-
tando sua simples tentativa para ser definida como falta discplinar. 
6.2.1.2. Falta grave: sanção
O cometimento de faltas graves, rompendo com os deveres de ‘boa
conduta’ impostos pela lei, implica, necessariamente, sanções. As san-
ções administrativas cabíveis são o isolamento, a suspensão ou restrição
de direitos (art. 53, III e IV, c/c art. 57, parágrafo único, da LEP) e a regres-
são de regime (art. 118, LEP). Um dos indícios mais notórios do rompi-
mento com o regime de legalidade (taxatividade) é a carência de distin-
ção entre faltas tentadas e consumadas (art. 49, parágrafo único, LEP). 
Muito embora sejam distintas as esferas de ilicitude, não espora-
dicamente as conseqüências da sanção administrativa são capacitado-
ras da sanção penal. A imposição de sanção disciplinar freqüentemen-
te é um aditivo à irrogação de pena privativa de liberdade, daí a
imprescindível judicialização com a transferência dos critérios estabe-
lecidos em matéria penal e processual penal ao campo do direito peni-
tenciário. 
Os efeitos da sanção disciplinar extrapolam a órbita administrati-
va e invadem o processo de execução penal, pois a ‘boa conduta’ é
requisito objetivo para o gozo dos direitos subjetivos. Assim, não obs-
tante ser de natureza administrativa, a decisão sobre as faltas condi-
ciona a avaliação judicial dos incidentes da execução.
O regime progressivo (art. 33, § 2o, do CP e art. 112, da LEP), lapi-
dar de todo o processo executivo, é regido pela concepção meritocráti-
ca na qual o comportamento ‘adequado’ fundamenta a (in)flexibiliza-
ção do cumprimento da pena.
Pena e Garantias
225
40 Idem.
rio e opressivo, e ocorrem por toda a parte, periodicamente.37 Isto posto,
ao invés de tratarmos os motins, simplesmente, como graves atentados
à ordem disciplinar, seria mais correto concebê-los como sintomas, mais
ou menos violentos, dessa mesma ‘ordem’ fundada no seqüestro institu-
cional da cidadania dos encarcerados.38
6.2.1. A admistrativização dos conflitos carcerários
6.2.1.1. Falta grave: previsão legal
O estatuto que regula a execução da pena privativa de liberdade
estabelece padrões de ‘boa conduta carcerária’. Considerada como
dever do preso, a boa conduta é prevista no art. 39 da LEP, concretizan-
do os pressupostos de disciplina e segurança. 
São obrigações dos presos, entre outras, (a) comportamento disci-
plinado e cumprimento fiel da sentença (art. 39, I); (b) obediência ao
servidor e o respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se
(art. 39, II); (c) conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos
de fuga ou subversão à ordem ou à disciplina (art. 39, IV); e (d) submis-
são à sanção disciplinar imposta (art. 39, VI).
Não obstante a LEP elencar a obrigatoriedade do apenado reagir
à evasão, o que em realidade é absolutamente questionável dada a
impossibilidade fática da conduta, no que diz respeito aos problemas
de conflitividade prisional definiu como falta grave a incitação ou par-
ticipação em movimento capaz de subverter a ordem e a disciplina (art.
50, I) e a fuga (art. 50, II).
Para a restrita dogmática que se debruçou sobre o tema, o inciso I
do art. 50 da LEP trata de colaboração (participação) ou estímulo (inci-
tação) dos companheiros à prática de atos de subversão ou indisciplina
de caráter coletivo, incidindo nas mesmas sanções aquele que, conven-
cendo ou estimulando outros presos por meio de discursos, conversas ou
qualquer outro meio a organizarem, deflagrarem ou continuarem com o
movimento de rebeldia.39
O movimento idôneo para subversão da ordem e da disciplina
poderia ser tanto aquele previsto no art. 354 do CP (motim de presos)
Salo de Carvalho
224
37 Fragoso, Direitos dos Presos, p. 22.
38 Rolim, O que dizem os Motins, p. 01.
39 Mirabete, Execução Penal, p. 153.
o regime meritocrático cria regime de (i)legalidades que se impõe e
sobrepõe à sanção, transformando o apenado em objeto passível de
‘benefícios’ segundo sua (in)adaptabilidade à instituição total.
Desde essa percepção realista das relações que se formam no inte-
rior dos muros das prisões é que se sustenta a necessidade de judicia-
lização dos procedimentos. Realiza-se, em realidade, verdadeiro elogio
ao direito e ao processo penal em decorrência da anomia e falta de cri-
térios que vigoram nas entranhas do direito penitenciário.
6.2.2. A criminalização dos conflitos carcerários
6.2.2.1. Evasão violenta
Reza o dispositivo do art. 352 do CP: evadir-se ou tentar evadir-se
o preso ou o indivíduo submetido a medida de segurança detentiva,
usando de violência contra a pessoa: pena – detenção, de 03 (três)
meses a 01 (um) ano, além da pena correspondente à violência.
