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2 IDEOLOGIA, COMUNIDADE E CULTURA 2 IDEOLOGIA, COMUNIDADE E CULTURA ASPECTOS SOCIOLÓGICOS E POLÍTICOS DOS CONTEXTOS COMUNITÁRIOS Este módulo se divide em duas sessões: 1) Aspectos sociológicos dos contextos comunitários, autoria Ariane Gontijo Lopes Leandro; 2) Aspectos ideológicos e políticos e sua relação com os contextos comunitários, autoria Antônio Eduardo Silva Nicácio. FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE4 5 por Ariane Gontijo Lopes Leandro 1. Aspectos sociológicos dos contextos comunitários SESSÃO 1 Para uma abordagem sociológica dos contextos comunitários, apresentamos parte dos processos históricos e culturais da cidadania no Brasil e alguns dos conceitos sobre capital social, visando compreender o reconhecimento de direi- tos e a sedimentação da prática de mediação comunitária – lembrando que a ideia da mediação sempre foi usual entre pessoas e povos desde a história an- tiga, que, de formas distintas, não encontravam maneiras de compartilhar su- as diferenças ideológicas, políticas, culturais e econômicas, portanto, a prática da mediação sempre se prestou, em sua história, como auxílio para pessoas na compreensão de si e do outro, tendo como princípio o comportamento pautado nas inter-relações e em suas diferentes posições e interesses, por isso é identifi- cada como prática milenar. Nesse sentido, este texto proporciona ao leitor a or- ganização de alguns conceitos sociológicos que ampliam a visão dos contextos comunitários, apresentando um leque de aspectos que devem e podem ser con- siderados para o desenvolvimento de experiências em mediação comunitária. 1.1. Aspectos históricos da cultura e da cidadania brasileira Muitas são as interpretações sobre a noção de cultura, adotaremos, para a nossa interpretação, uma proposta sugerida por Motta (1996), que em estudos sobre a “nova” História Política, busca compreender o significado de “culturas políticas”. O autor analisa cultura, considerando a sua dimensão polêmica e pouco consensual entre as correntes dos estudos etnológicos e em torno do debate antropológico: Cultura, então, seria o conjunto complexo constituído pela linguagem, com- portamento, valores, crenças, representações e tradições partilhadas por determinado grupo humano e que lhe conferem uma identidade. (MOTTA, 1996, p. 84) Já a noção de cultura política traduz-se enquanto um conceito multidisciplinar, ou seja, suas ramificações originam-se a partir da confluência de disciplinas que se interessavam em compreender, por meio da incorporação de uma abordagem FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE6 7 comportamental, tendo em vista os aspectos subjetivos, as análises da política e seus fatos políticos. Esta visão, segundo Kurschnir e Carneiro (1999)1, apresenta a noção de cultura política como aquela que se “refere ao conjunto de atitudes, crenças e sentimentos que dão ordem e significado a um processo político, pon- do em evidência as regras e pressupostos nos quais se baseia o comportamento de seus atores”. (KURSCHNIR; CARNEIRO, 1999, p. 1). Portanto, a dimensão da cultura e sua compreensão em dado contexto, pressu- põe a análise das linguagens, dos comportamentos, dos valores, das crenças, das representações e das tradições de um grupo, aferindo-lhes as suas carac- terísticas identitárias, assim, os aspectos culturais que constituíram o contexto brasileiro têm referencia no próprio processo histórico Esse legado histórico teria um peso importante no processo de construção da cidadania no Brasil, desde a Independência até nossos dias. Assim, qualquer abordagem que apresente os contextos comunitários no país precisa considerar todo esse “legado histórico”, que influenciou os comportamentos humanos dos brasileiros e que caracteriza o desenho das instituições políticas do país. Per- ceba, a título de exemplo, como demonstra a figura 01 ao tratar do advento da Independência do Brasil. 1. Estes autores se remetem aos principais estudiosos do conceito de culturas políticas, tais como Al- mond e Verba (1963 e 1980), Pye e Verba (1965), e revisões literárias mais recentes e feitas no Brasil por Krischke (1997) e Rennó (1998). FIQUE DE OLHO Segundo Carvalho (2004), essas características cul- turais se consolidaram também diante do processo de colonização do país pelos portugueses, e que, ao lon- go dos dois últimos séculos, vêm marcando os traços em nossa cultura política, tais como: 1. a escravidão; 2. a economia baseada na monocultura (latifundiária); 3. o modelo e a origem do Estado como base em uma estrutura patrimonialista (tipificado por uma forte “promiscuidade” entre o público e o privado); e 4. o descaso com a educação (população quase que integralmente analfabeta ao longo da consolidação do Estado brasileiro). Figura 1: “Da Colônia ao Império Fonte: PAIVA, M e SCHWARCZ, L. M., 1982. Nas palavras de Carvalho (2004), o Brasil se constitui livre a partir de caracterís- ticas culturais como a negação da própria liberdade humana: O novo país herdou a escravidão, que negava a condição humana do escra- vo, herdou a propriedade rural, fechada à ação da lei, e herdou um Estado comprometido com o poder privado. (CARVALHO, 2004, p. 45) O autor apresenta, ao se debruçar sobre estudos em relação às características culturais do contexto brasileiro e à criação e/ou constituição dos direitos, o de- senvolvimento dos direitos civis, políticos e sociais no caso brasileiro, uma or- dem inversa àquela verificada por Marshall ao tratar da experiência inglesa. FIQUE DE OLHO No Brasil, primeiro teriam se consolidado os direitos sociais, depois os direitos políticos e por último os direitos civis. O “divisor de águas” na consolidação dos direitos teria surgido com a Revolução de 30, principalmente no período do Esta- do Novo, pois foram os direitos sociais os primeiros, de fato, a ganharem maior expressão do ponto de vista da cidadania, haja vista a questão da incorporação e consolidação das leis trabalhistas (GOMES, 1988). Já os direitos políticos sem- pre foram um dilema na história do país, sendo aumentados, diminuídos, e até extintos, desde o Brasil monárquico até a redemocratização do país. Os direitos civis, compreendidos em sua essência pelo direito à liberdade, somente torna- ram-se parte da cidadania com a redemocratização do país na consolidação da Carta Constitucional de 19882. 2. É preciso salientar ainda que, no caso brasileiro, temos um processo histórico diferente daquele descrito por Marshall (1967) quando o autor trata da construção da cidadania na Inglaterra, no en- FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE8 9 Quanto às principais características da cultura política no caso brasileiro, es- sas se aproximam das contribuições de Almond e Verba (1963), da “cultura pa- roquial e súdita”. A cultura paroquial é caracterizada pelas sociedades mais simples com ausência de instituições políticas, ou mesmo, sem a diferenciação das estruturas políticas com relação às religiosas; ela apresenta baixos níveis de participação cívica, política e associativa, na medida em que os atores têm uma visão limitada tanto das estruturas de incorporação quanto às repostas às demandas individuais e coletivas. A cultura política de sujeição aflora em so- ciedades em que os indivíduos dirigem suas percepções, sentimentos e avalia- ções prioritariamente para as estruturas institucionalizadas, como as estruturas executivas e administrativas do Estado que se colocam encarregadas de respon- der e orientar às demandas individuais e coletivas, portanto, essas estruturas muitas das vezes exprimem o que deve ser priorizado com base nessa relação de aceitação dos indivíduos. Assim, com base em Turner, Carvalho (1996) analisa a cidadania no caso brasi- leiro a partir de dois eixos: a. pela direção do seu movimento, ou seja, se a dinâmica que produz a ci- dadania é “de cima para baixo” ou “de baixo para cima”, b. pelas relações entre o “público” e o “privado”.vida e do seu entorno, como também pode servir como instrumento de dominação ideológica ao se elitizar o conhecimento, por meio da construção de códigos herméticos e escusos, que tendem a limitar e iludir o campo de compreensão, colocando na mão de poucos o poder de dominar os processos de construção dos significados dos significan- tes (MAGALHÃES, 2008, p. 239). Tudo isso é revelado por metodologias de traba- lho, de pesquisa e de ensino que não possibilitam o envolvimento daqueles dire- tamente interessados e afetados nas decisões a serem tomadas, bem como no processo de construção do conhecimento que trará significado e poderá repre- sentar a realidade. Aliás, por vezes o conhecimento tradicional de determinados grupos e populações não é só desconsiderado, o que seria por si só um absurdo, mas é também apropriado de forma imoral, autoritária e sem reconhecimento. Em um contexto de dominação, com novas e velhas formas de hierarquias, a gigantesca desigualdade social e de renda e o acesso restrito, pouco equitati- vo dos meios de representação e participação política, põem por terra qualquer expectativa ou discurso de prevalência de valores modernos de igualdade e de justiça. Como mostra Vera da Silva Telles, as hierarquias são sempre repostas diante da “vigência de um mundo legal que não chega a plasmar as regras da civilidade e os termos de uma identidade cidadã” (TELLES, 2006, p. 100). Aliás, a descrição que a autora faz da República Oligárquica guarda fortes semelhanças com os dias atuais. Por mais que a dimensão pública da sociedade seja procla- mada pela lei e institucionalmente garantida, as vontades privadas ainda são mais fortes que sua força normativa. A relação de favores pessoais ainda se mostra uma tônica, quase sempre colonizando as expectativas e possibilidades de representação de interesses de grupos específicos. A força e a violência con- tinuam sufocando de forma incivil os conflitos e oposições que quase nunca têm fôlego para tomar uma forma institucional. A ordem legal facilmente e perma- nentemente se rende aos interesses pessoais. SAIBA MAIS Na música citada de Milton Nascimento, essa dominação ideológica está evidenciada no fato de o filho do fazendeiro ir para uma cidade grande para se tornar doutor, e, posteriormente, voltar para a fazenda com legitimidade para exercer agora o posto de dominador. De um lado, é notória ainda, e desde a época do Brasil rural, a existência de uma dominação pessoal. No interior do nosso país, por exemplo, existe uma enormi- dade de relações que ainda se pautam pela dominação pessoal, com práticas coronelistas e patriarcais. Às vezes, essa dominação se dá até mesmo lançando mão de instrumentos já oficialmente abolidos da nossa história. SAIBA MAIS Como exemplo, tomem-se os inúmeros casos de prisões de fazendeiros que mantém trabalhadores presos em suas propriedades em situação de trabalho escravo. Quase sempre essa prisão é feita não por correntes e grilhões, mas por dívidas que os donos de terra impõem aos seus funcionários. Nas grandes cidades brasileiras, essa situação também ocorre. Número razoável de famílias brasileiras tem suas empregadas domésticas. A maioria vinda do interior para morar nas residências à disposição de seus patrões praticamente 24 horas por dia. Aliás, a própria legislação retrógrada e perversa do emprego doméstico revela essa situação de dominação ainda relacionada ao elemento familístico. O sistema político, nos âmbitos nacional, estadual e municipal, também é tomado dessa lógica de dominação pessoal13. Por outro lado, com a modernização de nossa sociedade criou-se também uma nova forma de dominação impessoal. O sociólogo Jessé Souza introduz a “di- mensão ‘não sabida’ das causas invisíveis da dominação”, que sequer são nota- das (SOUZA, 2009, p. 96). Aliás, esse é o motivo do grande sucesso desse tipo de dominação, o fato de ela não ser percebida, ser realizada por “interesses que se articulam e se sedimentam de modo opaco”, e que “suavizam a violência re- al e a tornam aceitável e até mesmo desejável inclusive para as suas maiores vítimas” (SOUZA, 2009, p. 419). Não se trata aqui de um desejo autêntico, mas sim de uma indução artificial do desejo, que leva legiões de pessoas a agirem contra elas mesmas e a se converterem em protetores do sistema agindo contra elas mesmas e tudo o que elas dizem proteger. Para Jessé Souza, o segredo da 13. Veja, por exemplo, a recente altercação no Parlamento Brasileiro entre dois senadores. Um não parava de se referir ao outro de forma hostil e agressiva usando as expressões “coronel” e “cangacei- ro”. Aliás, um deles ainda repetia incessantemente uma expressão interessante: “o senhor é uma mi- noria com complexo de maioria”, deixando claro sua inaptidão em lhe dar com as chamadas minorias, mesmo quando essas compõem o seu próprio grupo específico, qual seja o de senador, empresário e retirante. As palavras e as imagens dessa contenda, que podem ser assistidas em site popular de vídeos na internet (link: http://www.youtube.com/watch?v=MmescFJR2VQ&feature=fvw) provam por si só como o nosso país está inserido nessa lógica de dominação pessoal, que se trata de uma bilate- ralidade, entre favor e proteção, que possibilita a criação de um sistema complexo de alianças e rivali- dades (FREYRE, apud SOUZA, 2003, p. 118), e de autoritarismo, populismo e messianismo. FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE38 39 dominação moderna está no fato de existirem na nossa sociedade pressupostos desigualmente distribuídos por pertencimento de classe. Desse modo, todos os privilégios de uma sociedade moderna não são decorrentes de mérito ou talento individual. Jessé Souza considera que a hierarquia social de toda a sociedade moderna tem como elemento estrutural os capitais econômicos e culturais, bem como sua invisibilidade. O autor entende por capital cultural exatamente a con- jugação dos valores herdados e do capital escolar (SOUZA, 2009, p. 79), isto é, todos os valores que são absorvidos no âmbito familiar, social e escolar durante o processo de formação de uma pessoa. Convivem essas relações de dominação, como irmãs praticamente siamesas, as relações de discriminação às quais estão expostos os grupos sociais que levam no seu cotidiano uma vida precária. SAIBA MAIS Sobre essa situação bastante usual em nossa sociedade, o legendário Billy Blanco compôs o samba “A banca do distinto”. Os seus versos “Não fala com pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho, mas pra que tanta pose doutor, pra que tanto orgulho?” retratam bem a realidade de discriminação da época e, de certo modo, muito do que ainda acontece nos dias atuais. Você pode ouvir esse samba pelo seguinte link: http://www.youtube.com/watch?v=o6o9PJXTFn8 FIQUE DE OLHO O professor Márcio Túlio Viana afirma haver pelo menos dois modos de dis- criminar (VIANA, 2010, p. 143). Discrimina-se, de maneira bastante visível, fe- rindo as regras vigentes no sistema. Por agredir nossas consciências, esse tipo de discriminação é quase sempre reprimida. A outra forma de discrimi- nação, mais velada, é se utilizando das próprias regras. Por fazer parte do jo- go, normalmente essa maneira de se discriminar não é percebida, ou quando denunciada os discriminadores são absorvidos numa ciranda de impunida- des com relação aos marginalizados. Segundo Márcio Túlio, “a discriminação se esparrama por todos os lugares porque ela é própria do sistema em que vivemos, e este sistema, que divide os homens, está em todos os lugares ao mesmo tempo” (VIANA, 2010, p. 144). Para o autor, esse tipo de discrimina- ção atinge a todos de forma massificada e estrutural, infiltrando-se até em nossas consciências. No livro Cabeça de Porco, Luiz Eduardo Soares relata que a força do estigma e do preconceito “é toda afetiva e nunca apenas cognitiva” (SOARES apud SOU- ZA, 2009, p. 95). Desse modo percebe- se que quando se fala de discriminação inevitavelmente tem-se que discutiras precondições sociais e afetivas dos in- divíduos e grupos que compõem a nos- sa sociedade. Ou seja, o que Pierre Bor- dieu chama de habitus específicos. Nos dizeres de Souza, habitus específicos pode ser considerado como: (...) os esquemas cognitivos e avaliativos transmitidos e incorporados de modo pré-reflexivo e automático no ambiente familiar desde a mais tenra idade, permitindo a constituição de redes sociais, também pré-reflexivas e automáticas, que cimentam solidariedade e identificação, por um lado, e antipatia e preconceito, por outro – o lugar fundamental na explicação da marginalidade do negro (SOUZA, 2003, p. 158). É importante notar que esses esquemas que utilizamos para entender e avaliar o mundo são adquiridos de maneira espontânea e não problematizada no âmbito doméstico desde a primeira infância. Ou seja, é toda uma forma de perceber as coisas da vida que nos é transmitida, sem que haja por nossa parte uma refle- xão sobre a conveniência, a adequabilidade e, até mesmo, a validade desse ha- bitus. Ele simplesmente é. Em caso de desacordo, mudá-lo é uma tarefa difícil. É a partir desses esquemas que constituímos nossas redes sociais. As pessoas e os grupos com os quais nos identificamos e somos solidários, bem como as que nos geram antipatia e preconceito. E é exatamente o ponto que tange à consti- tuição histórica de preconceitos que interessa para a análise da discriminação. Para o professor Dalmo de Abreu Dallari, o preconceito, que deve ser evitado por meio de uma permanente autofiscalização, “além de introduzir a discriminação, restringe a liberdade, acarreta a perda de respeito pela pessoa humana, intro- duz a desigualdade e a injustiça”. (DALLARI apud ARNS, 2010, p. 17). Neste sen- tido, Souza (2009) parece ser bastante assertivo ao indagar pelos motivos dos sujeitos possuírem determinados preconceitos e não outros. Segundo o autor, apenas a partir dessa reflexão, pode-se encontrar a explicação para as “razões opacas da ‘dominação social’ impessoal que cria os estigmas e preconceitos no mundo moderno”. (SOUZA, 2009, p. 96). Como se podem perceber, esses pro- cessos de discriminação estão intrinsecamente relacionados com a dominação social. Neste caso, principalmente, vinculados a sua característica impessoal. FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE40 41 Para Jessé, a