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UMA LEITURA NEOLIBERAL DE “A FÁBULA DAS ABELHAS”
Jádia Larissa Timm dos Santos1
Clarice Beatriz da Costa Söhngen2
RESUMO
O presente trabalho versa sobre o livro “A Fábula das Abelhas” e seu autor, Bernard
Mandeville. O problema de pesquisa proposto é identificar se e como “A Fábula das Abelhas”
e o pensamento de Mandeville podem ter servido de base para o desenvolvimento do
neoliberalismo. O método utilizado é o de pesquisa bibliográfica e documental. E o caminho
metodológico consiste em, incialmente, compreender quem foi o autor Mandeville e a obra
literária em questão. Por conseguinte, busca-se encontrar em textos de próprio Hayek e de
outros autores, marcas da influência que Mandeville teve sobre o teórico austríaco e,
consequentemente, sobre o desenvolvimento do ideário neoliberal na origem até o presente.
Como conclusão, entende-se ser sim o autor e a obra mencionados bases para a formação do
pensamento neoliberal e seus resquícios permanecem e são aprofundados nos dias de hoje.
PALAVRAS-CHAVE: Neoliberalismo. Mandeville. Hayek. Vícios. Moral.
1 INTRODUÇÃO
O tempo atual é, entre outros adjetivos, neoliberal. E para melhor compreendê-lo, é
necessário buscar e compreender suas bases. Por isso, o presente trabalho tem como objetos o
livro “A Fábula das Abelhas” e seu autor, Bernard Mandeville. O problema de pesquisa
proposto é se e como “A Fábula das Abelhas” e o pensamento de Mandeville podem ter
servido de base para o desenvolvimento do neoliberalismo.
O método utilizado é o de pesquisa bibliográfica e documental. E o caminho
metodológico consiste em, incialmente, compreender quem foi o autor Mandeville e a obra
literária em questão. Por conseguinte, busca-se encontrar em textos de próprio Hayek e de
2 Mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Doutora em Letras
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora titular da Escola de Direito da PUCRS e
Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS (Orientadora).
1 Doutoranda e Mestra em Ciências Criminais, pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGCCrim/PUCRS). Especialista em Direitos
Humanos, pelas Escolas de Humanidades e de Direito da PUCRS. Bacharela em Direito pela Universidade de
Caxias do Sul (UCS). Integrante do Grupo de Pesquisa Gestão Integrada da Segurança Pública (GESEG)
vinculado à Escola de Direito da PUCRS. Bolsista Prosuc/CAPES. Advogada. E-mail: jadia.adv@gmail.com.
outros autores, marcas da influência que Mandeville teve sobre o teórico austríaco e,
consequentemente, sobre o desenvolvimento do ideário neoliberal na origem até o presente.
2 DESENVOLVIMENTO
Bernard de Mandeville ou simplesmente Bernard Mandeville foi um filósofo, médico,
economista político e satirista. Nascido em Roterdã, nos Países Baixos, em 1670(-1733),
passou grande parte de sua vida na Inglaterra e escreveu quase todas as suas obras em inglês
(MANDEVILLE, 2017). “A Fábula das Abelhas ou Vícios privados, benefícios públicos”, de
1723, foi a publicação que tornou o autor – escandalosamente – conhecido, tendo sido, à3
época, taxada de insidiosa e provocado a ira do Grande Júri de Middlesex.4
Contudo, muitos pensadores contemporâneos e posteriores a ele não somente o leram
como se inspiraram, ainda que sem diretamente mencionar, nas lições de Mandeville, como
Adam Smith, David Hume, Bentham (SUSATO, 2020) e Friedrich August von Hayek. É
sobre este último que recai nossa maior atenção, eis que Hayek é considerado um dos
precursores do ideário neoliberal. Assim, buscamos identificar em A Fábula das Abelhas
pontos convergentes ou basilares do pensamento neoliberal. Portanto, busca-se fazer uma
breve “leitura neoliberal” da fábula mandevilliana.
