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IDEOLOGIA, 
COMUNIDADE E 
CULTURA
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IDEOLOGIA, COMUNIDADE 
E CULTURA 
ASPECTOS SOCIOLÓGICOS E POLÍTICOS DOS 
CONTEXTOS COMUNITÁRIOS
Este módulo se divide em duas sessões: 
1) Aspectos sociológicos dos contextos comunitários, 
autoria Ariane Gontijo Lopes Leandro; 
2) Aspectos ideológicos e políticos e sua relação com 
os contextos comunitários, autoria Antônio Eduardo 
Silva Nicácio. 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE4 5
por Ariane Gontijo Lopes Leandro
1. Aspectos sociológicos dos 
contextos comunitários
SESSÃO 1
Para uma abordagem sociológica dos contextos comunitários, apresentamos 
parte dos processos históricos e culturais da cidadania no Brasil e alguns dos 
conceitos sobre capital social, visando compreender o reconhecimento de direi-
tos e a sedimentação da prática de mediação comunitária – lembrando que a 
ideia da mediação sempre foi usual entre pessoas e povos desde a história an-
tiga, que, de formas distintas, não encontravam maneiras de compartilhar su-
as diferenças ideológicas, políticas, culturais e econômicas, portanto, a prática 
da mediação sempre se prestou, em sua história, como auxílio para pessoas na 
compreensão de si e do outro, tendo como princípio o comportamento pautado 
nas inter-relações e em suas diferentes posições e interesses, por isso é identifi-
cada como prática milenar. Nesse sentido, este texto proporciona ao leitor a or-
ganização de alguns conceitos sociológicos que ampliam a visão dos contextos 
comunitários, apresentando um leque de aspectos que devem e podem ser con-
siderados para o desenvolvimento de experiências em mediação comunitária.
1.1. Aspectos históricos da cultura e 
da cidadania brasileira
Muitas são as interpretações sobre a noção de cultura, adotaremos, para a nossa 
interpretação, uma proposta sugerida por Motta (1996), que em estudos sobre a 
“nova” História Política, busca compreender o significado de “culturas políticas”. O 
autor analisa cultura, considerando a sua dimensão polêmica e pouco consensual 
entre as correntes dos estudos etnológicos e em torno do debate antropológico:
 Cultura, então, seria o conjunto complexo constituído pela linguagem, com-
portamento, valores, crenças, representações e tradições partilhadas por 
determinado grupo humano e que lhe conferem uma identidade. (MOTTA, 
1996, p. 84)
Já a noção de cultura política traduz-se enquanto um conceito multidisciplinar, 
ou seja, suas ramificações originam-se a partir da confluência de disciplinas que 
se interessavam em compreender, por meio da incorporação de uma abordagem 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE6 7
comportamental, tendo em vista os aspectos subjetivos, as análises da política e 
seus fatos políticos. Esta visão, segundo Kurschnir e Carneiro (1999)1, apresenta 
a noção de cultura política como aquela que se “refere ao conjunto de atitudes, 
crenças e sentimentos que dão ordem e significado a um processo político, pon-
do em evidência as regras e pressupostos nos quais se baseia o comportamento 
de seus atores”. (KURSCHNIR; CARNEIRO, 1999, p. 1).
Portanto, a dimensão da cultura e sua compreensão em dado contexto, pressu-
põe a análise das linguagens, dos comportamentos, dos valores, das crenças, 
das representações e das tradições de um grupo, aferindo-lhes as suas carac-
terísticas identitárias, assim, os aspectos culturais que constituíram o contexto 
brasileiro têm referencia no próprio processo histórico
Esse legado histórico teria um peso importante no processo de construção da 
cidadania no Brasil, desde a Independência até nossos dias. Assim, qualquer 
abordagem que apresente os contextos comunitários no país precisa considerar 
todo esse “legado histórico”, que influenciou os comportamentos humanos dos 
brasileiros e que caracteriza o desenho das instituições políticas do país. Per-
ceba, a título de exemplo, como demonstra a figura 01 ao tratar do advento da 
Independência do Brasil.
1. Estes autores se remetem aos principais estudiosos do conceito de culturas políticas, tais como Al-
mond e Verba (1963 e 1980), Pye e Verba (1965), e revisões literárias mais recentes e feitas no Brasil 
por Krischke (1997) e Rennó (1998).
FIQUE DE OLHO
Segundo Carvalho (2004), essas características cul-
turais se consolidaram também diante do processo de 
colonização do país pelos portugueses, e que, ao lon-
go dos dois últimos séculos, vêm marcando os traços 
em nossa cultura política, tais como: 
1. a escravidão;
2. a economia baseada na monocultura (latifundiária);
3. o modelo e a origem do Estado como base em uma 
estrutura patrimonialista (tipificado por uma forte 
“promiscuidade” entre o público e o privado); e 
4. o descaso com a educação (população quase que 
integralmente analfabeta ao longo da consolidação do 
Estado brasileiro).
Figura 1: “Da Colônia ao Império
Fonte: PAIVA, M e SCHWARCZ, L. M., 1982. 
Nas palavras de Carvalho (2004), o Brasil se constitui livre a partir de caracterís-
ticas culturais como a negação da própria liberdade humana:
O novo país herdou a escravidão, que negava a condição humana do escra-
vo, herdou a propriedade rural, fechada à ação da lei, e herdou um Estado 
comprometido com o poder privado. (CARVALHO, 2004, p. 45)
O autor apresenta, ao se debruçar sobre estudos em relação às características 
culturais do contexto brasileiro e à criação e/ou constituição dos direitos, o de-
senvolvimento dos direitos civis, políticos e sociais no caso brasileiro, uma or-
dem inversa àquela verificada por Marshall ao tratar da experiência inglesa.
FIQUE DE OLHO
No Brasil, primeiro teriam se consolidado os direitos sociais, depois os direitos 
políticos e por último os direitos civis. O “divisor de águas” na consolidação dos 
direitos teria surgido com a Revolução de 30, principalmente no período do Esta-
do Novo, pois foram os direitos sociais os primeiros, de fato, a ganharem maior 
expressão do ponto de vista da cidadania, haja vista a questão da incorporação 
e consolidação das leis trabalhistas (GOMES, 1988). Já os direitos políticos sem-
pre foram um dilema na história do país, sendo aumentados, diminuídos, e até 
extintos, desde o Brasil monárquico até a redemocratização do país. Os direitos 
civis, compreendidos em sua essência pelo direito à liberdade, somente torna-
ram-se parte da cidadania com a redemocratização do país na consolidação da 
Carta Constitucional de 19882.
2. É preciso salientar ainda que, no caso brasileiro, temos um processo histórico diferente daquele 
descrito por Marshall (1967) quando o autor trata da construção da cidadania na Inglaterra, no en-
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE8 9
Quanto às principais características da cultura política no caso brasileiro, es-
sas se aproximam das contribuições de Almond e Verba (1963), da “cultura pa-
roquial e súdita”. A cultura paroquial é caracterizada pelas sociedades mais 
simples com ausência de instituições políticas, ou mesmo, sem a diferenciação 
das estruturas políticas com relação às religiosas; ela apresenta baixos níveis 
de participação cívica, política e associativa, na medida em que os atores têm 
uma visão limitada tanto das estruturas de incorporação quanto às repostas às 
demandas individuais e coletivas. A cultura política de sujeição aflora em so-
ciedades em que os indivíduos dirigem suas percepções, sentimentos e avalia-
ções prioritariamente para as estruturas institucionalizadas, como as estruturas 
executivas e administrativas do Estado que se colocam encarregadas de respon-
der e orientar às demandas individuais e coletivas, portanto, essas estruturas 
muitas das vezes exprimem o que deve ser priorizado com base nessa relação 
de aceitação dos indivíduos.
Assim, com base em Turner, Carvalho (1996) analisa a cidadania no caso brasi-
leiro a partir de dois eixos: 
a. pela direção do seu movimento, ou seja, se a dinâmica que produz a ci-
dadania é “de cima para baixo” ou “de baixo para cima”, 
b. pelas relações entre o “público” e o “privado”.vida e do seu entorno, como 
também pode servir como instrumento de dominação ideológica ao se elitizar 
o conhecimento, por meio da construção de códigos herméticos e escusos, que 
tendem a limitar e iludir o campo de compreensão, colocando na mão de poucos 
o poder de dominar os processos de construção dos significados dos significan-
tes (MAGALHÃES, 2008, p. 239). Tudo isso é revelado por metodologias de traba-
lho, de pesquisa e de ensino que não possibilitam o envolvimento daqueles dire-
tamente interessados e afetados nas decisões a serem tomadas, bem como no 
processo de construção do conhecimento que trará significado e poderá repre-
sentar a realidade. Aliás, por vezes o conhecimento tradicional de determinados 
grupos e populações não é só desconsiderado, o que seria por si só um absurdo, 
mas é também apropriado de forma imoral, autoritária e sem reconhecimento. 
Em um contexto de dominação, com novas e velhas formas de hierarquias, a 
gigantesca desigualdade social e de renda e o acesso restrito, pouco equitati-
vo dos meios de representação e participação política, põem por terra qualquer 
expectativa ou discurso de prevalência de valores modernos de igualdade e de 
justiça. Como mostra Vera da Silva Telles, as hierarquias são sempre repostas 
diante da “vigência de um mundo legal que não chega a plasmar as regras da 
civilidade e os termos de uma identidade cidadã” (TELLES, 2006, p. 100). Aliás, a 
descrição que a autora faz da República Oligárquica guarda fortes semelhanças 
com os dias atuais. Por mais que a dimensão pública da sociedade seja procla-
mada pela lei e institucionalmente garantida, as vontades privadas ainda são 
mais fortes que sua força normativa. A relação de favores pessoais ainda se 
mostra uma tônica, quase sempre colonizando as expectativas e possibilidades 
de representação de interesses de grupos específicos. A força e a violência con-
tinuam sufocando de forma incivil os conflitos e oposições que quase nunca têm 
fôlego para tomar uma forma institucional. A ordem legal facilmente e perma-
nentemente se rende aos interesses pessoais.
SAIBA MAIS
Na música citada de Milton Nascimento, essa 
dominação ideológica está evidenciada no fato de o 
filho do fazendeiro ir para uma cidade grande para 
se tornar doutor, e, posteriormente, voltar para a 
fazenda com legitimidade para exercer agora o posto 
de dominador. 
De um lado, é notória ainda, e desde a época do Brasil rural, a existência de uma 
dominação pessoal. No interior do nosso país, por exemplo, existe uma enormi-
dade de relações que ainda se pautam pela dominação pessoal, com práticas 
coronelistas e patriarcais. Às vezes, essa dominação se dá até mesmo lançando 
mão de instrumentos já oficialmente abolidos da nossa história.
SAIBA MAIS
Como exemplo, tomem-se os inúmeros casos de prisões de fazendeiros que 
mantém trabalhadores presos em suas propriedades em situação de trabalho 
escravo. Quase sempre essa prisão é feita não por correntes e grilhões, mas 
por dívidas que os donos de terra impõem aos seus funcionários. Nas grandes 
cidades brasileiras, essa situação também ocorre. Número razoável de famílias 
brasileiras tem suas empregadas domésticas. A maioria vinda do interior para 
morar nas residências à disposição de seus patrões praticamente 24 horas por 
dia. Aliás, a própria legislação retrógrada e perversa do emprego doméstico 
revela essa situação de dominação ainda relacionada ao elemento familístico. 
O sistema político, nos âmbitos nacional, estadual e municipal, também é 
tomado dessa lógica de dominação pessoal13.
Por outro lado, com a modernização de nossa sociedade criou-se também uma 
nova forma de dominação impessoal. O sociólogo Jessé Souza introduz a “di-
mensão ‘não sabida’ das causas invisíveis da dominação”, que sequer são nota-
das (SOUZA, 2009, p. 96). Aliás, esse é o motivo do grande sucesso desse tipo 
de dominação, o fato de ela não ser percebida, ser realizada por “interesses que 
se articulam e se sedimentam de modo opaco”, e que “suavizam a violência re-
al e a tornam aceitável e até mesmo desejável inclusive para as suas maiores 
vítimas” (SOUZA, 2009, p. 419). Não se trata aqui de um desejo autêntico, mas 
sim de uma indução artificial do desejo, que leva legiões de pessoas a agirem 
contra elas mesmas e a se converterem em protetores do sistema agindo contra 
elas mesmas e tudo o que elas dizem proteger. Para Jessé Souza, o segredo da 
13. Veja, por exemplo, a recente altercação no Parlamento Brasileiro entre dois senadores. Um não 
parava de se referir ao outro de forma hostil e agressiva usando as expressões “coronel” e “cangacei-
ro”. Aliás, um deles ainda repetia incessantemente uma expressão interessante: “o senhor é uma mi-
noria com complexo de maioria”, deixando claro sua inaptidão em lhe dar com as chamadas minorias, 
mesmo quando essas compõem o seu próprio grupo específico, qual seja o de senador, empresário 
e retirante. As palavras e as imagens dessa contenda, que podem ser assistidas em site popular de 
vídeos na internet (link: http://www.youtube.com/watch?v=MmescFJR2VQ&feature=fvw) provam por 
si só como o nosso país está inserido nessa lógica de dominação pessoal, que se trata de uma bilate-
ralidade, entre favor e proteção, que possibilita a criação de um sistema complexo de alianças e rivali-
dades (FREYRE, apud SOUZA, 2003, p. 118), e de autoritarismo, populismo e messianismo.
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE38 39
dominação moderna está no fato de existirem na nossa sociedade pressupostos 
desigualmente distribuídos por pertencimento de classe. Desse modo, todos os 
privilégios de uma sociedade moderna não são decorrentes de mérito ou talento 
individual. Jessé Souza considera que a hierarquia social de toda a sociedade 
moderna tem como elemento estrutural os capitais econômicos e culturais, bem 
como sua invisibilidade. O autor entende por capital cultural exatamente a con-
jugação dos valores herdados e do capital escolar (SOUZA, 2009, p. 79), isto é, 
todos os valores que são absorvidos no âmbito familiar, social e escolar durante 
o processo de formação de uma pessoa.
Convivem essas relações de dominação, como irmãs praticamente siamesas, as 
relações de discriminação às quais estão expostos os grupos sociais que levam 
no seu cotidiano uma vida precária. 
SAIBA MAIS
Sobre essa situação bastante usual em nossa sociedade, o legendário Billy 
Blanco compôs o samba “A banca do distinto”. Os seus versos “Não fala com 
pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho, mas pra que tanta pose 
doutor, pra que tanto orgulho?” retratam bem a realidade de discriminação 
da época e, de certo modo, muito do que ainda acontece nos dias atuais.
Você pode ouvir esse samba pelo seguinte link:
http://www.youtube.com/watch?v=o6o9PJXTFn8 
FIQUE DE OLHO
O professor Márcio Túlio Viana afirma haver pelo menos dois modos de dis-
criminar (VIANA, 2010, p. 143). Discrimina-se, de maneira bastante visível, fe-
rindo as regras vigentes no sistema. Por agredir nossas consciências, esse 
tipo de discriminação é quase sempre reprimida. A outra forma de discrimi-
nação, mais velada, é se utilizando das próprias regras. Por fazer parte do jo-
go, normalmente essa maneira de se discriminar não é percebida, ou quando 
denunciada os discriminadores são absorvidos numa ciranda de impunida-
des com relação aos marginalizados. Segundo Márcio Túlio, “a discriminação 
se esparrama por todos os lugares porque ela é própria do sistema em que 
vivemos, e este sistema, que divide os homens, está em todos os lugares ao 
mesmo tempo” (VIANA, 2010, p. 144). Para o autor, esse tipo de discrimina-
ção atinge a todos de forma massificada e estrutural, infiltrando-se até em 
nossas consciências.
No livro Cabeça de Porco, Luiz Eduardo 
Soares relata que a força do estigma e 
do preconceito “é toda afetiva e nunca 
apenas cognitiva” (SOARES apud SOU-
ZA, 2009, p. 95). Desse modo percebe-
se que quando se fala de discriminação 
inevitavelmente tem-se que discutiras 
precondições sociais e afetivas dos in-
divíduos e grupos que compõem a nos-
sa sociedade. Ou seja, o que Pierre Bor-
dieu chama de habitus específicos. Nos 
dizeres de Souza, habitus específicos 
pode ser considerado como:
(...) os esquemas cognitivos e avaliativos transmitidos e incorporados de 
modo pré-reflexivo e automático no ambiente familiar desde a mais tenra 
idade, permitindo a constituição de redes sociais, também pré-reflexivas e 
automáticas, que cimentam solidariedade e identificação, por um lado, e 
antipatia e preconceito, por outro – o lugar fundamental na explicação da 
marginalidade do negro (SOUZA, 2003, p. 158). 
É importante notar que esses esquemas que utilizamos para entender e avaliar o 
mundo são adquiridos de maneira espontânea e não problematizada no âmbito 
doméstico desde a primeira infância. Ou seja, é toda uma forma de perceber as 
coisas da vida que nos é transmitida, sem que haja por nossa parte uma refle-
xão sobre a conveniência, a adequabilidade e, até mesmo, a validade desse ha-
bitus. Ele simplesmente é. Em caso de desacordo, mudá-lo é uma tarefa difícil. É 
a partir desses esquemas que constituímos nossas redes sociais. As pessoas e 
os grupos com os quais nos identificamos e somos solidários, bem como as que 
nos geram antipatia e preconceito. E é exatamente o ponto que tange à consti-
tuição histórica de preconceitos que interessa para a análise da discriminação. 
Para o professor Dalmo de Abreu Dallari, o preconceito, que deve ser evitado por 
meio de uma permanente autofiscalização, “além de introduzir a discriminação, 
restringe a liberdade, acarreta a perda de respeito pela pessoa humana, intro-
duz a desigualdade e a injustiça”. (DALLARI apud ARNS, 2010, p. 17). Neste sen-
tido, Souza (2009) parece ser bastante assertivo ao indagar pelos motivos dos 
sujeitos possuírem determinados preconceitos e não outros. Segundo o autor, 
apenas a partir dessa reflexão, pode-se encontrar a explicação para as “razões 
opacas da ‘dominação social’ impessoal que cria os estigmas e preconceitos no 
mundo moderno”. (SOUZA, 2009, p. 96). Como se podem perceber, esses pro-
cessos de discriminação estão intrinsecamente relacionados com a dominação 
social. Neste caso, principalmente, vinculados a sua característica impessoal.