questão da discriminação não está ligada diretamente ao precon- ceito de cor, mas a certo tipo de personalidade, segundo o autor, “julgada como improdutiva e disruptiva para a sociedade como um todo” (SOUZA, 2003, p. 159). O sociólogo acredita ser a cor da pele apenas uma ferida a mais à autoestima do sujeito, deslocando o centro da problemática para a conjugação do abando- no com a inadaptação (SOUZA, 2003, p. 159). Para ele, seriam esses dois últi- mos fatores definitivos para a discriminação social que atingem todos os grupos sociais, independentemente da cor de seus integrantes. No entanto, diferente- mente de Souza, e mais próximo de Florestan Fernandes em seu clássico A inte- gração do negro na sociedade de classes, acredita-se que a forte discriminação racial existente no Brasil, além do evidente abandono social e da inadaptação de alguns desses grupos, atua de forma contundente para a expressiva exclusão e marginalização do povo negro e das minorias identitárias na nossa sociedade. Da inclusão parcial do negro na sociedade brasileira decorreu a formação de es- truturas naturalizadas e não tematizadas de discriminação (MORAES; AMARAL, 2008, p. 553). Houve, a partir dessa naturalização, uma migração do padrão de discriminação do negro para as demais minorias identitárias, havendo um alar- gamento da parcela da população marcada pela exclusão. Neste sentido, Nancy Fraser afirma ser uma estrutura político-econômica que gera modelos específi- cos de exploração, marginalização e privação em função da raça e é esta estru- tura que constitui um grupo ‘diferente’. No entanto, Añón (2011, p. 120) amplia de forma correta essa análise, ao assegurar que o característico da raça, igual à do gênero, é que se trata de uma situação cujas raízes não se encontram apenas na estrutura político-econômica, mas também na dimensão cultural e valorativa. As relações de discriminação são tão marcantes em nossa sociedade que, até mesmo no processo de criação, aplicação e fiscalização das leis, elas encontram morada. Em todos estes momentos de institucionalização da legalidade, os se- tores permanentemente excluídos e discriminados não participam da tomada de poder, ou quando participam se fazem representados de forma extremamente precária por lideranças quase sempre não legítimas. Jessé Souza denuncia a construção arbitrária da legalidade e da ilegalidade como um momento de cria- ção de estigma e preconceito14 . Para o autor (SOUZA, 2009, p. 425), ao se in- ventar de maneira arbitrária o “delinquente”, cria-se, consequentemente, o “es- tigma” como marca negativa de determinados grupos sociais – ou, como preferir, de uma única classe social. As camadas sociais que se encontram em situação de exploração são as mais afetadas por este estigma da delinquência. E contra- ditoriamente são também as que mais o legitimam. O perverso é que esse fa- to põe em risco a solidariedade desses grupos, cuja semelhança principal é se encontrarem excluídos da nossa sociedade. De um lado existem os “excluídos honestos” e de outro os “excluídos delinquentes”, assim pensam. Sendo que boa parte do esforço despendido com a educação dos integrantes desses grupos sociais é no intuito de evitar a delinquência. Como nos aponta Souza (2009, p. 426), a única maneira de alguém da ‘ralé’ – termo que provocativamente ele usa 14. Também em Telles, 1999, p. 100. para chamar os integrantes dos diversos grupos sociais explorados e excluídos da nossa sociedade - conquistar autoestima e reconhecimento é se diferenciar do delinquente, quase sempre também excluído. Viana, ao apontar para a questão moral do tema, indaga se “as discriminações maiores ou menores, que nós mesmos – por ação ou omissão, de forma cons- ciente ou não – provocamos poderão algum dia, ou de algum modo, voltar-se contra nós?” (VIANA, 2010, p. 149). Tal questionamento mostra-se valioso ao despertar a responsabilidade de cada um enquanto potencial discriminador e a importância do comprometimento pessoal e afetivo de cada pessoa para por fim a essa ciranda discriminatória, que só nos diminui enquanto ser humano. Dai a necessidade que justifica a existência dos direitos das “discriminações positi- vas15” (EWALD, apud TELLES, 1999, p. 147). Para compor o tripé dessas relações perversas, que caracterizam a violência simbólica a que está exposta boa parte da nossa sociedade, destacam-se, ao lado das relações de dominação e discriminação, as relações de submissão. SAIBA MAIS Gonzaguinha, em seu samba “Comportamento Geral”16 , retrata, como ninguém, a submissão e a resignação que se espera de todas essas pessoas e grupos sociais permanentemente explorados e discriminados em nossa sociedade. Ouça o samba no seguinte link: http://www.youtube.com/watch?v=RLxQ1UyHDD4 Sem dinheiro, sem emprego, sem afeto, sem reconhecimento, sem memória, sem história e sem perdão. Que vivem esquecidos às margens de nossa sociedade e são obrigados a se esquecer de suas dores e seus sofrimentos para que a vida seja possível e tolerável. Que têm que baixar a cabeça e serem bem comportados, disciplinados, ordenados e, ironicamente, agradecidos. É por meio dessas relações de submissão que se pode ter nítido o quão cruel e perverso é a forma excludente e segregadora na qual nossa sociedade se constituiu e se reproduz. 15. O debate em prol da concretização de ações afirmativas por meio de cotas encontra boa parte do seu fundamento na necessidade de, em determinados momentos, se realizar “discriminações positivas”. 16. O samba “Comportamento Geral”, considerado o primeiro grande sucesso de Gonzaguinha e gra- vado pela primeiravez em um compacto simples lançado pela Odeon, em 1972, tem a seguinte letra: “Você deve notar que não tem mais tutu e dizer que não está preocupado. Você deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado. Você deve estampar sempre um ar de alegria e dizer: tudo tem melhorado. Você deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que está desempregado. Você deve apren- der a baixar a cabeça e dizer sempre: “Muito obrigado”. São palavras que ainda te deixam dizer, por ser homem bem disciplinado. Deve pois só fazer pelo bem da Nação tudo aquilo que for ordenado. Pra ga- nhar um Fuscão no juízo final e diploma de bem comportado. Você merece, você merece. Tudo vai bem, tudo legal. Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé, se acabarem com o teu Carnaval?” FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE42 43 Paulo Freire é categórico ao afirmar que os “oprimidos tendem a hospedar o opressor em si” (FREIRE apud NUNES, 2010, p. 467), o que fatalmente leva a uma situação ingrata, uma vez que se por um lado o oprimido passa a ter vergonha de si mesmo, por outro aumenta as possibilidades de ele passar a oprimir outras pes- soas e grupos. Essa introjeção da opressão, elemento fundamental para a cons- trução da identidade da submissão, denominada por Paulo Freire de “autodesva- lia”, contribui de forma expressiva para a contenção das reivindicações de direito e de reconhecimento. Ao se sentirem culpados pela própria desgraça, ou julgarem que o fracasso vivido cotidianamente é responsabilidade de alguma maldição ex- terna, as pessoas não se enxergam como sujeitos de direitos. Nos dias atuais, en- contra-se em situação de opressão quem de alguma maneira está exposto às se- guintes situações: (a) Exploração, quando não se recebem os benefícios do próprio trabalho e estes beneficiam a outros; (b) Marginalização, como exclusão da participa- ção na maior parte das atividades sociais que em nossas sociedades signi- ficam em primeiro termo um lugar de trabalho; (c) Carência de poder, en- quanto se desfruta de um trabalho autônomo escasso ou nulo e de escassa autoridade sobre o mesmo. (d) Imperialismo cultural, como grupo constitui um estereótipo ao mesmo tempo em que sua experiência e situação são invisíveis na sociedade em geral e têm poucas oportunidades e pouca au- diência para poder expressar suas experiências em acontecimentos sociais. (e) Violência e perseguição sistemática, enquanto os membros do grupo sofrem ou experimentam violência ao acaso e perseguição motivadas pelo medo, o ódio e o desprezo (YOUNG, apud AÑÓN, 2001, p. 134). Entende-se que a precarização ou ausência de um trabalho que seja digno ocupa um lugar central nessa discussão acerca da opressão. No entanto, vários outros fatores contribuem para que essa opressão ganhe força e se mantenha no tem- po. Gilberto Freyre, em sua obra, desenvolve o conceito de escravidão mulçumana, que, segundo Jessé Souza, se trata de uma estratégia de domínio que “permite uma expansão e durabilidade da conquista inigualáveis, na medida em que as- socia o acesso a bens materiais e ideais muito concretos à identificação do do- minado com os valores do opressor” (SOUZA, 2003, p. 106). E é essa identifica- ção do dominado com os valores do opressor o fator decisivo para a identidade da submissão, que tem como decorrência mais danosa o comportamento geralmente resignado dos integrantes destes grupos específicos, que sistematicamente têm sido marginalizados na nossa sociedade. Essa identificação vem desde os tem- pos mais remotos da nossa sociedade e tem como marca a associação do mulato com os valores do seu senhor, como uma das formas de ascensão social que nos descreve Gilberto Freyre. Ao gerar uma forte subordinação e baixa autoestima dos excluídos, essa estratégia também garante a diferenciação e a mobilidade social dos setores da nossa sociedade que ocupam tradicionalmente o papel de domínio. A suposta igualdade formal é outro aspecto importante que colabora para deixar esse processo de submissão imperceptível – ou melhor, intencionalmente dissimu- lado – e ainda gera uma sensação de “boa vontade” por parte de todos os que participam desse movimento de exploração sistemática de determinados grupos sociais, quase sempre presos à subsistência material. A igualdade, consagrada como princípio fundamental da nossa Constituição e constitutiva dos direitos de cidadania, só se tornará efetiva se internalizada e reivindicada no cotidiano das pessoas, grupos e instituições, em face da hierarquia que prevalece institucional- mente e que define de forma ardilosa quem é ou não cidadão, alimentando, inclu- sive, uma cultura política desvirtuada pautada pela lógica do favor e do temor. A partir daí, os próprios integrantes desses grupos excluídos passam a desenvolver um discurso autolegitimador e fantasioso acerca de suas vidas. SAIBA MAIS Como de forma sarcástica e sempre genial, apresenta Adoniran Barbosa em “Aguenta a mão João”. Ouça a canção no seguinte link: http://www. youtube.com/watch?v=uhOBaJN7O08 Diante da constatação de uma forte chuva que pôs a baixo o barraco do João, um desses inúmeros moradores de áreas de vulnerabilidade e exclusão social das nossas cidades que a todo o momento são notícias como vítima de tragédias climáticas, o interlocutor reafirma o comportamento resignado que se deve ter nessas horas: “Não reclama contra o temporal, que derrubou seu barracão. Não reclama, aguenta a mão João, com Alcebides aconteceu coisa pior. Não reclama, pois a chuva só levou a sua cama. Não reclama, aguenta a mão João, que amanhã tu levanta um barracão muito melhor.”. FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE44 45 Se por um lado “os direitos de cidadania são conditional oportunitties ou ‘próteses sociais’ que permitem ao cidadão reforçar suas expectativas sociais e lutar com maiores possibilidade de êxito pela afirmação de seus valores individuais e coleti- vos” (AÑÓN, 2001, p. 95), por outro a formalização desses direitos, em dissonân- cia com uma prática que imuniza sua aplicação, aprisiona esses grupos e retira deles sua força de reação e desobediência a uma realidade segregadora. Uma vez que existe o direito, a possibilidade de revolta é bem menor, tendo em vista a ex- pectativa, quase sempre frustrada, que esses direitos impõem. O direito para ser válido tem que ser emancipador, jamais aprisionante. Todo direito que em algum momento foi construído, mesmo que seja como resultado de um processo demo- crático, que serve na prática para oprimir, alienar e excluir pessoas e grupos deve ser rejeitado. SAIBA MAIS Neste ponto, novamente quem nos guia é Paulo César Pinheiro, com sua Capoeira de Besouro. No Toque de São Bento Grande de Angola, que dita um jogo mais rápido e com golpes objetivos, mas não menos malicioso e envolvente, o seu canto nos remete a uma vida mais igualitária e libertária: “Esse mundo não tem dono e quem me ensinou sabia. Se tivesse dono o mundo, nele o dono moraria. Como é mundo sem dono, não aceito hierarquia. Eu não mando nesse mundo, nem no meu vai ter chefia”. Ouça a canção no link: http://www.youtube.com/watch?v=6G9UAYX0D-Y 2.2. Lógica da meritocracia Lógica responsável por definir quais serão os vencedores e os perdedores das sociedades modernas, a meritocracia não é privilégio apenas do Brasil. Trata- se da principal ideologia do mundo contemporâneo. Produzida pelo mercado e pelo estado, a meritocracia funciona como um sistema supostamente natural e neutro de hierarquização entre indivíduos e grupos sociais. No entanto, a própria ordem competitiva não é neutra, tem as suas hierarquias. A lógica da meritocra- cia se realiza nas nossas sociedades a partir do funcionamento da Ideologia do Desempenho. Noção formulada por Kreckel, no intuito de refletir sociologica- mente sobre a produção da distinção social, esta ideologia do desempenho re- presenta uma das principais formas de legitimação e naturalização da desigual- dade atualmente. Traz implícita,em sua formulação, o pensamento de que há um valor intrinsecamente diferenciado entre os seres humanos, o que termina por possibilitar a legitimação da desigualdade, que passa a ser vista como resul- tado de uma disputa justa. FIQUE DE OLHO Para Kreckel (apud SOUZA, 2003, p. 169), “a ideolo- gia do desempenho baseia-se na ‘tríade meritocrática’ que envolve qualificação, posição e salário”. Sendo que a qualificação é o aspecto considerado de maior importância, capaz de condicionar os demais. O cida- dão pleno e integral somente é aquele que consegue realizar uma articulação da tríade da ideologia do de- sempenho. Como mostra Jessé Souza (2003, p. 171), é a aceitação e a internalização generalizada do princí- pio do desempenho que fazem com que a inadaptação e a marginalização de determinados grupos sociais possam ser percebidas por todos como um fracasso pessoal, visto como uma responsabilidade exclusiva do próprio sujeito fracassado. Como a regra é clara e falaciosamente igual para todos, o indivíduo que não consegue obter sucesso dentro dessa lógica é ele mesmo considerado o culpado. É por este motivo que se discrimina e humilha esses grupos que não conseguem obter sucesso dentro da lógica meritocrática. O processo de exclusão moral de- pende de se conseguir introjetar nas pessoas certas ideias falsas. “Uma delas é o ‘mito do mérito’: as pessoas se convencem de que a vida é só para quem ‘merece’” (ARNS, 2010, p. 23). Deste modo, a ideologia do desempenho passa a ser uma importante fonte tanto de valorização social, como diz Axel Honneth, capaz de estimular os laços de solidariedade social, como principalmente fonte de distinções sociais, como aponta acertadamente Souza (2003, p. 171), que se alimentam e se justificam em decorrência da suposta neutralidade dessa lógica meritocrática, que, colocada em marcha por meio da vigência da ideologia do desempenho, pressupõe uma falsa igualdade e liberdade entre todas as pesso- as. Todos estão de acordo de que os vitoriosos sejam diferencialmente recom- pensados. Essa é a “incivilidade que se ancora num imaginário persistente que fixa a pobreza como marca da inferioridade, modo de ser que descredencia indi- víduos para o exercício de seus direitos” (TELLES, 1999, p. 87). Dentro dessa ló- gica, os grupos excluídos passam a ser vistos como a imagem da incapacidade FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE46 47 No entanto, o que a lógica da meritocracia desconhece, ou nega não identificar, é que nem todas as pessoas e grupos sociais possuem as mesmas capacidades e precondições sociais. O que ela faz é universalizar os pressupostos de determi- nados grupos sociais17 – principalmente os que dominam o capital cultural – pa- ra todos os demais, como se as condições de vida dos mais diversificados grupos sociais da nossa sociedade fossem idênticas. Jessé Souza fala de um “‘esqueci- mento’ do social no individual” (2009, p. 43), ou seja, da importância de todas as precondições sociais, além das emotivas e cognitivas, para que um indivíduo seja bem-sucedido dentro da ideologia do desempenho. E é exatamente este aspecto que evidencia a quão falha é a lógica da meritocracia, por desconsiderar a impor- tância dos “mecanismos de identificação afetiva” (SOUZA, 2009, p.23) que permi- tem aos pais transmitirem cotidianamente a seus filhos capacidades e habilidades necessárias para que o desempenho proclamado pela lógica da meritocracia seja realmente diferencial. 