O referido livro se trata de uma ampliação e de uma explicação da fábula A colmeia
ranzinza ou De canalhas a honestos, publicada em 1704. Nela, o autor conta a história de:
Uma espaçosa colmeia abarrotada de abelhas
Que viviam no luxo e comodidade;
Tão famosa, porém, por suas leis e armas,
E por seus numerosos enxames precoces;
Era tida como grande berço
Das ciências e da indústria.
Não houve abelhas com melhor governo,
Nem mais volúveis nem menos satisfeitas:
Não eram escravas da tirania,
Nem governadas por selvagem democracia;
Porém, não se podiam enganar os reis, pois
Seu poder era circunscrito por leis. (MANDEVILLE, 2017, p. 17).
4 Na edição de 1724, Mandeville reproduz integralmente a denúncia feita pelo Grande Júri de Middlesex assim
como a carta que escreveu em sua defesa.
3 A primeira versão da história, em formato de poema, data de 1705. Em 1714, o autor a amplia, publicando-a
como fábula. (SPECK, 1978).
Essa grande colmeia é uma analogia a uma grande e rica nação. Na fábula, as abelhas
da colmeia viviam como as pessoas, realizando suas ações em miniatura. Isso inclui dizer que
havia corrupção, ligeireza, trapaça, luxúria, vaidade, ganância, preguiça, enfim, todos os
vícios que compõem a humanidade. “Assim, cada parte estava cheia de vício, / O todo,
porém, era um paraíso; [...]” (MANDEVILLE, 2017, p. 27).
Por outro lado, existia também, na sociedade em geral, clamor por honestidade e
reprovação a todos esses vícios. A tal ponto que, após tanto chamamento aos deuses, Júpiter,
“tomado de indignação / Por fim jurou, encolerizado, que livraria / A zunidora colmeia da
fraude; e assim o fez” (MANDEVILLE, 2017, p. 33).
A partir do momento em que a colmeia vira um local integralmente virtuoso, de plena
honestidade e contentamento, muitas de suas engrenagens passam a não ter mais razão de ser;
como as prisões, os tribunais, os aparatos de segurança, enfim. Isso trouxe como
consequência a obsolescência de uma série de atividades e profissões na comunidade
abelheira, como de juízes, de advogados, de todos os servidores da justiça; de militares, de
carcereiros, de guardas, de clérigos, dos ferreiros que faziam as grades e os cadeados para as
prisões etc. A colmeia foi deixando de ser opulenta e de gerar riqueza e empregos como
gerava outrora; os lucros que eram obtidos por meio de vantagens, em sua maioria desonestas,
deixaram de ser aferidos. As abelhas que restaram ─ muitas abandonaram a colmeia e outras
morreram lutando pela paz que agora triunfa ─ acomodaram-se dentro de uma árvore oca,
“agraciadas por contentamento e honestidade” (MANDEVILLE, 2017, p. 47).
“Mostrar a impossibilidade de se desfrutar de todas as mais refinadas comodidades da
vida, encontradas em qualquer nação industriosa, rica e poderosa, e ao mesmo tempo ser
abençoado com toda a virtude e a inocência a que se pode aspirar em uma Idade de Ouro” era
o propósito da fábula. Em outras palavras, a tese defendida pelo autor era a de que os vícios,
defeitos e corrupções dos indivíduos, movidos por seus desejos, acabam por garantir a
grandiosidade, a riqueza e a “felicidade mundana de todos” (MANDEVILLE, 2017, p. 9).
A fim de não restar dúvidas, transcrevemos parte da “Moral” da história:
Deixem então de se lamentar: apenas os tolos se esforçam
Para tornar honesta uma grande colmeia.
Para gozar das comodidades do mundo,
Afamar-se na guerra e viver no conforto,
Sem grandes vícios, é uma vã
Utopia, inculcada no cérebro.
A fraude, o luxo e o orgulho devem viver,
Enquanto usufruímos dos benefícios [...] (MANDEVILLE, 2017, p. 47).
