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Humberto Dantas José Paulo Martins Júnior (orgs.) PAULUS Introdução à política brasileira Z 1 DEMOCRACIA E CIDADANIA: CONSCIENCIA E PARTICIPACAO Humberto Dantas No Brasil, grande parte da sociedade enxerga a politica com desinteresse e descrédito. Pesquisas divulgadas em 2002 pela USP e pela UNICAMP revelam que metade do eleitorado nio votaria se não fosse obrigado. Esse indicador aponta a distancia entre o eleitor e a administragdo do patriménio puablico. Popularmente convencio- nou-se separar os politicos (representantes) e a sociedade em geral, sendo “eles” os corruptos, e nés as vitimas. Mas devemos lembrar que “eles” somos nés, ou seja, qualquer politico eleito é um cidadão comum escolhido para representar-nos nas diferentes esferas de po- der. Um deputado federal, um vereador, um prefeito são represen- tantes de idéias selecionadas pela sociedade. Dessa maneira, nas eleições, os partidos e seus candidatos nos convencem de um plano que deverd ser posto em pritica em deter- minado periodo de tempo, e para isso disputam voto. Esse voto é tão desvalorizado por parcelas da população, que poucos sio os cida- dãos que cobram, fiscalizam, acompanham, sugerem e participam ativamente da vida de seus representantes. Esse distanciamento cria desconfiangas. Principalmente porque são poucos os individuos que entendem o funcionamento da politica, e raras as escolas que envol- vem seus alunos com esse tipo de questdo. Para endossar essa afir- magio, uma pesquisa realizada em 2002 pela ONG paulistana Agora revelou que 90% dos professores do ensino médio não definiam com clareza a fungio de um deputado federal e de um senador. A distan- cia significativa entre a pequena participagio politica no Brasil e a expressiva falta de informagio alimenta questdes do tipo: Por que DEMOCRACIA E CIDADANIA: CONSCIÊNCIA E PARTICIRAGAO | 11 somos obrigados a votar? Existem políticos honestos ou todos são corruptos? O vOTO OBRIGATÓRIO Os cidaddos que não conseguem reconhecer a importancia do voto, entendendo-o como um dever, e ndo como direito, afirmam que não votariam se não fossem obrigados. E costumam acreditar que se esse direito fosse facultativo, “quase ninguém” votaria. Veja- mos se isso é verdadeiro, pois a relação entre participação e obrigato- riedade não é tio automdtica quanto parece. A exposição do cendrio mundial nos mostra isso. Em nagées como a Itália, a Africa do Sul, Israel, Suécia e Espanha, o voto é opcional. Nem por isso os eleito- res se abstém, e em média mais de 80% do contingente cadastrado comparece as urnas. Em contrapartida, em paises como o Peru, o Meéxico, a Venezuela, o Paraguai e a Guatemala, o exercicio é obriga- tório, e menos de 60% dos cidaddos exercem seu direito. No Brasil, a média de participagio é pouco inferior a 80% - maior que paises desenvolvidos onde o voto é obrigatério, caso da Bélgica. Em outras nagdes onde esse direito é compulsério, os resultados são ainda mais elevados: Uruguai, Costa Rica, Grécia, Austrélia e Chile registram mais de 80% de comparecimento. Em termos de volume, o total de brasileiros que normalmente deixa de votar supera 22 milhdes. Para contemplarmos todas as situações possiveis, é importante lembrar que também é comum a auséncia expressiva do eleitorado onde ndo existe o carater obrigatério. Em paises desenvolvidos como 0 Japão, a Suica, o Canadá, os Estados Unidos e a Franga, a auséncia supera a casa dos quarenta pontos percentuais. No caso dessa última nagio, em 2002 o descaso do eleitorado permitiu que um candidato de extrema direita chegasse ao segundo turno, surpreendendo todo o mundo. Recobrados do susto, os franceses elegeram seu oponente. De acordo com os dados acima é possivel supor que existam ou- tros fatores que influenciem na participagio do eleitorado, além da caracteristica facultativa ou compulséria do voto. O que percebemos é que esse direito pode ser entendido como uma questio de cons- ciéncia, e a participagdo é um