17. Neste sentido, Jessé relata que a burguesia foi a primeira classe social cuja economia emocional foi marcada pela contenção, disciplina e pensamento prospectivo (o futuro é mais importante que o presente). Para ele houve uma “quebra da dupla moral que caracterizava toda a classe dominante pré-moderna. Como a burguesia é a primeira classe dominante que trabalha, (...) ela pode, com mui- ta legitimidade, propor para as classes inferiores sua própria economia emocional e seu próprio pa- drão de conduta” (SOUZA, 2009, p. 399). O seu argumento é muito esclarecedor na medida em que mostra o motivo pelo qual determinados grupos sociais tendem a impor os seus valores e padrões de conduta aos demais. e da impotência. Nesse sentido, a própria estrutura montada pelo Estado para lidar com esses grupos “fracassados” faz parte dessa ideologia. É o que Aldaíza Sposati chama de “mérito da necessidade” (SPOSATI apud TELLES, 1999, p. 95). Por isso, essa ideologia do desempenho é gerada tanto pelo mercado quanto pelo Estado. Aos perdedores dessa lógica meritocrática é reservado um lugar especí- fico, os serviços assistenciais do Estado, que terminam por atribuir aos excluídos uma chancela oficial do fracasso. É disso que Jessé Souza fala quando afirma que “a atribuição de respeito social nos papéis sociais de produtor e cidadão passa a ser mediado pela abstração real já produzida por mercado e Estado aos indivíduos pensados como ‘suporte de distinções’ que estabelecem seu valor relativo” (SOU- ZA, 2003, p. 169). O mais perverso dessa lógica da meritocracia é que ela atribui legitimidade às sociedades contemporâneas enquanto sociedades justas. A meritocracia atua de forma fundamental para a reprodução e naturalização da desigualdade social, ao considerar essas desigualdades justas, uma vez que geradas por um proces- so “neutro” de competição, em que o vencedor é aquele que mais se esforça para obter um desempenho diferenciado. É por mérito que privilégios são destinados a determinadas pessoas e grupos. É de maneira legítima que a desigualdade é produzida. Por isso mesmo que a lógica meritocrática deve ser considerada uma ideologia, que contorna inclusive o próprio conceito moderno de justiça social. FIQUE DE OLHO Tal lógica é responsável por criar, por parte do Esta- do e de maneira perniciosa, a figura do necessitado, transformando a pobreza num retrato do fracasso in- dividual de uma pessoa ao se relacionar com as múlti- plas tarefas da vida. Por fim, o mérito da necessidade “transforma a ajuda numa espécie de celebração pú- blica de sua inferioridade” (TELLES, 1999, p. 95). FIQUE DE OLHO Tudo isso compõe o que se chamou de habitus. Para inúmeros grupos so- ciais, não passa de um habitus precário. Para a meritocracia, essas capa- cidades e habilidades, que compõem uma verdadeira “herança afetiva” (SOUZA, 2009, p. 23) para o indivíduo e, às vezes, para grupos sociais in- teiros, são consideradas como mérito pessoal e talento inato do sujeito, o que, como se viu, será a justificativa última para que a desigualdade per- manentemente produzida seja entendida como justa. Sobre esta questão, é necessário que essa lógica meritocrática, legitimada política e socialmente em nossa sociedade, que transfere ao excluído toda a responsabilidade pe- la sua situação, sem ao contrário oferecer instrumentos concretos para que esse problema tenha uma solução, seja revista e abandonada, uma vez ser evidente;e sua contribuição sobremaneira para a produção, reprodução e naturalização da desigualdade social. Faz-se urgente que a sociedade bra- sileira incorpore no seu cotidiano princípios que fomentem a solidariedade, o cuidado e o reconhecimento, abandonando de vez essa mentira ideológi- ca que se chama meritocracia. FIQUE DE OLHO Nos dizeres de Jessé Souza (2009, p. 388), a meritocracia é uma ilusão que legitima a dominação social em todas as sociedades ocidentais ou ociden- talizadas por meio precisamente da ilusão da ausência de dominação so- cial injusta. FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE48 49 2.3. Hegemonia do economicismo “No tempo em que eu tinha meu dinheiro, tinha meus companheiros, tinha tudo ao meu lado. Hoje o dinheiro se acabou, companheiro foi se embora, até meu amor me deixou”. O samba de roda “Chora, Viola”, de domínio público, é um re- trato bastante melancólico do principal valor que tem orientado as sociedades modernas ocidentais e também as sociedades ocidentalizadas: o dinheiro, con- siderado praticamentecomo um fim em si mesmo. A letra do samba leva a uma leitura altamente ilusória e presente nos dias atu- ais, a de que com o dinheiro supostamente se tem tudo, sendo que na sua au- sência restam o abandono e a solidão. Essa idolatria moderna pela produção e pelo acúmulo de dinheiro, cujo sistema próprio é a economia, tem contaminado todas as dimensões normativas da nossa sociedade, da política ao direito, da moral à ética. Todas essas esferas têm sido, de certo modo, para usar um termo cunhado por Habermas, colonizadas pela economia. Os princípios, as regras, as diretrizes e os interesses do sistema econômico têm passado a reger em boa medida outros sistemas da nossa sociedade como o jurídico e o político, tiran- do-lhes a autonomia e contaminando-lhes normativamente. As regras das co- munidades políticas e jurídicas têm sido feitas pelas grandes empresas, tornan- do-se os políticos e os juristas, em sua grande maioria, meros porta-vozes do interesse econômico. Os discursos políticos e jurídicos têm sido completamente influenciados pelo interesse econômico. Daí se falar em hegemonia do econo- micismo, entendida como a onipresença da economia na vida contemporânea, que assume características quase que de uma religião altamente fanática, ex- tremista e intolerante. Para o economicismo, os problemas de toda e qualquer ordem de uma socie- dade só serão e deverão ser resolvidos por meio da produção e, principalmente, da acumulação econômica. Esse modo de ver, avaliar e se posicionar no mundo tem sido uma tônica – não passível de críticas, sob o risco de fortes represálias inclusive vexatórias – de quase todas as pessoas e grupos sociais. Do doutor es- pecialista ao “homem-estatística”, do rico empresário ao “homem-fracassado”, todos compartilham da lógica de que o valor supremo, o grande dogma intocável da atualidade, que manda e orienta a nossa sociedade, é a economia. SAIBA MAIS Ouça a canção “Chora, Viola” em: http://www.youtube.com/watch?v=nVSFO6vUtPQ FIQUE DE OLHO Neste sentido, o anúncio do Comitê de Política Mo- netária (Copom) sobre possíveis mudanças na taxa do Sistema Especial de Liquidação e Custódia, a di- fundida taxa Selic, que tem sido o indicador que nor- teia o balizamento das taxas de juros cobradas pelo mercado brasileiro, passa a ser um dos eventos mais aguardados do país. Na vida prática, contudo, poucas pessoas entendem o que as mudanças desta taxa re- almente significam. E é isto o que mais assombra. Essa hegemonia do economicismo, fruto de um liberalismo tacanho e limitado, que se transveste a todo o momento de “crítica social” (SOUZA, 2009, p. 72), contribui de forma bastante forte para a produção e naturalização da enorme desigualdade social brasileira. Toda uma teoria conservadora é criada para jus- tificar essa hegemonia, que termina por colonizar também a ciência social, o di- reito e o debate público em geral, que passam a ser servis ao economicismo. Co- mo exemplo disso, tem-se a “Análise Econômica do Direito”, que, como informa o constitucionalista Alexandre de Morais (ROSA, 2008, p. 19), é um movimento metodológico – e ideológico – surgido na Universidade de Chicago no início da década de 60 do século passado que busca aplicar os modelos e teorias da Ci- ência Econômica na interpretação do Direito. São precursores e expoentes des- se movimento os professores Ronald Coase e Richard A. Posner, ambos da Uni- versidade de Chicago, e Guido Calabresi, da Universidade de Yale. A observação trazida por Souza acerca do debate público realizado sobre o que se costumou chamar de “gargalo no crescimento econômico” (2009, p. 22), expressão bas- tante famosa até pouco tempo, é muito interessante para que se possa ver a forma como o discurso economicista impregna a análise de problemas sociais causados por uma gama de fatores, como tem se tratado no decorrer desse trabalho. Tal “gargalo”, que tinha como causa declarada a ausência de mão de obra treinada, era visto como um problema tão somente econômico, sem que se atentasse para o fato de que vários grupos sociais eram – e ainda são – perma- nentemente reproduzidos como despreparados e desqualificados para o traba- lho produtivo justamente porque se está em uma sociedade capitalista competi- tiva, que sequer se enxerga como sociedade, mas sim como um mercado, que é o início e o fim de todas as coisas. Como resultado dessa hegemonia do economicismo na nossa sociedade, desta- ca-se, dentre outros, o que Virgílio Maurício chama de empobrecimento socio- ambiental. A hegemonia do economicismo impõe um estilo de desenvolvimento que tem gerado no Brasil, “de um lado, a degradação ambiental e, de outro, a perda da dignidade e o cerceamento da construção da cidadania para parcelas FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE50 51 expressivas da população” (VIANA, 2010, p. 367). A problematização da hege- monia do economicismo e da lógica mercadológica, entranhada em todas as es- feras do nosso viver, causando efeitos nefastos, será fundamental para a revisão desse modelo e para que os princípios norteadores de uma convivência social harmoniosa sejam libertos da ideologia que se tornou o economicismo nos dias de hoje. Um tempo em que tudo é mercado. Tudo tem um preço nessa lógica ide- ológica que tem transformado a vida contemporânea num grande mercado pú- blico, sem sequer ao menos ter toda a beleza da diversidade de sabores, cheiros, cores, ruídos dos mercadões populares. Tudo é pasteurizado, tem o mesmo sa- bor, o mesmo cheiro e o mesmo preço. Como aponta Milton Santos, “em lugar do cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário” (SAN- TOS, 1987, p. 13). Neste contexto, até mesmo a efetivação dos direitos sociais é vista como uma conquista pessoal. Betânia Alfonsín, ao analisar a especulação imobiliária sofrida por alguns as- sentamentos irregulares logo após o momento que estes são regularizados fun- diariamente, mostra que, neste mercado, profundamente antagônico, as pres- sões que ele realiza estão sempre presentes e atuam na informalidade também (2000, p. 259). Muitas vezes os processos de regularização fundiária, que em te- se deveriam servir para trazer segurança e dignidade à moradia de uma grande população, servem mais aos interesses econômicos de setores e grupos especí- ficos da nossa sociedade do que aos próprios moradores. Com a valorização dos terrenos obtida após a regularização de determinados assentamentos informais, o que ocorre é a ascensão de nível ou faixa do imóvel, que passa a ter valor de comercialização em uma fatia mais alta de um mercado estruturalmente unifica- do (ALFONSIN, 2000, p. 259). A partir daí, é fácil fazer com que esses terrenos, muitas vezes nobres por estarem em regiões de alta valorização, sejam retirados da população segregada que os ocupa, bastando para isso a especulação imo- biliária entrar em ação e comprar o terreno18. A própria noção de cidadania passa a ser condicionada pelo economicismo, pa- ra o qual o cidadão pleno é confundido com o consumidor, excluindo aquele que não o for (ARNS, 2010, p. 17). Deste modo, a independência, a autonomia e a in- gerência do sistema econômico, que passa a ditar ordens para os demais siste- mas como o direito e a política, são responsáveis para o que Zolo chama de for- malismo jurídico e político (ZOLO, apud AÑÓN, 2001, p. 87), sistemas que veem suas forças serem esvaziadas diante das pressões advindas do economicismo. No que tange ao campo específico do direito, a hegemonia do economicismo ge- ra resultados desastrosos. Ao se revestir de pressupostos de igualdade e liber- dade, fazendo-se legitimar até mesmo pelos grupos sociais mais marginalizados da sociedade, o economicismo, sempre avesso aos direitos sociais, tende a pre- encher os novos espaços vazios com as suas próprias regras (VIANA, 2010, p. 18. Alfonsín fala da importância dos terrenos, alvos de assentamentos regularizados pela via da usu- capião, serem considerados como ZEIS (Zona Especial de InteresseSocial), como prevenção mínima contra ataques especulativos (ALFONSIN, 2000, p. 233). 149). José Luiz Quadros chama a atenção para a crise que o Direito Constitucio- nal passa na atualidade. Segundo o professor (MAGALHÃES, 2008, p. 247), este problema decorre da submissão do Direito aos pseudoimperativos matemáticos do discurso econômico, que, em toda a história do constitucionalismo moderno, considerou a própria democracia como uma exceção tolerada. Neste contexto, o que Quadros chama de “a despolitização do mundo” (MAGALHÃES, 2008, p. 250) passa a ser um instrumento importante para que o economicismo tenha garantido a sua hegemonia. Deste modo, a reverência simbólica à Constituição, presente até mesmo nos re- gimes totalitários19, deixa de existir, sendo que esta “passa a ser um mero signi- ficante no mercado jurídico, sem a força de referência do passado” (ROSA, 2008, p. 28). Diante do economicismo, o direito, com seus princípios e fundamentos, se encolhe, perde sua força normativa e, principalmente, passa a ser instrumento para uma razão que encontra autoridade para além de um processo de constru- ção política, dialógica e democrática20. Como contraponto a essa hegemonia do economicismo, algumas vozes têm se enunciado no cenário político, jurídico e acadêmico. Mesmo que esses discursos dissonantes ainda se façam com pouco destaque, certamente deles partirão o gérmen para a reorganização e harmonização da nossa sociedade. Maria Tereza Fonseca, ao estudar a obra de Michel Bouvier, observa a necessidade de que a ciência financeira seja tratada no âmbito da política, pois sem organização polí- tica não há fim coletivo a ser satisfeito, nem despesas públicas para assegurar a realização e, por consequência, não há encargos públicos para procurar as re- ceitas coletivas indispensáveis para a cobertura das despesas, ou seja, não há atividade financeira (BOUVIER apud DIAS, 2008, p. 475). Ou seja, é preciso dizer que o economicismo depende da política, bem como da moral e do direito, pois como mostra Maria Tereza Dias, lançando mão das formulações teóricas de Bou- 19. Os regimes de exceção sempre se fundamentaram simbolicamente por meio de alterações na Constituição. 20. Habermas, em Faticidade e Validade, relata que a razão não pode estar centrada numa autorida- de estranha, residindo em algum lugar além da comunicação política (RIBAS, 1997, p. 223) FIQUE DE OLHO Destaca-se que esta despolitização deve ser compre- endida como a alienação e o desvirtuamento das fun- ções e dos princípios da política, da ética, da moral e do direito, por meio da interferência autoritária e ideo- lógica do sistema econômico em todas essas esferas. FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE52 53 vier, Esclassan e Lassale, “(...) a despesa pública, sob sua forma exclusivamente social, é conduzida a se beneficiar de um tipo de legitimidade nova consagrada, não mais pela economia, mas pela moral e pelo direito” (DIAS, 2008, p. 475). É exatamente a partir dessa compreensão dos limites da economia, que até o momento tem se imposto de forma ilimitada, autoritária e totalizante na nossa sociedade, que esse sistema poderá ser rearranjado. Alexandre de Morais, ao trazer à tona a teoria de Ferrajoli, afirma que o fato de critérios econômicos fi- xarem a gama das possíveis decisões retira grande parte das possibilidades de implementação do “Estado Democrático de Direito” (ROSA, 2008, p. 23). Ou seja, é preciso explicitar como a hegemonia do economicismo contribui de forma ne- fasta para que o Estado Democrático de Direito não seja efetivamente concre- tizado, uma vez que este é submetido aos interesses naturalizados do mercado. Neste ponto, Rosa parece ter razão ao apontar como uma das saídas para essa situação a promoção de verdadeiros atos de resistência engajada, que sejam capazes de realizar uma revisão das coordenadas simbólicas, isto é, o que se compreende por realidade (ROSA, 2008, p. 31). Neste contexto, algumas estra- tégias de mediação comunitária, como a organização e a mobilização social e o fortalecimento de redes, podem ser de extrema importância e necessidade. Esses atos, em alguns momentos, podem ser inclusive a negativa ao debate fa- lacioso e comprometido com o economicismo21. Deste modo, é importante notar que se por um lado a hegemonia do economicismo abre espaços com violência e para a violência, por outro ela paradoxalmente gera uma maior sensibilidade para as misérias do mundo, que se expressa numa ênfase crescente dos Direitos Humanos (VIANA, 2010, p. 146), que, por excelência, devem atuar para desmas- carar o discurso da neutralidade, que serve de fundamento ideológico do eco- nomicismo, e para a construção de um contexto onde a justiça seja possível ao equalizar de forma harmônica as forças normativas das dimensões moral, ética, política e do direito na vida humana. “Tem certos dias em que eu penso em minha gente e sinto assim todo o meu pei- to se apertar. Porque parece que acontece de repente, como um desejo de eu viver sem me notar”. Vinícius de Moraes e Chico Buarque cantando melodia de 21. Para se obter essa revisão da realidade, Rosa apresenta, fundamentando-se na teoria de Zizek, a estratégia da ‘superidentificação’, que consiste na exploração das formas simbólicas até o limite da exaustão, de um modo que seja possível demonstrar que elas são falsas, desde a enunciação. Enfim, negar-se a consumir os significantes produzidos para relegitimar a estrutura, muitas vezes, negan- do-se ao debate (ROSA, 2008, p. 31). 