A Fábulas das Abelhas é, portanto, a maneira jocosa que Mandeville encontrou para
embasar sua teoria de que são os vícios e a busca pela realização dos desejos mais
individualistas e egoístas que, despropositadamente, a partir dos lucros e sucessos individuais,
geram a riqueza das nações e o bem comum. É como se o vício – entendido como “tudo
aquilo que, sem nenhuma consideração pelo público, o homem cometesse a fim de satisfazer
qualquer de seus apetites” – estivesse para a riqueza e o poder como a virtude – definida pelo
autor como “cada realização por meio da qual o homem, contrariandoos impulsos da
natureza, se esforçasse para o benefício dos outros, ou para a conquista de suas próprias
paixões mediante uma ambição racional de se tornar bom” – está para a pobreza e a fraqueza
(MANDEVILLE, 2017, p. 57).
Essa lição com toda certeza foi aprendida por Friedrich von Hayek, considerado um
dos pais fundadores do neoliberalismo. Em 23 de março de 1966, Hayek profere uma palestra
intitulada “A Lecture on a Master Mind: Dr. Bernard Mandeville” [Uma Palestra sobre uma
Mente Mestra: Dr. Bernard Mandeville], de modo a exaltar o pensamento do autor holandês5
(HAYEK, 1966). Hayek faz alusão ao caráter escandaloso e à má reputação creditada ao
homenageado, ciente de que mesmo na época do discurso, passados mais de duzentos e
cinquenta anos, Mandeville – Man Devil [o Homem do Diabo], como foi apelidado por
alguns à época – ainda causava incômodo (DUFOUR, 2010).
Desde o princípio dessa sua fala, Hayek deixa latente que a influência de Mandeville
sobre si não está (apenas) no campo da teoria econômica nem da ética, mas, sim, no
psicológico: “Eu deveria estar muito mais inclinado a elogiá-lo como um grande psicólogo
[...]. Ele claramente se orgulhava dessa compreensão da natureza humana mais do que de
qualquer outra coisa” (HAYEK, 1966, p. 126, tradução nossa).6
No seu ofício médico, Mandeville cuidava de pacientes com doenças nervosas e
utilizava a técnica da fala no tratamento, o que fez dele um grande conhecedor do psiquismo
6 Originalmente: I should be much more inclined to praise him as a really great psychologist […]. He clearly
prided himself on this understanding of human nature more than on anything else”.
5 Optou-se por fazer uma tradução literal, tendo em vista a grafia separada dos termos “master” [Mestra] e
“Mind” [Mente]. Nos dias de hoje, escreve-se mastermind ou master-mind, em um único termo, designando uma
pessoa de intelecto notável, uma mentora.
gorete
gorete
humano, antes de Freud. A doutrina de Mandeville, segundo Hayek (1966, p. 129, tradução
nossa), foi fator determinante para o desenvolvimento do pensamento moderno:7
Sua principal alegação tornou-se simplesmente a de que na ordem complexa
da sociedade os resultados das ações dos homens eram muito diferentes do
que eles pretendiam, e que os indivíduos, ao perseguirem seus próprios fins,
fossem eles egoístas ou altruístas, produziam resultados úteis para os outros,
os quais eles não haviam previsto ou talvez sequer sabido; e, finalmente, que
toda a ordem da sociedade, e até mesmo tudo a que chamamos de cultura,
era resultado de esforços individuais que não tinham tal fim em vista, mas
que foram canalizados para servir a tais fins por instituições, práticas e
regras que também nunca foram deliberadamente inventadas, mas que se
ergueram pela sobrevivência do que provou ser bem sucedido.