sinénimo do envolvimento da popula- 12 | HumserTo Dantas ção no processo. Sob esse ponto de vista, poderíamos imaginar que o atendimento dos representantes às expectativas dos representados é o que estimula a crença da sociedade no processo de escolha. Mas para que isso ocorra, os cidadãos precisam estar prontos para cobrar efiscalizar. A mudança precisa ser sentida quando os grupos se alter- nam no poder, mas os indivíduos comuns também são responsáveis por esse movimento. Assim, o cenário político depende dos cidadãos, pois a represen- tação é exercida mediante uma escolha. A despeito dos vencedores, esse indivíduo tem todo o direito de se queixar, reclamar e mostrar sua insatisfação. Isso porque, no processo eleitoral, ele se posicionou. Quando o sujeito não vota, ele está dizendo que os outros cidadãos podem responder por ele. Que qualquer coisa que resolvam está bom - ele é indiferente, e a apatia é um mau à democracia. É importante lembrar que, no país, a obrigatoriedade de com- parecimento às urnas é exigida entre os 18 e os 70 anos de idade, de todos os brasileiros alfabetizados. Isso significa dizer que, ao lon- go de 52 anos, iremos às urnas para escolher nossos representantes. Como as eleições ocorrem há cada dois anos, votaremos pelo menos 26 vezes em nossa vida - o que justifica a necessidade de pensarmos em planos para a inclusdo da Educação Politica em nossas escolas. Lembrando que o compromisso ético do educador é com a formagao suprapartidéria, e ndo com um partido em especial. O desinteresse de boa parte de nossos cidadios em relação à po- litica é justificavel pela falta de conhecimento. Na Ciéncia Politica parece consensual aceitar que, quanto mais complexo o sistema poli- tico, maior esse desinteresse. Se o problema entdo é entender de poli- tica, explicá-la é tarefa urgente. Fechar os olhos para nossa realidade, afastar-se do cotidiano e ndo participar ativamente da resolução de problemas de ordem publica interfere não apenas em sua vida, mas no cotidiano de familiares, amigos, vizinhos, colegas de trabalho e da sociedade em geral. A politica está presente em todas as nossas atividades sociais. Fazemos politica em casa, no servigo, e em nossos relacionamen- tos pessoais. Há trinta séculos Aristoteles já dizia que o “homem é DEMOCRACIA E CIDADANIA! CONSCIENCIA E PARTICIPAÇÃO | 13 um ser político”. Nesse sentido, devemos entendê-la como uma are- na onde cedemos e ganhamos espaços, buscamos benefícios e, ao mesmo tempo, aceitamos posições diferentes. Isso, em nossa vida, é cotidiano. A participação, nesse caso, é automática. Fazemos política até mesmo sem saber que estamos fazendo. Se os cidadãos interessados estiverem próximos dos represen- tantes, a administração pública e o exercício dos mais diversos man- datos se tornarão ainda mais transparentes, e veremos como é tra- balhoso administrar um municipio, um estado ou um pais. Desse modo, gostar de politica, informar-se, entender e acompanhar signi- fica cuidar de nossas próprias vidas, ou simplesmente daquilo que é nosso: o patrimoénio publico. CORRUPGAO NA POLITICA Da mesma forma que parte da sociedade mostra-se indigna- da com a obrigatoriedade do voto, existe uma grande parcela que afirma que os politicos são todos corruptos. Mas se os represen- tantes são todos iguais, e se envolvem com corrupgio, como po- deremos votar tranqiiilos? É certo que existem representantes que infringem os limites da ética e da legalidade. Mas existe uma parte significativa que é responsével, e busca o melhor para a sociedade. Independente de quem é bom e de quem é ruim, os politicos que nos representam são colocados onde estão por nós. Isso significa dizer que, se não estamos satisfeitos com a conduta dos sujeitos que nos representam, boa parte da culpa é nossa. As eleigdes ocorrem em intervalos marcados de tempo justamentepara que possamos refletir a respeito de nossa satisfação com aqueles que escolhemos. Portanto, o momento de optar por um candidato não é o dia das eleições, e sim todo o seu mandato ou sua trajetéria enquanto re- presentante e cidaddo. Lamentavelmente, no entanto, parte do eleitorado utiliza crité- rios pouco racionais para votar: aparéncia fisica, condi¢io econdmi- ca, fama, promessas infundadas, troca de favores, propagandas bem articuladas etc. Essa atitude compromete todo o restante da socie- dade. A importancia da educação politica nesse caso é fundamental. 