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE40 41
Para Jessé, a questão da discriminação não está ligada diretamente ao precon-
ceito de cor, mas a certo tipo de personalidade, segundo o autor, “julgada como 
improdutiva e disruptiva para a sociedade como um todo” (SOUZA, 2003, p. 159). 
O sociólogo acredita ser a cor da pele apenas uma ferida a mais à autoestima 
do sujeito, deslocando o centro da problemática para a conjugação do abando-
no com a inadaptação (SOUZA, 2003, p. 159). Para ele, seriam esses dois últi-
mos fatores definitivos para a discriminação social que atingem todos os grupos 
sociais, independentemente da cor de seus integrantes. No entanto, diferente-
mente de Souza, e mais próximo de Florestan Fernandes em seu clássico A inte-
gração do negro na sociedade de classes, acredita-se que a forte discriminação 
racial existente no Brasil, além do evidente abandono social e da inadaptação 
de alguns desses grupos, atua de forma contundente para a expressiva exclusão 
e marginalização do povo negro e das minorias identitárias na nossa sociedade. 
Da inclusão parcial do negro na sociedade brasileira decorreu a formação de es-
truturas naturalizadas e não tematizadas de discriminação (MORAES; AMARAL, 
2008, p. 553). Houve, a partir dessa naturalização, uma migração do padrão de 
discriminação do negro para as demais minorias identitárias, havendo um alar-
gamento da parcela da população marcada pela exclusão. Neste sentido, Nancy 
Fraser afirma ser uma estrutura político-econômica que gera modelos específi-
cos de exploração, marginalização e privação em função da raça e é esta estru-
tura que constitui um grupo ‘diferente’. No entanto, Añón (2011, p. 120) amplia de 
forma correta essa análise, ao assegurar que o característico da raça, igual à do 
gênero, é que se trata de uma situação cujas raízes não se encontram apenas 
na estrutura político-econômica, mas também na dimensão cultural e valorativa. 
As relações de discriminação são tão marcantes em nossa sociedade que, até 
mesmo no processo de criação, aplicação e fiscalização das leis, elas encontram 
morada. Em todos estes momentos de institucionalização da legalidade, os se-
tores permanentemente excluídos e discriminados não participam da tomada de 
poder, ou quando participam se fazem representados de forma extremamente 
precária por lideranças quase sempre não legítimas. Jessé Souza denuncia a 
construção arbitrária da legalidade e da ilegalidade como um momento de cria-
ção de estigma e preconceito14 . Para o autor (SOUZA, 2009, p. 425), ao se in-
ventar de maneira arbitrária o “delinquente”, cria-se, consequentemente, o “es-
tigma” como marca negativa de determinados grupos sociais – ou, como preferir, 
de uma única classe social. As camadas sociais que se encontram em situação 
de exploração são as mais afetadas por este estigma da delinquência. E contra-
ditoriamente são também as que mais o legitimam. O perverso é que esse fa-
to põe em risco a solidariedade desses grupos, cuja semelhança principal é se 
encontrarem excluídos da nossa sociedade. De um lado existem os “excluídos 
honestos” e de outro os “excluídos delinquentes”, assim pensam. Sendo que boa 
parte do esforço despendido com a educação dos integrantes desses grupos 
sociais é no intuito de evitar a delinquência. Como nos aponta Souza (2009, p. 
426), a única maneira de alguém da ‘ralé’ – termo que provocativamente ele usa 
14. Também em Telles, 1999, p. 100.
para chamar os integrantes dos diversos grupos sociais explorados e excluídos 
da nossa sociedade - conquistar autoestima e reconhecimento é se diferenciar 
do delinquente, quase sempre também excluído. 
 
Viana, ao apontar para a questão moral do tema, indaga se “as discriminações 
maiores ou menores, que nós mesmos – por ação ou omissão, de forma cons-
ciente ou não – provocamos poderão algum dia, ou de algum modo, voltar-se 
contra nós?” (VIANA, 2010, p. 149). Tal questionamento mostra-se valioso ao 
despertar a responsabilidade de cada um enquanto potencial discriminador e a 
importância do comprometimento pessoal e afetivo de cada pessoa para por fim 
a essa ciranda discriminatória, que só nos diminui enquanto ser humano. Dai 
a necessidade que justifica a existência dos direitos das “discriminações positi-
vas15” (EWALD, apud TELLES, 1999, p. 147).
Para compor o tripé dessas relações perversas, que caracterizam a violência 
simbólica a que está exposta boa parte da nossa sociedade, destacam-se, ao 
lado das relações de dominação e discriminação, as relações de submissão.
SAIBA MAIS
Gonzaguinha, em seu samba “Comportamento Geral”16 , retrata, como ninguém, a 
submissão e a resignação que se espera de todas essas pessoas e grupos sociais 
permanentemente explorados e discriminados em nossa sociedade. Ouça o 
samba no seguinte link: http://www.youtube.com/watch?v=RLxQ1UyHDD4 
Sem dinheiro, sem emprego, sem afeto, sem reconhecimento, sem memória, sem 
história e sem perdão. Que vivem esquecidos às margens de nossa sociedade e 
são obrigados a se esquecer de suas dores e seus sofrimentos para que a vida 
seja possível e tolerável. Que têm que baixar a cabeça e serem bem comportados, 
disciplinados, ordenados e, ironicamente, agradecidos. É por meio dessas 
relações de submissão que se pode ter nítido o quão cruel e perverso é a forma 
excludente e segregadora na qual nossa sociedade se constituiu e se reproduz.
15. O debate em prol da concretização de ações afirmativas por meio de cotas encontra boa parte do 
seu fundamento na necessidade de, em determinados momentos, se realizar “discriminações positivas”.
16. O samba “Comportamento Geral”, considerado o primeiro grande sucesso de Gonzaguinha e gra-
vado pela primeiravez em um compacto simples lançado pela Odeon, em 1972, tem a seguinte letra: 
“Você deve notar que não tem mais tutu e dizer que não está preocupado. Você deve lutar pela xepa da 
feira e dizer que está recompensado. Você deve estampar sempre um ar de alegria e dizer: tudo tem 
melhorado. Você deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que está desempregado. Você deve apren-
der a baixar a cabeça e dizer sempre: “Muito obrigado”. São palavras que ainda te deixam dizer, por ser 
homem bem disciplinado. Deve pois só fazer pelo bem da Nação tudo aquilo que for ordenado. Pra ga-
nhar um Fuscão no juízo final e diploma de bem comportado. Você merece, você merece. Tudo vai bem, 
tudo legal. Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé, se acabarem com o teu Carnaval?”
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE42 43
Paulo Freire é categórico ao afirmar que os “oprimidos tendem a hospedar o 
opressor em si” (FREIRE apud NUNES, 2010, p. 467), o que fatalmente leva a uma 
situação ingrata, uma vez que se por um lado o oprimido passa a ter vergonha de 
si mesmo, por outro aumenta as possibilidades de ele passar a oprimir outras pes-
soas e grupos. Essa introjeção da opressão, elemento fundamental para a cons-
trução da identidade da submissão, denominada por Paulo Freire de “autodesva-
lia”, contribui de forma expressiva para a contenção das reivindicações de direito 
e de reconhecimento. Ao se sentirem culpados pela própria desgraça, ou julgarem 
que o fracasso vivido cotidianamente é responsabilidade de alguma maldição ex-
terna, as pessoas não se enxergam como sujeitos de direitos. Nos dias atuais, en-
contra-se em situação de opressão quem de alguma maneira está exposto às se-
guintes situações: 
(a) Exploração, quando não se recebem os benefícios do próprio trabalho e 
estes beneficiam a outros; (b) Marginalização, como exclusão da participa-
ção na maior parte das atividades sociais que em nossas sociedades signi-
ficam em primeiro termo um lugar de trabalho; (c) Carência de poder, en-
quanto se desfruta de um trabalho autônomo escasso ou nulo e de escassa 
autoridade sobre o mesmo. (d) Imperialismo cultural, como grupo constitui 
um estereótipo ao mesmo tempo em que sua experiência e situação são 
invisíveis na sociedade em geral e têm poucas oportunidades e pouca au-
diência para poder expressar suas experiências em acontecimentos sociais. 
(e) Violência e perseguição sistemática, enquanto os membros do grupo 
sofrem ou experimentam violência ao acaso e perseguição motivadas pelo 
medo, o ódio e o desprezo (YOUNG, apud AÑÓN, 2001, p. 134).
Entende-se que a precarização ou ausência de um trabalho que seja digno ocupa 
um lugar central nessa discussão acerca da opressão. No entanto, vários outros 
fatores contribuem para que essa opressão ganhe força e se mantenha no tem-
po. Gilberto Freyre, em sua obra, desenvolve o conceito de escravidão mulçumana, 
que, segundo Jessé Souza, se trata de uma estratégia de domínio que “permite 
uma expansão e durabilidade da conquista inigualáveis, na medida em que as-
socia o acesso a bens materiais e ideais muito concretos à identificação do do-
minado com os valores do opressor” (SOUZA, 2003, p. 106). E é essa identifica-
ção do dominado com os valores do opressor o fator decisivo para a identidade da 
submissão, que tem como decorrência mais danosa o comportamento geralmente 
resignado dos integrantes destes grupos específicos, que sistematicamente têm 
sido marginalizados na nossa sociedade. Essa identificação vem desde os tem-
pos mais remotos da nossa sociedade e tem como marca a associação do mulato 
com os valores do seu senhor, como uma das formas de ascensão social que nos 
descreve Gilberto Freyre. Ao gerar uma forte subordinação e baixa autoestima dos 
excluídos, essa estratégia também garante a diferenciação e a mobilidade social 
dos setores da nossa sociedade que ocupam tradicionalmente o papel de domínio.
 
A suposta igualdade formal é outro aspecto importante que colabora para deixar 
esse processo de submissão imperceptível – ou melhor, intencionalmente dissimu-
lado – e ainda gera uma sensação de “boa vontade” por parte de todos os que 
participam desse movimento de exploração sistemática de determinados grupos 
sociais, quase sempre presos à subsistência material. A igualdade, consagrada 
como princípio fundamental da nossa Constituição e constitutiva dos direitos de 
cidadania, só se tornará efetiva se internalizada e reivindicada no cotidiano das 
pessoas, grupos e instituições, em face da hierarquia que prevalece institucional-
mente e que define de forma ardilosa quem é ou não cidadão, alimentando, inclu-
sive, uma cultura política desvirtuada pautada pela lógica do favor e do temor. A 
partir daí, os próprios integrantes desses grupos excluídos passam a desenvolver 
um discurso autolegitimador e fantasioso acerca de suas vidas.
SAIBA MAIS
Como de forma sarcástica e sempre genial, apresenta Adoniran Barbosa 
em “Aguenta a mão João”. Ouça a canção no seguinte link: http://www.
youtube.com/watch?v=uhOBaJN7O08 
Diante da constatação de uma forte chuva que pôs a baixo o barraco 
do João, um desses inúmeros moradores de áreas de vulnerabilidade 
e exclusão social das nossas cidades que a todo o momento são 
notícias como vítima de tragédias climáticas, o interlocutor reafirma o 
comportamento resignado que se deve ter nessas horas: “Não reclama 
contra o temporal, que derrubou seu barracão. Não reclama, aguenta a 
mão João, com Alcebides aconteceu coisa pior. Não reclama, pois a chuva 
só levou a sua cama. Não reclama, aguenta a mão João, que amanhã tu 
levanta um barracão muito melhor.”.
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE44 45
Se por um lado “os direitos de cidadania são conditional oportunitties ou ‘próteses 
sociais’ que permitem ao cidadão reforçar suas expectativas sociais e lutar com 
maiores possibilidade de êxito pela afirmação de seus valores individuais e coleti-
vos” (AÑÓN, 2001, p. 95), por outro a formalização desses direitos, em dissonân-
cia com uma prática que imuniza sua aplicação, aprisiona esses grupos e retira 
deles sua força de reação e desobediência a uma realidade segregadora. Uma vez 
que existe o direito, a possibilidade de revolta é bem menor, tendo em vista a ex-
pectativa, quase sempre frustrada, que esses direitos impõem. O direito para ser 
válido tem que ser emancipador, jamais aprisionante. Todo direito que em algum 
momento foi construído, mesmo que seja como resultado de um processo demo-
crático, que serve na prática para oprimir, alienar e excluir pessoas e grupos deve 
ser rejeitado.
SAIBA MAIS
Neste ponto, novamente quem nos guia é Paulo César 
Pinheiro, com sua Capoeira de Besouro. No Toque 
de São Bento Grande de Angola, que dita um jogo 
mais rápido e com golpes objetivos, mas não menos 
malicioso e envolvente, o seu canto nos remete a uma 
vida mais igualitária e libertária: “Esse mundo não 
tem dono e quem me ensinou sabia. Se tivesse dono 
o mundo, nele o dono moraria. Como é mundo sem 
dono, não aceito hierarquia. Eu não mando nesse 
mundo, nem no meu vai ter chefia”.
Ouça a canção no link: 
http://www.youtube.com/watch?v=6G9UAYX0D-Y
2.2. Lógica da meritocracia 
Lógica responsável por definir quais serão os vencedores e os perdedores das 
sociedades modernas, a meritocracia não é privilégio apenas do Brasil. Trata-
se da principal ideologia do mundo contemporâneo. Produzida pelo mercado e 
pelo estado, a meritocracia funciona como um sistema supostamente natural e 
neutro de hierarquização entre indivíduos e grupos sociais. No entanto, a própria 
ordem competitiva não é neutra, tem as suas hierarquias. A lógica da meritocra-
cia se realiza nas nossas sociedades a partir do funcionamento da Ideologia do 
Desempenho. Noção formulada por Kreckel, no intuito de refletir sociologica-
mente sobre a produção da distinção social, esta ideologia do desempenho re-
presenta uma das principais formas de legitimação e naturalização da desigual-
dade atualmente. Traz implícita,em sua formulação, o pensamento de que há 
um valor intrinsecamente diferenciado entre os seres humanos, o que termina 
por possibilitar a legitimação da desigualdade, que passa a ser vista como resul-
tado de uma disputa justa.
FIQUE DE OLHO
Para Kreckel (apud SOUZA, 2003, p. 169), “a ideolo-
gia do desempenho baseia-se na ‘tríade meritocrática’ 
que envolve qualificação, posição e salário”. Sendo 
que a qualificação é o aspecto considerado de maior 
importância, capaz de condicionar os demais. O cida-
dão pleno e integral somente é aquele que consegue 
realizar uma articulação da tríade da ideologia do de-
sempenho. Como mostra Jessé Souza (2003, p. 171), é 
a aceitação e a internalização generalizada do princí-
pio do desempenho que fazem com que a inadaptação 
e a marginalização de determinados grupos sociais 
possam ser percebidas por todos como um fracasso 
pessoal, visto como uma responsabilidade exclusiva 
do próprio sujeito fracassado. 
Como a regra é clara e falaciosamente igual para todos, o indivíduo que não 
consegue obter sucesso dentro dessa lógica é ele mesmo considerado o culpado. 
É por este motivo que se discrimina e humilha esses grupos que não conseguem 
obter sucesso dentro da lógica meritocrática. O processo de exclusão moral de-
pende de se conseguir introjetar nas pessoas certas ideias falsas. “Uma delas 
é o ‘mito do mérito’: as pessoas se convencem de que a vida é só para quem 
‘merece’” (ARNS, 2010, p. 23). Deste modo, a ideologia do desempenho passa 
a ser uma importante fonte tanto de valorização social, como diz Axel Honneth, 
capaz de estimular os laços de solidariedade social, como principalmente fonte 
de distinções sociais, como aponta acertadamente Souza (2003, p. 171), que se 
alimentam e se justificam em decorrência da suposta neutralidade dessa lógica 
meritocrática, que, colocada em marcha por meio da vigência da ideologia do 
desempenho, pressupõe uma falsa igualdade e liberdade entre todas as pesso-
as. Todos estão de acordo de que os vitoriosos sejam diferencialmente recom-
pensados. Essa é a “incivilidade que se ancora num imaginário persistente que 
fixa a pobreza como marca da inferioridade, modo de ser que descredencia indi-
víduos para o exercício de seus direitos” (TELLES, 1999, p. 87). Dentro dessa ló-
gica, os grupos excluídos passam a ser vistos como a imagem da incapacidade 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE46 47
No entanto, o que a lógica da meritocracia desconhece, ou nega não identificar, 
é que nem todas as pessoas e grupos sociais possuem as mesmas capacidades 
e precondições sociais. O que ela faz é universalizar os pressupostos de determi-
nados grupos sociais17 – principalmente os que dominam o capital cultural – pa-
ra todos os demais, como se as condições de vida dos mais diversificados grupos 
sociais da nossa sociedade fossem idênticas. Jessé Souza fala de um “‘esqueci-
mento’ do social no individual” (2009, p. 43), ou seja, da importância de todas as 
precondições sociais, além das emotivas e cognitivas, para que um indivíduo seja 
bem-sucedido dentro da ideologia do desempenho. E é exatamente este aspecto 
que evidencia a quão falha é a lógica da meritocracia, por desconsiderar a impor-
tância dos “mecanismos de identificação afetiva” (SOUZA, 2009, p.23) que permi-
tem aos pais transmitirem cotidianamente a seus filhos capacidades e habilidades 
necessárias para que o desempenho proclamado pela lógica da meritocracia seja 
realmente diferencial.
17. Neste sentido, Jessé relata que a burguesia foi a primeira classe social cuja economia emocional 
foi marcada pela contenção, disciplina e pensamento prospectivo (o futuro é mais importante que o 
presente). Para ele houve uma “quebra da dupla moral que caracterizava toda a classe dominante 
pré-moderna. Como a burguesia é a primeira classe dominante que trabalha, (...) ela pode, com mui-
ta legitimidade, propor para as classes inferiores sua própria economia emocional e seu próprio pa-
drão de conduta” (SOUZA, 2009, p. 399). O seu argumento é muito esclarecedor na medida em que 
mostra o motivo pelo qual determinados grupos sociais tendem a impor os seus valores e padrões de 
conduta aos demais.
e da impotência. Nesse sentido, a própria estrutura montada pelo Estado para 
lidar com esses grupos “fracassados” faz parte dessa ideologia. É o que Aldaíza 
Sposati chama de “mérito da necessidade” (SPOSATI apud TELLES, 1999, p. 95).