2.4. Consentimento social, político e legal Garoto – o “gênio das cordas” como era chamado o senhor Aníbal Augusto Sar- dinha, que contribuiu para revolucionar o violão brasileiro – se espantam com a percepção de que diante de toda a dura realidade daquela “Gente Humilde”, co- mo diz o título da canção, eles alimentam “um desejo de viver sem se notar”. Ou seja, tacitamente, de consentir para que a situação de sofrimento dessa gente humilde perpetue. Este consentimento social muitas vezes é causado pelo fato de as pessoas e os variados grupos sociais não vislumbrarem saídas para a mudança, como re- vela os versos: “E aí me dá uma tristeza no meu peito, feito um despeito de eu não ter como lutar”. Noutras vezes, consente-se, ao se tomar decisões, que po- deriam ser chamadas de mágicas, que infelizmente não contribuem para a efe- tiva transformação, como a fuga quase desesperada para as religiões que cada vez mais prometem salvações em algum plano da vida não identificado, exem- plificada pelos poetas da seguinte maneira: “E eu que não creio peço a Deus por minha gente. É gente humilde, que vontade de chorar”. Por fim, a romantização daquela situação de miséria, pobreza e opressão, também contribui para que es- se consentimento social seja duradouro no tempo. Os próprios poetas se deixam levar, não menos de forma lírica e bela – o que só torna a situação mais delicada –, por esse sentimento: “São casas simples com cadeiras na calçada. E na facha- da escrito em cima que é um lar. Pela varanda flores tristes e baldias, como a alegria que não tem onde encostar”. O primeiro aspecto a ser tratado acerca deste “consentimento social”, que atua como um importante elemento para a reprodução, a legitimação e a naturali- zação da desigualdade, é o fato de haver na sociedade brasileira uma cultura arraigada de negação de conflitos. Toda a herança da vertente sociológica culturalista, de Freyre a Da Matta, terminou por gerar o “Mito da Brasilidade”, ex- pressão cunhada por Jessé Souza. Toda a construção acerca da suposta cor- dialidade do homem brasileiro, que encontrou abrigo nas mais diversas teorias sociológicas, terminou por gerar uma verdadeira aversão a qualquer maneira de tematização e reconhecimento de conflitos latentes de toda ordem – sejam pes- soais, sociais, morais, políticos, jurídicos etc. – bem como uma postura acrítica incorporada e reafirmada no dia a dia brasileiro. Para Jessé Souza, essa “aver-são ao conflito é o núcleo de nossa ‘identidade nacional’, na medida em que penetrou a alma de cada um de nós de modo afetivo e incondicional” (SOUZA, 2009, p. 39). É fundamental, para que sejam elaboradas saídas efetivas para na- SAIBA MAIS Ouça a canção “Gente Humilde” em: http://www.youtube.com/watch?v=1yaD-uBeLLI FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE54 55 turalização da desigualdade no país, enfrentar os aspectos negativos trazidos por esse “Mito da Brasilidade”. Uma delas é desfazer a “ficção de homogenei- dade e de unidade entre brasileiros desiguais quanto com ‘horror ao conflito’” (SOUZA, 2009, p. 47). Trata-se, neste ponto, de evidenciar as diferenças entre os mais variados grupos sociais, atuando dessa maneira para pôr abaixo essa “ficção de homogeneidade e unidade” e, deste modo, contribuir para o desfazi- mento da nossa vergonhosa desigualdade social. Neste sentido, é importante que se procure defender sempre a autodetermina- ção ética diante de possíveis normas jurídicas excludentes. É preciso nomear a pobreza, considerada por todos como horrível, e desfazer as desigualdades a partir do respeito às diferenças de cada indivíduo e grupos sociais, mesmo que para isso seja necessário questionar a estrutura de privilégios gerada por esse sistema de desigualdade para alguns grupos da sociedade brasileira. Muito ain- da se tem que avançar para o processo individual e coletivo de aprendizado mo- ral e político da nossa sociedade realmente ocorrer de um modo a possibilitar o combate a esses consensos sociais injustos. Se para Hannah Arendt “(...) é pró- prio de o pensamento totalitário conceber o fim dos conflitos” (ARENDT, apud NI- CÁCIO; OLIVEIRA, 2008, p. 113), negar a existência dos conflitos ou tentar resol- vê-los de modo artificial é tão totalitário quanto. Um bom começo, certamente, é passar a lidar com os conflitos sociais de forma mais íntegra e comprometida. Para tanto, é necessário que esses conflitos sejam aceitos e tenham sua legi- timidade reconhecida, só assim será possível que a sua gestão e consequente resolução sejam feitas de forma profunda e satisfatória. Um segundo aspecto importante que legitima e autoriza este consentimento so- cial é o não envolvimento e a não responsabilização por parte de todos os integrantes da sociedade com as causas da desigualdade social. FIQUE DE OLHO Só a partir do momento em que as pré-condições so- ciais e demandas diversificadas desses diferentes gru- pos sociais forem assumidas como uma necessidade e um direito, poder-se-á de fato experimentar uma cida- dania plural, democrática e diferenciada. SAIBA MAIS Este não se envolver e não se responsabilizar pelos graves problemas sociais vêm de tempos bastante longínquos e se repetem de forma reiterada nos dias de hoje. Jessé Souza nos chama a atenção (2009, p. 403), seguindo os passos de Joaquim Nabuco, que há mais de 100 anos já se fazia esse alerta, da mesma forma Florestan Fernandes, de que não houve qualquer política ou consenso social no sentido de reverter as péssimas condições em que os ex-escravos entraram no mercado capitalista. Desde então, nada ou muito pouco se fez para que esse quadro fosse revertido, para que a construção sistemática de um batalhão de desclassificados para o sistema capitalista industrial moderno fosse interrompida. O que de certo modo parece dar razão a Michel Foucault quando este, em Vigiar e Punir, diferencia o “conteúdo manifesto” do “conteúdo latente” das interpretações sociais. Talvez esse batalhão de pessoas não seja necessariamente de desclassificados – conteúdo manifesto – para o sistema capitalista, mas bastante competentes – conteúdo latente – para ocupar exatamente o lugar que deve ser destinado a eles, qual seja, à margem da sociedade. Desta maneira, o que deve ser modificado é o próprio sistema capitalista que se mantém e se justifica exatamente pela sua característica excludente. Neste sentido, Vera da Silva Telles (2006, p. 122) fala de “um capitalismo sem ética protestante (...), no qual inexiste a ideia de povo, território e cultura enquanto valores e categorias políticas que balizam o jogo dos interesses por referência a um ‘mundo comum’ construído como história e legado das gerações”. O que se sobrepõe sempre é um individualismo e uma irresponsabilidade crônica. Nesse contexto, a violência encontra um bom terreno para nascer, uma vez que “ninguém é responsável por nada, pois cada um faz de si sua própria lei e toma seus interesses como a medida de todas as coisas” (TELLES, 2006, p. 122). Esse caráter predatório e selvagem da sociedade brasileira e do sistema capita- lista periférico que a guia proporciona quase sempre o exercício ilimitado do po- der político e econômico, que atua desvinculado de uma noção forte de respon- sabilidade pública. E é exatamente esta “ausência de responsabilidade pública”, pactuada e exercida por todos, que alimenta o consentimento social diante da reprodução e naturalização da desigualdade. A dupla face óbvia desse não se envolver e não se responsabilizar é a atribuição da responsabilidade a um tercei- ro externo que, de maneira alguma, se assemelha conosco. A responsabilidade por todas as misérias, injustiças e disfunções ocorridas na nossa sociedade é sempre atribuída seja a um Estado, a uma elite, a uma quadrilha, que não nós mesmos. No fundo, ninguém se sente efetivamente responsável pela constran- gedora desigualdade social brasileira. No dito popular, ela é o famoso “filho feio FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE56 57 sem dono”. Entende-se que esse consentimento social, que, numa dimensão moral, acaba por gerar uma força normativa forte, que se sobrepõe muitas vezes à própria eficácia jurídica, pode e deve ser modificado, desde que seja perma- nentemente evidenciado, criticado e revisado por toda a nossa sociedade. Cer- tamente a conscientização e a problematização de todos esses acordos sociais injustos são caminhos indispensáveis para a solução de boa parte dos proble- mas que estão sendo elencados nesse trabalho. Tal consentimento tem um viés político e legal muito forte. Tanto o sistema po- lítico, quanto o jurídico também contribuem de forma veemente para que esse consentimento aconteça e permaneça. No que tange ao direito são vários os exemplos, nas mais variadas áreas de concentração específica, que atuam pa- ra o consentimento dessa situação de construção e reprodução de vidas precá- rias. Quase sempre o direito, por trás de seu argumento de validade declarado, traz consigo uma dupla face que jamais é formalmente admitida e sequer pro- blematizada. No campo do direito do trabalho, tem-se o “princípio da proteção”, que, sob a argumentação de proteger o empregado, acaba por assegurar ao empregador e, principalmente, legitimar e fortalecer um sistema de exploração do homem pelo próprio homem. Ainda no direito do trabalho, em interface com os direitos de cidadania e direito internacional, cita-se o caso dos imigrantes na Europa chamados de “sem papéis”, isto é, sem uma documentação regular de estadia em um determinado país. “A falta de papéis libera o seu corpo para a ex- ploração sem limites, submetendo-o à lei do empregador” (VIANA, 2010, p. 145). No tocante ao direito tributário, essa situação de consentimento legal agrava-se ainda mais. Sabe-se que, no Brasil, a incidência dos tributos recai de maneira centralizada na circulação de bens e serviços e na receita bruta, o que integra, destacam-se os bens de primeira necessidade, como os gêneros alimentícios componentes da cesta básica. A conclusão prática é a de que todos, do mais pobre ao mais rico, pagam o mesmo tanto de tributos pelo quilo dos alimentos. No entanto, como pode ser facilmente percebido, essa arrecadação igualitária atinge de forma totalmente desigual a receita das diferentes famílias brasileiras e acaba na realização de uma justiça desigual. Certamente o montante desses tributos gera um impacto muito maior narenda de uma família que vive com um salário mínimo mensal, em comparação com a de um funcionário público que recebe uma remuneração próxima do subsídio recebido por um ministro do Su- premo Tribunal Federal (STF)22, que constitucionalmente deveria representar o teto salarial para a carreira no serviço público23, ou de um megainvestidor da 22. Atualmente este teto está fixado no valor de R$ 29.462,25 (vinte e nove mil e quatrocentos e ses- senta e dois reais e vinte e cinco centavos), o que equivale aproximadamente ao valor de 40 salários mínimos de R$724,00 (setecentos e vinte e quatro reais). 23. Cabe a ressalva de que esse teto na prática não é respeitado nem mesmo pelos próprios mi- nistros do STF, que quando exercem função no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), recebem uma gratificação que não é computada no limite remuneratório. O mesmo ocorre nos poderes executi- vos e legislativos. bolsa, cujo montante mensal chega a valores tão exorbitantes difíceis até mes- mo de serem contabilizados. A permanência desse sistema tributário é decorrên- cia direta do que estamos chamando de consentimento social, político e legal. Neste contexto, o princípio da igualdade para ser efetivamente concretizado só pode ser considerado como um princípio a um tratamento diferenciado, senão a igualdade de direitos protegida e procurada nunca será efetivamente conquis- tada, pois é usada quase sempre para respaldar uma situação de desigualdade. No âmbito do direito processual, por mais que na teoria se afirme que ele “não regula os discursos jurídico-normativos enquanto tais, mas assegura nos aspec- tos temporal, social e material a estrutura institucional que libera o caminho do processo de comunicação governado pela lógica dos discursos de aplicação”¬ (HABERMAS apud OLIVEIRA, 2008, p. 361), na prática, o que se vê é que o di- reito processual no sistema jurídico brasileiro somente reforça as desigualdades sociais e limita o acesso à justiça, ao não considerar as diferenças específicas de cada pessoa e grupos sociais para entrar em litígio. O grande número de re- cursos processuais, por exemplo, é utilizado apenas por quem efetivamente tem condições para arcar com os custos, sempre altos, de bons advogados. Sendo que tais recursos quase sempre são usados de forma protelatória, evidentemen- te por má-fé, tanto por grandes empresas, como pelas procuradorias jurídicas do próprio poder público. Mais do que um instrumento para concretização da justi- ça e emancipação social, o processo colabora fortemente para a consolidação das exclusões sociais do país e das relações de dominação social. FIQUE DE OLHO Ainda no direito tributário, percebe-se que “a tributa- ção da renda (...) é fortemente centrada nos trabalha- dores, que já têm a incidência ‘na fonte’ sobre seus salários” (SCAFF, 2008, p. 92). Daí talvez advenha par- te da resistência da chamada classe média brasileira – composta por vários grupos sociais que podem ser considerados, mesmo que de forma relativa, incluídos socialmente – aos avanços sociais. De certo modo, esses grupos se sentem injustiçados diante de tantos cuidados que são demandados aos grupos sociais mi- noritários, uma vez que efetivamente são a grande lo- comotiva da arrecadação do país. FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE58 59 SAIBA MAIS Neste sentido, estudo recente do Banco Mundial demonstra que o grau de satisfação do cidadão comum acerca da justiça é extremamente baixo. Dentre outros fatores analisados pelo referido relatório, destacam-se os impedimentos políticos à mudança do sistema. No que diz respeito ao Direito à Cidade, tanto a legislação urbanística, como as práticas de planejamento urbano têm atuado de forma silenciosa para o proces- so de segregação e exclusão social. Alfonsín chega a afirmar, sem tirar o peso dos fatores econômicos, sociais, históricos, culturais e políticos que concorrem para o desenho territorial das cidades, que “a história da segregação nas cida- des está intimamente ligada, principalmente neste século, à história da legis- lação urbanística” (ALFONSIN, 2000, p. 205). Aliás, todos aqueles fatores são fundamentais para que a legislação urbanística seja construída dessa forma ex- cludente e não de outra maneira. Além de toda a sociedade consentir com esse processo de segregação histórica, o direito e várias políticas públicas não só a legitimam, como ajudam a promovê-la. Neste contexto, o programa de reurba- nização de vilas e favelas que vem sendo desenvolvido pela prefeitura de Belo Horizonte, denominado Vila Viva, conforme demonstra relatório de pesquisa da equipe de mediação comunitária do Núcleo de Mediação e Cidadania do Progra- ma Polos de Cidadania, no curso de suas intervenções expulsoras, estaria, sob amparo legal do planejamento urbano, contribuindo com a lógica discriminató- ria, em que pessoas indenizadas por suas moradias estariam migrando para ou- tros assentamentos ilegais, ou até criando novos. FIQUE DE OLHO Deste modo, de legislações segregacionistas decorrem variadas práticas políticas urbanas não menos excludentes. Uma “[...] perfeita combinação de exclusão territorial combinada com segregação, tudo sob o patrocínio do planejamento urbano apoiado em uma lógica discriminatória amparada pela legislação urbanística” (ALFONSIN, 200, p. 207). Tal legislação e prin- cipalmente a interpretação que dela tem sido feita, dentre outras coisas, não reconhece o direito subjetivo ao terreno onde as moradias das pessoas que vivem em ocupações irregulares foram construídas e fixa padrões téc- nicos e urbanísticos não razoáveis para a população de baixa renda, o que a obriga a não cumprir a lei para que seja possível ter um local para se viver nas cidades. Isto é, a própria legislação inadequada e abusiva cria o motivo da ilegalidade urbana, da chamada “cidade ilegal”. Por este motivo, consi- dera-se que as pretensões jurídicas devem ser sempre intercompartilhadas e, em um processo democrático, reciprocamente criticáveis, somente assim elas correrão o risco de serem legítimas e efetivas. Para além da própria lei em si, que muitas vezes é discriminatória e, até mesmo, inconstitucional, o consentimento político atua de forma incansável para a cons- trução dessa situação de vida precária. São inúmeros os exemplos de desrespeitos de cumprimento de um direito asse- gurado por lei por parte de um órgão estatal, o que nos faz afirmar que o poder público, em todos os níveis da federação, certamente é um dos principais res- ponsáveis pelo mau uso do sistema judicial e pelo descumprimento reiterado de obrigações legais. FIQUE DE OLHO Para permanecer nos mesmos ramos do direito analisados acima, veja, por exemplo, a atual situação da guerra fiscal em desenvolvimento no país entre as entidades federativas. Com o intuito de conquistar e conservar empresas num território estadual específico, uma conduta ilegal de concessão de benefícios fis- cais, que tem sido generalizada entre todos Estados-membros, fere frontalmente os princípios da impessoalidade na distribuição de recursos públicos e da igual- dade dos beneficiados pela renúncia fiscal (SCAFF, 2008, p. 96). Essas normas que concedem benefícios fiscais para as empresas têm sempre sua inconstitu- cionalidade arguida nos tribunais do país, no entanto, o que o poder público tem FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE60 61 feito, além de desrespeitar o Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFA- Z)24, é sempre manter tal norma em vigor, sendo que, quando esta é julgada in- constitucional ou estiver nos momentos finais do processo para que isso ocorra, o Executivo propõe nova lei para o Legislativo, tratando da mesma concessão fiscal que foi considerada inconstitucional só que usando outro instrumento ju- rídico, que imediatamente a aprova. Essa “guerra fiscal” patrocinada pelos Esta- dos-membros com o incentivo do poder privado e não contida pelo judiciário tem agravado as desigualdades entre as maisdiversas regiões brasileiras. Inúmeras outras práticas como essas são, a todo o momento, exercidas pelos Estados-membros que dão um exemplo indecoroso de desrespeito às regras ju- rídicas, políticas, morais e éticas. Afora isso, as relações de dominação, discrimi- nação e submissão também são praticadas na e pela administração pública. É o que se pode chamar de “rito do poder”. Tanto entre os agentes públicos em si, como entre um agente público e um cidadão comum, essas relações são cons- tantes, gerando quase sempre uma situação de humilhação por parte daquele que é dominado, discriminado e que ainda tem que responder de forma submis- sa. Entre os agentes estatais, tais relações podem ser percebidas pelo fato de serem os órgãos governamentais marcados pela presença de uma forte hierar- quia, que se impõe por meio da diferenciação de funções, atribuições, salários, salas, elevadores, carros privados ao alto escalão, dentre outros. Já com relação ao trato com o cidadão comum, a situação se agrava, pois muitas vezes o que acontece é uma relação extremamente desrespeitosa e descuidada, muitas ve- zes pautada pelo velho e conhecido clientelismo. Desde o funcionário “da ponta”, aquele que executa nas comunidades as polí- ticas públicas, até a cúpula de um governo, quase sempre, até mesmo nas ad- ministrações ditas populares, democráticas e participativas, o que ocorre é uma relação fria, distante e insensível às necessidades e aos clamores públicos e