Que Mandeville exerceu grande influência sobre o pensamento de Hayek não existe8
dúvida. Contudo, há quem afirme que está no autor de A Fábula das Abelhas a própria9
origem do pensamento neoliberal. Trata-se da moral – “muito imoral” – descrita por
Mandeville no século das Luzes, e lá repudiada, que hoje reina. “Tornou-se, mesmo, o cerne
de uma nova religião liberal que se atirou à conquista do mundo” (DUFOUR, 2010, p. 60). O
próprio Adam Smith teria utilizado os ensinamentos de Mandeville, redesenhando-os livres da
carga, digamos assim, diabólica. Em Riqueza das Nações, Smith trocou a palavra “vício” por
outras menos controversas como “egoísmo” e “ambição”.
E assim se desenvolveu o pensamento liberal que hoje, no auge do neoliberalismo,
toma ares de uma liberação das paixões sem precedentes, chegando ao patamar de uma nova
religião “que promete, como toda e qualquer religião, que seremos salvos, pelo crescimento
9 Informação verbal de Robert-Dany Dufour, coletada no Colóquio Internacional virtual “A Filosofia pensa o
Neoliberalismo: economia, política e epistemologia”, organizado por Felipe Castelo Branco, André Yazbek e
Rubens Casara, por intermédio do Departamento de Filosofia da UFF, realizado nos dias 23-25 de novembro de
2020. Disponível no link:
https://www.youtube.com/channel/UCnBLzmwxE-cFwMEupEXh-3Q?fbclid=IwAR3ABgKnsXCBBgrIa_MXT
M_oN8f9fblWOVPASal7ASIUMrAsOSpvthtGA1c.
8 A partir do conteúdo da referida palestra, é possível conhecer outro grande nome que despertava em Hayek
elevada consideração, David Hume, a quem chama de “o maior entre todos os estudiosos modernos da mente e
da sociedade”. Inclusive, foi em decorrência da grande admiração por Hume que Hayek passou a considerar
Mandeville tão importante. Eis o trecho original: “It is indeed my estimate of Hume as perhaps the greatest of all
modern students of mind and society which makes Mandeville appear to me so important” (HAYEK, 1966, p.
139).
7 Originalmente: “His main contention became simply that in the complex order of society the results of men’s
actions were very different from what they had intended, and that the individuals, in pursuing their own ends,
whether selfish or altruistic, produced useful results for others which they did not anticipate or perhaps even
know; and, finally, that the whole order of society, and even all that we call culture, was the result of individual
strivings which had no such end in view, but which were channeled to serve such ends by institutions, practices,
and rules which also had never been deliberately invented but had grown up by the survival of what proved
successful”. (HAYEK, 1966, p. 126).
infinito da riqueza, contanto que possamos aceitar e incorporar novos mandamentos,
fundamentados na liberação das paixões e não na sua repressão”. É a economia de mercado
atingindo a economia psíquica (DUFOUR, 2010, p. 61). Nesse sentido, Dufour (2010, p. 57)
acredita que as “mudanças que hoje observamos no ser-em-si e no ser-em-conjunto encontram
sua origem numa inversão da metafísica ocidental, verificada no século XVIII, à época das
Luzes quando se constituiu o mundo moderno”.
Críticas à Fábula não faltaram, como bem se viu nos ataques dos defensores da moral
feitos ao autor que levaram sua obra a julgamento pelo Grande Júri de Middlesex, em 1723.
Essa questão é um pouco mais complexa do que apenas um desejo honesto do Grande Júri de
simplesmente livrar a sociedade de um atentado contra a religião e a virtude. A questão é
política e religiosa. Ocorre que, o corpo de jurados era maciçamente Tory (Country), enquanto
Mandeville seguia a cartilha Whig (Court) e opunha-se ao movimento reformista. Além disso,
havia nos tories o interesse de provar seu apoio ao Rei Jorge I, refutando qualquer aliança ao
Jacobitismo.10
Contudo, a crítica que verdadeiramente interessa neste escrito é outra, é aquela que
atribui a Mandeville a origem, a base do pensamento neoliberal, da “nova economia política”
(POLANYI, 2021, p. 177). Nesse sentido, Karl Polanyi é cirúrgico:
O extravagante doutor entregara-se a um paradoxo moral raso, mas o
panfletista havia acertado nos elementos básicos da nova economia política.