Segundo a dogmática penal, o ordenamento jurídico não pune a
evasão propriamente dita, porque não se poderia reprimir o anseio
natural de reconquistar a liberdade perdida.42 Jurisprudência e doutri-
na acordam sobre a atipicidade da ação em si, pois o ordenamento
reprime apenas a ‘evasão mediante violência’, diverso, por exemplo, da
tradição penal italiana que pune a ‘evasão pacífica’ (art. 385, CPI).
Conforme Hungria, o legislador brasileiro, embora enamorado do
Código de Rocco, não se deixou convencer de tal argumentação, man-
tendo critério tradicional do nosso direito penal: somente incriminou a
promoção ou facilitação da fuga por obra de terceiro e a evasão acom-
panhada de violência contra a pessoa.43
Tal posicionamento, todavia, parece um tanto redutor, pois transfe-
re ao senso comum teórico dos juristas conseqüências discursivas
alheias à realidade penitenciária, mascarando efeitos perversos como a
aplicação cumulativa de penas e a imposição de sanção administrativa.
O preceito do art. 352 do CP define um crime próprio, pois os sujei-
tos ativos são apenas os presos, independentemente da natureza jurí-
dica da prisão (civil, administrativa ou penal), ou pessoas sujeitas à
medida de segurança (art. 96, inciso I, CP). O sujeito passivo primário
Pena e Garantias
227
42 Costa Jr., Direito Penal, p. 757.
43 Hungria, Comentário ao Código Penal IX, p. 517.
Se a progressão de regime consiste alteração na qualidade da san-
ção, com a transferência para regime menos rigoroso, seus requisitos
são (a) o cumprimento de, ao menos, um sexto da pena, (b) o mérito do
requerente (art. 112 da LEP), e (c) a avaliação criminológica favorável. 
De igual modo, o critério meritocrático molda o instituto da
‘regressão de regime’ (art. 118 da LEP). Segundo o dispositivo, a exe-
cução da pena privativa de liberdade fica sujeita à forma regressiva,
com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando
o condenadopraticar fato definido como crime doloso ou falta grave
(art. 118, incisos I e II, da LEP). Logo, em caso de falta grave (fuga,
rebelião ou motim), a jurisprudência tem sido unânime não apenas em
impedir a progressão, como impor a regressão do regime.
Os efeitos da sanção disciplinar decorrente da fuga, rebelião e/ou
motim não são restritos aos casos de negação de progressão, livramen-
to condicional (art. 83, inciso III, 1a parte, CP) e regressão de regime,
porém. Segundo a LEP, o condenado que cumpre a pena em regime
fechado ou semi-aberto poderá remir, pelo trabalho, parte do tempo de
execução da pena (art. 126, LEP). Apesar de a LEP dispor que o tempo
remido será computado apenas para a concessão de livramento condi-
cional e indulto (art. 128, LEP), o Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária (CNPCP) decidiu pela extensão do critério à
progressão do regime.41 A remição pelo trabalho transforma-se, assim,
em importante mecanismo de redução do tempo da pessoa no cárcere.
Entretanto, se o condenado for punido por falta grave, perderá o tempo
remido, iniciando novo período a partir da data da homologação da
infração disciplinar (art. 127, LEP). A perda da remição pela falta admi-
nistrativa rompe o entendimento de constituir o instituto direito adqui-
rido, reiterando a idéia de os incidentes serem benefícios sujeitos à
condição resolutiva (comportamento carcerário).
Efeitos outros, em sede de execução da pena não privativa de
liberdade, são atribuídos à falta disciplinar, como a revogação da saída
temporária (art. 125, LEP) e a conversão da pena restritiva de direito
em privativa de liberdade (art. 181, §§ 1o, d, e 2o, LEP). 
A quantidade de óbices aos direitos dos presos em decorrência
das sanções administrativas leva a afirmar que o sistema de penalida-
des disciplinares, regulados inquisitorialmente pela LEP, constitui sis-
tema sancionatório autônomo e adicional à pena imposta na sentença
condenatória. Mais que um estatuto regulador do cotidiano do cárcere,
Salo de Carvalho
226
41 Processo MJ no 8.926/94, Diário Oficial da União (DOU) 02/12/1994, p. 18.352.
6.2.2.2. Motim
A regra jurídica que versa sobre o ‘motim de presos’ é encontrada
no art. 354 do Código Penal: amotinarem-se presos, perturbando a
ordem ou disciplina da prisão.
O bem jurídico tutelado é idêntico ao do tipo ‘evasão violenta’, ou
seja, a administração da justiça. É – conforme Magalhães Noronha – a
defesa do prestígio e do valor que devem ter as decisões judiciárias que
impõem pena como meio de reeducação ou readaptação do delinqüente
ou lhe determinam, por outra forma, a restrição da liberdade.49
Os sujeitos ativos do delito são os apenados, por isso o dispositi-
vo legal, qualitativamente, define crime próprio. O sujeito passivo ime-
diato é o Estado, e as pessoas vítimas da violência os sujeitos passivos
mediatos. Quantitativamente, porém, é tipo penal plurissubjetivo,
sendo o crime coletivo ou multitudinário, pois exige a presença de mais
de um agente para que possa ser auferida a tipicidade do fato.50 Logo,
o concurso de pessoas é necessário. Como o número de encarcerados
não foi estabelecido pela norma, entende-se que o número mínimo de
agentes para a configuração do tipo é de três pessoas.