muitas vezes pautada pelo autoritarismo, mandonismo e por uma “cultura do fa- vor” deplorável. Neste contexto, as políticas públicas, em especial as de natu- reza compensatória, acabam por servir mais ao próprio consentimento social e à perpetuação de uma cultura da pobreza do que para um processo edificante de emancipação social. Outra atitude que é determinante para que este consen- timento seja renovado dia após dia diz respeito à vontade política – ou melhor, à falta de vontade política – presente nas Cortes de Justiça, que praticamente 24. O Confaz foi criado como uma tentativa para evitar a guerra fiscal entre os Estados-Membros. Sob a coordenação do Ministério da Fazenda, o Conselho é para ser responsável pela fixação dos benefícios sobre o ICMS que os Estados poderiam conceder às empresas. Tal definição, segundo a Lei Complementar nº 24/75, deveria ser tomada em unanimidade entre os Estados. No entanto, a partir da década de 90, quando se acirrou a chamada “guerra fiscal”, o que os Estados têm feito é fixar as concessões de incentivo fiscal – só que usando matreiramente o nome “incentivo financeiro” – sem levar ao conhecimento do Confaz. desconsideram as inovações jurídicas que visam a superar a grande desigual- dade social da sociedade brasileira. Muitos instrumentos jurídicos, resultados de longos processos de reivindicação e mobilização social, são simplesmente ig- norados pelos mais diversos juízos do país. De uma jurisdição de primeiro grau ao Supremo Tribunal Federal, todas elas atuam frequentemente para o esvazia- mento de importantes instrumentos jurídicos. Como ensina Dworkin, “dentro da prática jurídica a proteção dos direitos é muito mais importante do que a adesão a regras que não refletem mais a moralidade social” (DWORKIN, apud CHUEIRI, 2008, p. 419). Deste modo, a mediação comu- nitária se mostra uma forte ferramenta para que a sociedade como um todo atue como um sensor e um catalisador dos processos de construção e desconstrução do direito, sempre se manifestando e exigindo que seus direitos, em especial os que dizem respeito a uma vida digna, sejam respeitados e protegidos, indepen- dente de qualquer regra ou norma que momentaneamente venha restringir tais direitos fundamentais. Deve-se sempre ter claro que não se trata do exercício da jurisdição, em especial a de natureza constitucional, de uma questão de interes- ses individuais ou particulares de determinados grupos, mas sim de princípios que devem sempre ter seu conteúdo normativo renovado e sua aplicação exi- gida socialmente. Para que uma interpretação jurídica realmente faça frente a FIQUE DE OLHO No dito popular, trata-se daquela famosa “lei que não pegou”. Restam as perguntas: não pegou por quê? Quais os interesses envolvidos nessa ação? Até que ponto essa “falta de vontade política” não representa o interesse político de determinados setores da socie- dade? Como exemplo deste tipo de alienação jurídica, tem-se a concessão do direito real de uso, instrumen- to previsto pelo ordenamento jurídico brasileiro desde 1916 e praticamente em desuso. Tal dispositivo, que poderia ser muito importante para políticas de regu- larização fundiária, por permitir a destinação de ter- renos públicos para assentamentos da população de baixa renda, bem como para a legalização das áreas já ocupadas, visando a sua permanência, estabilidade e sustentabilidade, é exiguamente utilizado. Este tipo de conduta atua para que uma forte descrença no di- reito seja difundida e, aos poucos, arraigada em toda a sociedade, gerando uma sensação de impunidade e de anomia jurídica. FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE62 63 esse consentimento tão arraigado nas práticas sociais e institucionais do país, é importante que ela seja “consistente e coerente com a história (institucional) da comunidade a que pertence o intérprete” (CHUEIRI, 2008, p. 425), como pressu- põe as práticas e construções teóricas sobre a mediação comunitária. No caso da constituição brasileira, é fundamental que se resgate sempre a força da me- mória de sua constituinte, que se deu de maneira plural, democrática e cidadã. Certamente a grande dificuldade em se realizar as tão propaladas reformas po- lítica, tributária e processual guarda relação com este consentimento social, po- lítico e jurídico. No entanto, para se romper com este consentimento, é preciso, como assegura a jurista espanhola Maria José Añón, recuperar a carga mais ra- dical e emancipadora da cidadania que se concreta e realiza nos direitos sociais (2001, p. 146). Mostra-se, cada vez mais importante, a sensibilização de toda a sociedade de que as violações de direitos fundamentais geram feridas a toda a coletividade. Não são apenas as pessoas que diretamente têm seus direitos fun- damentais violados e que sofrem com este fato, a “integridade social” de uma sociedade, ou seja, sua pretensão de validade enquanto uma comunidade glo- bal que integra os vários contextos normativos da vida humana, é atingida de maneira fatal quando se permite que boa parte da sua população viva sem sua dignidade protegida, sem os seus direitos mais fundamentais assegurados. Nor- mas jurídicas e práticas políticas não devem nunca atuar como impeditivo para a autodeterminação ética (FORST, 2010, p. 279), principalmente das minorias que sempre encontram maior dificuldade para fazerem suas diferenças éticas res- peitadas por toda a coletividade. Neste sentido, é necessário que o conceito de cidadania compreendido como direito a ter direitos seja superado, pois, como nos afirma Dahrendorf, “(…) a cidadania entendida como titularidade de direitos e status hoje é um conceito praticamente vazio ou uma justificação para fazer dos que são considerados ‘cidadãos’ um ‘clube de privilegiados’” (DAHRENDORF, apud AÑÓN, 2001, p.94). Esse é realmente o “ponto cego” do nosso Estado De- mocrático de Direito: a exclusão, a marginalização e a exploração de uma enor- midade de grupos sociais e minorias, em benefício de uns poucos e pequenos grupos. Parece-nos bem mais interessante a concepção de cidadania susten- tada por Zolo, segundo a qual “(...) a teoria da cidadania pode se resumir em uma ‘luta pelos direitos’, que recupera o fio condutor da história da cidadania, como história da afirmação de direitos, como luta pela superação de círculos concêntricos onde têm sido encerrados os sujeitos considerados ‘cidadãos’” (ZO- LO, 1994, p. 43). Neste contexto, os Direitos Humanos e os Direitos de Cidadania devem ser entendidosnão somente como um apanhado de leis já garantidas em nossos ordenamentos jurídicos, muitas delas permanentemente violadas, mas também como um processo de lutas dos incontáveis movimentos populares da nossa sociedade. É nessa perspectiva que o Programa Polos de Cidadania, da Faculdade de Direito da UFMG,25 assegura que tais direitos nunca devem silen- ciar sobre: 25. Trechos escritos pela professora Miracy Gustin para apresentação institucional do Programa Po- los de Cidadania sobre Direitos Humanos e presentes no livro Das necessidades humanas aos direitos. 1. garantir aos indivíduos e grupos oportunidades de minimização de danos / privações / sofrimentos graves; 2. assegurar que a superação das necessidades humanas básicas sejam generalizáveis a todo gênero humano; 3. impedir que a não satisfação de necessidades afete a plenitude e digni- dade das pessoas; 4. proteger as autonomias de ação e crítica para ampliação da potenciali- dade de atividade criativa e interativa. Ou seja, Gustin garante caber aos Direitos Humanos a potencialização da soli- dariedade humana e da autonomia dos seres. Na mesma esteira, “Dworkin não somente problematiza a aplicação do direito, mas radicaliza seu compromisso político, por um lado, com a liberdade (constitucionalismo) e, por outro, com a igualdade (democracia)” (CHUEIRI, 2008, p. 414). 2.5. Encobrimento do abandono social A doutrina liberal tornou-se hegemônica com a transposição, no Brasil, da so- ciedade patriarcal e rural para a sociedade moderna e, precipuamente, urbana, foco principal da análise de Gilberto Freyre em Sobrados e Mucambos (FREYRE, 2004). No entanto, pouco se fala sobre o modo restrito e infeliz que se deu o liberalismo no Brasil, o que nos dizeres de Jessé Souza tornou a abolição uma “revolução social de brancos para brancos” (SOUZA, 2003, p. 133) e resultou num abandono perverso de toda uma camada social, completamente inábil para en- frentar as condições socioeconômicas estabelecidas pelo novo momento his- tórico. No próprio gesto de abolição da escravidão, entendida esta como a “ex- pressão máxima da anticidadania” (DELGADO, 2008, p. 322), percebe-se o quão controversa e por vezes falaciosa é a “lógica que preside a formulação e a for- malização dos direitos na sociedade brasileira” (TELLES, 1999, p. 91). A sociólo- ga Vera da Silva Telles chama atenção para: (...) a constituição de um lugar em que a igualdade prometida pela lei re- produz e legitima desigualdades, um lugar que constrói os signos do per- tencimento cívico, mas que contem dentro dele próprio o princípio que ex- clui as maiorias, um lugar que proclama a realização da justiça social, mas bloqueia os efeitos igualitários dos direitos na trama das relações sociais. (1999, p. 91). Ou seja, a Lei Áurea, apesar de libertar o escravo das senzalas, conduziu tam- bém ao abandono toda daquela “não-gente”, para usar a expressão de Flores- tan Fernandes, que vinha servindo de modo compulsório ao antigo regime. Mais recentemente o Direito do Trabalho, com seu princípio maior da proteção, com FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE64 65 a intenção declarada de proteger o empregado, atribui principalmente segu- rança ao empregador, ao estabilizar as relações de trabalho e fazer silenciar as demandas dos trabalhadores (VIANA, 2010, p. 144). A história brasileira está re- pleta desses exemplos apenas formais de conquistas de direitos da cidadania, mas que na prática são um não-lugar, um embuste jurídico e social. Esses gru- pos segregados levam no seu cotidiano uma vida mais próxima das de vassalos que de cidadãos (DE LUCAS, apud AÑÓN, 2001, p. 87). No que diz respeito ao momento da abolição, toda uma camada social composta prioritariamente por negros e mulatos, bem como dos “estratos despossuídos e os dependentes em geral e de qualquer cor” (FERNANDES, apud SOUZA, 2003, p. 154) foram alvos desse abandono. Acredita-se que esse abandono social por que passam determinados grupos so- ciais do país não é moderno, vem desde o processo de desagregação da ordem servil e senhorial, como afirma Florestan Fernandes, “o abandono do liberto à própria sorte (ou azar)” (FERNANDES, apud SOUZA, 2003, p. 154). Vários proble- mas que corroboram para a reprodução da inacreditável desigualdade brasileira, mácula que perpassa toda a história do país, são modernos, mas nem todos. O abandono social, ora descrito, é um deles. Um problema antigo sistematicamen- te reiterado por toda a nossa sociedade, pois pouco ou quase nada é feito pa- ra recompensar esse déficit. Como demonstra Milton Santos, “o modelo cívico brasileiro é herdado da escravidão, tanto o modelo cívico cultural como o mode- lo cívico político. A escravidão marcou o território, marcou os espíritos e marca ainda hoje as relações sociais deste país”26. Neste sentido, Florestan Fernandes afirma terem sido esses grupos aqueles que “tiveram ‘o pior ponto de partida’ na transição da ordem escravocrata à sociedade competitiva” (FERNANDES, apud SOUZA, 2003, p. 154), certamente são os filhos, netos e bisnetos desses grupos aqueles que continuam tendo os “piores pontos de partida” para a competição que a nossa sociedade capitalista demanda. Isto certamente não é uma coinci- dência. Esse é o ponto inicial para toda a marginalização e pobreza que se cons- tata na sociedade brasileira. É preciso se ter consciência desse fato para saber que há toda uma camada social no nosso país que é vítima de um abandono histórico, que deve ser saldado. Neste ponto, estamos diante de uma dívida his- tórica que vem sendo sistematicamente reiterada. Por mais que a dívida social tenha aumentado muito nas últimas décadas, suas origens são mais longínquas (TELLES, 1999, p. 84). Deve-se enfrentar o desafio de revelar o abandono social, sistematicamente encoberto, de toda uma camada da população que, por não ser vista como possuidora de valores humanos, sequer merece constituir-se em sujeito de direitos humanos, “esta invenção deste outro não humano” (MAGA- LHÃES, 2008, p. 262). No intuito de tentar delimitar zonas de coesão social, Castel (CASTEL, apud ANÓN, 2011, p. 114) formula um esquema que, se compreendido de forma didáti- 26. Trecho extraído do artigo “As cidadanias mutiladas” de Milton Santos, acessado em 16 de maio de 2001, pelo link http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/discrim/preconceito/ascidadaniasmultiladas.html ca, pode ser útil para a abordagem prática do problema a que se refere. São três as zonas descritas pelo autor: • zona de integração, composta por indivíduos que exercem plenamen- te sua cidadania; • zona de vulnerabilidade, marcada pela precariedade no emprego e fragilidade de suportes relacionais; e • zona de grande marginalidade e desfiliação, cujos integrantes se encontram totalmente desprovidos de recursos econômicos, de supor- tes relacionais e proteção social. Cada zona apresenta demandas diversificadas, pois o grau de vulnerabilidade de cada uma é também diverso. A compreensão dessa complexidade é funda- mental para que políticas e até mesmo direitos sejam formulados tendo em vista a equalização dessa realidade tão dispare. Se, como afirma Jessé Souza, “(...) a história do Brasil moderno parece mesmo ter sido a história do encobrimento de seus conflitos sociais principais, sobretudo a do abandono efetivo de toda uma classe social de indivíduos precarizados e excluídos” (SOUZA, 2009, p. 420), faz- se urgente achar alternativas para a resolução desse conflito sem que se deixe de lado os aspectos positivos presentes, de forma paradoxal, na vida cotidiana dos brasileiros. Aliás, serão esses fatores positivos, além da conscientização de todas as causas dos problemas relatados, imprescindíveis para a reflexão e in- dicação de alternativas de solução para esses problemas sociais e para, conse- quentemente, a equalização dessas zonas descritas por Castel. A análise desses aspectos ideológicos e políticos presentes nos contextos comu- nitários brasileiros éCom base nesses parâmetros, o autor identifica quatro tipos de cidadania: 1. a cidadania conquistada de baixo para cima e dentro do espaço público, e como fruto de uma ação revolucionária efetivada a partir da transforma- ção do Estado em nação, como no caso da França; 2. a cidadania conquistada de baixo para cima, mas a partir do espaço privado, como na experiência norte-americana; 3. a cidadania que se desenvolve mediante a universalização dos direitos individuais, e no espaço público, a exemplo da Inglaterra; e, por fim, tanto, Carvalho (1996), por exemplo, chama atenção para a necessidade de não limitar nosso enten- dimento sobre a construção da cidadania tendo como base única e exclusiva a perspectiva de Mar- shall (1964), no entanto, essa compreensão dos direitos sociais, políticos e civis, são de fundamental importância para maior clareza dos processos históricos que organizaram a cultura política do país, assim, convém mencionar que o período que abarca a consolidação dos direitos políticos é extenso, mas também seletivo, ou seja, quando tratamos do período monárquico até a redemocratização, es- tamos falando de mais de um século de história, e não podemos dizer que os direitos políticos eram universais antes da Constituição de 1988, pois os negros e mulheres na Primeira República (1889 a 1930), por exemplo, não exerciam o direito ao voto, e por fim, torna-se fundamental expressar a importância da consolidação dos direitos civis, que ao longo da história do Brasil foram um dilema, pois o exercício da liberdade foi um processo incremental na consolidação do Estado Democrático de Direito, com a Carta de 1988. Sugerimos uma leitura mais detalhada e aprofundada do autor Jose Murilo de Carvalho (2004), pois este historiador foi um dos responsáveis pela remontagem destes processos históricos sobre o contexto brasileiro. 4. a cidadania construída de cima para baixo e dentro do espaço privado, com uma característica forte de lealdade ao Estado, como aconteceu no caso da Alemanha. SAIBA MAIS Carvalho (1996) compreende a cidadania no Brasil como um processo cujas características se aproximam do caso alemão, mas com diferenças substantivas. Na Alemanha, a forte identidade nacional, concebida em termos étnicos de germanidade, e a tradição de obediência às leis são fatores centrais, inexistentes na cultura brasileira. Para o autor, o movimento da cidadania, no caso brasileiro, ocorreu de “cima para baixo”, com o Estado capitaneando sua criação e consolidação. Contudo, a centralidade do Estado não aponta para o caráter público e universalista do processo, tendo em vista que absorveu seletivamente os cidadãos, e estes buscaram o Estado por interesses particulares. Outra perspectiva, destacada por Santos (1979), traz uma noção importante sobre as características da cidadania no Brasil, complementando a ideia da centralidade do poder executivo forte e regulador dos direitos, o conceito de “cidadania regulada”, nas palavras do autor: (...) o conceito de cidadania cujas raízes encontram-se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocu- pacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal. (...) São cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei. A extensão da cidadania se faz, pois, via regulamentação de novas profissões e/ou ocupações, em primeiro lugar, e mediante ampliação do escopo dos direitos as- sociados a estas profissões, antes que por expansão dos valores ine- rentes ao conceito de membro da comunidade. (SANTOS, 1979, p. 75) FIQUE DE OLHO Além dos elementos expostos acima, Carvalho (2004) remonta outras características associadas à trajetória da cidadania no caso brasileiro, como os fenômenos do coronelismo, mandonismo, clientelismo, patrimo- nialismo e tantas outras dimensões que são parte da formação cultural do país. FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE10 11 Muito ainda tem se debatido sobre o “coronelismo” no Brasil e todos esses ou- tros fenômenos. Carvalho (1997) revistando os estudos de Leal (1948), compre- ende o coronelismo como característico do sistema político vigente na Primeira República. Com a queda da monarquia em 1889, e com o desenho de um siste- ma federalista, diferente do centralismo imperial, criou-se um novo ator, os go- vernos estaduais. Estes governos eram eleitos pelos partidos estaduais e suas principais forças políticas eram as oligarquias locais e seus representantes, os coronéis. A conjuntura econômica nesse período, segundo Leal citado em Car- valho (1997), estava em decadência econômica, ou seja, já não se lucrava tanto e sob o poder dos fazendeiros, houve um enfraquecimento do poder político dos coronéis frente aos seus dependentes e rivais. Para Carvalho, o “coronelismo era fruto de alteração na relação de forças entre os proprietários rurais e o governo, e significava o fortalecimento do poder do Estado antes que o predomínio do co- ronel”. (CARVALHO, 1997, p. 2). Os fazendeiros e os coronéis, no final do século XIX e início do século XX, es- tavam em decadência econômica, conforme já mencionado, exigindo novas conjunturas de “barganhas” e “interesses” entre eles e a formação do Estado brasileiro. Segundo Carvalho (1997), o coronelismo se caracterizava por uma complexa rede de relações que se estendia do coronel até o presidente da repú- blica, envolvendo compromissos recíprocos. Para o autor, o sistema coronelista correspondeu cronologicamente à vigência da primeira República. 