14 | Humeerto Dantas Considerar todos os políticos como corruptos é concordar que tam- bém trazemos dentro de nós um pouco dessa corrupção, ou no mi- nimo uma dose de irresponsabilidade, conivência e cumplicidade. Isso porque cada representante é um pedaço de um grupo. Eles agem por nós, pois a lógica da representação é exatamente essa: conceder a outro uma responsabilidade que não podemos (ou queremos) assu- mir. O voto nada mais é do que a procuração que passamos para um político responder por nós. Toda essa discussão acerca do voto e da corrupção, que pode ser traduzida na importância de entendermos nossos papéis na socieda- de, e na relevância da participação e educação política, nos remete à discussão de dois conceitos fundamentais: cidadania e democracia. O objetivo aqui é traçar um caminho capaz de mostrar os significa- dos desses termos no mundo político. //CIDADANIA Dificilmente encontraremos uma pessoa que nunca tenha ouvi- do a palavra cidadania. Theodor Marshall a define como um proces- so dividido em etapas. Primeiramente cabe ao Estado a garantia de um conjunto de direitos fundamentais. De modo geral, esses direitos foram sendo conquistados na Europa ao longo dos séculos: os direi- tos civis datam do séc. XVIII, os direitos políticos do séc. XIX e os direitos sociais do séc. XX. Tais conjuntos de garantias podem ser definidos da seguinte maneira: — Direitos Civis: são os direitos individuais e coletivos. Repre- sentam a possibilidade de promovermos escolhas que serão respei- tadas e asseguradas. São os princípios gerais que regulam as rela- ções entre os cidadãos. Por exemplo: a opção por uma religião, por uma profissão, o direito de ir e vir, a liberdade de expressão, a li- berdade de associação, de imprensa, o direito de propriedade etc. — Direitos Políticos: são os direitos que temos de nos oferecer para representar outros cidadãos, ou indicar os nossos representan- tes na esfera política (votar e ser votado). Se a maior expressão desse direito é o voto, devemos ter em mente alguns detalhes. O pleno exercício dos direitos políticos pressupõe a possibilidade de parcela DEMOCRACIA E CIDADANIA: CONSCIÊNCIA E PARTICIPAÇÃO | 15 da sociedade organizar-se livremente em oposição ao governo vigen- te. Isso significa dizer que temos o direito de votar ou ser votados, e ainda a possibilidade de apoiar o governo ou ser contrário a ele. — Direitos sociais: são os direitos que temos de compartilhar da herança pública. Os direitos que nos tornam iguais e nos permi- tem gozar de serviços que o Estado deve nos oferecer. Falamos, por exemplo: da educação, da saúde, do lazer, da cultura, da segurança, da aposentadoria, dos direitos trabalhistas, do emprego etc. Todo o cidadão tem um conjunto de direitos que lhe garante o bem-estar social. Em termos históricos, apenas durante o século XX o Estado começa a reconhecer que tem uma parcela maior de responsabilida- de sobre seus cidadãos. No Brasil, a Constituição de 1988 foi chamada de Cidadã. Justa- mente porque garante aos indivíduos, pela primeira vez de maneira integral, esses três conjuntos de direitos. Quem lê o documento, tem a impressão de que vivemos em um país desenvolvido e sem proble- mas sociais. A distância existente entre as garantias constitucionais e a realidade da nação revela o enorme esforço a ser cumprido por muitos dos governos que ainda irão administrar o Brasil. Seguindo com as idéias de Marshall, é importante destacarmos que a definição de cidadania não pode se limitar apenas ao cumpri- mento dos direitos do cidadão por parte do Estado. Devemos ter em