A conduta (amotinar) significa promover movimento rebelde e
desordenado da massa carcerária, desestabilizando a ‘ordem e a
disciplina’ prisional. Por se tratar de crime material, isto é, conduta que
oferece iter que pode ser fracionado,51 admite, apesar da difícil verifica-
bilidade, a forma tentada.52 Há consumação quando do comprometi-
mento da regularidade da instituição prisional. Outrossim, cumpre não
confundir atitudes coletivas de irreverência ou desobediência ghândica
com o motim propriamente dito, que não se configura se não assume o
caráter militante da violência contra os funcionários internos ou de
depredações contra o respectivo edifício ou instalações, com grave per-
turbação da ordem ou da disciplina da prisão.53
Percebe-se, pois, que a ação violenta integra a ação de amotinar-
se, sendo a atitude pacífica mera manifestação reivindicatória ou sim-
ples ato indisciplinado, sujeito a sanção administrativa.
Nélson Hungria define motim como movimento coletivo de rebeldia
dos presos, seja para o fim de justas ou injustas reivindicações, seja para
Pena e Garantias
229
49 Noronha, ob. cit., p. 410.
50 Costa Jr., ob. cit., p. 762.
51 Noronha, ob. cit., p. 411.
52 Miotto, Motim de Presos, p. 298.
53 Hungria, ob. cit., p. 522.
é o Estado, e secundário a pessoa contra a qual é praticada a violência.
Trata-se, no rol de classificação dos tipos, de tipo misto alternativo,
decorrente da previsão de duas formas de realização da conduta: a eva-
são e a sua tentativa. 
Para caracterização da figura típica, a conduta deve ser direciona-
da contra prisão legal – sua ilegalidade constitui circunstância descri-
minante do fato –, não podendo ser confundida com o tipo penal
‘resistência’ regulado no art. 329 do CP (opor-se à execução de ato
legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para
executá-la ou a quem lhe esteja prestando auxílio).
A tipicidade do ato, contrariamente das lições de Hungria,44 ocor-
rerá em situação tanto intra como extramuros (fuga durante transferên-
cia, por exemplo). Importante rememorar ainda que a prisão inicial-
mente legítima pode tornar-se ilegal com o transcurso do prazo de sua
duração,45 caracterizando, assim, a atipia da evasão.
O elemento subjetivo do tipo, segundo Fragoso,46 é específico
(dolo específico), consistindo na vontade livre e consciente dirigida ao
emprego de violência contra a pessoa para o fim de evadir-se.
Magalhães Noronha, de maneira diversa, entende ser o dolo genérico,
constituindo na vontade livre e consciente de praticar o fato, com ciên-
cia de sua antijuridicidade.47
O delito é consumado no momento do emprego da violência con-
tra a pessoa, sendo inadmissível, no caso, a tentativa, pois o legislador
elencou como segunda possibilidade típica a forma tentada. Mister res-
saltar que a mera violência, que se constitui como meio idôneo para a
fuga, preenche todos os requisitos do tipo, sendo a fuga em si, mais
propriamente, um exaurimento de crime já consumado com o início da
execução.48 Como a tentativa é equiparada ao crime consumado, não
há possibilidade de redução na pena pela incidência do art. 14, inciso
II, do CP. Importante frisar, ainda, que o eventual dano ao patrimônio
público não configura delito, impossibilitando o concurso formal sem a
constatação do animus nocendi.
Salo de Carvalho
228
44 Segundo Nélson Hungria, se a fuga ocorrer extramuros, eximindo-se violentamente o agen-
te ao poder de quem o conduz ou transporta, o crime será o de resistência (art. 329), sem
prejuízo, igualmente, das penas correspondentes à violência (Hungria, ob. cit., p. 520).
45 Fragoso, Lições de Direito Penal, p. 546
46 Idem, p. 547.
47 Noronha, Direito Penal, p. 407.
48 Fragoso, ob. cit., p. 547.
Outra questão a ser levantada é relativa à fuga em decorrência do
motim. Se o motim tem como intento a evasão, este passa a ser enten-
dido como crime-meio, absorvido pelo art. 352 do CP. Contudo, se do
motim decorre fuga, haverá concurso formal com o art. 352 do CP.58
6.2.2.3. Fuga e motim: análise crítica
6.2.2.3.1. Crítica de lege lata
A primeira crítica cabível ao tipo penal evasão mediante violência
diz respeito à indiferença entre as formas tentadas e consumadas.