3 3. A Primeira República correspondeu desde a Proclamação da República em 1889 – momento em que houve a mudança da estrutura monárquica regida ainda pelos portugueses para o Brasil Repu- blica – até o processo que se convencionou chamar de Golpe de 30, ou seja, a Primeira República compreende o período de 1889 até 1930. Para conhecer um pouco mais sobre esse período, sugeri- mos a leitura de uma obra clássica, organizada pelo Centro de Pesquisa de Documentação da His- tória Contemporânea do Brasil (CPDOC), ver: GOMES, Ângela de Castro (et al). A República. Rio de Janeiro: Nova Fronteira – CPDOC, 2002. FIQUE DE OLHO Portanto, o mandonismo não se trata de um sistema, e sim de uma característica da política tradicional, nas palavras de Carvalho, o mandonismo: Existe desde o início da colonização e sobre- vive ainda em regiões isoladas. A tendência é que desapareça completamente à medida que os direitos civis e políticos alcancem todos os cidadãos. A história do mandonismo confun- de-se com a história da formação da cidada- nia. (CARVALHO, 1997, p. 2) Essa visão do coronelismo se distingue da noção de mandonismo. Este último, segundo Carvalho (1997), refere-se à existência local de estruturas oligárquicas e personalizadas de poder. Para o autor, o denominado “mandão”, como a histó- ria convencionou chamar o “coronel”, que era aquele indivíduo que, em função do seu poder e controle, geralmente devido à posse da terra, exerce uma do- minação pessoalizada e arbitrária sobre a população (poder de decisão sobre o que era liberdade e quem era livre, quem fazia o quê, o que se fazia), e impedia essa população de acender ao mercado e à sociedade política. Outro conceito, às vezes confundido com o de coronelismo, é o clientelismo. Carvalho (1997) emprega o termo clientelismo para indicar um tipo de relação existente entre atores políticos que envolvem a concessão de benefícios públi- cos, na forma de empregos, benefícios fiscais, isenções, em troca de apoio polí- tico, principalmente na forma de voto. FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE12 13 Clientelismo seria um atributo variável de sistemas políticos macros e po- dem conter maior ou menor dose de clientelismo nas relações entre atores políticos. Não há dúvida de que o coronelismo, no sentido sistêmico aqui proposto, envolve relações de troca de natureza clientelística.fundamental para a realização de uma prática adequada e efetiva de mediação. É preciso que se tenha plena consciência do encobrimento do abandono social e das relações de dominação, discriminação e submissão de determinados sujeitos e grupos sociais minoritários, bem como da prevalência em nossa sociedade de uma lógica meritocrática e economicista sustentada por meio de um consentimento social, político e legal. Afinal, a mediação comuni- tária tem como grande desafio a construção cotidiana de reconhecimento, res- peito e valorização das diferentes dimensões normativas da vida humana, de in- clusão social e autorrealização dos sujeitos e grupos sociais, compreendidos de maneira emancipada. FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE66 67 Referências Bibliográficas ALFONSIN, Betânia. Regularização Fundiária: justificação, impactos e sustentabilidade. 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São Paulo: LTr, 2010. p. 367-371. ISBN 978-85-361-1612-9.Mas, de novo, ele não pode ser identificado ao clientelismo, que é um fenômeno mais am- plo. (CARVALHO, 1997, p. 2) O clientelismo aproxima-se, segundo Carvalho (1997), ao conceito de mandonis- mo porquanto ambos implicam a ideia de reciprocidade, a partir dos recursos utilizados pelos atores políticos, seja pelos “mandões” ou “governos”. Para Carvalho (2004), não podemos afirmar que em virtude dessa inversão na consolidação dos direitos (sociais, políticos e civis), como vimos, foram produzi- das maiores dificuldades ao lidar com a questão da desigualdade social ou mes- mo quando analisamos a construção da cidadania. Mas sabemos o quanto esse percurso influenciou (e ainda hoje influencia) o desenvolvimento da cidadania, sobretudo, quando analisamos as características do estado brasileiro de nature- za colonial, patrimonial, clientelística e corporativista, por trazer por vezes confu- sões sobre os termos de concessão e troca – mesmo não sendo fenômenos ex- clusivos do contexto brasileiro – certamente, ao tratarmos das suas expressões, estaremos reportando a sua ramificação impressa na formação cultural do país, destacando os desafios postos à democracia e participação política e associativa. Outra obra clássica, de Roberto Da Matta, apresenta também uma original inter- pretação sociológica da cultura brasileira. Este estudo tem sido celebrado, desde sua publicação original há mais de duas décadas, como um dos mais importan- tes e reveladores trabalhos sobre a cultura brasileira. Ele mostra o quanto essa expressão ritualiza um enquadramento da distribuição hierárquica de papéis sociais, exprimindo a primazia da hierarquia como regra organizadora tanto das percepções sociais quanto das relações sociais. ATENÇÃO Isso quer dizer que a participação social dos indivíduos na decisão dos problemas privados e/ou públicos, devem sempre considerar estes aspectos históricos, pois muitas das vezes não conhecemos a formação do legado histórico de nossa cultura, recaindo às vezes nos mesmos processos, sem mesmo sabendo nominá-los. O que não temos, quando pensamos a expressão balizada em “Você sabe com quem está falando?” é uma data fixada que demarca o seu uso e o seu apare- cimento, portanto, o importante para Da Mata (1980) é imprimir o significa- do dos seus traços, como eles operam por meio de interações (formas) distin- tas. Um traço importante da expressão é o seu uso manifestado de maneira latente, considerado como um recurso escuso ou ilegítimo à disposição da so- ciedade brasileira. O rito segundo Da Mata (1980) do “Você sabe com quem está falando?” implica sempre em uma separação radical e autoritária de duas posições sociais real ou teoricamente diferenciadas. Para o autor, o “Você sabe com quem está falando?”, além de não ser motivo de orgulho para ninguém, dado a carga considerada an- tipática da expressão, fica camuflado em nossa imagem (e auto-imagem) como um modo indesejável de ser brasileiro, pois é revelador do formalismo e da ma- neira velada de demonstração dos mais violentos preconceitos. Para Da Matta, a expressão “Você sabe com quem está falando?” nos remete à existência de um traço indesejável na cultura brasileira, vale dizer, o rito autori- tário sempre presente em situações conflituosas. A sociedade brasileira parece avessa ao conflito, coloca o autor, o que quer dizer que, não se compreende e/ou se ignora os processos que originaram os conflitos, não que com isso se elimine o conflito, muito pelo contrário, ele torna-se mais complexo ainda, pois como toda sociedade dependente, colonial e periférica, a realidade no caso da cultura brasi- leira apresenta um alto nível de conflitos e de crises, e ignorá-lo pode afastar das possibilidades reais de solução destes problemas. Para o autor, existem proces- sos de formação e organização de sociedades que buscam enfrentar os conflitos e as crises, reconhecendo-as e tomando-as parte intrínseca de sua vida política e social, enquanto, em outras ordens sociais, a crise e o conflito são inadmissíveis. Numa sociedade a crise indica algo a ser corrigido; noutra, representa o fim de uma era, sendo um sinal de catástrofe. Tudo indica que, no Brasil, con- cebemos os conflitos como presságios do fim do mundo, e como fraquezas FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE14 15 – o que torna difícil admiti-los como parte de nossa história, sobretudo nas suas versões oficiais e necessariamente solidárias (DA MATTA, 1980, p. 141). Tudo isso, remetido ao fato de termos um sistema social com características co- nhecidas, mas não reconhecidas pela sociedade, denota o caráter paradoxal da sociedade brasileira voltada, por um lado, ao universal e cordial, e revelando, por outro, a segmentação, a hierarquização, a exclusão e a exclusividade, acentuan- do a brecha entre a letra da lei e a realidade da prática: É como se alguns fatores sempre estivessem presentes em nossa socieda- de: primeiro, a necessidade de divorciar a regra da prática; segundo, a des- coberta de que existem duas concepções da realidade nacional: uma delas é a visão do mundo como foco de integração e cordialidade, a outra é a vi- são do mundo como feito de categorias exclusivas, postas numa escala de respeitos e deferências. Finalmente, descobrimos que tudo que diz respeito ao inclusivo é por nós manifestamente adotado. O contrário é válido para o exclusivo, que é frequentemente escondido ou falado em voz baixa. (DA MATA, 1980, p. 143) Para Da Mata (1980), a hierarquia parece estar baseada na intimidade social, com relações sociais marcadas pela perspectiva econômica, mas que logo impri- mem um traço pessoal. Neste caso “Você sabe com quem está falando?” revela uma estrutura social em que as classes sociais também se comunicam num sis- tema de “relações entrecortadas”, inibindo os conflitos e o sistema de diferencia- ção político e social, dimensionando o sistema econômico. Sociedades como a brasileira, que empregam as características do rito dessa frase em que as rela- ções de trabalho (econômicas) somam-se aos laços de pessoalidade, apresen- tam um campo de possibilidades para a hierarquização contínua e múltipla em todas as partes e posições contidas em um sistema. No próximo item, buscaremos apresentar uma análise sobre os meios de partici- pação cívica, sobretudo, um dos conceitos que mais se aproxima das praticas de FIQUE DE OLHO Essa expressão exprime, como mostra Da Mata, a pri- mazia da hierarquia como regra organizadora tanto das percepções sociais quanto das relações e papéis sociais no Brasil. É sobre a base desse tipo de cultura política – estatizante, hierárquica e centralista – que se projeta e desenvolve a democracia no país, com suas conquistas e limitações. mediação comunitária, e ainda apresentar conceitos que abordam o reconheci- mento de direitos pela população. 1.2. Aspectos históricos da cultura e da cidadania brasileira Para entender o debate acerca do conceito de capital social, é de suma impor- tância apresentar os precursores desta ideia, e para referenciar essa literatura, apresentamos as visões clássicas, culturalistas e neo-institucionais. A maioria das abordagens sobre capital social toma como base referencial obras de autores como Bourdieu (1984), Coleman (1990), Putnam (1996), dentre outros mais recentes, por exemplo, Fukuyama (2000). No entanto, mesmo autores an- teriores a esses, experimentaram o conceito de capital social e ousaram captar e expressá-los de maneiras distintas. Podemos nos referir a Lyda Judson Hanifan (1920) quando a autora utiliza o ter- mo, pela primeira vez em 1916, para descrever centros comunitários de escolas ru- rais. Já na década de 60, Jane Jacobs (1961) utiliza a expressão em uma de suas obras para analisar as redes que existiam nas áreas urbanas e que constituíam uma forma de capital social, que por assim dizer, encorajava a segurança pública. Entretanto, mesmo com a ampliação da discussão do conceito de capital social e suavasta expressão em contexto contemporâneo, Fukuyama (2000) vai dizer que “(...) talvez o maior teórico do capital social tenha sido alguém que nunca usou a expressão, mas compreendia sua importância com muita clareza: o aristocrata e viajante Aléxis de Toqueville”. (FUKUYAMA apud STEIN, 2003, p. 173). Toqueville (1998), em meados de 1830 a 1840, em sua obra clássica denominada Democracia na América, observou que, contrastando fortemente com a França, a América possuía uma rica e fortalecida arte de associação. Fukuyama (2000) destaca que: “(...) Toqueville concordaria com a proposição de que sem capital social não poderia haver sociedade civil e que, sem sociedade civil, não poderia haver uma democracia bem-sucedida.” (FUKUYAMA, 2000, p. 31-2). Outra obra, talvez uma das mais conhecidas que trata do conceito de capital so- cial, sem dúvida é a de Robert Putnam, de 1993, denominada Making democracy work: civic traditions in modern Italy, traduzida no Brasil, em 1996, intitulado: Co- munidade e democracia: a experiência da Itália moderna. Putnam (1996) tratou de analisar o resultado de um trabalho de pesquisa empírica durante 20 anos, ini- ciada em 1970, e que teve como referência as regiões da Itália entre o norte e sul, que representam a ampla diversidade existente na península, visando realizar FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE16 17 uma investigação referente ao desempenho das instituições e das adaptações dessas ao seu meio-contexto social. Para tanto, foi realizado um acompanha- mento das mudanças administrativas da Itália ocasionadas pela reforma política no início da década de 70, com base em uma análise comparativa sobre os pro- cessos de decisões adotados politicamente em cada uma das regiões pesquisa- das pelo autor, constataram-se importantes diferenças entre essas regiões. Putnam (1996), ao realizar a pesquisa na península italiana, contribui com a compreensão do desempenho das instituições democráticas. O autor buscou avaliar se as instituições formais influenciam o desenvolvimento da política e do governo, e se em decorrência das mudanças institucionais, tem-se alterações no plano prático delas. O autor analisa se existem relações entre o desempe- nho das instituições e seu contexto socioeconômico-cultural e se a qualidade de uma democracia depende do comportamento de seus cidadãos. A península italiana, no início da década de 70, sofreu mudanças com o perío- do de reforma administrativa, rompendo, portanto, com a tradição do governo centralizado, e que passara a delegar aos governos regionais poderes e recursos sem precedentes. Putnam (1996), ao descrever sobre as duas décadas de de- senvolvimento institucional (1970-90), atribui dados relevantes no que diz res- peito às mudanças das regras do jogo. Com a criação dos governos regionais e com o processo de descentralização administrativa, ocorreu uma mudança ex- ponencialmente significativa dos anos 70 aos anos 80, em relação aos recursos disponíveis. Além de definir a organização e os métodos das mudanças adminis- trativas, nos primeiros anos, a legislação regionalizada ocupou-se, sobretudo, da distribuição de verbas. Para o autor, bem ou mal, a política interna italiana foi em grande parte regionalizada, o que para Weber, citado Putnam (1996), tornou- se uma “lenta perfuração de tábuas duras” (PUTNAM, 1996, p. 41). O processo de mudança institucional foi fundamental em relação ao papel das elites políticas regionais diante da regionalização da península italiana. É nítida a correlação existente entre os processos de despolarização política ideológica, pois à medida que diminuíam as distâncias ideológicas, aumentava a tolerân- cia entre as diferentes linhas partidárias. Esta reforma institucional influenciou o modo de atuar dos políticos e dos governos italianos. A análise de Putnam (1996) apresenta pontos que aparecem de forma positiva e também negativa, ou seja, de um lado as instituições passaram a estar mais perto do povo, e por assim dizer conseguiam identificar as demandas regionais e administrar os conflitos existentes de cada região, e por outro lado, o autor apre- senta dois pontos fortes negativos, um deles que apresenta a ineficácia dos ad- ministradores diante dos governos regionais e o outro era que a reforma regional parecia agravar mais as disparidades entre o Norte e Sul da Itália do que cons- truir iguais e bons desempenhos institucionais na península como um todo. A re- forma contribuiu para extinção do domínio romano, mas deixou que as situações das regiões mais atrasadas se agravassem. Podemos dizer, a partir da análise de Putnam (1996), que certos governos regio- nais foram mais bem-sucedidos do que outros, e mais eficientes em suas ati- vidades político-administrativos e mais eficazes na execução de suas políticas públicas, e que estes fatores foram altamente reconhecidos pelos eleitores, se- jam eles os cidadãos ou líderes comunitários. A análise apontou que algumas regiões foram mais bem governadas do que outras, mesmo contendo a mesma estrutura e contando com os mesmos recursos, tanto jurídicos quanto financei- ros. Para o autor: É a eficácia institucional em geral que varia coerentemente de uma região para outra, e não o fato do governo ter num determinado ano um programa de creches mais amplo ou um orçamentista mais eficiente. (PUTNAM, 1996, p. 95) A instituição