Por isso, essa ideologia do desempenho é gerada tanto pelo mercado quanto pelo 
Estado. Aos perdedores dessa lógica meritocrática é reservado um lugar especí-
fico, os serviços assistenciais do Estado, que terminam por atribuir aos excluídos 
uma chancela oficial do fracasso. É disso que Jessé Souza fala quando afirma que 
“a atribuição de respeito social nos papéis sociais de produtor e cidadão passa a 
ser mediado pela abstração real já produzida por mercado e Estado aos indivíduos 
pensados como ‘suporte de distinções’ que estabelecem seu valor relativo” (SOU-
ZA, 2003, p. 169). 
O mais perverso dessa lógica da meritocracia é que ela atribui legitimidade às 
sociedades contemporâneas enquanto sociedades justas. A meritocracia atua 
de forma fundamental para a reprodução e naturalização da desigualdade social, 
ao considerar essas desigualdades justas, uma vez que geradas por um proces-
so “neutro” de competição, em que o vencedor é aquele que mais se esforça para 
obter um desempenho diferenciado. É por mérito que privilégios são destinados 
a determinadas pessoas e grupos. É de maneira legítima que a desigualdade é 
produzida. Por isso mesmo que a lógica meritocrática deve ser considerada uma 
ideologia, que contorna inclusive o próprio conceito moderno de justiça social. 
FIQUE DE OLHO
Tal lógica é responsável por criar, por parte do Esta-
do e de maneira perniciosa, a figura do necessitado, 
transformando a pobreza num retrato do fracasso in-
dividual de uma pessoa ao se relacionar com as múlti-
plas tarefas da vida. Por fim, o mérito da necessidade 
“transforma a ajuda numa espécie de celebração pú-
blica de sua inferioridade” (TELLES, 1999, p. 95). 
FIQUE DE OLHO
Tudo isso compõe o que se chamou de habitus. Para inúmeros grupos so-
ciais, não passa de um habitus precário. Para a meritocracia, essas capa-
cidades e habilidades, que compõem uma verdadeira “herança afetiva” 
(SOUZA, 2009, p. 23) para o indivíduo e, às vezes, para grupos sociais in-
teiros, são consideradas como mérito pessoal e talento inato do sujeito, o 
que, como se viu, será a justificativa última para que a desigualdade per-
manentemente produzida seja entendida como justa. Sobre esta questão, é 
necessário que essa lógica meritocrática, legitimada política e socialmente 
em nossa sociedade, que transfere ao excluído toda a responsabilidade pe-
la sua situação, sem ao contrário oferecer instrumentos concretos para que 
esse problema tenha uma solução, seja revista e abandonada, uma vez ser 
evidente;e sua contribuição sobremaneira para a produção, reprodução e 
naturalização da desigualdade social. Faz-se urgente que a sociedade bra-
sileira incorpore no seu cotidiano princípios que fomentem a solidariedade, 
o cuidado e o reconhecimento, abandonando de vez essa mentira ideológi-
ca que se chama meritocracia.
FIQUE DE OLHO
Nos dizeres de Jessé Souza (2009, p. 388), a meritocracia é uma ilusão que 
legitima a dominação social em todas as sociedades ocidentais ou ociden-
talizadas por meio precisamente da ilusão da ausência de dominação so-
cial injusta.
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE48 49
2.3. Hegemonia do economicismo
“No tempo em que eu tinha meu dinheiro, tinha meus companheiros, tinha tudo 
ao meu lado. Hoje o dinheiro se acabou, companheiro foi se embora, até meu 
amor me deixou”. O samba de roda “Chora, Viola”, de domínio público, é um re-
trato bastante melancólico do principal valor que tem orientado as sociedades 
modernas ocidentais e também as sociedades ocidentalizadas: o dinheiro, con-
siderado praticamentecomo um fim em si mesmo.
A letra do samba leva a uma leitura altamente ilusória e presente nos dias atu-
ais, a de que com o dinheiro supostamente se tem tudo, sendo que na sua au-
sência restam o abandono e a solidão. Essa idolatria moderna pela produção e 
pelo acúmulo de dinheiro, cujo sistema próprio é a economia, tem contaminado 
todas as dimensões normativas da nossa sociedade, da política ao direito, da 
moral à ética. Todas essas esferas têm sido, de certo modo, para usar um termo 
cunhado por Habermas, colonizadas pela economia. Os princípios, as regras, 
as diretrizes e os interesses do sistema econômico têm passado a reger em boa 
medida outros sistemas da nossa sociedade como o jurídico e o político, tiran-
do-lhes a autonomia e contaminando-lhes normativamente. As regras das co-
munidades políticas e jurídicas têm sido feitas pelas grandes empresas, tornan-
do-se os políticos e os juristas, em sua grande maioria, meros porta-vozes do 
interesse econômico. Os discursos políticos e jurídicos têm sido completamente 
influenciados pelo interesse econômico. Daí se falar em hegemonia do econo-
micismo, entendida como a onipresença da economia na vida contemporânea, 
que assume características quase que de uma religião altamente fanática, ex-
tremista e intolerante.
Para o economicismo, os problemas de toda e qualquer ordem de uma socie-
dade só serão e deverão ser resolvidos por meio da produção e, principalmente, 
da acumulação econômica. Esse modo de ver, avaliar e se posicionar no mundo 
tem sido uma tônica – não passível de críticas, sob o risco de fortes represálias 
inclusive vexatórias – de quase todas as pessoas e grupos sociais. Do doutor es-
pecialista ao “homem-estatística”, do rico empresário ao “homem-fracassado”, 
todos compartilham da lógica de que o valor supremo, o grande dogma intocável 
da atualidade, que manda e orienta a nossa sociedade, é a economia. 
SAIBA MAIS
Ouça a canção “Chora, Viola” em: 
http://www.youtube.com/watch?v=nVSFO6vUtPQ 
FIQUE DE OLHO
Neste sentido, o anúncio do Comitê de Política Mo-
netária (Copom) sobre possíveis mudanças na taxa 
do Sistema Especial de Liquidação e Custódia, a di-
fundida taxa Selic, que tem sido o indicador que nor-
teia o balizamento das taxas de juros cobradas pelo 
mercado brasileiro, passa a ser um dos eventos mais 
aguardados do país. Na vida prática, contudo, poucas 
pessoas entendem o que as mudanças desta taxa re-
almente significam. E é isto o que mais assombra.
Essa hegemonia do economicismo, fruto de um liberalismo tacanho e limitado, 
que se transveste a todo o momento de “crítica social” (SOUZA, 2009, p. 72), 
contribui de forma bastante forte para a produção e naturalização da enorme 
desigualdade social brasileira. Toda uma teoria conservadora é criada para jus-
tificar essa hegemonia, que termina por colonizar também a ciência social, o di-
reito e o debate público em geral, que passam a ser servis ao economicismo. Co-
mo exemplo disso, tem-se a “Análise Econômica do Direito”, que, como informa 
o constitucionalista Alexandre de Morais (ROSA, 2008, p. 19), é um movimento 
metodológico – e ideológico – surgido na Universidade de Chicago no início da 
década de 60 do século passado que busca aplicar os modelos e teorias da Ci-
ência Econômica na interpretação do Direito. São precursores e expoentes des-
se movimento os professores Ronald Coase e Richard A. Posner, ambos da Uni-
versidade de Chicago, e Guido Calabresi, da Universidade de Yale. A observação 
trazida por Souza acerca do debate público realizado sobre o que se costumou 
chamar de “gargalo no crescimento econômico” (2009, p. 22), expressão bas-
tante famosa até pouco tempo, é muito interessante para que se possa ver a 
forma como o discurso economicista impregna a análise de problemas sociais 
causados por uma gama de fatores, como tem se tratado no decorrer desse 
trabalho. Tal “gargalo”, que tinha como causa declarada a ausência de mão de 
obra treinada, era visto como um problema tão somente econômico, sem que se 
atentasse para o fato de que vários grupos sociais eram – e ainda são – perma-
nentemente reproduzidos como despreparados e desqualificados para o traba-
lho produtivo justamente porque se está em uma sociedade capitalista competi-
tiva, que sequer se enxerga como sociedade, mas sim como um mercado, que é 
o início e o fim de todas as coisas. 
Como resultado dessa hegemonia do economicismo na nossa sociedade, desta-
ca-se, dentre outros, o que Virgílio Maurício chama de empobrecimento socio-
ambiental. A hegemonia do economicismo impõe um estilo de desenvolvimento 
que tem gerado no Brasil, “de um lado, a degradação ambiental e, de outro, a 
perda da dignidade e o cerceamento da construção da cidadania para parcelas 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE50 51
expressivas da população” (VIANA, 2010, p. 367). A problematização da hege-
monia do economicismo e da lógica mercadológica, entranhada em todas as es-
feras do nosso viver, causando efeitos nefastos, será fundamental para a revisão 
desse modelo e para que os princípios norteadores de uma convivência social 
harmoniosa sejam libertos da ideologia que se tornou o economicismo nos dias 
de hoje. Um tempo em que tudo é mercado. Tudo tem um preço nessa lógica ide-
ológica que tem transformado a vida contemporânea num grande mercado pú-
blico, sem sequer ao menos ter toda a beleza da diversidade de sabores, cheiros, 
cores, ruídos dos mercadões populares. Tudo é pasteurizado, tem o mesmo sa-
bor, o mesmo cheiro e o mesmo preço. Como aponta Milton Santos, “em lugar do 
cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário” (SAN-
TOS, 1987, p. 13). Neste contexto, até mesmo a efetivação dos direitos sociais é 
vista como uma conquista pessoal. 
Betânia Alfonsín, ao analisar a especulação imobiliária sofrida por alguns as-
sentamentos irregulares logo após o momento que estes são regularizados fun-
diariamente, mostra que, neste mercado, profundamente antagônico, as pres-
sões que ele realiza estão sempre presentes e atuam na informalidade também 
(2000, p. 259). Muitas vezes os processos de regularização fundiária, que em te-
se deveriam servir para trazer segurança e dignidade à moradia de uma grande 
população, servem mais aos interesses econômicos de setores e grupos especí-
ficos da nossa sociedade do que aos próprios moradores. Com a valorização dos 
terrenos obtida após a regularização de determinados assentamentos informais, 
o que ocorre é a ascensão de nível ou faixa do imóvel, que passa a ter valor de 
comercialização em uma fatia mais alta de um mercado estruturalmente unifica-
do (ALFONSIN, 2000, p. 259). A partir daí, é fácil fazer com que esses terrenos, 
muitas vezes nobres por estarem em regiões de alta valorização, sejam retirados 
da população segregada que os ocupa, bastando para isso a especulação imo-
biliária entrar em ação e comprar o terreno18. 
A própria noção de cidadania passa a ser condicionada pelo economicismo, pa-
ra o qual o cidadão pleno é confundido com o consumidor, excluindo aquele que 
não o for (ARNS, 2010, p. 17). Deste modo, a independência, a autonomia e a in-
gerência do sistema econômico, que passa a ditar ordens para os demais siste-
mas como o direito e a política, são responsáveis para o que Zolo chama de for-
malismo jurídico e político (ZOLO, apud AÑÓN, 2001, p. 87), sistemas que veem 
suas forças serem esvaziadas diante das pressões advindas do economicismo.
No que tange ao campo específico do direito, a hegemonia do economicismo ge-
ra resultados desastrosos. Ao se revestir de pressupostos de igualdade e liber-
dade, fazendo-se legitimar até mesmo pelos grupos sociais mais marginalizados 
da sociedade, o economicismo, sempre avesso aos direitos sociais, tende a pre-
encher os novos espaços vazios com as suas próprias regras (VIANA, 2010, p. 
18. Alfonsín fala da importância dos terrenos, alvos de assentamentos regularizados pela via da usu-
capião, serem considerados como ZEIS (Zona Especial de InteresseSocial), como prevenção mínima 
contra ataques especulativos (ALFONSIN, 2000, p. 233). 
149). José Luiz Quadros chama a atenção para a crise que o Direito Constitucio-
nal passa na atualidade. Segundo o professor (MAGALHÃES, 2008, p. 247), este 
problema decorre da submissão do Direito aos pseudoimperativos matemáticos 
do discurso econômico, que, em toda a história do constitucionalismo moderno, 
considerou a própria democracia como uma exceção tolerada. Neste contexto, 
o que Quadros chama de “a despolitização do mundo” (MAGALHÃES, 2008, p. 
250) passa a ser um instrumento importante para que o economicismo tenha 
garantido a sua hegemonia.
Deste modo, a reverência simbólica à Constituição, presente até mesmo nos re-
gimes totalitários19, deixa de existir, sendo que esta “passa a ser um mero signi-
ficante no mercado jurídico, sem a força de referência do passado” (ROSA, 2008, 
p. 28). Diante do economicismo, o direito, com seus princípios e fundamentos, se 
encolhe, perde sua força normativa e, principalmente, passa a ser instrumento 
para uma razão que encontra autoridade para além de um processo de constru-
ção política, dialógica e democrática20. 
Como contraponto a essa hegemonia do economicismo, algumas vozes têm se 
enunciado no cenário político, jurídico e acadêmico. Mesmo que esses discursos 
dissonantes ainda se façam com pouco destaque, certamente deles partirão o 
gérmen para a reorganização e harmonização da nossa sociedade. Maria Tereza 
Fonseca, ao estudar a obra de Michel Bouvier, observa a necessidade de que a 
ciência financeira seja tratada no âmbito da política, pois sem organização polí-
tica não há fim coletivo a ser satisfeito, nem despesas públicas para assegurar a 
realização e, por consequência, não há encargos públicos para procurar as re-
ceitas coletivas indispensáveis para a cobertura das despesas, ou seja, não há 
atividade financeira (BOUVIER apud DIAS, 2008, p. 475). Ou seja, é preciso dizer 
que o economicismo depende da política, bem como da moral e do direito, pois 
como mostra Maria Tereza Dias, lançando mão das formulações teóricas de Bou-
19. Os regimes de exceção sempre se fundamentaram simbolicamente por meio de alterações na 
Constituição. 
20. Habermas, em Faticidade e Validade, relata que a razão não pode estar centrada numa autorida-
de estranha, residindo em algum lugar além da comunicação política (RIBAS, 1997, p. 223)
FIQUE DE OLHO
Destaca-se que esta despolitização deve ser compre-
endida como a alienação e o desvirtuamento das fun-
ções e dos princípios da política, da ética, da moral e 
do direito, por meio da interferência autoritária e ideo-
lógica do sistema econômico em todas essas esferas.
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE52 53
vier, Esclassan e Lassale, “(...) a despesa pública, sob sua forma exclusivamente 
social, é conduzida a se beneficiar de um tipo de legitimidade nova consagrada, 
não mais pela economia, mas pela moral e pelo direito” (DIAS, 2008, p. 475). 
É exatamente a partir dessa compreensão dos limites da economia, que até o 
momento tem se imposto de forma ilimitada, autoritária e totalizante na nossa 
sociedade, que esse sistema poderá ser rearranjado. Alexandre de Morais, ao 
trazer à tona a teoria de Ferrajoli, afirma que o fato de critérios econômicos fi-
xarem a gama das possíveis decisões retira grande parte das possibilidades de 
implementação do “Estado Democrático de Direito” (ROSA, 2008, p. 23). Ou seja, 
é preciso explicitar como a hegemonia do economicismo contribui de forma ne-
fasta para que o Estado Democrático de Direito não seja efetivamente concre-
tizado, uma vez que este é submetido aos interesses naturalizados do mercado. 
Neste ponto, Rosa parece ter razão ao apontar como uma das saídas para essa 
situação a promoção de verdadeiros atos de resistência engajada, que sejam 
capazes de realizar uma revisão das coordenadas simbólicas, isto é, o que se 
compreende por realidade (ROSA, 2008, p. 31). Neste contexto, algumas estra-
tégias de mediação comunitária, como a organização e a mobilização social e o 
fortalecimento de redes, podem ser de extrema importância e necessidade.
Esses atos, em alguns momentos, podem ser inclusive a negativa ao debate fa-
lacioso e comprometido com o economicismo21. Deste modo, é importante notar 
que se por um lado a hegemonia do economicismo abre espaços com violência 
e para a violência, por outro ela paradoxalmente gera uma maior sensibilidade 
para as misérias do mundo, que se expressa numa ênfase crescente dos Direitos 
Humanos (VIANA, 2010, p. 146), que, por excelência, devem atuar para desmas-
carar o discurso da neutralidade, que serve de fundamento ideológico do eco-
nomicismo, e para a construção de um contexto onde a justiça seja possível ao 
equalizar de forma harmônica as forças normativas das dimensões moral, ética, 
política e do direito na vida humana.
“Tem certos dias em que eu penso em minha gente e sinto assim todo o meu pei-
to se apertar. Porque parece que acontece de repente, como um desejo de eu 
viver sem me notar”. Vinícius de Moraes e Chico Buarque cantando melodia de 
21. Para se obter essa revisão da realidade, Rosa apresenta, fundamentando-se na teoria de Zizek, a 
estratégia da ‘superidentificação’, que consiste na exploração das formas simbólicas até o limite da 
exaustão, de um modo que seja possível demonstrar que elas são falsas, desde a enunciação. Enfim, 
negar-se a consumir os significantes produzidos para relegitimar a estrutura, muitas vezes, negan-
do-se ao debate (ROSA, 2008, p. 31).
2.4. Consentimento social, político e legal
Garoto – o “gênio das cordas” como era chamado o senhor Aníbal Augusto Sar-
dinha, que contribuiu para revolucionar o violão brasileiro – se espantam com a 
percepção de que diante de toda a dura realidade daquela “Gente Humilde”, co-
mo diz o título da canção, eles alimentam “um desejo de viver sem se notar”. Ou 
seja, tacitamente, de consentir para que a situação de sofrimento dessa gente 
humilde perpetue.
