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Florian, Maria Cristina. “Estética da ruptura: os efeitos das mudanças abruptas na paisagem urbana”. ArchDaily, 2024. Discute-se atualmente no meio urbanístico a importância do espaço público e sua relação histórica com o território em que reside, juntamente às significações atribuídas ao vazio como um palco cercado pelo cenário urbano que confere valor às atividades que ocorrem ou ocorreram ali, oferecendo uma narrativa do espaço (Florian, 2024) através de suas qualidades estéticas, que tanto podem representar os valores de um povo em questão, ou o oposto, ser o símbolo de uma interferência e a memória de uma interrupção na vida destas pessoas, servindo também como memória viva desta ruptura, exigindo que se tomem decisões coletivas com relação a o que se fará naquele espaço, seja ao modo de restauração do que havia lá, ou de ver na destruição da paisagem uma oportunidade para criar uma nova imagem e estrutura para a cidade. A exemplo disso, cita-se no artigo o incêndio da Catedral de Notre Dame, que levou a uma grande discussão sobre a forma como esse monumento universal deveria ser restaurado, trazendo à tona um debate sobre o que define a identidade de um edifício, similar ao dilema de Teseu na antiga Grécia1, sendo a conclusão geral do Senado francês a de tomar a fisicalidade e a permanência da forma original como sendo o ponto definitivo da identidade do edifício, não apenas sua história ou localidade isoladamente, sendo a discussão principal sobre o que define o valor de um objeto arquitetônico para os habitantes de uma cidade, se é sua função, seu nome ou sua qualidade imaginativa2 e impacto estilístico em relação com o meio, seja como um objeto em contraste com a cidade em sua volta, chamando atenção para si, ou como um ícone que engloba o ser da cidade em sua arquitetura, o que no caso de uma cidade como Paris, leva-nos a considerar que a fisicalidade e a forma estilística e estrutural são componentes essenciais do que o edifício simboliza. E tal decisão é de forma última o resultado de um compromisso coletivo sobre a relevância de determinado objeto na paisagem urbana, acordo construído, seja através de uma história compartilhada e o que esta significa para todos, ou mesmo através das convivências 2 “Imaginabilidade” é um conceito concebido por Kevin Lynch em seu livro “A Imagem da Cidade”, e descreve a qualidade de uma composição paisagística urbana de evocar uma imagem totalizante através da relação de suas partes e de similaridades estilísticas (Lynch, Kevin, 1960). 1 O paradoxo do navio de Teseu é um dilema na filosofia clássica que trata da definição da identidade de um determinado objeto, se este se dá por sua materialidade original, por sua forma, ou mesmo por sua história em relação a uma pessoa ou evento, independente de sua fidelidade material e formal ao objeto original. do cotidiano no espaço, que formam imagens afetivas dos caminhos, formas e vazios da cidade3. E quando o assunto se trata da necessidade de chegar a um novo acordo social valorativo sobre o que deve ser preservado, especialmente no contexto contemporâneo de fragmentação e divisão identitária e de classe, tudo se torna mais difícil, pois não há mais um aparato inconsciente permeando as decisões e opiniões dos cidadãos dentro de um mesmo território, a exemplo disso temos os casos recentes de vandalismo de monumentos históricos em diversas partes do mundo em oposição a eventos ou personagens históricos considerados polêmicos, que embora não tenham pessoas que de fato enalteçam seus feitos em vida ou o evento representado em questão, defendem o monumento e a memória em si mesmos como algo a ser lembrado, seja tal pessoa ou evento algo positivo ou negativo. A exemplo disso, vemos em obras como o Memorial do Holocausto por Peter Eisenman em Berlim, um monumento que chama atenção à ausência de algo que deveria estar presente, fazendo de um trauma histórico uma fonte de significado presente no mundo, eternizando o ocorrido de uma forma poética e original, mesmo que o edifício em si não tenha relação física e histórica com tal passado; ou como no Memorial do 11 de Setembro em Nova Iorque, que através da preservação do espaço originalmente ocupado pelas torres traz consigo a imagem do que foi tal evento e de seu impacto através da ausência do edifício, enriquecido poéticamente pelas fontes e árvores que permeam o lugar, representando a permanência da vida apesar da catastrofe. Traz-se com isso a questão da cidade como ser físico que permanece ao longo das diferentes gerações e ideais conflitantes que a constroem pelo tempo4, como no caso de Varsóvia na Polônia, que em discussões sobre sua reconstrução no pós-guerra considerou que caso fosse construída uma nova estrutura física sem relação a o que antes havia no local, tal espaço seria de fato uma cidade diferente, não desconsiderando o fator do apego individual dos habitantes no processo de delimitação valorativa da arquitetura ali presente como símbolo da identidade da comunidade no ambiente, em um ato de resistência histórica e símbolo de permanência ante um evento que o ameaçava. E isso, apesar disso se aplicar ao centro histórico da cidade, as demais regiões industriais tiveram uma abordagem mais utilitária, 4 “Os territórios e as cidades que observamos são os resultados de um longo processo de seleção cumulativa, ainda agora em curso. Todos os dias selecionamos algo, uma casa, um trecho de rua, uma ponte ou um bosque, e o destinamos à destruição ...” (Secchi, 2016, p. 16) 3 Lynch, em sua pesquisa, chega à conclusão que mesmo as paisagens mais simples e desprovidas de estilo, estética e planejamento são capazes de evocar imagens afetivas simplesmente por sua disposição em relação ao cotidiano dos habitantes, os concedendo caminhos e rotas que ritualmente se tornam familiares a estes. (Lynch, Kevin, 2011). preferindo-se uma reconstrução atualizada do espaço (Florian, 2024) para melhor aproveitar os novos padrões urbanísticos e de zoneamento que vinham surgindo no pós-guerra no exterior. Em conclusão, o impacto da estética urbana é mais visível quando os eventos a afetam abruptamente (Calame, 2005), isto é, que entendemos mais claramente o que um espaço ou conjunto urbano significa para a cidade quando este é repentinamente alterado, criando um contraste capaz de denunciar o que de fato é uma afronta à vida social das comunidades locais, o que dificilmente ocorre em mudanças incrementais e veladas, como ocorre com as tendências globalizantes e impessoais (e portanto a-históricas e inorgânicas) do mercado imobiliário nas grandes cidades crescentemente alteradas pelo avanço de novas concepções de progresso.