mente que cidadania é uma troca, e assim como possuímos direitos também temos um conjunto expressivo de deveres. Viver em sociedade não é tão simples quanto parece. O respeito às regras é fundamental para que nossos direitos sejam preservados, e para que possamos respeitar o espaço alheio. O grande problema é que convivemos com alguns fantasmas que nos afastam desse con- vívio saudável. Três deles podem ser destacados: a impunidade, a cultura e a educação. No primeiro caso, as pessoas transcendem a lei porque sabem que dificilmente serão flagradas e punidas. Estudos realizados no Rio de Janeiro em 2003 revelam um absurdo: mais de 90% dos homicídios não foram solucionados na cidade. A situação de descaso com as regras é tão grande, que no Brasil costuma-se dizer que algumas leis “não pegam”, ou seja, não funcionam. Além n -h 16 | Humeerto Dantas , » OAbtent AH disso, a população convive com o caráter parcial da justiça. Um idên- tico crime, cometido por diferentes sujeitos, resultará em punições distintas, principalmente se esses indivíduos gozarem de posições sociais opostas. Isso acontece porque acreditamos que: “para tudo existe um jeito”. Esse “jeito” é o responsável pelo segundo grande fantasma que assombra a possibilidade de um convívio mais saudável na socieda- de brasileira, e está presente em nossa cultura popular. Cultiva-se, em alguns casos com muito orgulho, a iafªiclgge de nosso povo Wmmjbmaralela à regra oficial. O conhecido “jeitinho brasileiro” parece motivar o compomto de enormes parcelas da populagio, e é responsavel por distorgdes profundas em nosso convivio social. As pessoas que atropelam as regras sentem-se bem porque estão enganando o Estado e seus semelhantes, mas se esquecem que, quando “lucram” de maneira ilegal, estão atropelan- do o interesse comum. O terceiro problema remete a definição de cidadania de Mar- shall. Se somos conhecidos como o povo do “jeitinho” e da vanta- gem, como fazer para ajustar essa situação? A impunidade e a sen- sação da vantagem impulsionam o sujeito a descumprir as regras estabelecidas para um convivio social adequado. Se por um lado falta uma fiscalização adequada, e o rigor em algumas punicdes, o maior investimento para combater esses problemas está na área da educagio. Um cidaddo educado adequadamente é conhecedor de seus direitos e deveres. É capaz de perceber sua responsabilidade na construção conjunta das leis, e justamente porque vive sob o que concorda, passa a respeitar a sociedade e seus principios. Se o papel da educação é central, para Marshall, não cabe ao individuo escolher se vai ou não a escola, a educagio é um direito e um dever de todos os cidaddos. O individuo educado, dentro de padrões e disciplinas especificas de cidadania, é aquele que conhece seus limites e respeita as diferencas e o espago de todos aqueles que dividem consigo a realidade. Essa educagio para a cidadania não é uma questio de dogmatizar e aprisionar o individuo num mundo de regras rigidas, mas de criar em cada um a consciéncia acerca da DEMOCRACHA E CIDADANIA: CONSCENCIA E PARTICIPAÇÃO | 17 tolerância e do convívio com as diferenças. Nesse contexto, as regras não devem ser infringidas, mas podem ser modificadas pelo interes- se organizado de indivíduos conscientes. No Brasil vem crescendo essa consciência, e as pessoas vêm lu- tando por suas demandas. A caminhada rumo 2 inserção de todos no pleno conhecimento de seu espaço na sociedade, entretanto, ain- da está no começo. A conscientização é a principal característica do conceito de cidadania. Essa é a etapa final. O crescimento do Tercei- ro Setor e as demandas defendidas peloscidadãos organizados é um símbolo desse desenvolvimento. DEMOCRACIA Partiremos agora para uma definição do conceito de democra- cia. O compromisso é com a definição sob o ponto de vista político. Popularmente entendemos a democracia como o desejo da maioria. Quando tomamos uma decisão em conjunto, oferecendo aos presentes a oportunidade de selecionarem alternativas, falamos