A dogmática jurídico-penal tem sido fértil em demonstrar que ten-
tativa somente pode ser concebida em relação a um tipo principal de
delito. Esta é a regra geral da construção lógico-sistemática do institu-
to. Argumenta Machado que a tentativa representa um defeito de con-
gruência, em que o tipo objetivo fica incompleto e o subjetivo, comple-
to.59 Nada mais é, portanto, que fórmula extensiva dos tipos dolosos
para abranger o iter imediatamente anterior à consumação.60
Não obstante a existência de vertentes diametralmente opostas
no concernente ao fundamento da puniçãoda tentativa (v.g., teoria
objetiva e teoria subjetiva ou periculosista), o tratamento do delito ten-
tado tomou nítido delineamento no ordenamento jurídico nacional. A
regra geral do art. 14 do CP, adotando a teoria objetiva, estabelece dife-
renças inquestionáveis entre as condutas delituosas consumadas e
tentadas, obrigando o julgador à redução da pena quando, iniciada
execução, o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vonta-
de do agente.
Pune-se, pois, a tentativa, pelo perceptível e verificável perigo ao
bem jurídico tutelado. Incrimina-se a ação de tentar consumar um
crime, pois, por meio de atitudes univocamente dirigidas a um resulta-
do delituoso, revela-se o desrespeito ao valor que dá fundamento ao
tipo penal, criando-se situação de perigo a um bem jurídico.61 Assim, o
núcleo da punibilidade da tentativa não reside na vontade ou ‘tendên-
cia criminosa’ (periculosidade) do autor.
Pena e Garantias
231
58 Sobre o tema, conferir Fragoso, ob. cit., p. 550 e Miotto, ob. cit., p. 299.
59 Machado, Direito Criminal, p. 155.
60 Zaffaroni & Pierangelli, Da Tentativa, p. 27.
61 Reale Jr., Teoria do Delito, p. 200.
coagir os funcionários a tal ou qual medida, ou para tentativa de evasão,
ou para objetivos de pura vingança.54 Indica o autor que o tipo subjeti-
vo da conduta é o dolo genérico, ou seja, a vontade livre e consciente
dirigida ao motim. Segundo doutrina e jurisprudência,55 sua finalidade
é irrelevante, sendo inexpressiva a legitimidade das reivindicações. A
teleologia da conduta seria importante apenas para efeitos de dosime-
tria da pena.
Fragoso ensina que o tipo subjetivo é o dolo genérico: vontade livre
e consciente dirigida ao motim, tendo o agente consciência de perturbar
a ordem ou a disciplina da prisão e de que se trate de movimento coleti-
vo. O fim de agir é indiferente. Tanto faz que o motim tenha por funda-
mento reivindicação justa ou injusta e que com ele procurem os presos a
evasão ou, ainda, vingar-se de guardas ou constrangê-los. A natureza de
tais motivos, porém, deverá ser levada em consideração na medida da
pena.56 O entendimento é corroborado por Paulo José da Costa Jr.57
A conseqüência jurídica prevista é a sanção detentiva de seis
meses a dois anos, cumulada materialmente com a violência. O concur-
so material do motim com a violência contra a pessoa é questão pacífi-
ca, havendo divergência no que diz respeito à extensão da violência ao
patrimônio. 
Parte da doutrina entende que a expressão ‘violência’ abrange a
tutela da pessoa e da coisa, estabelecendo concurso material de crimes
em ambas situações. Corrente oposta vê na expressão ‘violência’
somente aquela dirigida contra a pessoa. Apesar de existirem decisões
que estabelecem o concurso material entre motim e dano, crê-se neces-
sário restringir o cúmulo material da violência contra a coisa, pois,
interpretando sistematicamente, quando a lei penal prevê a violência
contra o patrimônio, o faz taxativamente. 
Salo de Carvalho
230
54 Idem.
55 O crime de motim de presos consiste no comportamento comum de rebeldia de pessoas
presas, agindo para o fim de reivindicações justas ou não. É a vontade livre e consciente
dirigida ao motim, conhecendo o sujeito que sua conduta perturba a ordem ou a discipli-
na do estabelecimento prisional (TACRIM-SP, AC, Rel. Hélio de Freitas – RT 653/310). O
crime do art. 354 do CP caracteriza-se pela revolta coletiva de presos com intuito de con-
trariar a autoridade ou poder constituído, tumultuando seriamente a ordem e a disciplina
da prisão, mediante atos de violência contra guardas, funcionários ou instalações ou aos
outros detentos não solidarizados com suas atitudes (TA-MG, AC, Rel. Edelberto Santiago
– RT 615/341).
56 Fragoso, ob. cit., p. 550.
57 Para efetivação do juízo de tipicidade, basta a reunião tumultuária das pessoas presas,
não sendo necessário indagar a finalidade do motim: reivindicações justas ou injustas, vin-
gança ou motivos de outra índole. A ilicitude do fato reside na rebelião apta a desordenar
a vida disciplinar da prisão (Costa Jr., ob. cit., pp. 762-763).
A desproporcionalidade da legislação na incriminação da evasão
mediante violência não se restringe tão-somente à equivalência das
condutas tentadas e consumadas. 