política avaliada na obra de Putnam (1996) caracteriza-se por ser um governo representativo, portanto, avaliou-se também a sensibilidade das ins- tituições de acordo com as demandas de seu eleitorado e a eficiência de sua gestão com relação à coisa pública. Autores como Mill e Dahl citados em Put- nam (1996) vão dizer que a principal característica de uma democracia é a cons- tante sensibilidade do governo em relação às preferências de seus cidadãos. Para o autor, A democracia concede aos cidadãos o direito de recorrer ao seu governo na esperança de alcançar algum objetivo particular ou social; além disso, re- quer uma concorrência leal entre as diferentes versões do interesse público. Todavia o bom governo é mais do que um fórum para grupos concorrentes ou uma caixa de ressonância para reclamações; na verdade, ele manda fa- zer coisas. Um bom governo democrático não só considera as demandas de seus cidadãos (ou seja, é sensível), mas também age com eficácia em rela- ção a tais demandas (ou seja, é eficaz). (PUTNAM, 1996, p. 77) A avaliação de Putnam (1996) sobre os resultados encontrados referentes às di- ferenças das regiões entre Norte e Sul da Itália afirma que certos governos regio- nais foram mais bem-sucedidos do que outros, e outros foram mais eficientes em suas atividades internas, mais criativos em suas políticas e mais eficazes na exe- cução dessas políticas. Essas diferenças referentes ao desempenho institucional se mantiveram estáveis por mais de uma década, e foram amplamente reconhe- cidas pelos eleitores, sejam os líderes comunitários ou mesmo os cidadãos. De acordo com esses elementos expostos, Putnam (1996) busca analisar o que explica essas diferenças no desempenho institucional. Um dos fatores tidos co- mo relevante diante deste cenário está atribuído à concepção de modernidade socioeconômica. Para o autor a modernidade socioeconômica está de algum modo associada ao bom desempenho das instituições públicas. Ele apresen- ta algumas perguntas relevantes que se relacionam a esse fator, se pode ser a modernidade uma das causas do desempenho, talvez uma dentre várias, ou se FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE18 19 Para obter resultados que condicionem favoravelmente a relação entre o his- tórico de comunidades mais cívicas e sua relação com bons governos, Putnam (1996) apresenta, para a superação dos dilemas da ação coletiva e do oportunis- mo contraproducente, uma análise a partir do contexto em que tal jogo é dispu- tado, e para isto apresenta em sua obra a seguinte conclusão: regiões e comu- nidades com maiores estoquesde capital social tendem a cooperarem mais para o funcionamento e bom desempenho institucional. Putnam (1996) afirma que, assim como o capital convencional, os que dispõem de capital social tendem a acumulá-lo, portanto, algumas das características es- pecíficas do capital social são os laços de confiança, as normas e as cadeias (cír- culos) de relações sociais, constituindo por isso em um bem público, o que é o contrário do capital convencional, que normalmente é atribuído a um bem priva- do. Capital social se caracteriza “por ser um atributo da estrutura social em que se insere o indivíduo, o capital social não é propriedade particular de nenhuma das pessoas que dele se beneficia” (PUTNAM, 1996, p. 180), por isso se baseiam no acúmulo para haver benefícios comuns, portanto, confiança gera cooperação mútua. Segundo o autor: A confiança promove a cooperação. Quanto mais elevado o nível de con- fiança numa comunidade, maior a probabilidade de haver cooperação. E a própria cooperação gera confiança. A progressiva acumulação de capital social é uma das principais responsáveis pelos círculos virtuosos da Itália cívica. (...) A confiança necessária para fomentar a cooperação não é uma confiança cega. A confiança implica uma previsão do comportamento de um ator independente. (PUTNAM, 1996, p. 180) pode ser o desempenho uma das causas da modernidade, ou se podem ser am- bas as coisas influenciadas por um terceiro fator, e, é por fim sabido que esta relação entre modernidade e desempenho é ainda mais complexa e altamente relevante no contexto dessa discussão. Outro fator, segundo Putnam (1996), é o que diz respeito à seguinte análise pro- nunciada pelo autor – e que nos parece essencial quando se trata de aspectos sociológicos e da relação dos contextos comunitários, mesmo sendo aqui o caso brasileiro – “Queremos investigar empiricamente se o êxito de um governo de- mocrático depende do quão próximo seu meio se acha do ideal de uma ‘comuni- dade cívica’”. (PUTNAM, 1996, p. 101). Putnam (1996), ao descrever sobre comunidade cívica, baseia-se nos principais teóricos republicanos, norteados a partir de quatro conceitos: a participação cí- vica; igualdade política; a solidariedade, confiança e tolerância; e as associações como estruturas de cooperação. Para tanto, o autor descreve indicadores que possibilitam a verificação de uma análise que relaciona a vida social e política de dada comunidade cívica e o bom desempenho institucional. Para compor esta correlação, o autor descreve a verifi- cação dessa teoria baseada na comunidade cívica. FIQUE DE OLHO Para o autor, são muitas as análises que perpetuam ou mesmo perpetuaram essa conceituação, tem-se um pensamento que vigorou durante muitos anos na antiguidade e na Itália renascentista com base em Maquiavel, há vários outros autores que vão nos dizer que o êxito ou fracasso das instituições dependiam do caráter dos seus cidadãos, ou seja, de sua ‘virtu- de cívica’ (PUTNAM, 1996, p. 100), o que logo é supe- rado pelo pensamento anglo-americano, liderada por Hobbes, Locke e seus sucessores liberais. Já os re- publicanos pautaram a ideia de comunidade e as su- as obrigações enquanto cidadãos e já para os liberais eram ressaltados o individualismo e os direitos indivi- duais. No entanto, no decorrer dos últimos anos, uma onda revisionista analisou a filosofia política anglo-a- mericana, e se pauta, conforme nos apresentam Don Herzog citado em Putnam (1996), como a descoberta e a celebração do humanismo cívico. FIQUE DE OLHO Capital social em Putnam (1996), além de se constituir como um bem público, (...) diz respeito a características da organi- zação social, como confiança, normas e sis- temas, que contribuam para aumentar a efi- ciência da sociedade, facilitando as ações coordenadas. (PUTNAM, 1996, p. 177) FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE20 21 Em síntese sobre o debate de estoques de capital social, Putnam comenta que, em todas as sociedades, os dilemas da ação coletiva obstam as tentativas de cooperação mútua, tanto no meio político quanto no econômico, sobretudo, nos diz que a entrada de um terceiro seria uma solução inadequada para suprir es- se problema. FIQUE DE OLHO Para o autor, as regras de reciprocidade generalizada e os sistemas de par- ticipação cívica estimulariam a cooperação mútua e a confiança, pois, as- sim, poderiam reduzir os incentivos e os riscos à transgressão, diminuiria a incerteza e apresentariam modelos para cooperação futura, tendendo a reproduzir e acumular, e que ao contrário dessas características, ou seja, em comunidades não cívicas, isso também tenderia a acumular-se e auto -reforçar-se, em suas palavras: Os círculos virtuosos redundam em equilíbrios sociais com elevados níveis de cooperação, confiança, reciprocidade, civismo e bem-es- tar coletivo. Eis as características que definem comunidade cívica. Por outro lado, a inexistência dessas características na comunidade não cívica também é algo que tende a auto-reforçar-se. A deserção, a desconfiança, a omissão, a exploração, o isolamento, a desordem e a estagnação intensificam-se reciprocamente num miasma sufocante de círculos viciosos. Tal argumentação sugere que deve haver pelo o menos dois equilíbrios gerais para os quais todas as sociedades que enfrentam os problemas da ação coletiva tendem a evoluir e que, uma vez atingidos, tendem a auto-reforçar-se. (PUTNAM, 1996, p. 186-87) Putnam, em sua síntese final do estudo realizado, apresenta o potencial da re- forma institucional como estratégia para a mudança política e também as res- trições que o contexto social impõe ao desempenho institucional. Nas palavras do autor, eis uma lição a ser tirada da pesquisa “o contexto social e a história condicionam profundamente o desempenho das instituições” (p. 191). O autor sinaliza que o Norte e o Sul, tiveram consequências divergentes em relação a todo o processo de reforma administrativa, adotaram métodos divergentes para lidar com os dilemas da ação coletiva que perpetuam em todas as sociedades. Conclui-se a partir da experiência italiana: No Norte, as regras de reciprocidade e os sistemas de participação cívica corporificaram-se em confrarias, guildas, sociedades de mútua assistência, cooperativas, sindicatos e até clubes de futebol e grêmios literários. Esses vínculos horizontais propiciaram níveis de desempenho econômico e insti- tucional muito mais elevados do que no Sul, onde as relações políticas e sociais estruturaram-se verticalmente. Embora estejamos acostumados a conceber o Estado e o mercado como mecanismos alternativos para a so- lução dos problemas sociais, a história mostra que tanto os Estados quan- to os mercados funcionam melhor em contextos cívicos. (PUTNAM, 1996, p. 190-191) Outra conceituação, além da apresentada na obra de Putnam (1996), é feita por Franco apud Stein (2003). Para ele, à medida que atitudes de autonomia ma- terializam-se em forma não hierárquica de relacionamento humano e à medida que atitudes democráticas correspondam a modos não autocráticos de regula- ção de conflitos, marcados pela horizontalização das relações, o capital social encontra campo propício para sua produção, acumulação e reprodução. Outros autores, mais recentes, como Flores e Rello (2001), apresentam que, mesmo sendo vasta a bibliografia sobre capital social, não há nenhuma que consiga reunir o consenso entre os autores e demais pesquisadores, entretanto, as autoras apresentam três componentes básicos mencionados nas diversas análises encontradas: a) As fontes e a infraestrutura do capital social, e assim torna-se possível perceber sua origem e consolidação; b) As ações individuais e coletivas que esta infraestrutura torna possível; FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE22 23 c) As consequências e resultados destas ações, as quais podem ser positi- vas ou mesmo negativas; (FLORES; RELLO, 2007) Outras contribuições do conceito podem ser percebidasatravés de autores neo -institucionalistas, tais como: Douglas North, Robert Bates, James March, Jonh Olsen e Mark Granovetter. O debate contemporâneo pode ser analisado pelos autores: Alezandro Portes e Everett Ladd, Peter Evans e Francis Fukuyama. Outra autora, Stein (2003), diz que é a partir da década de 90, que o termo ganha amplitude de debate nas esferas sociopolíticas e no contexto das discus- sões sobre desenvolvimento local e a redução da pobreza. Em meados da déca- da de 90 esse debate em torno do conceito de capital social passa a ser orien- tador de diversas práticas e pensamentos como os organismos internacionais, que começam a pensar o tema capital social e suas relações com a pobreza, o que pode ser percebido pela CEPAL4. Outro autor, Bourdieu (1984), apresenta que, diante de uma linguagem comum, o conceito de capital social é denominado como capital social de relações; re- lações estas que se estabelecem e que se mantêm nos fatos sociais mais im- portantes e relevantes. Para o autor, é nas instituições, sejam elas associações, clubes ou mesmo família, que se mantêm, transmite e acumula o estoque de capital social. Bourdieu (1985) define capital social como “El agregado de los recursos reales o potenciales ligados a posesión de uma red durable de rela- ciones más o menos institucionalizados de reconocimiento mutuo” (BOURDIEU apud DURSTON, 2000, p. 8). Diante desta definição, podemos analisar o conceito de capital social a partir do contexto das relações, das redes sociais que um ou vários atores se mobi- lizam em proveito próprio e ao mesmo tempo mútuo. Stein (2003) vai nos dizer que Bourdieu não atribui valor particular ao capital social, e que este conceito não se constitui enquanto uma variável explicativa de outros tipos de capital identificados por ele, como podemos ver com o capital econômico, que se cons- titui pelas rendas e acúmulo de fortunas, ou mesmo pelo capital cultural. Con- forme analisado por Baquero (2001), a grande preocupação de Bourdieu está em avaliar de que forma os tipos de capital se subordinam ao capital econô- mico e como esses interagem com estruturas mais amplas que produzem desi- gualdades sociais. Coleman (1990), diferentemente de Bourdieu, busca articular a estrutura social com o paradigma da ação racional. Assim, para esse autor, o capital social ana- lisa os aspectos referentes à estrutura social como atributo disponível para o indivíduo. Deste modo, não se trata de entidade particular, mas de variações de entidades, e que se assemelham por todas consistirem em algum aspecto da 4. Comisión Económica para America Latina y el Caribe – CEPAL. estrutura social, e sendo assim, certas ações dos indivíduos que pertencem a essa estrutura são facilitadas pelo capital. Ferreira (1999) nos permite entender mais sobre a noção de capital social e o contexto brasileiro, sobretudo em relação à temática do associativismo no pa- ís. O autor, com base na comparação dos percentuais de filiação a movimen- tos associativos nas regiões metropolitanas do Brasil, nos anos de 1988 e 1996, apresentou a hipótese de que, mesmo com as transformações ocorridas na so- ciedade brasileira durante este período, não houve mudanças significativas no associativismo no meio urbano do país. Se considerarmos, por exemplo, o argumento de Avritzer, citado em Ferreira (1999), sobre a relação do crescimento associativo em países da América La- tina com pouca tradição de organização associativa e sua colaboração com a alteração no padrão de cultura política, e sendo este fenômeno capaz de con- tribuir para superar certas continuidades na relação entre Estado e socieda- de, Ferreira (1999), encontrou em seus estudos, um dilema no comportamento associativo político e um cenário muito mais complexo para se analisar os ele- mentos cívicos no caso brasileiro, (...) intrigante panorama, pois apesar do crescimento acentuado do número de associações no Brasil nas últimas décadas, o número de filiados ainda é ínfimo (...). A inexistência de uma relação entre a dinâmica associativa e de contato pessoal com os políticos e a conjuntura e estrutura socioeconômica e política no Brasil, (...) os percentuais de filiação a movimentos associati- vos ou de interação pessoal com políticos não estariam associados a altera- ções nas esferas socioeconômicas e políticas, como a redemocratização do país (...). (FERREIRA, 1999: 100). As análises acerca da participação popular apresentam um cenário plural e di- verso no que tange a cultura cívica, pois não existe uma cultura participativa homogênea no Brasil segundo Avritzer (2003). Para o autor, a participação é muito desigual entre os cidadãos. Para compreendermos a denominação do que venha a ser participação popular, é importante salientar o entendimento de que “participação” é o ato de associar-se pelo sentimento, pelo pensamen- to, solidarizar-se, partilhando interesses, obrigações, opiniões, considerada pri- mordialmente uma forma de comunicação, esta se trata das articulações entre o religioso, o político e o social, etc. E quando tratamos da participação popular e dos elementos da cultura que correspondem a sua forma de organização, nos deparamos, para o nosso contexto de análise com os estudos sobre os meios e mecanismos de exercitar os direitos e a grosso modo “acessar justiça” em nos- so país. É o que abordaremos na sequencia. FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE24 25 1.3. Em busca por reconhecimento de direitos Em estudo recente sobre o sistema de justiça no Brasil, Leandro (2012) anali- sou várias literaturas sobre o assunto, em especial destacaram-se as pesquisas de Junqueira (1996), Vianna et. al. (1999), Sinhoretto (2006), entre outros, que durante os anos 80, mas principalmente no início dos anos 90, o campo das ci- ências sociais e humanas em geral começaram a aprofundar suas análises, ele- gendo como objeto de pesquisa os processos de ruptura e continuidade da de- mocratização do Estado e da sociedade, com foco nas instituições judiciárias, nas atribuições legais e nas práticas de administração de conflitos. Todos estes estudos visavam acompanhar o processo de democratização do país, justamen- te porque a democracia política não era por si só, suficiente para garantir uma sociedade efetivamente democrática, isto é, de amplo exercício e acesso à cida- dania. Democratizar de modo pleno o país significava, também, democratizar a Justiça e, com isso, o acesso a ela5. Junqueira (1996), por exemplo, amplia as discussões em torno do acesso à Jus- tiça. Ao revisitar os estudos sobre o tema do Poder Judiciário e os métodos de solução de conflitos, a autora destaca que, ainda durante a década de 70 e tam- bém nos anos 80, os principais estudiosos sobre a temática do acesso à Justiça eram juristas sociologicamente orientados. Esses estudos, argumenta Junquei- ra (1996), diferentemente do que se imaginava na época sobre o caso brasilei- ro, se mostraram pouco influenciados pelo access-to-justice movement liderado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, que coordenaram o Florence Project6. As produções de Junqueira (1996) também revelaram que a principal questão posta em relação à população brasileira não era, diretamente, a expansão do welfa- re state ou mesmo a necessidade de tornarem efetivos os novos direitos “con- quistados” a partir da década de 60 pelas minorias étnicas e sexuais, mas, sim, uma ampla reivindicação de expansão dos direitos básicos (sociais) aos quais a maioria da população não tinha acesso. Foram vários os processos relacionados à exclusão político-jurídica, responsáveis pela não garantia do acesso aos direi- tos à população brasileira (Junqueira, 1996; Carvalho, 2004)7. 