em escolha democrática. A opção mais votada vence, e o grupo segue aquele caminho. Essa é a visão mais simples que podemos ter do termo: o desejo da maioria, expresso em um momento de opção. Se olharmos para a sociedade em que vivemos, será possível notar que o voto simboliza esse tipo de escolha na esfera pública. As eleições representam um processo onde todos os cidadãos esco- lhem representantes, idéias, programas ou projetos. A democracia vista de forma simples é a possibilidade que temos de optar e seguir a orientagio daquilo que a maioria escolheu - respeitando a exis- téncia e a possibilidade de a posigao da minoria um dia tornar-se realidade. Essa é uma das principais caracteristicas da democracia: garantir atodos a oportunidade de expor suas idéias e convencer a sociedade, por meios previstos em lei, de que seu posicionamento é relevante e pode ser apoiado. A simples possibilidade de mudanga, promovida pelo desejo da maioria, é um dos motivos que nosleva a afirmar que a democracia é preferivel em relação a qualquer outro tipo de regi- 18 | Humeerto Dantas me. A liberdade de expressão e a possibilidade de formar oposição, sendo igualmente respeitadas, despertam em nós, cidadãos, a crença na garantia de expressarmos a nossa opiniáo. Esse valor não deve ser cultivado apenas na vida pública, mas também em nossos lares, empregos e relações cotidianas. O debate, a discussão e o confronto sadio de idéias são indispensáveis para o desenvolvimento dos cidadãos. A democracia se faz no dia-a-dia, e deve ser compreendida como um valor cultural. Com relação à sua história, costumamos aprender que a demo- cracia nasceu na Grécia Antiga, há cerca de vinte e cinco séculos. Mas devemos destacar que essa primeira experiência é bastante dife- rente do que enxergamos hoje. À Grécia Clássica não era uma nação. Era um conglomerado de cidades-Estado. Uma dessas cidades, ou pólis (usando o termo grego), era Atenas. E essa talvez tenha sido a mais importante e destacada cidade da Grécia Antiga. Foi ali que surgiu a experiência de democracia sobre a qual nos apoiamos. Lá, os cidadãos discutiam os assuntos públicos em uma praça (ágora), e a maioria presente definia os rumos que seriam tomados. O grande detalhe é que nem todos os atenienses eram considerados cidadãos, ou seja, nem todos tinham o direito de participar dessas reuniões públicas. Os cidadãos atenienses eram homens, ou seja, as mulheres não tinham o direito de participar. Além disso, os jovens não tinham voz ativa, assim como os escravos - que compunham grande parcela da população. Dessa forma, poucos eram os que podiam discutir o futuro da vida pública. Ainda assim, a experiência é louvável, pois esse é o primeiro sistema conhecido que fomentava o debate entre diversas partes. O termo democracia, que significa governo do povo - surge em oposição à autocracia (governo de um só homem) e a aristocracia (governo de poucos). As decisões tomadas em praça pública não pressupunham a existência de representantes. Para os gregos não era possível ima- ginar a idéia de que o povo podia ser representado, uma vez que os assuntos discutidos eram de interesse coletivo. Isso significa afirmar que o cidadão ateniense não escolhia um deputado, um senador ou DEMOCRACIA E CIDADANIA: CONSCIÊNCIA E PARTICIPAGAO | 19 um vereador. As decisões eram tomadas por cada um dos cidadãos de corpo presente. Esse modelo ficou conhecido como Democracia Direta, que representa uma forma de administrar sem intermediá- rios. O exemplo grego perdeu-se na história, quando as cidades-Es- tado foram invadidas. Um outro exemplo deu-se em Roma, alguns poucos séculos antes de Cristo. O sistema, no entanto, era um tanto mais complexo que o grego, e logo foi perdendo sua característica popular com a consolidação do Império Romano. A história atravessa mais de quinze séculos antes de conhecer uma nova experiência democrática relevante, deixando claro que durante muito tempo o mundo viveu sob a sombra do autoritaris- mo, baseado