Ao estabelecer a pena em abstrato, o legislador obrigou o magis-
trado a cumular a pena da evasão violenta com a própria violência
empregada. Portanto, há concurso material da ‘evasão mediante
violência’ com a agressão praticada para viabilizar o delito, visto ser
esta elementar do tipo – v.g. roubo, seqüestro, lesão corporal, homicí-
dio entre outras ações em sua forma tentada ou consumada.
A relevância que a norma incriminadora pretendeu dar ao impor
sanção cumulativa é a negação e o repúdio ao ato lesivo. Somente exis-
te delito no momento em que esta violência é praticada. Da mesma
forma, a punição cumulativa inviabilizaria ao aplicador absorver (prin-
cípio da consunção) a evasão violenta no crime-meio. Contudo, urge
que os critérios sejam revistos. 
A regra do concurso material é clara: quando o agente, mediante
mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou
não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em
que haja incorrido (art. 69, caput, CP).
O vínculo do tipo em análise à regra do concurso material leva à
conclusão de que o legislador acabou penalizando, de maneira indireta
e sutil, a fuga propriamente dita. Se a violência é circunstância elemen-
tar do tipo do art. 352 do CP, e se o concurso material é a infração,
mediante unidade ou pluralidade de ações, de tipos penais diversos,
parece claro que a aplicação da pena em cúmulo configura bis in idem,
com penalização subsidiária do mero ato evasivo. A opção pela incrimi-
nação da evasão mediante violência acaba justificando reprovação
penal indireta da fuga. Se a grande ofensa que justifica a criminalização
do ato é a violência em si mesma, despicienda seria a tipificação da eva-
são, decorrente do fato de que as diversas formas possíveis de violência
contra a pessoa já constituem crime em si e, mais importante, a fuga já
recebe reprovabilidade como ‘falta grave’ na esfera administrativa. 
Não se percebe, portanto, desde o processo de interpretação cons-
titucional do direito penal, vínculo substancial do tipo com os rigores
dos princípios inerentes ao texto da Lei Maior, desde a proporcionali-
dade à individualização. Veja-se, a título de exemplificação, o que ocor-
re com outro delito análogo. Na construção incriminatória do motim
existe penalização, em concurso material, do ato em si (motim de pre-
sos) com a violência praticada. Contudo, o preceito não prevê elemen-
tar do tipo idêntica ao delito a ser cumulado. Incriminado o motim, é
Pena e Garantias
233
Diferentemente do fato consumado, o delito tentado não efetiva
qualquer lesão ao bem jurídico. Tendo em vista essa diferença entre os
resultados das condutas, dano no primeiro e perigo concreto no último,
o direito penal, seguindo a fórmula da proporcionalidade, diferencia a
pena, minimizando-a. A tentativa é punida menos severamente porque
a pena deve estar em correspondência não somente com a gravidade
do crime, como também com o dano efetivamente causado.62 A justifi-
cativa de Carrara é esclarecedora: imputamos menos la tentativa, no
por atenuación o por benignidad, sino porque encontramos en ella algo
que falta con respecto al delito consumado, y porque, naturalmente, la
minoración en las condiciones de un ente debe producir una minoración
de su valor.63
Embora pacífico o entendimento doutrinário das correntes huma-
nistas acerca do minus da tentativa em relação ao delito consumado, o
legislador equiparou, no caso da evasão mediante violência, as duas
condutas, seguindo rumos de tradição legislativa autoritária (v.g. os
crimes contra a segurança nacional, Lei no 7.170/83). Assim, de duvido-
sa constitucionalidade a equiparação das penas, em decorrência da
lesão ao princípio da razoabilidade.
Zaffaroni demonstra, de forma inequívoca, a inadequaçãodeste
tipo de incriminação às formas legislativas garantistas do Estado
democrático de direito balizadas pelo princípio da secularização: la
escala penal atenuada del delito incompleto se corresponde con la racio-
nalidad de la pena que, por lógica, debe ser menor en un delito que, por
no haber causado el resultado, presenta un contenido injusto inferior...
La punición de la tentativa – y más aún de los actos preparatorios – en
forma análoga al delito consumado, es violatoria de la racionalidad que
debe regir en cualquier punición, porque olvida al bien juridico y pasa a
fundarse exclusivamente en la voluntad contraria a la norma. El delito
se convierte en un mero signo de voluntad contraria a la ley y pasa a
segundo o ultimo plano su naturaleza de lesión al derecho. Se trata de
una variable idealista de la teoría del acto sintomático, que lleva a la
punición de la voluntad revelada con el acto inequívoco. Nuevamente se
quiebra el dique que separa la moral del derecho y el Estado asume el
papel de director ético de las personas, se convierte en un Estado ético.64
Salo de Carvalho
232
62 Mestieri, Teoria Elementar do Direito Criminal, p. 271.
63 Carrara, Programa de Derecho Criminal, p. § 355.
64 Zaffaroni, Sistemas Penales y Derechos Humanos en América Latina, p. 65.
tum penalizador. Inova apenas na referência expressa à ‘pessoa legal-
mente presa’ no delito de evasão – evadir-se ou tentar evadir-se a pes-
soa legalmente presa ou submetida à medida de segurança detentiva,
usando de violência contra a pessoa –, entendimento já consolidado
jurisprudencialmente.