Seu ensaio logo fora esquecido, fora dos círculos de “política inferior”, como
eram chamados os problemas de policiamento do século XVIII, enquanto o
brilhantismo barato de Mandeville inquietou mentes distintas, como as de
Berkeley, Hume e Smith (POLANYI, 2021, p. 177-178).
Essa nova economia política mencionada por Polanyi tem como uma de suas
premissas a de que pauperismo e progresso são inseparáveis. Logo, pauperismo poderia ser
rentável, e para que uma nação se tornasse grandiosa, próspera, necessária seria a existência
de uma força de trabalho barata. “Além disso, não fossem os pobres, quem tripularia os
navios e iria à guerra?” (POLANYI, 2021, p. 178). Eis a necessidade e a utilidade da camada
inferior da pirâmide social.
10 Para compreender melhor o cenário político e religioso inglês do período, conferir SPECK, W. A. Bernard
Mandeville and the Middlesex Grand Jury. Eighteen-Century Studies, v. 11, n. 3, p. 362-374, Spring 1978; e
POCOCK, J.G.A. The Machiavellian Moment. Princeton: PrincetonUniversity Press, 1974.
Nas palavras do próprio Mandeville (2021, p. 200), “[...] tudo que se obtém em
abundância barateia o trabalho, onde os pobres são bem manobrados; os quais, assim como se
deve evitar que passem fome, não devem receber o tanto que lhes permita poupar”, pois é de
interesse das nações ricas que os pobres gastem tudo que possuem para que,
consequentemente, sigam trabalhando, mas que com os seus rendimentos consigam tão e
simplesmente sobreviver. Mandeville não descarta a possibilidade e a legitimidade daqueles
que, mediante um esforço anormal, consigam ascender à condição econômico-social melhor
àquela em que foram criados.
É pelo motivo econômico, portanto, que Mandeville condena as escolas de caridade,
sendo que, “sua principal objeção a elas era que educariam os filhos dos pobres acima de sua
posição e, assim, reduziriam a reserva de trabalho disponível em uma época em que a
economia [...] exigia uma abundância de trabalhadores manuais e servis” (SPECK, 1978, p.11
373). Além da pobreza, ou aliada a ela, deve existir uma certa dose de ignorância na
sociedade, também entendida como útil ao projeto de riqueza das nações. Como se pode
compreender deste trecho:
Estabeleci como máximas, que nunca devem ser abandonadas, que os pobres
devem ser mantidos estritamente ligados ao trabalho e que seria prudente
aliviar suas necessidades, mas que seria loucura curá-los delas [...]. Defini a
ignorância como um ingrediente necessário na composição da sociedade; do
que se torna evidente que eu jamais imaginaria que o luxo se generalizasse
em todas as partes do reino (MANDEVILLE, 2021, p. 249).
E acerca do luxo, que não deve ser repelido, mas que deve ficar restrito às camadas
superiores, Mandeville (2021, p. 256) argumenta:
[...] nenhum luxo estrangeiro pode destruir um país. O ápice disso não se
encontra senão nas nações muito populosas, e apenas nas camadas
superiores; e quanto mais numerosa, a parte mais baixa será,
proporcionalmente, a maior, a base que tudo suporta, a multidão dos
trabalhadores pobres.
A base que tudo suporta. Não há como não fazer um salto histórico de alguns séculos
e chegarmos nos dias de hoje, ao século XXI, ligando esse argumento ao pensamento
11 Trecho original: “his main objection to them was that they would educate children of the poor above their
station, and thus reduce the available pool of labor at a time when economy […] required an abundance of
hewers of wood and drawers of water”.
neoliberal, quando nos deparamos com falas do atual ministro da economia, um legítimo
Chicago boy, sobre o sistema de financiamento FIES (Fundo de Financiamento Educacional
ao Estudante do Ensino Superior) ser um “desastre”, tendo levado até “filho de porteiro” à
universidade (GUEDES..., 2021). Noutra oportunidade, Paulo Guedes novamente expressa
sua opinião mandevilliana sobre o “lugar do pobre”, quando disse que o dólar estar alto era
bom, já que quando estava mais baixo todo mundo ia para a Disneylândia, “empregada
doméstica ia pra Disneylândia, uma festa danada” e, em tom de indignação, prossegue: “Mas,
espera aí, espera aí, [...] vai passear ali em Foz do Iguaçu...” (VENTURA, 2020).