Este consentimento social muitas vezes é causado pelo fato de as pessoas e 
os variados grupos sociais não vislumbrarem saídas para a mudança, como re-
vela os versos: “E aí me dá uma tristeza no meu peito, feito um despeito de eu 
não ter como lutar”. Noutras vezes, consente-se, ao se tomar decisões, que po-
deriam ser chamadas de mágicas, que infelizmente não contribuem para a efe-
tiva transformação, como a fuga quase desesperada para as religiões que cada 
vez mais prometem salvações em algum plano da vida não identificado, exem-
plificada pelos poetas da seguinte maneira: “E eu que não creio peço a Deus por 
minha gente. É gente humilde, que vontade de chorar”. Por fim, a romantização 
daquela situação de miséria, pobreza e opressão, também contribui para que es-
se consentimento social seja duradouro no tempo. Os próprios poetas se deixam 
levar, não menos de forma lírica e bela – o que só torna a situação mais delicada 
–, por esse sentimento: “São casas simples com cadeiras na calçada. E na facha-
da escrito em cima que é um lar. Pela varanda flores tristes e baldias, como a 
alegria que não tem onde encostar”. 
O primeiro aspecto a ser tratado acerca deste “consentimento social”, que atua 
como um importante elemento para a reprodução, a legitimação e a naturali-
zação da desigualdade, é o fato de haver na sociedade brasileira uma cultura 
arraigada de negação de conflitos. Toda a herança da vertente sociológica 
culturalista, de Freyre a Da Matta, terminou por gerar o “Mito da Brasilidade”, ex-
pressão cunhada por Jessé Souza. Toda a construção acerca da suposta cor-
dialidade do homem brasileiro, que encontrou abrigo nas mais diversas teorias 
sociológicas, terminou por gerar uma verdadeira aversão a qualquer maneira de 
tematização e reconhecimento de conflitos latentes de toda ordem – sejam pes-
soais, sociais, morais, políticos, jurídicos etc. – bem como uma postura acrítica 
incorporada e reafirmada no dia a dia brasileiro. Para Jessé Souza, essa “aver-são ao conflito é o núcleo de nossa ‘identidade nacional’, na medida em que 
penetrou a alma de cada um de nós de modo afetivo e incondicional” (SOUZA, 
2009, p. 39). É fundamental, para que sejam elaboradas saídas efetivas para na-
SAIBA MAIS
Ouça a canção “Gente Humilde” em: 
http://www.youtube.com/watch?v=1yaD-uBeLLI
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE54 55
turalização da desigualdade no país, enfrentar os aspectos negativos trazidos 
por esse “Mito da Brasilidade”. Uma delas é desfazer a “ficção de homogenei-
dade e de unidade entre brasileiros desiguais quanto com ‘horror ao conflito’” 
(SOUZA, 2009, p. 47). Trata-se, neste ponto, de evidenciar as diferenças entre 
os mais variados grupos sociais, atuando dessa maneira para pôr abaixo essa 
“ficção de homogeneidade e unidade” e, deste modo, contribuir para o desfazi-
mento da nossa vergonhosa desigualdade social.
Neste sentido, é importante que se procure defender sempre a autodetermina-
ção ética diante de possíveis normas jurídicas excludentes. É preciso nomear a 
pobreza, considerada por todos como horrível, e desfazer as desigualdades a 
partir do respeito às diferenças de cada indivíduo e grupos sociais, mesmo que 
para isso seja necessário questionar a estrutura de privilégios gerada por esse 
sistema de desigualdade para alguns grupos da sociedade brasileira. Muito ain-
da se tem que avançar para o processo individual e coletivo de aprendizado mo-
ral e político da nossa sociedade realmente ocorrer de um modo a possibilitar o 
combate a esses consensos sociais injustos. Se para Hannah Arendt “(...) é pró-
prio de o pensamento totalitário conceber o fim dos conflitos” (ARENDT, apud NI-
CÁCIO; OLIVEIRA, 2008, p. 113), negar a existência dos conflitos ou tentar resol-
vê-los de modo artificial é tão totalitário quanto. Um bom começo, certamente, 
é passar a lidar com os conflitos sociais de forma mais íntegra e comprometida. 
Para tanto, é necessário que esses conflitos sejam aceitos e tenham sua legi-
timidade reconhecida, só assim será possível que a sua gestão e consequente 
resolução sejam feitas de forma profunda e satisfatória. 
Um segundo aspecto importante que legitima e autoriza este consentimento so-
cial é o não envolvimento e a não responsabilização por parte de todos os 
integrantes da sociedade com as causas da desigualdade social. 
FIQUE DE OLHO
Só a partir do momento em que as pré-condições so-
ciais e demandas diversificadas desses diferentes gru-
pos sociais forem assumidas como uma necessidade e 
um direito, poder-se-á de fato experimentar uma cida-
dania plural, democrática e diferenciada. 
SAIBA MAIS
Este não se envolver e não se responsabilizar pelos graves problemas 
sociais vêm de tempos bastante longínquos e se repetem de forma 
reiterada nos dias de hoje. Jessé Souza nos chama a atenção (2009, p. 
403), seguindo os passos de Joaquim Nabuco, que há mais de 100 anos 
já se fazia esse alerta, da mesma forma Florestan Fernandes, de que 
não houve qualquer política ou consenso social no sentido de reverter 
as péssimas condições em que os ex-escravos entraram no mercado 
capitalista. Desde então, nada ou muito pouco se fez para que esse 
quadro fosse revertido, para que a construção sistemática de um batalhão 
de desclassificados para o sistema capitalista industrial moderno fosse 
interrompida. O que de certo modo parece dar razão a Michel Foucault 
quando este, em Vigiar e Punir, diferencia o “conteúdo manifesto” do 
“conteúdo latente” das interpretações sociais. Talvez esse batalhão 
de pessoas não seja necessariamente de desclassificados – conteúdo 
manifesto – para o sistema capitalista, mas bastante competentes 
– conteúdo latente – para ocupar exatamente o lugar que deve ser 
destinado a eles, qual seja, à margem da sociedade. Desta maneira, o 
que deve ser modificado é o próprio sistema capitalista que se mantém 
e se justifica exatamente pela sua característica excludente. Neste 
sentido, Vera da Silva Telles (2006, p. 122) fala de “um capitalismo sem 
ética protestante (...), no qual inexiste a ideia de povo, território e cultura 
enquanto valores e categorias políticas que balizam o jogo dos interesses 
por referência a um ‘mundo comum’ construído como história e legado 
das gerações”. O que se sobrepõe sempre é um individualismo e uma 
irresponsabilidade crônica. Nesse contexto, a violência encontra um bom 
terreno para nascer, uma vez que “ninguém é responsável por nada, pois 
cada um faz de si sua própria lei e toma seus interesses como a medida de 
todas as coisas” (TELLES, 2006, p. 122).
Esse caráter predatório e selvagem da sociedade brasileira e do sistema capita-
lista periférico que a guia proporciona quase sempre o exercício ilimitado do po-
der político e econômico, que atua desvinculado de uma noção forte de respon-
sabilidade pública. E é exatamente esta “ausência de responsabilidade pública”, 
pactuada e exercida por todos, que alimenta o consentimento social diante da 
reprodução e naturalização da desigualdade. A dupla face óbvia desse não se 
envolver e não se responsabilizar é a atribuição da responsabilidade a um tercei-
ro externo que, de maneira alguma, se assemelha conosco. A responsabilidade 
por todas as misérias, injustiças e disfunções ocorridas na nossa sociedade é 
sempre atribuída seja a um Estado, a uma elite, a uma quadrilha, que não nós 
mesmos. No fundo, ninguém se sente efetivamente responsável pela constran-
gedora desigualdade social brasileira. No dito popular, ela é o famoso “filho feio 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE56 57
sem dono”. Entende-se que esse consentimento social, que, numa dimensão 
moral, acaba por gerar uma força normativa forte, que se sobrepõe muitas vezes 
à própria eficácia jurídica, pode e deve ser modificado, desde que seja perma-
nentemente evidenciado, criticado e revisado por toda a nossa sociedade. Cer-
tamente a conscientização e a problematização de todos esses acordos sociais 
injustos são caminhos indispensáveis para a solução de boa parte dos proble-
mas que estão sendo elencados nesse trabalho.
Tal consentimento tem um viés político e legal muito forte. Tanto o sistema po-
lítico, quanto o jurídico também contribuem de forma veemente para que esse 
consentimento aconteça e permaneça. No que tange ao direito são vários os 
exemplos, nas mais variadas áreas de concentração específica, que atuam pa-
ra o consentimento dessa situação de construção e reprodução de vidas precá-
rias. Quase sempre o direito, por trás de seu argumento de validade declarado, 
traz consigo uma dupla face que jamais é formalmente admitida e sequer pro-
blematizada. No campo do direito do trabalho, tem-se o “princípio da proteção”, 
que, sob a argumentação de proteger o empregado, acaba por assegurar ao 
empregador e, principalmente, legitimar e fortalecer um sistema de exploração 
do homem pelo próprio homem. Ainda no direito do trabalho, em interface com 
os direitos de cidadania e direito internacional, cita-se o caso dos imigrantes na 
Europa chamados de “sem papéis”, isto é, sem uma documentação regular de 
estadia em um determinado país. “A falta de papéis libera o seu corpo para a ex-
ploração sem limites, submetendo-o à lei do empregador” (VIANA, 2010, p. 145).
 
No tocante ao direito tributário, essa situação de consentimento legal agrava-se 
ainda mais. Sabe-se que, no Brasil, a incidência dos tributos recai de maneira 
centralizada na circulação de bens e serviços e na receita bruta, o que integra, 
destacam-se os bens de primeira necessidade, como os gêneros alimentícios 
componentes da cesta básica. A conclusão prática é a de que todos, do mais 
pobre ao mais rico, pagam o mesmo tanto de tributos pelo quilo dos alimentos. 
No entanto, como pode ser facilmente percebido, essa arrecadação igualitária 
atinge de forma totalmente desigual a receita das diferentes famílias brasileiras 
e acaba na realização de uma justiça desigual. Certamente o montante desses 
tributos gera um impacto muito maior narenda de uma família que vive com um 
salário mínimo mensal, em comparação com a de um funcionário público que 
recebe uma remuneração próxima do subsídio recebido por um ministro do Su-
premo Tribunal Federal (STF)22, que constitucionalmente deveria representar o 
teto salarial para a carreira no serviço público23, ou de um megainvestidor da 
22. Atualmente este teto está fixado no valor de R$ 29.462,25 (vinte e nove mil e quatrocentos e ses-
senta e dois reais e vinte e cinco centavos), o que equivale aproximadamente ao valor de 40 salários 
mínimos de R$724,00 (setecentos e vinte e quatro reais).
23. Cabe a ressalva de que esse teto na prática não é respeitado nem mesmo pelos próprios mi-
nistros do STF, que quando exercem função no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), recebem uma 
gratificação que não é computada no limite remuneratório. O mesmo ocorre nos poderes executi-
vos e legislativos. 
bolsa, cujo montante mensal chega a valores tão exorbitantes difíceis até mes-
mo de serem contabilizados. A permanência desse sistema tributário é decorrên-
cia direta do que estamos chamando de consentimento social, político e legal. 
Neste contexto, o princípio da igualdade para ser efetivamente concretizado só 
pode ser considerado como um princípio a um tratamento diferenciado, senão a 
igualdade de direitos protegida e procurada nunca será efetivamente conquis-
tada, pois é usada quase sempre para respaldar uma situação de desigualdade. 
No âmbito do direito processual, por mais que na teoria se afirme que ele “não 
regula os discursos jurídico-normativos enquanto tais, mas assegura nos aspec-
tos temporal, social e material a estrutura institucional que libera o caminho do 
processo de comunicação governado pela lógica dos discursos de aplicação”¬ 
(HABERMAS apud OLIVEIRA, 2008, p. 361), na prática, o que se vê é que o di-
reito processual no sistema jurídico brasileiro somente reforça as desigualdades 
sociais e limita o acesso à justiça, ao não considerar as diferenças específicas 
de cada pessoa e grupos sociais para entrar em litígio. O grande número de re-
cursos processuais, por exemplo, é utilizado apenas por quem efetivamente tem 
condições para arcar com os custos, sempre altos, de bons advogados. Sendo 
que tais recursos quase sempre são usados de forma protelatória, evidentemen-
te por má-fé, tanto por grandes empresas, como pelas procuradorias jurídicas do 
próprio poder público. Mais do que um instrumento para concretização da justi-
ça e emancipação social, o processo colabora fortemente para a consolidação 
das exclusões sociais do país e das relações de dominação social.
FIQUE DE OLHO
Ainda no direito tributário, percebe-se que “a tributa-
ção da renda (...) é fortemente centrada nos trabalha-
dores, que já têm a incidência ‘na fonte’ sobre seus 
salários” (SCAFF, 2008, p. 92). Daí talvez advenha par-
te da resistência da chamada classe média brasileira 
– composta por vários grupos sociais que podem ser 
considerados, mesmo que de forma relativa, incluídos 
socialmente – aos avanços sociais. De certo modo, 
esses grupos se sentem injustiçados diante de tantos 
cuidados que são demandados aos grupos sociais mi-
noritários, uma vez que efetivamente são a grande lo-
comotiva da arrecadação do país. 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE58 59
SAIBA MAIS
Neste sentido, estudo recente do Banco Mundial 
demonstra que o grau de satisfação do cidadão 
comum acerca da justiça é extremamente baixo. 
Dentre outros fatores analisados pelo referido 
relatório, destacam-se os impedimentos políticos à 
mudança do sistema.
No que diz respeito ao Direito à Cidade, tanto a legislação urbanística, como as 
práticas de planejamento urbano têm atuado de forma silenciosa para o proces-
so de segregação e exclusão social. Alfonsín chega a afirmar, sem tirar o peso 
dos fatores econômicos, sociais, históricos, culturais e políticos que concorrem 
para o desenho territorial das cidades, que “a história da segregação nas cida-
des está intimamente ligada, principalmente neste século, à história da legis-
lação urbanística” (ALFONSIN, 2000, p. 205). Aliás, todos aqueles fatores são 
fundamentais para que a legislação urbanística seja construída dessa forma ex-
cludente e não de outra maneira. Além de toda a sociedade consentir com esse 
processo de segregação histórica, o direito e várias políticas públicas não só a 
legitimam, como ajudam a promovê-la. Neste contexto, o programa de reurba-
nização de vilas e favelas que vem sendo desenvolvido pela prefeitura de Belo 
Horizonte, denominado Vila Viva, conforme demonstra relatório de pesquisa da 
equipe de mediação comunitária do Núcleo de Mediação e Cidadania do Progra-
ma Polos de Cidadania, no curso de suas intervenções expulsoras, estaria, sob 
amparo legal do planejamento urbano, contribuindo com a lógica discriminató-
ria, em que pessoas indenizadas por suas moradias estariam migrando para ou-
tros assentamentos ilegais, ou até criando novos.
FIQUE DE OLHO
Deste modo, de legislações segregacionistas decorrem variadas práticas 
políticas urbanas não menos excludentes. Uma “[...] perfeita combinação 
de exclusão territorial combinada com segregação, tudo sob o patrocínio 
do planejamento urbano apoiado em uma lógica discriminatória amparada 
pela legislação urbanística” (ALFONSIN, 200, p. 207). Tal legislação e prin-
cipalmente a interpretação que dela tem sido feita, dentre outras coisas, 
não reconhece o direito subjetivo ao terreno onde as moradias das pessoas 
que vivem em ocupações irregulares foram construídas e fixa padrões téc-
nicos e urbanísticos não razoáveis para a população de baixa renda, o que 
a obriga a não cumprir a lei para que seja possível ter um local para se viver 
nas cidades. Isto é, a própria legislação inadequada e abusiva cria o motivo 
da ilegalidade urbana, da chamada “cidade ilegal”. Por este motivo, consi-
dera-se que as pretensões jurídicas devem ser sempre intercompartilhadas 
e, em um processo democrático, reciprocamente criticáveis, somente assim 
elas correrão o risco de serem legítimas e efetivas. 
Para além da própria lei em si, que muitas vezes é discriminatória e, até mesmo, 
inconstitucional, o consentimento político atua de forma incansável para a cons-
trução dessa situação de vida precária. 
 
São inúmeros os exemplos de desrespeitos de cumprimento de um direito asse-
gurado por lei por parte de um órgão estatal, o que nos faz afirmar que o poder 
público, em todos os níveis da federação, certamente é um dos principais res-
ponsáveis pelo mau uso do sistema judicial e pelo descumprimento reiterado de 
obrigações legais. 
FIQUE DE OLHO
Para permanecer nos mesmos ramos do direito analisados acima, veja, por 
exemplo, a atual situação da guerra fiscal em desenvolvimento no país entre as 
entidades federativas. Com o intuito de conquistar e conservar empresas num 
território estadual específico, uma conduta ilegal de concessão de benefícios fis-
cais, que tem sido generalizada entre todos Estados-membros, fere frontalmente 
os princípios da impessoalidade na distribuição de recursos públicos e da igual-
dade dos beneficiados pela renúncia fiscal (SCAFF, 2008, p. 96). Essas normas 
que concedem benefícios fiscais para as empresas têm sempre sua inconstitu-
cionalidade arguida nos tribunais do país, no entanto, o que o poder público tem 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE60 61
feito, além de desrespeitar o Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFA-
Z)24, é sempre manter tal norma em vigor, sendo que, quando esta é julgada in-
constitucional ou estiver nos momentos finais do processo para que isso ocorra, 
o Executivo propõe nova lei para o Legislativo, tratando da mesma concessão 
fiscal que foi considerada inconstitucional só que usando outro instrumento ju-
rídico, que imediatamente a aprova. Essa “guerra fiscal” patrocinada pelos Esta-
dos-membros com o incentivo do poder privado e não contida pelo judiciário tem 
agravado as desigualdades entre as maisdiversas regiões brasileiras.
Inúmeras outras práticas como essas são, a todo o momento, exercidas pelos 
Estados-membros que dão um exemplo indecoroso de desrespeito às regras ju-
rídicas, políticas, morais e éticas. Afora isso, as relações de dominação, discrimi-
nação e submissão também são praticadas na e pela administração pública. É 
o que se pode chamar de “rito do poder”. Tanto entre os agentes públicos em si, 
como entre um agente público e um cidadão comum, essas relações são cons-
tantes, gerando quase sempre uma situação de humilhação por parte daquele 
que é dominado, discriminado e que ainda tem que responder de forma submis-
sa. Entre os agentes estatais, tais relações podem ser percebidas pelo fato de 
serem os órgãos governamentais marcados pela presença de uma forte hierar-
quia, que se impõe por meio da diferenciação de funções, atribuições, salários, 
salas, elevadores, carros privados ao alto escalão, dentre outros. Já com relação 
ao trato com o cidadão comum, a situação se agrava, pois muitas vezes o que 
acontece é uma relação extremamente desrespeitosa e descuidada, muitas ve-
zes pautada pelo velho e conhecido clientelismo. 