Outrossim, o projeto prevê novo tipo penal denominado ‘tomada
de refém’ (art. 346). A nova construção típica descreve a conduta de
submeter alguém à condição de refém, privando-o de sua liberdade para
permitir ou facilitar a fuga do agente ou de outrem. A pena projetada é
a de reclusão de um a quatro anos, qualificada para dois a quatro anos
se a vítima sofrer ameaça de morte e/ou se a privação de liberdade
durar mais de vinte e quatro horas (art. 346, § 1o, incisos I e I). No § 2o,
o projeto prevê a mesma pena da forma qualificada se o objetivo do
agente for evitar a prisão ou a sua recaptura, determinando, no § 3o,
cúmulo material da pena qualificada à violência empregada.
Atualmente, o enquadramento típico da fuga com tomada de
refém é o do concurso material da evasão violenta com o seqüestro,66
podendo a pena, em sua forma qualificada, ultrapassar oito anos de
reclusão. Apesar da maximização qualitativa, a criação do novo tipo
penal diminuiria quantitativamente a pena, visto ser sua previsão qua-
lificada de, no máximo, quatro anos.
6.3. Conflitos carcerários e direito de resistência
6.3.1. A ineficácia do modelo liberal-legal para 
resolução dos conflitos contemporâneos
A perspectiva garantista centrada na primazia axiológica da pes-
soa impõe autonomia dos direitos fundamentais no caso de conflito
com práticas jurídico-políticas arbitrárias. 
Lembra, porém, Ferrajoli,67 que atualmente as Constituições não
positivaram, como no passado (v.g., art. 3o da Declaração de Direitos da
Virgínia de 1776; o art. 29 da Constituição Francesa de 1793; a Consti-
tuição Siciliana de 1812; e o art. 20, IV, da Constituição da República
Federal da Alemanha de 1949), um dos mecanismos de garantia dos
Pena e Garantias
235
66 Nesse sentido, conferir as referências de Celso Delmanto à decisão da Apelação Criminal
10164 pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal (DJU, 20/3/1990, p. 5.559), em
Delmanto, Código Penal Comentado, p. 281.
67 Ferrajoli, ob. cit., p. 973.
ressalvada a aplicação cumulativa da pena. Há reprovação penal do ato
em si, sendo a violência (decorrente ou precedente) acrescida na pena-
lização. A análise sistemática dos tipos leva a reafirmar a punibilidade
oculta e subsidiária da fuga.
6.2.2.3.2. Crítica de lege ferenda
Quando da avaliação do bem jurídico tutelado, percebeu-se que as
normas dos artigos 352 e 354 do CP tutelam a Administração da Justiça.
Viu-se, na exposição dos critérios para contração do sistema
penal, a necessidade de reprovabilidade penal apenas nos casos de
ataque concreto contra bens jurídicos de ‘pessoas de carne e osso’.
Sucedâneo a este entendimento, supérflua seria a inclusão da persona-
lidade do Estado, da administração pública, da atividade judicial, entre
outros, no rol dos bens jurídicos amparados pelo direito penal. Reme-
morando Ferrajoli,65 o Estado, nos ordenamentos democráticos, não
pode constituir bem ou valor próprio, visto ser apenas instrumento de
consecução dos direitos fundamentais. 
A tradição demonstra que as normas jurídicas mais autoritárias e,
conseqüentemente, conformadoras de modelos maximalistas, foram
aquelas emergenciais produzidas sob a etiqueta de ‘delitos contra o
Estado’. Tais incriminações, normalmente elaboradas com grande
ambigüidade e lacunariedade, acabam por sobrepor a razão de Estado
à razão de direito, olvidando a ofensividade (ataque concreto) ao bem
jurídico (palpável).
Desse modo, a valoração crítica do bem jurídico protegido pelos
tipos dos arts. 352 e 354 induz sustentar sua descriminalização, dire-
cionando a ilicitude da fuga e do motim apenas à esfera administrativa
(penitenciária). Desde os postulados do direito penal mínimo, o rele-
vante na resposta penal seria responder à violência empregada contra
a pessoa, em decorrência de evasões violentas e/ou motins. Aliás, este
entendimento é insinuado pela obrigatoriedade do concurso material
na aplicação das penas aos conflitos carcerários.
Todavia, opondo-se frontalmente aos processos político-criminais
minimalistas, o projeto de reforma da parte especial do Código Penal
mantém a tipicidade da ‘evasão mediante violência contra a pessoa’
(art. 343) e do ‘motim de presos’ (art. 345), preservando idêntico quan-
Salo de Carvalho
234
65 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 481.
A revificação do ius resistentiae acaba ocorrendo no momento de
incapacidade instrumental do direito em responder às complexas
demandas do final do milênio, ou simplesmente devido à necessidade
de solução de antigos conflitos acertados de forma insatisfatória pelo
sistema tradicional. No último dos casos situa-se o problema da confli-
tividade carcerária.