Outro traço que compõe a cartilha neoliberal e que está impregnada na obra de
Mandeville é o individualismo, a ponto de culpabilizar o indivíduo exclusivamente pelo seu
fracasso, pela sua miséria: “Aqueles que gostariam muito de imitar os de fortuna superior
devem culpar apenas a si mesmos se estão arruinados” (MANDEVILLE, 2021, p. 257). Ora,
não se pode senão dizer que é um discurso incongruente, incoerente, falacioso. Uma vez que o
próprio autor afirma que muito raramente alguns podem sair da pobreza, se conseguirem fazer
um esforço descomunal que drible a lógica de remuneração instituída aos pobres, à qual estão
submetidos. Se assim o é, se a base da sociedade, por motivos econômicos, não deve receber
de modo que possa poupar (lucrar), como é que o insucesso de alguém pode ser imputado
única e exclusivamente a ele, quando sabemos que as engrenagens que suportam a sociedade
de mercado são ajustadas por uma determinada parcela que não tem interesse no fim da
pobreza, da ignorância e da desigualdade?
Pois, nos dias de hoje, saindo da fábula mandevilliana e vindo para a realidade dos
tempos neoliberais ─ do mito da meritocracia, que camufla privilégios e aprofunda as
desigualdades, que faz da sociedade um modelo de empresa, guiada pelo ímpeto de
competição em tempo integral, que a cinde entre vencedores e perdedores ─, se você é o(a)
empresário(a) de si mesmo(a), é inteiramente responsável pelo seu “fracasso”.
Não se pode deixar de contemplar outro ponto essencial para a lógica neoliberal dos
tempos atuais, o hiperconsumismo. Mandeville acreditava que o consumo das coisas tidas
como supérfluas, como luxo, traziam o bem comum, pois instigavam o comércio interno e
externo, a busca por mercadorias em outros países ─ que garantia as expedições mercantes
além-mar ─, como a seda, para fazer os mais belos vestidos, o que, por sua vez, garantia o
trabalho das artesãs. Logo, a realização dos anseios mais fúteis de um indivíduo e a satisfação
de seus desejos mais luxuosos tinham como consequência o bem comum e deveriam ser
incentivados. Atualmente, é isto que se identifica elevado à mais alta potência, pois hoje
vivemos a era do hiperconsumismo. As pessoas tornaram-se máquinas de desejo infinito e são
constantemente bombardeadas, em todos os seus dispositivos eletrônicos, por algoritmos
programados para identificar seus padrões de consumo e preferências, a fim de mantê-las no
looping de satisfação de desejos inesgotáveis, eis que aqueles mesmos estão programados
para criar a sensação de incompletude e constante necessidade de aquisição. Leia-se, portanto,
que desejo é entendido como tudo aquilo que pode ser objeto de compra, que entra na lógica
do mercado. Pois o “bem comum” que Mandeville via simplesmente não pode ser concebido
como tal contemporaneamente, levando-se em conta, por exemplo, a questão ambiental, em
que a demanda por recursos naturais não renováveis está levando ao esgotamento da
capacidade de manutenção da vida na Terra.