Desde o funcionário “da ponta”, aquele que executa nas comunidades as polí-
ticas públicas, até a cúpula de um governo, quase sempre, até mesmo nas ad-
ministrações ditas populares, democráticas e participativas, o que ocorre é uma 
relação fria, distante e insensível às necessidades e aos clamores públicos e 
muitas vezes pautada pelo autoritarismo, mandonismo e por uma “cultura do fa-
vor” deplorável. Neste contexto, as políticas públicas, em especial as de natu-
reza compensatória, acabam por servir mais ao próprio consentimento social e 
à perpetuação de uma cultura da pobreza do que para um processo edificante 
de emancipação social. Outra atitude que é determinante para que este consen-
timento seja renovado dia após dia diz respeito à vontade política – ou melhor, 
à falta de vontade política – presente nas Cortes de Justiça, que praticamente 
24. O Confaz foi criado como uma tentativa para evitar a guerra fiscal entre os Estados-Membros. 
Sob a coordenação do Ministério da Fazenda, o Conselho é para ser responsável pela fixação dos 
benefícios sobre o ICMS que os Estados poderiam conceder às empresas. Tal definição, segundo 
a Lei Complementar nº 24/75, deveria ser tomada em unanimidade entre os Estados. No entanto, a 
partir da década de 90, quando se acirrou a chamada “guerra fiscal”, o que os Estados têm feito é 
fixar as concessões de incentivo fiscal – só que usando matreiramente o nome “incentivo financeiro” 
– sem levar ao conhecimento do Confaz. 
desconsideram as inovações jurídicas que visam a superar a grande desigual-
dade social da sociedade brasileira. Muitos instrumentos jurídicos, resultados de 
longos processos de reivindicação e mobilização social, são simplesmente ig-
norados pelos mais diversos juízos do país. De uma jurisdição de primeiro grau 
ao Supremo Tribunal Federal, todas elas atuam frequentemente para o esvazia-
mento de importantes instrumentos jurídicos. 
Como ensina Dworkin, “dentro da prática jurídica a proteção dos direitos é muito 
mais importante do que a adesão a regras que não refletem mais a moralidade 
social” (DWORKIN, apud CHUEIRI, 2008, p. 419). Deste modo, a mediação comu-
nitária se mostra uma forte ferramenta para que a sociedade como um todo atue 
como um sensor e um catalisador dos processos de construção e desconstrução 
do direito, sempre se manifestando e exigindo que seus direitos, em especial os 
que dizem respeito a uma vida digna, sejam respeitados e protegidos, indepen-
dente de qualquer regra ou norma que momentaneamente venha restringir tais 
direitos fundamentais. Deve-se sempre ter claro que não se trata do exercício da 
jurisdição, em especial a de natureza constitucional, de uma questão de interes-
ses individuais ou particulares de determinados grupos, mas sim de princípios 
que devem sempre ter seu conteúdo normativo renovado e sua aplicação exi-
gida socialmente. Para que uma interpretação jurídica realmente faça frente a 
FIQUE DE OLHO
No dito popular, trata-se daquela famosa “lei que não 
pegou”. Restam as perguntas: não pegou por quê? 
Quais os interesses envolvidos nessa ação? Até que 
ponto essa “falta de vontade política” não representa 
o interesse político de determinados setores da socie-
dade? Como exemplo deste tipo de alienação jurídica, 
tem-se a concessão do direito real de uso, instrumen-
to previsto pelo ordenamento jurídico brasileiro desde 
1916 e praticamente em desuso. Tal dispositivo, que 
poderia ser muito importante para políticas de regu-
larização fundiária, por permitir a destinação de ter-
renos públicos para assentamentos da população de 
baixa renda, bem como para a legalização das áreas 
já ocupadas, visando a sua permanência, estabilidade 
e sustentabilidade, é exiguamente utilizado. Este tipo 
de conduta atua para que uma forte descrença no di-
reito seja difundida e, aos poucos, arraigada em toda 
a sociedade, gerando uma sensação de impunidade e 
de anomia jurídica.
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE62 63
esse consentimento tão arraigado nas práticas sociais e institucionais do país, é 
importante que ela seja “consistente e coerente com a história (institucional) da 
comunidade a que pertence o intérprete” (CHUEIRI, 2008, p. 425), como pressu-
põe as práticas e construções teóricas sobre a mediação comunitária. No caso 
da constituição brasileira, é fundamental que se resgate sempre a força da me-
mória de sua constituinte, que se deu de maneira plural, democrática e cidadã.
Certamente a grande dificuldade em se realizar as tão propaladas reformas po-
lítica, tributária e processual guarda relação com este consentimento social, po-
lítico e jurídico. No entanto, para se romper com este consentimento, é preciso, 
como assegura a jurista espanhola Maria José Añón, recuperar a carga mais ra-
dical e emancipadora da cidadania que se concreta e realiza nos direitos sociais 
(2001, p. 146). Mostra-se, cada vez mais importante, a sensibilização de toda a 
sociedade de que as violações de direitos fundamentais geram feridas a toda a 
coletividade. Não são apenas as pessoas que diretamente têm seus direitos fun-
damentais violados e que sofrem com este fato, a “integridade social” de uma 
sociedade, ou seja, sua pretensão de validade enquanto uma comunidade glo-
bal que integra os vários contextos normativos da vida humana, é atingida de 
maneira fatal quando se permite que boa parte da sua população viva sem sua 
dignidade protegida, sem os seus direitos mais fundamentais assegurados. Nor-
mas jurídicas e práticas políticas não devem nunca atuar como impeditivo para a 
autodeterminação ética (FORST, 2010, p. 279), principalmente das minorias que 
sempre encontram maior dificuldade para fazerem suas diferenças éticas res-
peitadas por toda a coletividade. Neste sentido, é necessário que o conceito de 
cidadania compreendido como direito a ter direitos seja superado, pois, como 
nos afirma Dahrendorf, “(…) a cidadania entendida como titularidade de direitos 
e status hoje é um conceito praticamente vazio ou uma justificação para fazer 
dos que são considerados ‘cidadãos’ um ‘clube de privilegiados’” (DAHRENDORF, 
apud AÑÓN, 2001, p.94). Esse é realmente o “ponto cego” do nosso Estado De-
mocrático de Direito: a exclusão, a marginalização e a exploração de uma enor-
midade de grupos sociais e minorias, em benefício de uns poucos e pequenos 
grupos. Parece-nos bem mais interessante a concepção de cidadania susten-
tada por Zolo, segundo a qual “(...) a teoria da cidadania pode se resumir em 
uma ‘luta pelos direitos’, que recupera o fio condutor da história da cidadania, 
como história da afirmação de direitos, como luta pela superação de círculos 
concêntricos onde têm sido encerrados os sujeitos considerados ‘cidadãos’” (ZO-
LO, 1994, p. 43). Neste contexto, os Direitos Humanos e os Direitos de Cidadania 
devem ser entendidosnão somente como um apanhado de leis já garantidas em 
nossos ordenamentos jurídicos, muitas delas permanentemente violadas, mas 
também como um processo de lutas dos incontáveis movimentos populares da 
nossa sociedade. É nessa perspectiva que o Programa Polos de Cidadania, da 
Faculdade de Direito da UFMG,25 assegura que tais direitos nunca devem silen-
ciar sobre:
25. Trechos escritos pela professora Miracy Gustin para apresentação institucional do Programa Po-
los de Cidadania sobre Direitos Humanos e presentes no livro Das necessidades humanas aos direitos.
1. garantir aos indivíduos e grupos oportunidades de minimização de danos 
/ privações / sofrimentos graves;
2. assegurar que a superação das necessidades humanas básicas sejam 
generalizáveis a todo gênero humano;
3. impedir que a não satisfação de necessidades afete a plenitude e digni-
dade das pessoas;
4. proteger as autonomias de ação e crítica para ampliação da potenciali-
dade de atividade criativa e interativa.
Ou seja, Gustin garante caber aos Direitos Humanos a potencialização da soli-
dariedade humana e da autonomia dos seres. Na mesma esteira, “Dworkin não 
somente problematiza a aplicação do direito, mas radicaliza seu compromisso 
político, por um lado, com a liberdade (constitucionalismo) e, por outro, com a 
igualdade (democracia)” (CHUEIRI, 2008, p. 414). 
2.5. Encobrimento do abandono social
A doutrina liberal tornou-se hegemônica com a transposição, no Brasil, da so-
ciedade patriarcal e rural para a sociedade moderna e, precipuamente, urbana, 
foco principal da análise de Gilberto Freyre em Sobrados e Mucambos (FREYRE, 
2004). No entanto, pouco se fala sobre o modo restrito e infeliz que se deu o 
liberalismo no Brasil, o que nos dizeres de Jessé Souza tornou a abolição uma 
“revolução social de brancos para brancos” (SOUZA, 2003, p. 133) e resultou num 
abandono perverso de toda uma camada social, completamente inábil para en-
frentar as condições socioeconômicas estabelecidas pelo novo momento his-
tórico. No próprio gesto de abolição da escravidão, entendida esta como a “ex-
pressão máxima da anticidadania” (DELGADO, 2008, p. 322), percebe-se o quão 
controversa e por vezes falaciosa é a “lógica que preside a formulação e a for-
malização dos direitos na sociedade brasileira” (TELLES, 1999, p. 91). A sociólo-
ga Vera da Silva Telles chama atenção para:
(...) a constituição de um lugar em que a igualdade prometida pela lei re-
produz e legitima desigualdades, um lugar que constrói os signos do per-
tencimento cívico, mas que contem dentro dele próprio o princípio que ex-
clui as maiorias, um lugar que proclama a realização da justiça social, mas 
bloqueia os efeitos igualitários dos direitos na trama das relações sociais. 
(1999, p. 91).
Ou seja, a Lei Áurea, apesar de libertar o escravo das senzalas, conduziu tam-
bém ao abandono toda daquela “não-gente”, para usar a expressão de Flores-
tan Fernandes, que vinha servindo de modo compulsório ao antigo regime. Mais 
recentemente o Direito do Trabalho, com seu princípio maior da proteção, com 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE64 65
a intenção declarada de proteger o empregado, atribui principalmente segu-
rança ao empregador, ao estabilizar as relações de trabalho e fazer silenciar as 
demandas dos trabalhadores (VIANA, 2010, p. 144). A história brasileira está re-
pleta desses exemplos apenas formais de conquistas de direitos da cidadania, 
mas que na prática são um não-lugar, um embuste jurídico e social. Esses gru-
pos segregados levam no seu cotidiano uma vida mais próxima das de vassalos 
que de cidadãos (DE LUCAS, apud AÑÓN, 2001, p. 87). No que diz respeito ao 
momento da abolição, toda uma camada social composta prioritariamente por 
negros e mulatos, bem como dos “estratos despossuídos e os dependentes em 
geral e de qualquer cor” (FERNANDES, apud SOUZA, 2003, p. 154) foram alvos 
desse abandono. 
Acredita-se que esse abandono social por que passam determinados grupos so-
ciais do país não é moderno, vem desde o processo de desagregação da ordem 
servil e senhorial, como afirma Florestan Fernandes, “o abandono do liberto à 
própria sorte (ou azar)” (FERNANDES, apud SOUZA, 2003, p. 154). Vários proble-
mas que corroboram para a reprodução da inacreditável desigualdade brasileira, 
mácula que perpassa toda a história do país, são modernos, mas nem todos. O 
abandono social, ora descrito, é um deles. Um problema antigo sistematicamen-
te reiterado por toda a nossa sociedade, pois pouco ou quase nada é feito pa-
ra recompensar esse déficit. Como demonstra Milton Santos, “o modelo cívico 
brasileiro é herdado da escravidão, tanto o modelo cívico cultural como o mode-
lo cívico político. A escravidão marcou o território, marcou os espíritos e marca 
ainda hoje as relações sociais deste país”26. Neste sentido, Florestan Fernandes 
afirma terem sido esses grupos aqueles que “tiveram ‘o pior ponto de partida’ na 
transição da ordem escravocrata à sociedade competitiva” (FERNANDES, apud 
SOUZA, 2003, p. 154), certamente são os filhos, netos e bisnetos desses grupos 
aqueles que continuam tendo os “piores pontos de partida” para a competição 
que a nossa sociedade capitalista demanda. Isto certamente não é uma coinci-
dência. Esse é o ponto inicial para toda a marginalização e pobreza que se cons-
tata na sociedade brasileira. É preciso se ter consciência desse fato para saber 
que há toda uma camada social no nosso país que é vítima de um abandono 
histórico, que deve ser saldado. Neste ponto, estamos diante de uma dívida his-
tórica que vem sendo sistematicamente reiterada. Por mais que a dívida social 
tenha aumentado muito nas últimas décadas, suas origens são mais longínquas 
(TELLES, 1999, p. 84). Deve-se enfrentar o desafio de revelar o abandono social, 
sistematicamente encoberto, de toda uma camada da população que, por não 
ser vista como possuidora de valores humanos, sequer merece constituir-se em 
sujeito de direitos humanos, “esta invenção deste outro não humano” (MAGA-
LHÃES, 2008, p. 262).
No intuito de tentar delimitar zonas de coesão social, Castel (CASTEL, apud 
ANÓN, 2011, p. 114) formula um esquema que, se compreendido de forma didáti-
26. Trecho extraído do artigo “As cidadanias mutiladas” de Milton Santos, acessado em 16 de maio de 
2001, pelo link http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/discrim/preconceito/ascidadaniasmultiladas.html
ca, pode ser útil para a abordagem prática do problema a que se refere. São três 
as zonas descritas pelo autor: 
•	 zona de integração, composta por indivíduos que exercem plenamen-
te sua cidadania; 
•	 zona de vulnerabilidade, marcada pela precariedade no emprego e 
fragilidade de suportes relacionais; e 
•	 zona de grande marginalidade e desfiliação, cujos integrantes se 
encontram totalmente desprovidos de recursos econômicos, de supor-
tes relacionais e proteção social. 
Cada zona apresenta demandas diversificadas, pois o grau de vulnerabilidade 
de cada uma é também diverso. A compreensão dessa complexidade é funda-
mental para que políticas e até mesmo direitos sejam formulados tendo em vista 
a equalização dessa realidade tão dispare. Se, como afirma Jessé Souza, “(...) a 
história do Brasil moderno parece mesmo ter sido a história do encobrimento de 
seus conflitos sociais principais, sobretudo a do abandono efetivo de toda uma 
classe social de indivíduos precarizados e excluídos” (SOUZA, 2009, p. 420), faz-
se urgente achar alternativas para a resolução desse conflito sem que se deixe 
de lado os aspectos positivos presentes, de forma paradoxal, na vida cotidiana 
dos brasileiros. Aliás, serão esses fatores positivos, além da conscientização de 
todas as causas dos problemas relatados, imprescindíveis para a reflexão e in-
dicação de alternativas de solução para esses problemas sociais e para, conse-
quentemente, a equalização dessas zonas descritas por Castel. 
A análise desses aspectos ideológicos e políticos presentes nos contextos comu-
nitários brasileiros éCom base nesses parâmetros, o autor identifica quatro tipos de cidadania: 
1. a cidadania conquistada de baixo para cima e dentro do espaço público, 
e como fruto de uma ação revolucionária efetivada a partir da transforma-
ção do Estado em nação, como no caso da França; 
2. a cidadania conquistada de baixo para cima, mas a partir do espaço 
privado, como na experiência norte-americana;
3. a cidadania que se desenvolve mediante a universalização dos direitos 
individuais, e no espaço público, a exemplo da Inglaterra; e, por fim,
tanto, Carvalho (1996), por exemplo, chama atenção para a necessidade de não limitar nosso enten-
dimento sobre a construção da cidadania tendo como base única e exclusiva a perspectiva de Mar-
shall (1964), no entanto, essa compreensão dos direitos sociais, políticos e civis, são de fundamental 
importância para maior clareza dos processos históricos que organizaram a cultura política do país, 
assim, convém mencionar que o período que abarca a consolidação dos direitos políticos é extenso, 
mas também seletivo, ou seja, quando tratamos do período monárquico até a redemocratização, es-
tamos falando de mais de um século de história, e não podemos dizer que os direitos políticos eram 
universais antes da Constituição de 1988, pois os negros e mulheres na Primeira República (1889 
a 1930), por exemplo, não exerciam o direito ao voto, e por fim, torna-se fundamental expressar a 
importância da consolidação dos direitos civis, que ao longo da história do Brasil foram um dilema, 
pois o exercício da liberdade foi um processo incremental na consolidação do Estado Democrático 
de Direito, com a Carta de 1988. Sugerimos uma leitura mais detalhada e aprofundada do autor Jose 
Murilo de Carvalho (2004), pois este historiador foi um dos responsáveis pela remontagem destes 
processos históricos sobre o contexto brasileiro. 
4. a cidadania construída de cima para baixo e dentro do espaço privado, 
com uma característica forte de lealdade ao Estado, como aconteceu no 
caso da Alemanha.
SAIBA MAIS
Carvalho (1996) compreende a cidadania no Brasil como um processo 
cujas características se aproximam do caso alemão, mas com diferenças 
substantivas. Na Alemanha, a forte identidade nacional, concebida em 
termos étnicos de germanidade, e a tradição de obediência às leis são 
fatores centrais, inexistentes na cultura brasileira. Para o autor, o movimento 
da cidadania, no caso brasileiro, ocorreu de “cima para baixo”, com o 
Estado capitaneando sua criação e consolidação. Contudo, a centralidade 
do Estado não aponta para o caráter público e universalista do processo, 
tendo em vista que absorveu seletivamente os cidadãos, e estes buscaram 
o Estado por interesses particulares. Outra perspectiva, destacada por 
Santos (1979), traz uma noção importante sobre as características da 
cidadania no Brasil, complementando a ideia da centralidade do poder 
executivo forte e regulador dos direitos, o conceito de “cidadania regulada”, 
nas palavras do autor:
(...) o conceito de cidadania cujas raízes encontram-se, não em um 
código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocu-
pacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é 
definido por norma legal. (...) São cidadãos todos aqueles membros 
da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das 
ocupações reconhecidas e definidas em lei. A extensão da cidadania 
se faz, pois, via regulamentação de novas profissões e/ou ocupações, 
em primeiro lugar, e mediante ampliação do escopo dos direitos as-
sociados a estas profissões, antes que por expansão dos valores ine-
rentes ao conceito de membro da comunidade. (SANTOS, 1979, p. 75) 
FIQUE DE OLHO
Além dos elementos expostos acima, Carvalho (2004) 
remonta outras características associadas à trajetória 
da cidadania no caso brasileiro, como os fenômenos 
do coronelismo, mandonismo, clientelismo, patrimo-
nialismo e tantas outras dimensões que são parte da 
formação cultural do país.