Estruturou-se, desde o primeiro momento do texto, o garantismo
jurídico como modelo penal alternativo à violência e à guerra, pressu-
pondo atitude pessimista em relação a todos os atos do poder público,
por entender intrínseca sua predisposição à arbitrariedade. Teleologi-
camente, como modelo ideal típico de otimização dos direitos funda-
mentais, o garantismo dirige-se não somente à minimização dos micro-
poderes selvagens (privados), mas também à redução dos macropode-
res bárbaros (públicos).
Entretanto, constata-se que os instrumentos jurídicos positivados
inviabilizam a plena defesa da Constituição ou proporcionam, de
maneira tímida, a redução dos poderes privados. 
Como ressaltado, o traço mais marcante da modernidade foi a
radical monopolização da violência pelo aparato estatal que, em nome
da racionalização dos conflitos, separa os envolvidos e responde à
demanda. Sabe-se, porém, que, em determinadas circunstâncias, exis-
te previsão legal de legitimidade de o indivíduo agir, utilizando-se de
violência, em defesa de interesse seu ou de terceiro, sem contrastar
com o ordenamento jurídico. No caso de conflitos interindividuais, o
direito penal permite a autotutela do cidadão se este estiver em situa-
ção de necessidade e/ou defesa de bem jurídico. Resolve-se, o proble-
ma, nestas situações, pelo fato de no interior do modelo liberal-legal
existirem previsões para condutas nas quais o titular do direito afetado
pode reagir contra o perigo (estado de necessidade) ou a agressão
(legítima defesa), sendo excluída a ilicitude da (re)ação.
Quando, porém, o sujeito ativo da violação (ou exposição ao perigo)
do bem tutelado é o próprio Estado, e o sujeito passivo não é individual,
isto é, o conflito perpassa a esfera do indivíduo e passa a ser transindi-
vidual, não há capacitaçãodogmática e legislativa para resposta. Há
verdadeira aporia jurídica quando o dano, ou a concreta probabilidade
de lesão aos bens jurídicos, resulta de conduta ativa ou omissiva da
Administração Pública e sua titularidade é plúrima (v.g. presos). 
Concebe-se juridicamente a autotutela do cidadão contra agres-
sões privadas, se preenchidos os requisitos do estado de necessidade
e/ou da legítima defesa. No caso de agressão pública aos direitos fun-
Pena e Garantias
237
cidadãos contra as ofensas do Príncipe: o direito de resistência à opres-
são. Tal omissão decorre da ideologia normativista que supõe aprioris-
ticamente a efetividade dos mecanismos positivados para sancionar e
remover atos ilegítimos.
No entanto, Ferrajoli indaga o que acontece quando esses instru-
mentos processuais elaborados pela atual teoria do direito tornam-se
impotentes para a tutela dos direitos. Em realidade, o direito de resis-
tência renasce quando o sistema ordinário de garantias não funciona,68
sendo verdadeira falácia normativa a idéia de o instituto ser incompa-
tível com o Estado de direito porque neste o poder é vinculado à lei e
as violações são por ela punidas.69
Como anota Estévez Araujo, na atualidade a defesa da Consti-
tuição encontra-se em um âmbito de decisão estatal insuficientemente
procedimentalizado, pois os mecanismos existentes não estabelecem
canais de participação democrática que reduzam o déficit de legitimi-
dade dos órgãos encarregados da tarefa. Portanto, el problema de la
justificación jurídica de la desobediencia civil debe inscribirse en este
contexto de crisis de legitimidad de los procedimientos de defensa de la
Constitución como consecuencia de la materialización del derecho cons-
titucional. La desobediencia civil deve ser entendida como un mecanis-
mo informal e indirecto de participación en un ámbito de toma de deci-
siones que no cuenta con suficientes canales participativos, aunque, en
realidad, precisaría de ellos para poder presentarse.70
Da crise enfrentada pelo Estado contemporâneo em decorrência
da inefetividade processual na defesa dos direitos constitucionais
renasce o tema oitocentesco.
Percebe Bobbio que é natural que, quando aquele tipo de Estado
que havia pretendido absorver o direito de resistência, constitucionali-
zando-o, entra em crise, se reabra o velho problema, e se ressuscite,
ainda que com outras vestes, as velhas soluções.71 Contudo, chama
atenção para o fato de que o retorno dos velhos temas que pareciam
moribundos não é uma exumação, nem uma repetição. Os problemas
nascem quando certas condições históricas os fazem nascer, mas assu-
mem aspectos diferentes segundo as circunstâncias.72
Salo de Carvalho
236
68 Ferrajoli, Notte Critiche ed Autocritiche intorno alla Discussione su ‘Diritto e Ragione’, p. 514.
69 Ferrajoli, Diritto e Ragione, pp. 973-974.
70 Estévez Araujo, La Constitución como Proceso y la Desobediencia Civil, p. 143.
71 Bobbio, La Resistenza all’Oppressione, Oggi, p. 168.
72 Idem, p. 168.
Em matéria penal/penitenciária, o legado ainda presente da con-
cepção administrativista de execução, aliado à dificuldade de percep-
ção dos direitos transindividuais, inviabiliza qualquer solução pacífica
dos conflitos. 