5. Podemos encontrar outras reflexões sobre o sistema de justiça nos estudos de: AMORIN, Maria Stella, BURGOS, Marcelo, KANT DE LIMA, Roberto (2002); SADEK, Maria Tereza (1995; 200; 2001); ADORNO, Sérgio (1996); PANDOLFI, Dulce et. al. (1999), D’ARAÚJO, Maria Celina (1996).6. Cappelletti e Garth (1988) buscaram analisar a partir do “Florence Project” os obstáculos jurídicos, econômicos, sociais e psicológicos que dificultavam ou impediam a utilização do sistema jurídico, visando compreender como cada país (democracias modernas) apresentava seus diferentes esfor- ços para superar estes obstáculos. Os autores Cappelletti e Garth (1988) identificaram três waves of reform no access-to-justice movement: (i) a garantia de acesso à justiça para os pobres; (ii) a re- presentação dos direitos difusos e (iii) a informalização dos procedimentos de resolução de conflitos. 7. Os direitos sociais representam: o direito de acesso aos bens e serviços públicos como, por exemplo: Outro estudo central para a compreensão dos temas relacionados ao acesso à Justiça no Brasil, especialmente às análises do Poder Judiciário e suas relações com a política e a sociabilidade no país, é o trabalho desenvolvido por Vianna et. al. (1999). Eles fornecem um amplo diagnóstico das instituições do sistema de justiça, destacando, sobretudo, a politização da atividade jurisdicional, processo que foi denominado judicialização da política; o que significa conferir ao Poder Judiciário a capacidade de pautar a política com base na interpretação/avalia- ção de leis já existentes. Além da judicialização da política, os autores destacam a judicialização das relações sociais, que passou a ser uma realidade após a re- democratização, ou seja, destacamos mais uma vez a “terceirização da autoria” das soluções dos conflitos. Sinhoretto (2006), por sua vez, apresenta duas importantes tendências analíti- cas para a compreensão do sistema de justiça: uma visão referenciada pela ma- cro-sociologia e outra pela micro-sociologia. A primeira tendência apresenta um debate sobre: a. as rupturas e as mudanças nas organizações judiciais diante de novas atribuições legais; b. os destaques da politização da atuação judicial; c. os novos modelos que organizam as identidades corporativas; d. as constantes transformações na cultura jurídica do país; e (e) as emer- gências de práticas compreendidas como inovações de solução de conflitos. Já a segunda enfatiza os obstáculos nos processos de democratização, como desafios à incorporação de demandas e valores democratizantes à cultura jurí- dica no país, observando-se uma persistência de valores e práticas hierarquizan- tes e excludentes, que aprisionam as inovações e mantêm os padrões mentais tradicionais. Segundo a autora, há uma produção que procura aliar ambas as tendências, mas a maioria dos estudiosos do campo da justiça se orienta por uma das vertentes apresentadas. Contudo, estas análises (Junqueira, 1996; Vianna et. al., 1999; Sinhoretto, 2006), foram influenciadas pela formulação de várias iniciativas de ampliação do aces- so à Justiça e da informalização de agências de resolução de conflitos, como, por exemplo, os Juizados Especiais de Pequenas Causas8 ; posteriormente, o Juizado Especial Criminal9 e também práticas estimuladas por organizações da o direito à moradia, o direito à saúde, o direito à educação, o direito à segurança pública, entre outros. 8. Um exemplo de estudo sobre o Juizado Especial de Pequenas Causas é a pesquisa realizada na cidade do Rio de Janeiro por D’Aráujo (1996). 9. Um exemplo de estudo sobre o Juizado Especial Criminal (JECRIM) é a pesquisa realizada na re- gião metropolitana do Rio de Janeiro por Amorim; Burgos; Kant de Lima (2002). Outro estudo abor- dou o JECRIM de Belo Horizonte, para acesso aos dados ver Batittucci e Santos (2010). FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE26 27 sociedade civil como o Balcão de Direitos10. Outra iniciativa, que surgiu a partir de uma prática de extensão da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, foi o Programa Mediação de Conflitos11 . Os estudos de Boaventura de Sousa Santos (1977; 1988), especialmente aquele realizado na favela do Jacarezinho denominado “Pasárgada”, buscaram verifi- car a vigência de um direito informal organizado em torno de uma associação comunitária de moradores, compreendendo as relações entre o direito oficial e o que o autor chamou “direito de Pasárgada”, o que depois foi estudado por mui- tos autores como “direito achado na rua”. O autor identificou nesses estudos alguns aspectos de tensionamento entre as dimensões dos direitos. O principal deles era a inacessibilidade do sistema de justiça para os grupos mais popula- res, levando muitos pesquisadores brasileiros, como Joaquim Falcão (1981), por exemplo, a se debruçarem sobre o tema da sociologia do direito, em especial atenção aos estudos que analisavam os mecanismos da cultura jurídica brasi- leira que viabilizavam (ou não) o acesso das distintas classes sociais à Justiça. Outro aspecto identificado e que chamou grande atenção da comunidade aca- dêmica à época correspondia às formas/experiências próprias e cotidianas dos moradores de resolverem seus conflitos sem mediação estatal. FIQUE DE OLHO Mesmo que a pesquisa do autor, na favela do Jacarezinho, não tivesse o objeti- vo de compreender os canais de acesso à justiça estatal, para Junqueira (1996), seus achados atestam não apenas a produção de uma ordem jurídica paralela à do asfalto, mas a impossibilidade de os moradores daquela região, percebida como ilegal pelo direito oficial, buscarem soluções para seus conflitos no orde- namento jurídico e nas instâncias judiciais12 . 10. Para maior compreensão da atuação do Balcão de Direitos, concebido pela ONG Viva Rio, ver Souza Neto (2001). 11. Este último, o Programa Mediação de Conflitos, foi objeto de mestrado da autora Leandro (2012), intitulado “Caminhos e Obstáculos para o Acesso à Justiça: o caso do Programa Mediação de Con- flitos”, portanto, para maiores informações ver a dissertação completa no site: http://bibliotecadi- gital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10126/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Metrado%20CP- DOC%20Ariane%20Gontijo%20Lopes%20Leandro.pdf?sequence=1 12. D’Araújo (1996) corrobora o argumento de Junqueira (1996) ao mencionar que os grupos popu- lares acessaram pouco as novas instâncias oficiais de resolução de conflitos. Em análise sobre os Juizados Especiais de Pequenas Causas, implantado na cidade do Rio de Janeiro, que tinha por ob- jetivo atender especialmente as comunidades do Pavão/Pavãozinho/Cantagalo, entre outras fave- las cariocas, percebeu-se que grande parte das pessoas que acessaram os Juizados para resolver conflitos não estava relacionada às classes populares e sim aos moradores da zona sul da cidade (D’Araújo, 1996). Diante dessas análises, percebemos alguns desafios à implantação destas prá- ticas, especialmente ao analisarmos os elementos que influenciam a cultura no caso brasileiro e as distintas formas de construção da cidadania que caracteri- zam o país (Carvalho, 1996; 2004), conforme já abordado em sessão anterior. Cardoso de Oliveira (2010), por exemplo, expressa os dilemas da cidadania no Brasil, ao tratar como paradoxal a ideia de isonomia jurídica e desigualdade de tratamento que, de modo especial, expressa os contrapontos encontrados nos padrões de desigualdades vividos pela população ao acessar as instituições de justiça. Para o autor, em seus estudos sobre a França (Cardoso de Oliveira, 2006), os EUA e o Canadá/Quebec (Cardoso de Oliveira, 1996a; 2002), a noção de cidadania enquanto referência para compreensão das democracias ociden- tais está diretamente vinculada à ideia de igualdade, sendo, portanto, esta últi- ma carregada de múltiplos significados, dada a influência sociohistórica e cultu- ral de cada contexto. Contudo, para o autor, a ideia de tratamento uniforme predominante no liberalis- mo anglo-saxão – mesmo que questionada pelos movimentos sociais norte-ame- ricanos, especialmente o movimento negro, ao identificar o tratamento uniforme como dimensão que viria a reproduzir desigualdades – não pode ser conside- rada a mesma ideia no caso do republicanismo francês,mesmo que ambos se- jam resistentes à ideia de tratamento diferenciado no plano da cidadania. Para o autor, no caso brasileiro, existe um tensionamento entre a visão de igualdade e aquela que prega o tratamento uniforme mais adaptado aos princípios moder- nos da cidadania. A título de exemplo, Leandro (2012) encontrou, na execução de um programa go- vernamental, o Programa Mediação de Conflitos já citado acima, duas principais questões que permeiam esse tensionamento. A primeira questão se relaciona ao perfil das pessoas que buscam práticas comunitárias de solução de conflitos e a segunda questão a natureza dos conflitos. A autora observou que a deman- da pelos métodos informais tem crescido especialmente para o tratamento de questões familiares e que são as mulheres os indivíduos que têm buscado cada vez mais por estes espaços de justiça, com o objetivo de solucionar seus con- flitos, demandando cada vez mais a judicialização do direito na esfera privada. Contudo, mesmo que ambas as partes (seja a mulher a primeira interessada, ou mesmo a segunda parte, ou seja, os demais “supostos” interessados na solução dos conflitos) tenham interesses em resolver os conflitos, percebeu-se que exis- tem distinções nas formas de apropriação do processo por cada uma delas. En- controu-se “a não aceitação” em relação às possibilidades de negociação, prin- cipalmente, pela segunda parte. Outro elemento observado está relacionado ao funcionamento do programa. Observou-se que a cultura jurídica do país também tem influenciado os rumos metodológicos adotados por tal prática, pois, na es- colha do procedimento – de mediação ou de orientação sobre direitos – e na to- mada de decisões, não prevalece somente a liberdade de escolhas/opções das partes, mas também da própria equipe/programa, pois, nas situações em que o FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE28 29 programa se depara com alguma violação de direitos, por exemplo, de violência contra a mulher, ou de violação institucional, os profissionais são orientados a colocar limites no processo de negociação. Em que pesem os desafios e lacunas expostos, a autora obervou, com base na percepção dos entrevistados, que tal prática tem atendido, ao menos em par- te, os seus anseios por justiça. Nos casos analisados, aquele programa pareceu produzir espaços de negociação dialógica sem imposição de acordos, alcançan- do soluções para os conflitos e gerando efeitos “de paz” na vida da população. Outra conclusão encontrada por Leandro (2012) é que esta experiência tem tam- bém propiciado um espaço de canalização de demandas ainda não reconhe- cidas pelo direito formal. Nos casos em que a autora analisou, os mecanismos informais de negociação promoveram a participação de distintos atores na reso- lução dos seus conflitos, e tais mecanismos foram capazes de contribuir para a construção do direito de reconhecimento – e sua legimitidade – de acordo com o perfil das partes e com a natureza dos conflitos apresentados. Em sua maioria, como dissemos, os conflitos estavam relacionados à convivência intrafamiliar, questão que apresenta dilemas de tratamento no âmbito da justiça formal. Sa- be-se, por exemplo, que nos tribunais perpetua-se a lógica do contraditório, não sendo aberto espaço para o diálogo, elemento constituinte da proposta de inter- venção de programas de mediação comunitária, que, segundo a autora, para os entrevistados, foi central na resolução dos seus conflitos. Corroborando com o estudo de Leandro (2012), a partir dos dados coletados em sua pesquisa, que por meio da orientação sociojurídica e pelo acesso contínuo das pessoas ao espaço institucional proporcionado pelo programa analisado, aquela experiência tem favorecido a busca da população por seus direitos. Con- tudo, os dados que a autora analisou também indicam uma diminuição na bus- ca da população pelo procedimento de mediação de conflitos. Importa lembrar, no entanto, que o Programa Mediação de Conflitos está baseado na noção de pluralismo jurídico e, conforme Sinhoretto (2006), práticas como esta, em ge- ral, apresentam limites em sua execução. A autora menciona que o campo do pluralismo jurídico promove a concorrência de várias instâncias de resolução de conflitos, com lógicas de negociações e de interesses distintos, produzindo re- sultados de justiça diversos. Para ela, os indivíduos que têm mais conhecimen- to e recursos em relação à apropriação de poder serão os que mais usufruirão das possibilidades oferecidas pelos espaços plurais de negociação. Já o oposto, ou seja, os indivíduos que contam com conhecimentos e recursos reduzidos têm consequentemente, chances limitadas de usufruir das possibilidades oferecidas por estes espaços conciliatórios. FIQUE DE OLHO Ressaltamos também, como demonstrado ao longo do texto, que em di- versos estudos sobre o acesso à Justiça (Sinhoretto, 2006; Amorim, 2008; D’Aráujo, 1996; Pandolfi, Carvalho, Carneiro, Grynszpan, 1999), os autores entendem que, ainda hoje, uma considerável parcela da população está distante das instituições do sistema de justiça. E nas situações em que é estimulada alguma aproximação, como no caso dos Juizados Especiais, por exemplo, percebemos o quanto essa distância ainda permanece em seu plano material e simbólico. O desafio do acesso à Justiça e do estímulo à participação cívica não está relacionado somente à garantia dos direitos, mas, sobretudo, ao reconhecimento dos direitos Leandro (2012) observou que os caminhos para a reformulação do direito, no sentido de privilegiar a participação e emancipação dos cidadãos, são comple- xos, como vimos ao longo deste texto, ao destacamos aspectos culturais e a questão do civismo. A autora destaca que não bastam modificações pontuais no exercício do direito, tendo em vista que os sistemas tradicionais e os novos mecanismos de acesso à Justiça estão sempre amparados na mesma organi- zação da cultura jurídica, baseada no desenvolvimento histórico da cidadania brasileira. Neste sentido, para se pensar em reformas substantivas de acesso à Justiça é necessário diagnosticar, primeiramente, como se dão os processos de legitimidade da justiça e de participação dos indivíduos na solução dos conflitos, com especial atenção às formas como os cidadãos reconhecem os direitos ope- racionalizados pelas instâncias oficiais judiciais e ou extralegais. Por fim, salienta-se que este conjunto de reflexões sobre os estudos em relação à cultura e à cidadania é central para compreender as características que inter- ferem – ou pouco contribuem – na melhoria de vida dos segmentos populacio- nais que estiveram e ainda estão alijados do acesso aos direitos no Brasil. Mes- mo com a existência de práticas que têm como base as influências do pluralismo jurídico, percebe-se que, ainda hoje, uma considerável parcela da população está “distante” das instituições do sistema de justiça, tanto em seu plano ma- terial como simbólico. No entanto, é necessário mais do que uma aproximação, mas o reconhecimento de instâncias plurais de solução de problemas e também, espaços legítimos, capazes de aumentar a confiança da população na “justiça”. Assim esperamos que a mediação comunitária inove e seja capaz de ampliar os diagnósticos sobre as visões de conflitos, a partir dos processos históricos que organizaram e/ou organizam a cultura no Brasil, apresentando meios capazes de influenciar a forma de participação (civismo), consequentemente, o modo de solução de problemas. FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE30 31 Referências Bibliográficas ALMOND, Gabriel; VERBA, Sidney. The civic culture: political attitude and democracy in five nations. Boston: Litte-brown, 1965. AMORIM, Maria Stella de. Juizados Especiais em uma perspectiva comparada. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, 2008, p. 175-188. AMORIM, Maria Stella de; BURGOS, Marcelo; KANT DE LIMA, Roberto. 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Aspectos ideológicos e políticos e sua relação com os contextos comunitários A cultura musical brasileira apresenta grande sensibilidade em relação à exclu- são e às dominações e discriminações de todos os tipos. O direito pode extrair ensinamentos dessa cultura que lhe permitam atribuir às suas nor¬¬mas maior efetividade e proximidade aos problemas dos estratos sociais de maior vulnera- bilidade, quer urbanos ou rurais. Foi por meio da canção denominada Morro Ve- lho que Milton Nascimento se apresentou ao país, enquanto um grande compo- sitor e intérprete popular. Os versos da música contam a história de dois meninos amigos que brincavam juntos na infância pacata de uma fazenda e os destinos bem diversos – e bas- tante óbvios – de cada um. O filho de um peão que inexoravelmente passa a exercer a mesma função do pai e “já não brinca, mas trabalha”. E o filho do dono da fazenda que vai para a cidade estudar e depois assume o comando da pro- priedade. “Quando volta, já é outro. Tem nome de doutor e agora na fazenda é quem vai mandar”. Da interpretação de sua letra, percebe-se que nem mesmo as relações mais íntimas e longínquas de amizade resistem às relações de do- minação, que se fazem bastante presentes nos dias atuais com aspectos varia- dos e formas múltiplas de se concretizar. Existem vários modos de se dominar no mundo contemporâneo. Convive-se diariamente, ao mesmo tempo, com formas de dominação ideológica, política, financeira e jurídica, que se dão de modo pes- soal ou impessoal. Ideologicamente, domina-se, como revela o constitucionalista José Luiz Quadros de Magalhães, ao se encobrir os “reais interesses que motivam as ações políti- SAIBA MAIS Você pode ouvir a canção no seguinte link: http://www.youtube.com/watch?v=-ITyuQPl1nA FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE36 37 cas e econômicas, assim como a construção do discurso jurídico” (2008, p. 235). Neste sentido, as teorias passam a ter um papel duplo delicado. Pode tanto ser propulsora de transformações emancipadoras ao propiciar ao sujeito, de forma crítica e libertadora, a compreensão da sua própria