na força e nos acordos entre sujeitos que gozavam de —— grande poder. Wl&%w« 2 Mesmo assim, os principios da democracia direta continuara'tfi?x/ sendo defendidos por filósofos politicos. Para Jean-Jacques Rousseau (1712-1788), por exemplo, a idéia de representagdo era absurda. Se o ) poder era do povo, não havia explicação para a existência de inter- mediários. O grande problema é que a despeito das considerações | filosóficas, a possibilidade de implementação de um sistema direto de, democracia tornou-se complexa por motivos óbvios: enorme contin- gente de cidadãos que conquistaram o direito de participar da políti- ca, significativa extensão dos Estados-Nação e falta de tempo imposta pela vida moderna. Além disso, a tradição absolutista não permitiria uma divisão tão grande das decisões instantaneamente. A democra- cia ressurge timidamente, e consolida-se ao longo dos séculos. No século XVII, funcionando com o intuito de limitar o poder absoluto, a Europa experimentou uma série de experiéncias de sepa- ração dos poderes, sendo o caso inglés o mais marcante. Ocupando lugar nos parlamentos estavam cidadaos eleitos para representar de- terminadas parcelas da sociedade - na maioria dos paises, os seg- mentos que tinham dinheiro ou propriedades. dessa escolha que nasce a idéia de Democracia Representativa. É interessante destacar que esse conceito nasceu ligado 4 posse. O cidadão que tinha algo a perder, sob o ponto de vista econémico, escolhia representantes, o 20 | HumeertO DanTtas restante era desprezado. Durante a maior parte do Império (1822 a 1889), por exemplo, o voto no Brasil era censitário, ou seja, baseado em critérios de renda. o " Ao contrário de Rousseau, alguns pensadores chegam a consi- derar que a Democracia Representativa apresenta vantagens sobre o sistema direto por um simples motivo: existem cidadãos preparados para representar e aqueles que não teriam a menor capacidade para fazê-lo. Essa idéia está presente entre os norte-americanos do século XVIII. Dessa forma, pensava-se que os cidadãos estavam divididos em duas categorias distintas: os aptos a votar e os preparados para representar. Iniciamos o século XX com a percepgio de que não bastava per- mitir que a representago fosse exclusividade das classes mais pro- bas. Passou a vigorar o sentimento de que todos os cidadãos podiam contribuir para a construção da sociedade. Nasce a idéia do sufrágio universal (participagdo de todos). A mulher passa a fazer parte da politica ao longo do século XX em diferentes paises, assim como os cidadãos das classes mais pobres. Atravessamos grande parte desse século sob a crenca de que a forma representativa, desde que amplia- da a participagio de todos os cidadãos, era “ideal”. O cientista politico Robert Dahl apontou que existiam requisitos bésicos adicionais para a efetivagdo desse novo conceito de demo- cracia representativa. O que diferenciava a nova forma de compreen- dermos o termo era justamente essa caracteristica extensiva do voto. O sufragio universal é o diferencial das democracias do século XX, mas o autor vai além em suas consideragées, sendo necessario: — liberdade de formar e aderir a organizagdes; - liberdade de expressao; - direito de voto; - elegibilidade para cargos públicos; — direito de lideres politicos disputarem apoio e votos; - fontes alternativas de informação (liberdade de imprensa); - — eleiçõeslivres e idoneas; - — instituições imparciais quegarantam a realização periódica de eleições. DEMOCRACIA E CIDADANIA: CONSCIÊNCIA E PARTICIPAÇÃO | 21 Esses requisitos demonstram, principalmente, que uma demo- cracia não é apenas o direito que todos têm de votar, mas um con- junto de garantias que constituem um cenário propício à escolha de representantes pela maior parte possível de cidadãos. Após quase cem anos aperfeiçoando esse modelo de democra- cia, chegamos ao fim do século XX acreditando na existência de uma crise. Mas o que nos leva a essa percepção? Por uma série de motivos os representantes