A conseqüência desta miopia da dogmática brasileira, cuja estru-
tura teórica não permite conceber os detentos como sujeitos de direi-
tos, é o resgate crítico do direito de resistência como possibilidade
estratégica para recuperar sua cidadania. 
Enquanto a dogmática jurídica não potencializa instrumentos
para obrigar o Estado ao cumprimento de seu dever em sede de execu-
ção penal (v.g. ação civil pública), a única alternativa admissível para o
resgate dos direitos dos apenados é a inclusão do direito de resistência
entre as causas supralegais de exclusão do delito, assim como os já con-
sagrados princípios da insignificância, adequação social, consentimen-
to do ofendido e inexigibilidade de conduta diversa. Entendido como
descriminante transindividual, o direito de resistência permitirá ação
política reivindicatória direcionada à mobilização da Administração
Pública em prestar minimamente seu dever constitucional, a dizer, res-
peitar a integridade física e moral dos presos (art. 5o, XLIX, CF).
6.3.2. Direito de resistência: notas conceituais
O problema do direito de resistência poderia remeter o trabalho à
bela e lúdica caracterização desde a tragediografia helênica, ou permi-
tir incursões na filosofia clássica. Rui Barbosa, por exemplo, afirma que
ninguém condensou melhor o alcance do direito de resistência do que
o velho Farinaccius, colocando em uma fórmula clara, prática, justa e
expressiva o sentido da desobediência legítima. Em suas Questões,
Farinaccius afirmava: se o magistrado, faltando à justiça, já se não repu-
ta magistrado, e passa não ser mais que um sujeito particular, do mesmo
modo como nos é dado resistir à violência que qualquer particular nos
faz, lícito semelhantemente nos será também resistir à injustiça do
magistrado e seus oficiais, pois, obrando injustamente, não têm, repito,
mais autoridade que se meros particulares fossem.76
Como foi estabelecido na matriz ilustrada o marco genealógico da
justificativa do instituto da resistência (Boètie, Locke, Marat e
Feuerbach), reestruturando-se na contemporaneidade a partir da con-
cepção garantista, não haverá reconstrução histórica do direito de re-
Pena e Garantias
239
76 Apud Barbosa, Teoria Política, p. 286.
damentais, porém, as possibilidades de reação legítima são ineptas em
decorrência da concepção normativista que pressupõe eficácia dos ins-
trumentos processuais tradicionais. As soluções dadas pelo ordena-
mento não legitimam a ação defensiva, pois inexiste mecanismo eficaz
de proteção de bens jurídicos transindividuais.
Lenio Streck diagnostica o problema utilizando-se do ensino do
direito como figura de linguagem. Segundo o autor, há predominância,
no Brasil, de um modo de produção jurídica forjado para resolver ape-
nas disputas interindividuais. A constatação é nítida nos manuais jurí-
dicos que banalizam os conflitos nas disputas entre ‘Caio’ e ‘Tício’:
assim, se Caio invadir (ocupar) a propriedade de Tício, ou Caio furtar um
botijão de gás ou o automóvel de Tício, é fácil para o operador do Direito
resolver o problema. No primeiro caso, a resposta é singela: é esbulho,
passível de imediata reintegração de posse, mecanismo jurídico de pron-
ta e eficaz atuação, absolutamente eficiente para a proteção dos direitos
reais de garantia. No segundo caso, a resposta igualmente é singela: é
furto (simples no caso de um botijão; qualificado, com uma pena que
pode alcançar 08 anos de reclusão, se o automóvel de Tício for levado
para outra unidade da federação).73
A aplicação do direito reduz-se, porém, tão-somente a esses
casos banais, ou, como qualifica Streck, a dogmática jurídica coloca
à disposição do operador um prêt à porter significativo que contém
respostas rápidas e prontas. Mas – adverte –, quando Caio e milhares
de pessoas sem teto ou sem terra invadem/ocupam a propriedade de
Tício, ou quando Caio participa de uma ‘quebradeira’ de bancos, cau-
sando desfalques de bilhões de dólares, os juristas só conseguem ‘pen-
sar’ o problema a partir da ótica forjada no modo liberal-individualis-
ta-normativista de produção de Direito.74 Conclui, portanto, que a
crise do modelo se instala porque a dogmática, em plena sociedade
transmoderna e repleta de conflitos transindividuais, continua traba-
lhando com a perspectiva de um direito cunhado para ‘resolver’ dis-
putas interindividuais.
No mesmo sentido conclui Ferrajoli, quando chama atenção para o
fato de que a desatenção estatal relativa aos direitos sociais não é
reparável com técnicas jurídicas eficazmente análogas às previstas
para as violações dos direitos de liberdade.75
Salo de Carvalho
238
73 Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, p. 33.
74 Streck, ob. cit., pp. 33-34.
75 Ferrajoli, El Derecho como Sistema de Garantías, p. 67.
tência. São resistentes as condutas, violentas ou

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