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE10 11
Muito ainda tem se debatido sobre o “coronelismo” no Brasil e todos esses ou-
tros fenômenos. Carvalho (1997) revistando os estudos de Leal (1948), compre-
ende o coronelismo como característico do sistema político vigente na Primeira 
República. Com a queda da monarquia em 1889, e com o desenho de um siste-
ma federalista, diferente do centralismo imperial, criou-se um novo ator, os go-
vernos estaduais. Estes governos eram eleitos pelos partidos estaduais e suas 
principais forças políticas eram as oligarquias locais e seus representantes, os 
coronéis. A conjuntura econômica nesse período, segundo Leal citado em Car-
valho (1997), estava em decadência econômica, ou seja, já não se lucrava tanto 
e sob o poder dos fazendeiros, houve um enfraquecimento do poder político dos 
coronéis frente aos seus dependentes e rivais. Para Carvalho, o “coronelismo era 
fruto de alteração na relação de forças entre os proprietários rurais e o governo, 
e significava o fortalecimento do poder do Estado antes que o predomínio do co-
ronel”. (CARVALHO, 1997, p. 2).
Os fazendeiros e os coronéis, no final do século XIX e início do século XX, es-
tavam em decadência econômica, conforme já mencionado, exigindo novas 
conjunturas de “barganhas” e “interesses” entre eles e a formação do Estado 
brasileiro. Segundo Carvalho (1997), o coronelismo se caracterizava por uma 
complexa rede de relações que se estendia do coronel até o presidente da repú-
blica, envolvendo compromissos recíprocos. Para o autor, o sistema coronelista 
correspondeu cronologicamente à vigência da primeira República. 3 
3. A Primeira República correspondeu desde a Proclamação da República em 1889 – momento em 
que houve a mudança da estrutura monárquica regida ainda pelos portugueses para o Brasil Repu-
blica – até o processo que se convencionou chamar de Golpe de 30, ou seja, a Primeira República 
compreende o período de 1889 até 1930. Para conhecer um pouco mais sobre esse período, sugeri-
mos a leitura de uma obra clássica, organizada pelo Centro de Pesquisa de Documentação da His-
tória Contemporânea do Brasil (CPDOC), ver: GOMES, Ângela de Castro (et al). A República. Rio de 
Janeiro: Nova Fronteira – CPDOC, 2002.
FIQUE DE OLHO
Portanto, o mandonismo não se trata de um sistema, 
e sim de uma característica da política tradicional, nas 
palavras de Carvalho, o mandonismo:
Existe desde o início da colonização e sobre-
vive ainda em regiões isoladas. A tendência é 
que desapareça completamente à medida que 
os direitos civis e políticos alcancem todos os 
cidadãos. A história do mandonismo confun-
de-se com a história da formação da cidada-
nia. (CARVALHO, 1997, p. 2)
Essa visão do coronelismo se distingue da noção de mandonismo. Este último, 
segundo Carvalho (1997), refere-se à existência local de estruturas oligárquicas 
e personalizadas de poder. Para o autor, o denominado “mandão”, como a histó-
ria convencionou chamar o “coronel”, que era aquele indivíduo que, em função 
do seu poder e controle, geralmente devido à posse da terra, exerce uma do-
minação pessoalizada e arbitrária sobre a população (poder de decisão sobre o 
que era liberdade e quem era livre, quem fazia o quê, o que se fazia), e impedia 
essa população de acender ao mercado e à sociedade política.
Outro conceito, às vezes confundido com o de coronelismo, é o clientelismo. 
Carvalho (1997) emprega o termo clientelismo para indicar um tipo de relação 
existente entre atores políticos que envolvem a concessão de benefícios públi-
cos, na forma de empregos, benefícios fiscais, isenções, em troca de apoio polí-
tico, principalmente na forma de voto. 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE12 13
Clientelismo seria um atributo variável de sistemas políticos macros e po-
dem conter maior ou menor dose de clientelismo nas relações entre atores 
políticos. Não há dúvida de que o coronelismo, no sentido sistêmico aqui 
proposto, envolve relações de troca de natureza clientelística.fundamental para a realização de uma prática adequada e 
efetiva de mediação. É preciso que se tenha plena consciência do encobrimento 
do abandono social e das relações de dominação, discriminação e submissão de 
determinados sujeitos e grupos sociais minoritários, bem como da prevalência 
em nossa sociedade de uma lógica meritocrática e economicista sustentada por 
meio de um consentimento social, político e legal. Afinal, a mediação comuni-
tária tem como grande desafio a construção cotidiana de reconhecimento, res-
peito e valorização das diferentes dimensões normativas da vida humana, de in-
clusão social e autorrealização dos sujeitos e grupos sociais, compreendidos de 
maneira emancipada. 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE66 67
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São Paulo: LTr, 2010. p. 367-371. ISBN 978-85-361-1612-9.Mas, de novo, 
ele não pode ser identificado ao clientelismo, que é um fenômeno mais am-
plo. (CARVALHO, 1997, p. 2)
O clientelismo aproxima-se, segundo Carvalho (1997), ao conceito de mandonis-
mo porquanto ambos implicam a ideia de reciprocidade, a partir dos recursos 
utilizados pelos atores políticos, seja pelos “mandões” ou “governos”.
Para Carvalho (2004), não podemos afirmar que em virtude dessa inversão na 
consolidação dos direitos (sociais, políticos e civis), como vimos, foram produzi-
das maiores dificuldades ao lidar com a questão da desigualdade social ou mes-
mo quando analisamos a construção da cidadania. Mas sabemos o quanto esse 
percurso influenciou (e ainda hoje influencia) o desenvolvimento da cidadania, 
sobretudo, quando analisamos as características do estado brasileiro de nature-
za colonial, patrimonial, clientelística e corporativista, por trazer por vezes confu-
sões sobre os termos de concessão e troca – mesmo não sendo fenômenos ex-
clusivos do contexto brasileiro – certamente, ao tratarmos das suas expressões, 
estaremos reportando a sua ramificação impressa na formação cultural do país, 
destacando os desafios postos à democracia e participação política e associativa. 
Outra obra clássica, de Roberto Da Matta, apresenta também uma original inter-
pretação sociológica da cultura brasileira. Este estudo tem sido celebrado, desde 
sua publicação original há mais de duas décadas, como um dos mais importan-
tes e reveladores trabalhos sobre a cultura brasileira. Ele mostra o quanto essa 
expressão ritualiza um enquadramento da distribuição hierárquica de papéis 
sociais, exprimindo a primazia da hierarquia como regra organizadora tanto das 
percepções sociais quanto das relações sociais.
ATENÇÃO
Isso quer dizer que a participação social dos 
indivíduos na decisão dos problemas privados e/ou 
públicos, devem sempre considerar estes aspectos 
históricos, pois muitas das vezes não conhecemos 
a formação do legado histórico de nossa cultura, 
recaindo às vezes nos mesmos processos, sem mesmo 
sabendo nominá-los.
O que não temos, quando pensamos a 
expressão balizada em “Você sabe com 
quem está falando?” é uma data fixada 
que demarca o seu uso e o seu apare-
cimento, portanto, o importante para 
Da Mata (1980) é imprimir o significa-
do dos seus traços, como eles operam 
por meio de interações (formas) distin-
tas. Um traço importante da expressão 
é o seu uso manifestado de maneira 
latente, considerado como um recurso 
escuso ou ilegítimo à disposição da so-
ciedade brasileira. 
O rito segundo Da Mata (1980) do “Você sabe com quem está falando?” implica 
sempre em uma separação radical e autoritária de duas posições sociais real ou 
teoricamente diferenciadas. Para o autor, o “Você sabe com quem está falando?”, 
além de não ser motivo de orgulho para ninguém, dado a carga considerada an-
tipática da expressão, fica camuflado em nossa imagem (e auto-imagem) como 
um modo indesejável de ser brasileiro, pois é revelador do formalismo e da ma-
neira velada de demonstração dos mais violentos preconceitos.
Para Da Matta, a expressão “Você sabe com quem está falando?” nos remete à 
existência de um traço indesejável na cultura brasileira, vale dizer, o rito autori-
tário sempre presente em situações conflituosas. A sociedade brasileira parece 
avessa ao conflito, coloca o autor, o que quer dizer que, não se compreende e/ou 
se ignora os processos que originaram os conflitos, não que com isso se elimine o 
conflito, muito pelo contrário, ele torna-se mais complexo ainda, pois como toda 
sociedade dependente, colonial e periférica, a realidade no caso da cultura brasi-
leira apresenta um alto nível de conflitos e de crises, e ignorá-lo pode afastar das 
possibilidades reais de solução destes problemas. Para o autor, existem proces-
sos de formação e organização de sociedades que buscam enfrentar os conflitos 
e as crises, reconhecendo-as e tomando-as parte intrínseca de sua vida política e 
social, enquanto, em outras ordens sociais, a crise e o conflito são inadmissíveis. 
Numa sociedade a crise indica algo a ser corrigido; noutra, representa o fim 
de uma era, sendo um sinal de catástrofe. Tudo indica que, no Brasil, con-
cebemos os conflitos como presságios do fim do mundo, e como fraquezas 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE14 15
– o que torna difícil admiti-los como parte de nossa história, sobretudo nas 
suas versões oficiais e necessariamente solidárias (DA MATTA, 1980, p. 141).
Tudo isso, remetido ao fato de termos um sistema social com características co-
nhecidas, mas não reconhecidas pela sociedade, denota o caráter paradoxal da 
sociedade brasileira voltada, por um lado, ao universal e cordial, e revelando, por 
outro, a segmentação, a hierarquização, a exclusão e a exclusividade, acentuan-
do a brecha entre a letra da lei e a realidade da prática: 
É como se alguns fatores sempre estivessem presentes em nossa socieda-
de: primeiro, a necessidade de divorciar a regra da prática; segundo, a des-
coberta de que existem duas concepções da realidade nacional: uma delas 
é a visão do mundo como foco de integração e cordialidade, a outra é a vi-
são do mundo como feito de categorias exclusivas, postas numa escala de 
respeitos e deferências. Finalmente, descobrimos que tudo que diz respeito 
ao inclusivo é por nós manifestamente adotado. O contrário é válido para 
o exclusivo, que é frequentemente escondido ou falado em voz baixa. (DA 
MATA, 1980, p. 143) 
Para Da Mata (1980), a hierarquia parece estar baseada na intimidade social, 
com relações sociais marcadas pela perspectiva econômica, mas que logo impri-
mem um traço pessoal. Neste caso “Você sabe com quem está falando?” revela 
uma estrutura social em que as classes sociais também se comunicam num sis-
tema de “relações entrecortadas”, inibindo os conflitos e o sistema de diferencia-
ção político e social, dimensionando o sistema econômico. Sociedades como a 
brasileira, que empregam as características do rito dessa frase em que as rela-
ções de trabalho (econômicas) somam-se aos laços de pessoalidade, apresen-
tam um campo de possibilidades para a hierarquização contínua e múltipla em 
todas as partes e posições contidas em um sistema.
No próximo item, buscaremos apresentar uma análise sobre os meios de partici-
pação cívica, sobretudo, um dos conceitos que mais se aproxima das praticas de 
FIQUE DE OLHO
Essa expressão exprime, como mostra Da Mata, a pri-
mazia da hierarquia como regra organizadora tanto 
das percepções sociais quanto das relações e papéis 
sociais no Brasil. É sobre a base desse tipo de cultura 
política – estatizante, hierárquica e centralista – que se 
projeta e desenvolve a democracia no país, com suas 
conquistas e limitações. 
mediação comunitária, e ainda apresentar conceitos que abordam o reconheci-
mento de direitos pela população.
1.2. Aspectos históricos da cultura e da 
cidadania brasileira
Para entender o debate acerca do conceito de capital social, é de suma impor-
tância apresentar os precursores desta ideia, e para referenciar essa literatura, 
apresentamos as visões clássicas, culturalistas e neo-institucionais. 
A maioria das abordagens sobre capital social toma como base referencial obras 
de autores como Bourdieu (1984), Coleman (1990), Putnam (1996), dentre outros 
mais recentes, por exemplo, Fukuyama (2000). No entanto, mesmo autores an-
teriores a esses, experimentaram o conceito de capital social e ousaram captar 
e expressá-los de maneiras distintas. 
Podemos nos referir a Lyda Judson Hanifan (1920) quando a autora utiliza o ter-
mo, pela primeira vez em 1916, para descrever centros comunitários de escolas ru-
rais. Já na década de 60, Jane Jacobs (1961) utiliza a expressão em uma de suas 
obras para analisar as redes que existiam nas áreas urbanas e que constituíam 
uma forma de capital social, que por assim dizer, encorajava a segurança pública. 
Entretanto, mesmo com a ampliação da discussão do conceito de capital social e 
suavasta expressão em contexto contemporâneo, Fukuyama (2000) vai dizer que 
“(...) talvez o maior teórico do capital social tenha sido alguém que nunca usou a 
expressão, mas compreendia sua importância com muita clareza: o aristocrata e 
viajante Aléxis de Toqueville”. (FUKUYAMA apud STEIN, 2003, p. 173).
Toqueville (1998), em meados de 1830 a 1840, em sua obra clássica denominada 
Democracia na América, observou que, contrastando fortemente com a França, 
a América possuía uma rica e fortalecida arte de associação. Fukuyama (2000) 
destaca que: “(...) Toqueville concordaria com a proposição de que sem capital 
social não poderia haver sociedade civil e que, sem sociedade civil, não poderia 
haver uma democracia bem-sucedida.” (FUKUYAMA, 2000, p. 31-2).
Outra obra, talvez uma das mais conhecidas que trata do conceito de capital so-
cial, sem dúvida é a de Robert Putnam, de 1993, denominada Making democracy 
work: civic traditions in modern Italy, traduzida no Brasil, em 1996, intitulado: Co-
munidade e democracia: a experiência da Itália moderna. Putnam (1996) tratou de 
analisar o resultado de um trabalho de pesquisa empírica durante 20 anos, ini-
ciada em 1970, e que teve como referência as regiões da Itália entre o norte e sul, 
que representam a ampla diversidade existente na península, visando realizar 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE16 17
uma investigação referente ao desempenho das instituições e das adaptações 
dessas ao seu meio-contexto social. Para tanto, foi realizado um acompanha-
mento das mudanças administrativas da Itália ocasionadas pela reforma política 
no início da década de 70, com base em uma análise comparativa sobre os pro-
cessos de decisões adotados politicamente em cada uma das regiões pesquisa-
das pelo autor, constataram-se importantes diferenças entre essas regiões.
Putnam (1996), ao realizar a pesquisa na península italiana, contribui com a 
compreensão do desempenho das instituições democráticas. O autor buscou 
avaliar se as instituições formais influenciam o desenvolvimento da política e do 
governo, e se em decorrência das mudanças institucionais, tem-se alterações 
no plano prático delas. O autor analisa se existem relações entre o desempe-
nho das instituições e seu contexto socioeconômico-cultural e se a qualidade de 
uma democracia depende do comportamento de seus cidadãos.
 
A península italiana, no início da década de 70, sofreu mudanças com o perío-
do de reforma administrativa, rompendo, portanto, com a tradição do governo 
centralizado, e que passara a delegar aos governos regionais poderes e recursos 
sem precedentes. Putnam (1996), ao descrever sobre as duas décadas de de-
senvolvimento institucional (1970-90), atribui dados relevantes no que diz res-
peito às mudanças das regras do jogo. Com a criação dos governos regionais e 
com o processo de descentralização administrativa, ocorreu uma mudança ex-
ponencialmente significativa dos anos 70 aos anos 80, em relação aos recursos 
disponíveis. Além de definir a organização e os métodos das mudanças adminis-
trativas, nos primeiros anos, a legislação regionalizada ocupou-se, sobretudo, da 
distribuição de verbas. Para o autor, bem ou mal, a política interna italiana foi 
em grande parte regionalizada, o que para Weber, citado Putnam (1996), tornou-
se uma “lenta perfuração de tábuas duras” (PUTNAM, 1996, p. 41).
O processo de mudança institucional foi fundamental em relação ao papel das 
elites políticas regionais diante da regionalização da península italiana. É nítida 
a correlação existente entre os processos de despolarização política ideológica, 
pois à medida que diminuíam as distâncias ideológicas, aumentava a tolerân-
cia entre as diferentes linhas partidárias. Esta reforma institucional influenciou o 
modo de atuar dos políticos e dos governos italianos.
A análise de Putnam (1996) apresenta pontos que aparecem de forma positiva 
e também negativa, ou seja, de um lado as instituições passaram a estar mais 
perto do povo, e por assim dizer conseguiam identificar as demandas regionais e 
administrar os conflitos existentes de cada região, e por outro lado, o autor apre-
senta dois pontos fortes negativos, um deles que apresenta a ineficácia dos ad-
ministradores diante dos governos regionais e o outro era que a reforma regional 
parecia agravar mais as disparidades entre o Norte e Sul da Itália do que cons-
truir iguais e bons desempenhos institucionais na península como um todo. A re-
forma contribuiu para extinção do domínio romano, mas deixou que as situações 
das regiões mais atrasadas se agravassem. 