A moral muito imoral de Mandeville, que credita aos vícios a riqueza e prosperidade
das nações, é identificada no âmago da razão neoliberal, mas é preciso ressalvar que não se
pretende dizer que tudo que está na Fábula é replicado no neoliberalismo, seja na sua criação,
com Hayek, seja no contexto mais atual, pois isso incorreria no equívoco de afirmar que a
realidade descrita no século XVIII é a mesma de hoje, e tudo estaria explicado. O que se
pretendeu com este trabalho foi seguir o argumento de Dufour, de que Mandeville teria sido
uma das mentes originárias do que hoje entendemos como neoliberalismo, tanto é que
Friedrich von Hayek, notadamente tido como um de seus fundadores, inspirou-se,
declaradamente, nos preceitos mandevillianos.
4 CONCLUSÃO
A intenção de encontrar essas convergências entre o pensamento mandevilliano e o
neoliberal serviu de justificativa para este artigo, que de forma breve conclui que Mandeville
teria, então, lançado as bases para uma moral (muito imoral) que prega uma nova religião (a
de mercado), considerando o agir em benefício próprio, ainda ou especialmente às custas do
outro, a maior das virtudes. Assim, o neoliberalismo contemporâneo leva a moral de A Fábula
das Abelhas ao seu extremo, quando suas características marcadamente são, por exemplo: o
hiperindividualismo, o espírito de concorrência e o hiperconsumismo.
gorete
gorete
gorete
5 REFERÊNCIAS
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: Ensaios sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
DUFOUR, Robert-Dany. Conferência de Dany-Robert Dufour: “O divino mercado”. Cad.
Psicanál. CPRJ, Rio de Janeiro, ano 32, n. 23, p. 55-66, 2010.
HARCOURT, Bernard E. The Illusion of Free Markets: punishment and the myth of natural
order. Cambridge: Harvard University Press, 2011.HAYEK, F. A. Lecture on a Master Mind: Dr. Bernard Mandeville. The British Academy,
London, p. 125-141, 23 mar. 1966. Disponível em:
https://www.thebritishacademy.ac.uk/documents/2113/52p125.pdf. Acesso em: 29 dez. 2020.
MANDEVILLE, Bernard. A fábula das abelhas ou Vícios privados, benefícios públicos.
Trad. Bruno Costa Simões. São Paulo: Unesp, 2017 [1723].
POCOCK, J.G.A. The Machiavellian Moment. Princeton: Princeton University Press, 1974.
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens políticas e econômicas de nossa
época. Prefácio Joseph E. Stiglitz. Introdução Fred Block. Tradução Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2021.
SPECK, W. A. Bernard Mandeville and the Middlesex Grand Jury. Eighteen-Century
Studies, v. 11, n. 3, p. 362-374, Spring 1978. Disponível em:
https://www.jstor.org/stable/2738198?read-now=1&refreqid=excelsior%3Abc46290407be031
aab33d0a61bc5a4d8&seq=2#page_scan_tab_contents. Acesso em: 21 jan. 2021.
SUSATO, Ryu. An “Ingenious Moralist”: Bernard Mandeville as a Precursor of Bentham.
Utilitas, v. 32, p. 335-349, jan. 2020. Disponível em:
https://www.cambridge.org/core/services/aop-cambridge-core/content/view/E2EFA25DE6AA
E27C1A4A0D09AB61E032/S0953820819000530a.pdf/div-class-title-an-ingenious-moralist-
bernard-mandeville-as-a-precursor-of-bentham-div.pdf. Acesso em: 21 jan. 2021.
VENTURA, Manoel. Guedes diz que dólar alto é bom: ‘empregada doméstica estava indo
para Disney, uma festa danada’. O Globo, 12 fev. 2020. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/economia/guedes-diz-que-dolar-alto-bom-empregada-domestica-est
ava-indo-para-disney-uma-festa-danada-24245365. Acesso em: 18 nov. 2021.
GUEDES: Fies levou até para filho de porteiro para universidade, diz jornal. In: UOL, São
Paulo, 29 abr. 2021. Disponível em:
https://educacao.uol.com.br/noticias/2021/04/29/guedes-fies-levou-ate-para-filho-de-porteiro-
para-universidade-diz-jornal.htm. Acesso em: 18 nov. 2021.

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