Podemos dizer, a partir da análise de Putnam (1996), que certos governos regio-
nais foram mais bem-sucedidos do que outros, e mais eficientes em suas ati-
vidades político-administrativos e mais eficazes na execução de suas políticas 
públicas, e que estes fatores foram altamente reconhecidos pelos eleitores, se-
jam eles os cidadãos ou líderes comunitários. A análise apontou que algumas 
regiões foram mais bem governadas do que outras, mesmo contendo a mesma 
estrutura e contando com os mesmos recursos, tanto jurídicos quanto financei-
ros. Para o autor:
É a eficácia institucional em geral que varia coerentemente de uma região 
para outra, e não o fato do governo ter num determinado ano um programa 
de creches mais amplo ou um orçamentista mais eficiente. (PUTNAM, 1996, 
p. 95)
A instituição política avaliada na obra de Putnam (1996) caracteriza-se por ser 
um governo representativo, portanto, avaliou-se também a sensibilidade das ins-
tituições de acordo com as demandas de seu eleitorado e a eficiência de sua 
gestão com relação à coisa pública. Autores como Mill e Dahl citados em Put-
nam (1996) vão dizer que a principal característica de uma democracia é a cons-
tante sensibilidade do governo em relação às preferências de seus cidadãos. 
Para o autor,
A democracia concede aos cidadãos o direito de recorrer ao seu governo na 
esperança de alcançar algum objetivo particular ou social; além disso, re-
quer uma concorrência leal entre as diferentes versões do interesse público. 
Todavia o bom governo é mais do que um fórum para grupos concorrentes 
ou uma caixa de ressonância para reclamações; na verdade, ele manda fa-
zer coisas. Um bom governo democrático não só considera as demandas de 
seus cidadãos (ou seja, é sensível), mas também age com eficácia em rela-
ção a tais demandas (ou seja, é eficaz). (PUTNAM, 1996, p. 77)
A avaliação de Putnam (1996) sobre os resultados encontrados referentes às di-
ferenças das regiões entre Norte e Sul da Itália afirma que certos governos regio-
nais foram mais bem-sucedidos do que outros, e outros foram mais eficientes em 
suas atividades internas, mais criativos em suas políticas e mais eficazes na exe-
cução dessas políticas. Essas diferenças referentes ao desempenho institucional 
se mantiveram estáveis por mais de uma década, e foram amplamente reconhe-
cidas pelos eleitores, sejam os líderes comunitários ou mesmo os cidadãos. 
De acordo com esses elementos expostos, Putnam (1996) busca analisar o que 
explica essas diferenças no desempenho institucional. Um dos fatores tidos co-
mo relevante diante deste cenário está atribuído à concepção de modernidade 
socioeconômica. Para o autor a modernidade socioeconômica está de algum 
modo associada ao bom desempenho das instituições públicas. Ele apresen-
ta algumas perguntas relevantes que se relacionam a esse fator, se pode ser a 
modernidade uma das causas do desempenho, talvez uma dentre várias, ou se 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE18 19
Para obter resultados que condicionem favoravelmente a relação entre o his-
tórico de comunidades mais cívicas e sua relação com bons governos, Putnam 
(1996) apresenta, para a superação dos dilemas da ação coletiva e do oportunis-
mo contraproducente, uma análise a partir do contexto em que tal jogo é dispu-
tado, e para isto apresenta em sua obra a seguinte conclusão: regiões e comu-
nidades com maiores estoquesde capital social tendem a cooperarem mais 
para o funcionamento e bom desempenho institucional.
Putnam (1996) afirma que, assim como o capital convencional, os que dispõem 
de capital social tendem a acumulá-lo, portanto, algumas das características es-
pecíficas do capital social são os laços de confiança, as normas e as cadeias (cír-
culos) de relações sociais, constituindo por isso em um bem público, o que é o 
contrário do capital convencional, que normalmente é atribuído a um bem priva-
do. Capital social se caracteriza “por ser um atributo da estrutura social em que 
se insere o indivíduo, o capital social não é propriedade particular de nenhuma 
das pessoas que dele se beneficia” (PUTNAM, 1996, p. 180), por isso se baseiam 
no acúmulo para haver benefícios comuns, portanto, confiança gera cooperação 
mútua. Segundo o autor:
A confiança promove a cooperação. Quanto mais elevado o nível de con-
fiança numa comunidade, maior a probabilidade de haver cooperação. E a 
própria cooperação gera confiança. A progressiva acumulação de capital 
social é uma das principais responsáveis pelos círculos virtuosos da Itália 
cívica. (...) A confiança necessária para fomentar a cooperação não é uma 
confiança cega. A confiança implica uma previsão do comportamento de 
um ator independente. (PUTNAM, 1996, p. 180)
pode ser o desempenho uma das causas da modernidade, ou se podem ser am-
bas as coisas influenciadas por um terceiro fator, e, é por fim sabido que esta 
relação entre modernidade e desempenho é ainda mais complexa e altamente 
relevante no contexto dessa discussão. 
Outro fator, segundo Putnam (1996), é o que diz respeito à seguinte análise pro-
nunciada pelo autor – e que nos parece essencial quando se trata de aspectos 
sociológicos e da relação dos contextos comunitários, mesmo sendo aqui o caso 
brasileiro – “Queremos investigar empiricamente se o êxito de um governo de-
mocrático depende do quão próximo seu meio se acha do ideal de uma ‘comuni-
dade cívica’”. (PUTNAM, 1996, p. 101).
Putnam (1996), ao descrever sobre comunidade cívica, baseia-se nos principais 
teóricos republicanos, norteados a partir de quatro conceitos: a participação cí-
vica; igualdade política; a solidariedade, confiança e tolerância; e as associações 
como estruturas de cooperação. 
Para tanto, o autor descreve indicadores que possibilitam a verificação de uma 
análise que relaciona a vida social e política de dada comunidade cívica e o bom 
desempenho institucional. Para compor esta correlação, o autor descreve a verifi-
cação dessa teoria baseada na comunidade cívica. 
FIQUE DE OLHO
Para o autor, são muitas as análises que perpetuam 
ou mesmo perpetuaram essa conceituação, tem-se 
um pensamento que vigorou durante muitos anos na 
antiguidade e na Itália renascentista com base em 
Maquiavel, há vários outros autores que vão nos dizer 
que o êxito ou fracasso das instituições dependiam 
do caráter dos seus cidadãos, ou seja, de sua ‘virtu-
de cívica’ (PUTNAM, 1996, p. 100), o que logo é supe-
rado pelo pensamento anglo-americano, liderada por 
Hobbes, Locke e seus sucessores liberais. Já os re-
publicanos pautaram a ideia de comunidade e as su-
as obrigações enquanto cidadãos e já para os liberais 
eram ressaltados o individualismo e os direitos indivi-
duais. No entanto, no decorrer dos últimos anos, uma 
onda revisionista analisou a filosofia política anglo-a-
mericana, e se pauta, conforme nos apresentam Don 
Herzog citado em Putnam (1996), como a descoberta 
e a celebração do humanismo cívico.
FIQUE DE OLHO
Capital social em Putnam (1996), além de se constituir 
como um bem público,
(...) diz respeito a características da organi-
zação social, como confiança, normas e sis-
temas, que contribuam para aumentar a efi-
ciência da sociedade, facilitando as ações 
coordenadas. (PUTNAM, 1996, p. 177)
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE20 21
Em síntese sobre o debate de estoques de capital social, Putnam comenta que, 
em todas as sociedades, os dilemas da ação coletiva obstam as tentativas de 
cooperação mútua, tanto no meio político quanto no econômico, sobretudo, nos 
diz que a entrada de um terceiro seria uma solução inadequada para suprir es-
se problema.
FIQUE DE OLHO
Para o autor, as regras de reciprocidade generalizada e os sistemas de par-
ticipação cívica estimulariam a cooperação mútua e a confiança, pois, as-
sim, poderiam reduzir os incentivos e os riscos à transgressão, diminuiria 
a incerteza e apresentariam modelos para cooperação futura, tendendo a 
reproduzir e acumular, e que ao contrário dessas características, ou seja, 
em comunidades não cívicas, isso também tenderia a acumular-se e auto
-reforçar-se, em suas palavras: 
Os círculos virtuosos redundam em equilíbrios sociais com elevados 
níveis de cooperação, confiança, reciprocidade, civismo e bem-es-
tar coletivo. Eis as características que definem comunidade cívica. 
Por outro lado, a inexistência dessas características na comunidade 
não cívica também é algo que tende a auto-reforçar-se. A deserção, 
a desconfiança, a omissão, a exploração, o isolamento, a desordem e 
a estagnação intensificam-se reciprocamente num miasma sufocante 
de círculos viciosos. Tal argumentação sugere que deve haver pelo o 
menos dois equilíbrios gerais para os quais todas as sociedades que 
enfrentam os problemas da ação coletiva tendem a evoluir e que, uma 
vez atingidos, tendem a auto-reforçar-se. (PUTNAM, 1996, p. 186-87) 
Putnam, em sua síntese final do estudo realizado, apresenta o potencial da re-
forma institucional como estratégia para a mudança política e também as res-
trições que o contexto social impõe ao desempenho institucional. Nas palavras 
do autor, eis uma lição a ser tirada da pesquisa “o contexto social e a história 
condicionam profundamente o desempenho das instituições” (p. 191). O autor 
sinaliza que o Norte e o Sul, tiveram consequências divergentes em relação a 
todo o processo de reforma administrativa, adotaram métodos divergentes para 
lidar com os dilemas da ação coletiva que perpetuam em todas as sociedades. 
Conclui-se a partir da experiência italiana:
No Norte, as regras de reciprocidade e os sistemas de participação cívica 
corporificaram-se em confrarias, guildas, sociedades de mútua assistência, 
cooperativas, sindicatos e até clubes de futebol e grêmios literários. Esses 
vínculos horizontais propiciaram níveis de desempenho econômico e insti-
tucional muito mais elevados do que no Sul, onde as relações políticas e 
sociais estruturaram-se verticalmente. Embora estejamos acostumados a 
conceber o Estado e o mercado como mecanismos alternativos para a so-
lução dos problemas sociais, a história mostra que tanto os Estados quan-
to os mercados funcionam melhor em contextos cívicos. (PUTNAM, 1996, p. 
190-191) 
Outra conceituação, além da apresentada na obra de Putnam (1996), é feita por 
Franco apud Stein (2003). Para ele, à medida que atitudes de autonomia ma-
terializam-se em forma não hierárquica de relacionamento humano e à medida 
que atitudes democráticas correspondam a modos não autocráticos de regula-
ção de conflitos, marcados pela horizontalização das relações, o capital social 
encontra campo propício para sua produção, acumulação e reprodução. 
Outros autores, mais recentes, como Flores e Rello (2001), apresentam que, 
mesmo sendo vasta a bibliografia sobre capital social, não há nenhuma que 
consiga reunir o consenso entre os autores e demais pesquisadores, entretanto, 
as autoras apresentam três componentes básicos mencionados nas diversas 
análises encontradas: 
a) As fontes e a infraestrutura do capital social, e assim torna-se possível 
perceber sua origem e consolidação;
b) As ações individuais e coletivas que esta infraestrutura torna possível;
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE22 23
c) As consequências e resultados destas ações, as quais podem ser positi-
vas ou mesmo negativas;
(FLORES; RELLO, 2007)
Outras contribuições do conceito podem ser percebidasatravés de autores neo
-institucionalistas, tais como: Douglas North, Robert Bates, James March, Jonh 
Olsen e Mark Granovetter. O debate contemporâneo pode ser analisado pelos 
autores: Alezandro Portes e Everett Ladd, Peter Evans e Francis Fukuyama. 
Outra autora, Stein (2003), diz que é a partir da década de 90, que o termo 
ganha amplitude de debate nas esferas sociopolíticas e no contexto das discus-
sões sobre desenvolvimento local e a redução da pobreza. Em meados da déca-
da de 90 esse debate em torno do conceito de capital social passa a ser orien-
tador de diversas práticas e pensamentos como os organismos internacionais, 
que começam a pensar o tema capital social e suas relações com a pobreza, o 
que pode ser percebido pela CEPAL4. 
Outro autor, Bourdieu (1984), apresenta que, diante de uma linguagem comum, 
o conceito de capital social é denominado como capital social de relações; re-
lações estas que se estabelecem e que se mantêm nos fatos sociais mais im-
portantes e relevantes. Para o autor, é nas instituições, sejam elas associações, 
clubes ou mesmo família, que se mantêm, transmite e acumula o estoque de 
capital social. Bourdieu (1985) define capital social como “El agregado de los 
recursos reales o potenciales ligados a posesión de uma red durable de rela-
ciones más o menos institucionalizados de reconocimiento mutuo” (BOURDIEU 
apud DURSTON, 2000, p. 8). 
Diante desta definição, podemos analisar o conceito de capital social a partir 
do contexto das relações, das redes sociais que um ou vários atores se mobi-
lizam em proveito próprio e ao mesmo tempo mútuo. Stein (2003) vai nos dizer 
que Bourdieu não atribui valor particular ao capital social, e que este conceito 
não se constitui enquanto uma variável explicativa de outros tipos de capital 
identificados por ele, como podemos ver com o capital econômico, que se cons-
titui pelas rendas e acúmulo de fortunas, ou mesmo pelo capital cultural. Con-
forme analisado por Baquero (2001), a grande preocupação de Bourdieu está 
em avaliar de que forma os tipos de capital se subordinam ao capital econô-
mico e como esses interagem com estruturas mais amplas que produzem desi-
gualdades sociais. 
Coleman (1990), diferentemente de Bourdieu, busca articular a estrutura social 
com o paradigma da ação racional. Assim, para esse autor, o capital social ana-
lisa os aspectos referentes à estrutura social como atributo disponível para o 
indivíduo. Deste modo, não se trata de entidade particular, mas de variações 
de entidades, e que se assemelham por todas consistirem em algum aspecto da 
4. Comisión Económica para America Latina y el Caribe – CEPAL. 
estrutura social, e sendo assim, certas ações dos indivíduos que pertencem a 
essa estrutura são facilitadas pelo capital. 
Ferreira (1999) nos permite entender mais sobre a noção de capital social e o 
contexto brasileiro, sobretudo em relação à temática do associativismo no pa-
ís. O autor, com base na comparação dos percentuais de filiação a movimen-
tos associativos nas regiões metropolitanas do Brasil, nos anos de 1988 e 1996, 
apresentou a hipótese de que, mesmo com as transformações ocorridas na so-
ciedade brasileira durante este período, não houve mudanças significativas no 
associativismo no meio urbano do país. 
Se considerarmos, por exemplo, o argumento de Avritzer, citado em Ferreira 
(1999), sobre a relação do crescimento associativo em países da América La-
tina com pouca tradição de organização associativa e sua colaboração com a 
alteração no padrão de cultura política, e sendo este fenômeno capaz de con-
tribuir para superar certas continuidades na relação entre Estado e socieda-
de, Ferreira (1999), encontrou em seus estudos, um dilema no comportamento 
associativo político e um cenário muito mais complexo para se analisar os ele-
mentos cívicos no caso brasileiro,
(...) intrigante panorama, pois apesar do crescimento acentuado do número 
de associações no Brasil nas últimas décadas, o número de filiados ainda é 
ínfimo (...). A inexistência de uma relação entre a dinâmica associativa e de 
contato pessoal com os políticos e a conjuntura e estrutura socioeconômica 
e política no Brasil, (...) os percentuais de filiação a movimentos associati-
vos ou de interação pessoal com políticos não estariam associados a altera-
ções nas esferas socioeconômicas e políticas, como a redemocratização do 
país (...). (FERREIRA, 1999: 100). 
As análises acerca da participação popular apresentam um cenário plural e di-
verso no que tange a cultura cívica, pois não existe uma cultura participativa 
homogênea no Brasil segundo Avritzer (2003). Para o autor, a participação é 
muito desigual entre os cidadãos. Para compreendermos a denominação do 
que venha a ser participação popular, é importante salientar o entendimento 
de que “participação” é o ato de associar-se pelo sentimento, pelo pensamen-
to, solidarizar-se, partilhando interesses, obrigações, opiniões, considerada pri-
mordialmente uma forma de comunicação, esta se trata das articulações entre 
o religioso, o político e o social, etc. E quando tratamos da participação popular 
e dos elementos da cultura que correspondem a sua forma de organização, nos 
deparamos, para o nosso contexto de análise com os estudos sobre os meios e 
mecanismos de exercitar os direitos e a grosso modo “acessar justiça” em nos-
so país. É o que abordaremos na sequencia.
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE24 25
1.3. Em busca por reconhecimento 
de direitos
Em estudo recente sobre o sistema de justiça no Brasil, Leandro (2012) anali-
sou várias literaturas sobre o assunto, em especial destacaram-se as pesquisas 
de Junqueira (1996), Vianna et. al. (1999), Sinhoretto (2006), entre outros, que 
durante os anos 80, mas principalmente no início dos anos 90, o campo das ci-
ências sociais e humanas em geral começaram a aprofundar suas análises, ele-
gendo como objeto de pesquisa os processos de ruptura e continuidade da de-
mocratização do Estado e da sociedade, com foco nas instituições judiciárias, 
nas atribuições legais e nas práticas de administração de conflitos. Todos estes 
estudos visavam acompanhar o processo de democratização do país, justamen-
te porque a democracia política não era por si só, suficiente para garantir uma 
sociedade efetivamente democrática, isto é, de amplo exercício e acesso à cida-
dania. Democratizar de modo pleno o país significava, também, democratizar a 
Justiça e, com isso, o acesso a ela5.
 
Junqueira (1996), por exemplo, amplia as discussões em torno do acesso à Jus-
tiça. Ao revisitar os estudos sobre o tema do Poder Judiciário e os métodos de 
solução de conflitos, a autora destaca que, ainda durante a década de 70 e tam-
bém nos anos 80, os principais estudiosos sobre a temática do acesso à Justiça 
eram juristas sociologicamente orientados. Esses estudos, argumenta Junquei-
ra (1996), diferentemente do que se imaginava na época sobre o caso brasilei-
ro, se mostraram pouco influenciados pelo access-to-justice movement liderado 
por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, que coordenaram o Florence Project6. As 
produções de Junqueira (1996) também revelaram que a principal questão posta 
em relação à população brasileira não era, diretamente, a expansão do welfa-
re state ou mesmo a necessidade de tornarem efetivos os novos direitos “con-
quistados” a partir da década de 60 pelas minorias étnicas e sexuais, mas, sim, 
uma ampla reivindicação de expansão dos direitos básicos (sociais) aos quais a 
maioria da população não tinha acesso. Foram vários os processos relacionados 
à exclusão político-jurídica, responsáveis pela não garantia do acesso aos direi-
tos à população brasileira (Junqueira, 1996; Carvalho, 2004)7.
5. Podemos encontrar outras reflexões sobre o sistema de justiça nos estudos de: AMORIN, Maria 
Stella, BURGOS, Marcelo, KANT DE LIMA, Roberto (2002); SADEK, Maria Tereza (1995; 200; 2001); 
ADORNO, Sérgio (1996); PANDOLFI, Dulce et. al. (1999), D’ARAÚJO, Maria Celina (1996).6. Cappelletti e Garth (1988) buscaram analisar a partir do “Florence Project” os obstáculos jurídicos, 
econômicos, sociais e psicológicos que dificultavam ou impediam a utilização do sistema jurídico, 
visando compreender como cada país (democracias modernas) apresentava seus diferentes esfor-
ços para superar estes obstáculos. Os autores Cappelletti e Garth (1988) identificaram três waves 
of reform no access-to-justice movement: (i) a garantia de acesso à justiça para os pobres; (ii) a re-
presentação dos direitos difusos e (iii) a informalização dos procedimentos de resolução de conflitos.
7. Os direitos sociais representam: o direito de acesso aos bens e serviços públicos como, por exemplo: 
 
Outro estudo central para a compreensão dos temas relacionados ao acesso à 
Justiça no Brasil, especialmente às análises do Poder Judiciário e suas relações 
com a política e a sociabilidade no país, é o trabalho desenvolvido por Vianna et. 
al. (1999). Eles fornecem um amplo diagnóstico das instituições do sistema de 
justiça, destacando, sobretudo, a politização da atividade jurisdicional, processo 
que foi denominado judicialização da política; o que significa conferir ao Poder 
Judiciário a capacidade de pautar a política com base na interpretação/avalia-
ção de leis já existentes. Além da judicialização da política, os autores destacam 
a judicialização das relações sociais, que passou a ser uma realidade após a re-
democratização, ou seja, destacamos mais uma vez a “terceirização da autoria” 
das soluções dos conflitos.
Sinhoretto (2006), por sua vez, apresenta duas importantes tendências analíti-
cas para a compreensão do sistema de justiça: uma visão referenciada pela ma-
cro-sociologia e outra pela micro-sociologia. 
A primeira tendência apresenta um debate sobre: 
a. as rupturas e as mudanças nas organizações judiciais diante de novas 
atribuições legais; 
b. os destaques da politização da atuação judicial; 
c. os novos modelos que organizam as identidades corporativas; 
d. as constantes transformações na cultura jurídica do país; e (e) as emer-
gências de práticas compreendidas como inovações de solução de conflitos. 
Já a segunda enfatiza os obstáculos nos processos de democratização, como 
desafios à incorporação de demandas e valores democratizantes à cultura jurí-
dica no país, observando-se uma persistência de valores e práticas hierarquizan-
tes e excludentes, que aprisionam as inovações e mantêm os padrões mentais 
tradicionais. Segundo a autora, há uma produção que procura aliar ambas as 
tendências, mas a maioria dos estudiosos do campo da justiça se orienta por 
uma das vertentes apresentadas.
Contudo, estas análises (Junqueira, 1996; Vianna et. al., 1999; Sinhoretto, 2006), 
foram influenciadas pela formulação de várias iniciativas de ampliação do aces-
so à Justiça e da informalização de agências de resolução de conflitos, como, 
por exemplo, os Juizados Especiais de Pequenas Causas8 ; posteriormente, o 
Juizado Especial Criminal9 e também práticas estimuladas por organizações da 
o direito à moradia, o direito à saúde, o direito à educação, o direito à segurança pública, entre outros.
8. Um exemplo de estudo sobre o Juizado Especial de Pequenas Causas é a pesquisa realizada na 
cidade do Rio de Janeiro por D’Aráujo (1996).
9. Um exemplo de estudo sobre o Juizado Especial Criminal (JECRIM) é a pesquisa realizada na re-
gião metropolitana do Rio de Janeiro por Amorim; Burgos; Kant de Lima (2002). Outro estudo abor-
dou o JECRIM de Belo Horizonte, para acesso aos dados ver Batittucci e Santos (2010).
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE26 27
sociedade civil como o Balcão de Direitos10. Outra iniciativa, que surgiu a partir 
de uma prática de extensão da Faculdade de Direito da Universidade Federal de 
Minas Gerais, foi o Programa Mediação de Conflitos11 .
Os estudos de Boaventura de Sousa Santos (1977; 1988), especialmente aquele 
realizado na favela do Jacarezinho denominado “Pasárgada”, buscaram verifi-
car a vigência de um direito informal organizado em torno de uma associação 
comunitária de moradores, compreendendo as relações entre o direito oficial e o 
que o autor chamou “direito de Pasárgada”, o que depois foi estudado por mui-
tos autores como “direito achado na rua”. O autor identificou nesses estudos 
alguns aspectos de tensionamento entre as dimensões dos direitos. O principal 
deles era a inacessibilidade do sistema de justiça para os grupos mais popula-
res, levando muitos pesquisadores brasileiros, como Joaquim Falcão (1981), por 
exemplo, a se debruçarem sobre o tema da sociologia do direito, em especial 
atenção aos estudos que analisavam os mecanismos da cultura jurídica brasi-
leira que viabilizavam (ou não) o acesso das distintas classes sociais à Justiça. 
Outro aspecto identificado e que chamou grande atenção da comunidade aca-
dêmica à época correspondia às formas/experiências próprias e cotidianas dos 
moradores de resolverem seus conflitos sem mediação estatal. 
FIQUE DE OLHO
Mesmo que a pesquisa do autor, na favela do Jacarezinho, não tivesse o objeti-
vo de compreender os canais de acesso à justiça estatal, para Junqueira (1996), 
seus achados atestam não apenas a produção de uma ordem jurídica paralela 
à do asfalto, mas a impossibilidade de os moradores daquela região, percebida 
como ilegal pelo direito oficial, buscarem soluções para seus conflitos no orde-
namento jurídico e nas instâncias judiciais12 .
10. Para maior compreensão da atuação do Balcão de Direitos, concebido pela ONG Viva Rio, ver 
Souza Neto (2001).
11. Este último, o Programa Mediação de Conflitos, foi objeto de mestrado da autora Leandro (2012), 
intitulado “Caminhos e Obstáculos para o Acesso à Justiça: o caso do Programa Mediação de Con-
flitos”, portanto, para maiores informações ver a dissertação completa no site: http://bibliotecadi-
gital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10126/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Metrado%20CP-
DOC%20Ariane%20Gontijo%20Lopes%20Leandro.pdf?sequence=1
12. D’Araújo (1996) corrobora o argumento de Junqueira (1996) ao mencionar que os grupos popu-
lares acessaram pouco as novas instâncias oficiais de resolução de conflitos. Em análise sobre os 
Juizados Especiais de Pequenas Causas, implantado na cidade do Rio de Janeiro, que tinha por ob-
jetivo atender especialmente as comunidades do Pavão/Pavãozinho/Cantagalo, entre outras fave-
las cariocas, percebeu-se que grande parte das pessoas que acessaram os Juizados para resolver 
conflitos não estava relacionada às classes populares e sim aos moradores da zona sul da cidade 
(D’Araújo, 1996).
Diante dessas análises, percebemos alguns desafios à implantação destas prá-
ticas, especialmente ao analisarmos os elementos que influenciam a cultura no 
caso brasileiro e as distintas formas de construção da cidadania que caracteri-
zam o país (Carvalho, 1996; 2004), conforme já abordado em sessão anterior.
Cardoso de Oliveira (2010), por exemplo, expressa os dilemas da cidadania no 
Brasil, ao tratar como paradoxal a ideia de isonomia jurídica e desigualdade de 
tratamento que, de modo especial, expressa os contrapontos encontrados nos 
padrões de desigualdades vividos pela população ao acessar as instituições 
de justiça. Para o autor, em seus estudos sobre a França (Cardoso de Oliveira, 
2006), os EUA e o Canadá/Quebec (Cardoso de Oliveira, 1996a; 2002), a noção 
de cidadania enquanto referência para compreensão das democracias ociden-
tais está diretamente vinculada à ideia de igualdade, sendo, portanto, esta últi-
ma carregada de múltiplos significados, dada a influência sociohistórica e cultu-
ral de cada contexto. 
Contudo, para o autor, a ideia de tratamento uniforme predominante no liberalis-
mo anglo-saxão – mesmo que questionada pelos movimentos sociais norte-ame-
ricanos, especialmente o movimento negro, ao identificar o tratamento uniforme 
como dimensão que viria a reproduzir desigualdades – não pode ser conside-
rada a mesma ideia no caso do republicanismo francês,mesmo que ambos se-
jam resistentes à ideia de tratamento diferenciado no plano da cidadania. Para 
o autor, no caso brasileiro, existe um tensionamento entre a visão de igualdade 
e aquela que prega o tratamento uniforme mais adaptado aos princípios moder-
nos da cidadania.
A título de exemplo, Leandro (2012) encontrou, na execução de um programa go-
vernamental, o Programa Mediação de Conflitos já citado acima, duas principais 
questões que permeiam esse tensionamento. A primeira questão se relaciona 
ao perfil das pessoas que buscam práticas comunitárias de solução de conflitos 
e a segunda questão a natureza dos conflitos. A autora observou que a deman-
da pelos métodos informais tem crescido especialmente para o tratamento de 
questões familiares e que são as mulheres os indivíduos que têm buscado cada 
vez mais por estes espaços de justiça, com o objetivo de solucionar seus con-
flitos, demandando cada vez mais a judicialização do direito na esfera privada. 
Contudo, mesmo que ambas as partes (seja a mulher a primeira interessada, ou 
mesmo a segunda parte, ou seja, os demais “supostos” interessados na solução 
dos conflitos) tenham interesses em resolver os conflitos, percebeu-se que exis-
tem distinções nas formas de apropriação do processo por cada uma delas. En-
controu-se “a não aceitação” em relação às possibilidades de negociação, prin-
cipalmente, pela segunda parte. Outro elemento observado está relacionado ao 
funcionamento do programa. Observou-se que a cultura jurídica do país também 
tem influenciado os rumos metodológicos adotados por tal prática, pois, na es-
colha do procedimento – de mediação ou de orientação sobre direitos – e na to-
mada de decisões, não prevalece somente a liberdade de escolhas/opções das 
partes, mas também da própria equipe/programa, pois, nas situações em que o 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE28 29
programa se depara com alguma violação de direitos, por exemplo, de violência 
contra a mulher, ou de violação institucional, os profissionais são orientados a 
colocar limites no processo de negociação. 
Em que pesem os desafios e lacunas expostos, a autora obervou, com base na 
percepção dos entrevistados, que tal prática tem atendido, ao menos em par-
te, os seus anseios por justiça. Nos casos analisados, aquele programa pareceu 
produzir espaços de negociação dialógica sem imposição de acordos, alcançan-
do soluções para os conflitos e gerando efeitos “de paz” na vida da população. 
Outra conclusão encontrada por Leandro (2012) é que esta experiência tem tam-
bém propiciado um espaço de canalização de demandas ainda não reconhe-
cidas pelo direito formal. Nos casos em que a autora analisou, os mecanismos 
informais de negociação promoveram a participação de distintos atores na reso-
lução dos seus conflitos, e tais mecanismos foram capazes de contribuir para a 
construção do direito de reconhecimento – e sua legimitidade – de acordo com 
o perfil das partes e com a natureza dos conflitos apresentados. Em sua maioria, 
como dissemos, os conflitos estavam relacionados à convivência intrafamiliar, 
questão que apresenta dilemas de tratamento no âmbito da justiça formal. Sa-
be-se, por exemplo, que nos tribunais perpetua-se a lógica do contraditório, não 
sendo aberto espaço para o diálogo, elemento constituinte da proposta de inter-
venção de programas de mediação comunitária, que, segundo a autora, para os 
entrevistados, foi central na resolução dos seus conflitos. 
Corroborando com o estudo de Leandro (2012), a partir dos dados coletados em 
sua pesquisa, que por meio da orientação sociojurídica e pelo acesso contínuo 
das pessoas ao espaço institucional proporcionado pelo programa analisado, 
aquela experiência tem favorecido a busca da população por seus direitos. Con-
tudo, os dados que a autora analisou também indicam uma diminuição na bus-
ca da população pelo procedimento de mediação de conflitos. Importa lembrar, 
no entanto, que o Programa Mediação de Conflitos está baseado na noção de 
pluralismo jurídico e, conforme Sinhoretto (2006), práticas como esta, em ge-
ral, apresentam limites em sua execução. A autora menciona que o campo do 
pluralismo jurídico promove a concorrência de várias instâncias de resolução de 
conflitos, com lógicas de negociações e de interesses distintos, produzindo re-
sultados de justiça diversos. Para ela, os indivíduos que têm mais conhecimen-
to e recursos em relação à apropriação de poder serão os que mais usufruirão 
das possibilidades oferecidas pelos espaços plurais de negociação. Já o oposto, 
ou seja, os indivíduos que contam com conhecimentos e recursos reduzidos têm 
consequentemente, chances limitadas de usufruir das possibilidades oferecidas 
por estes espaços conciliatórios. 
FIQUE DE OLHO
Ressaltamos também, como demonstrado ao longo do texto, que em di-
versos estudos sobre o acesso à Justiça (Sinhoretto, 2006; Amorim, 2008; 
D’Aráujo, 1996; Pandolfi, Carvalho, Carneiro, Grynszpan, 1999), os autores 
entendem que, ainda hoje, uma considerável parcela da população está 
distante das instituições do sistema de justiça. E nas situações em que é 
estimulada alguma aproximação, como no caso dos Juizados Especiais, 
por exemplo, percebemos o quanto essa distância ainda permanece em 
seu plano material e simbólico. O desafio do acesso à Justiça e do estímulo 
à participação cívica não está relacionado somente à garantia dos direitos, 
mas, sobretudo, ao reconhecimento dos direitos
Leandro (2012) observou que os caminhos para a reformulação do direito, no 
sentido de privilegiar a participação e emancipação dos cidadãos, são comple-
xos, como vimos ao longo deste texto, ao destacamos aspectos culturais e a 
questão do civismo. A autora destaca que não bastam modificações pontuais 
no exercício do direito, tendo em vista que os sistemas tradicionais e os novos 
mecanismos de acesso à Justiça estão sempre amparados na mesma organi-
zação da cultura jurídica, baseada no desenvolvimento histórico da cidadania 
brasileira. Neste sentido, para se pensar em reformas substantivas de acesso à 
Justiça é necessário diagnosticar, primeiramente, como se dão os processos de 
legitimidade da justiça e de participação dos indivíduos na solução dos conflitos, 
com especial atenção às formas como os cidadãos reconhecem os direitos ope-
racionalizados pelas instâncias oficiais judiciais e ou extralegais. 
Por fim, salienta-se que este conjunto de reflexões sobre os estudos em relação 
à cultura e à cidadania é central para compreender as características que inter-
ferem – ou pouco contribuem – na melhoria de vida dos segmentos populacio-
nais que estiveram e ainda estão alijados do acesso aos direitos no Brasil. Mes-
mo com a existência de práticas que têm como base as influências do pluralismo 
jurídico, percebe-se que, ainda hoje, uma considerável parcela da população 
está “distante” das instituições do sistema de justiça, tanto em seu plano ma-
terial como simbólico. No entanto, é necessário mais do que uma aproximação, 
mas o reconhecimento de instâncias plurais de solução de problemas e também, 
espaços legítimos, capazes de aumentar a confiança da população na “justiça”. 
Assim esperamos que a mediação comunitária inove e seja capaz de ampliar os 
diagnósticos sobre as visões de conflitos, a partir dos processos históricos que 
organizaram e/ou organizam a cultura no Brasil, apresentando meios capazes 
de influenciar a forma de participação (civismo), consequentemente, o modo de 
solução de problemas. 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE30 31
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FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE34 35
SESSÃO 2
por Antônio Eduardo Silva Nicácio
2. Aspectos ideológicos e 
políticos e sua relação com 
os contextos comunitários 
A cultura musical brasileira apresenta grande sensibilidade em relação à exclu-
são e às dominações e discriminações de todos os tipos. O direito pode extrair 
ensinamentos dessa cultura que lhe permitam atribuir às suas nor¬¬mas maior 
efetividade e proximidade aos problemas dos estratos sociais de maior vulnera-
bilidade, quer urbanos ou rurais. Foi por meio da canção denominada Morro Ve-
lho que Milton Nascimento se apresentou ao país, enquanto um grande compo-
sitor e intérprete popular.
Os versos da música contam a história de dois meninos amigos que brincavam 
juntos na infância pacata de uma fazenda e os destinos bem diversos – e bas-
tante óbvios – de cada um. O filho de um peão que inexoravelmente passa a 
exercer a mesma função do pai e “já não brinca, mas trabalha”. E o filho do dono 
da fazenda que vai para a cidade estudar e depois assume o comando da pro-
priedade. “Quando volta, já é outro. Tem nome de doutor e agora na fazenda é 
quem vai mandar”. Da interpretação de sua letra, percebe-se que nem mesmo 
as relações mais íntimas e longínquas de amizade resistem às relações de do-
minação, que se fazem bastante presentes nos dias atuais com aspectos varia-
dos e formas múltiplas de se concretizar. Existem vários modos de se dominar no 
mundo contemporâneo. Convive-se diariamente, ao mesmo tempo, com formas 
de dominação ideológica, política, financeira e jurídica, que se dão de modo pes-
soal ou impessoal.
Ideologicamente, domina-se, como revela o constitucionalista José Luiz Quadros 
de Magalhães, ao se encobrir os “reais interesses que motivam as ações políti-
SAIBA MAIS
Você pode ouvir a canção no seguinte link:
http://www.youtube.com/watch?v=-ITyuQPl1nA 
FUNDAMENTOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA GUIA DO ESTUDANTE36 37
cas e econômicas, assim como a construção do discurso jurídico” (2008, p. 235). 
Neste sentido, as teorias passam a ter um papel duplo delicado. Pode tanto ser 
propulsora de transformações emancipadoras ao propiciar ao sujeito, de forma 
crítica e libertadora, a compreensão da sua própria

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