já não conseguem identificar e atender as deman- das da sociedade, que se tornou mais complexa e exigente. Os indi- víduos já não enxergam nos eleitos uma fonte de mudança ou defesa de opiniões e desejos. Pesquisas revelam que, no Brasil, por exemplo, os principais órgãos de representação politica contam com baixo in- dice de credibilidade. Em 2003, a Ordem dos Advogados do Brasil mostrou que apenas um terço dos brasileiros confiava no Congres- so Nacional. Essa desconfiança em relação ao Poder Legislativo é sinal claro do distanciamento entre representantes e representados. Comprovando esse sentimento, em 2004 o Instituto Valores divul- gou pesquisa com jovens de São Paulo que se mostravam descrentes e desmotivados com seus representantes políticos. Para diminuir essa falta de identificação, o conceito de demo- cracia sofre então uma nova guinada em sua trajetória dinâmica. O sistema representativo já não responde aos anseios da sociedade, enquanto a democracia direta parece inviável. Como resultado, co- meça a se fortalecer o conceito de Democracia Participativa, com características semidiretas. Nesse caso, é importante destacar que os eleitores não deixam de votar, e os poderes que representam a sociedade continuam exis- tindo. O grande diferencial é que, por meio de uma série de meca- nismos, os cidadãos se aproximam mais das decisões. Não apenas na condição de eleitor, mas também com possibilidade de opinar e participar de algumas escolhas importantes. A democracia participativa passa a configurar-se como um continuum entre a forma direta e a representativa. Cabe aos Esta- dos Modernos criarem mecanismos que viabilizem o estreitamento dessas relações entre o poder e a sociedade. A ONU já considera 22 | Humeerto Dantas o incentivo à participação como pressuposto básico dos regimes democráticos modernos. Para a Organização das Nações Unidas, a realização de eleições livres e idôneas, a liberdade de imprensa e o acesso ao voto são pré-requisitos elementares das democracias, e o grande diferencial é a possibilidade de aproximação. De forma simplificada, tais mecanismos de participação podem ser divididos em dois grupos: 1) os tradicionais e legais e; 2) os al- ternativos. O primeiro grupo está garantido, em parte ou integral- mente, em quase todos os países democráticos do mundo. São os referendos, os plebiscitos e as leis de iniciativa popular. No Brasil, essas ferramentas estão garantidas na Constituição, e logo após a sua promulgação em 1988, acreditava-se que seriam amplamente utili- zadas. Além desses, somam-se os Conselhos Gestores de Políticas Wxigênciª legal em áreas como a saúde, a eduí:ação, a me- renda escolar etc. — Plebiscito: antes que uma decisão seja tomada, o eleitorado é consultado a respeito de seu posicionamento. A decisão do povo determina o rumo a ser trilhado. No Brasil, tivemos um único ple- biscito após 1988. Em 1993 fomos às urnas para escolher entre a Re- \« Hj pública e a Monarquia, e entre o Presidencialismo e o Parlamentaris-S Q mo. Optamos por nos manter como uma República Presidencialista. É importante destacar que um plebiscito é um mecanismo oficial. Quando utilizado, as partes envolvidas desenvolvem campanhas, e mostram à sociedade, formalmente, as alternativas existentes. — Referendo: é entendido como a ferramenta de consulta à po- pulação que ocorre imediatamente após uma tomada de decisão ge- radora de polêmica ou causadora de grande impacto. Ao invés do plebiscito, que “pergunta” antes de tomar a decisão, no referendo a mudança ocorre, e a sociedade é consultada imediatamente após. O posicionamento da maioria dos eleitores é sempre acatado. Após a promulgação do estatuto do desarmamento em 2003, o povo foi con- vocado em 2005 para nosso único referendo nacional após 1988. A pergunta, bastante confusa, desejava saber se éramos favoráveis ou contrários ao comércio legal de armas de fogo e munição no país. Venceu o desejo de manter o comércio. DEMOCRACIA E CIDADANIA: CONSCIÊNCIA E PARTICIPAÇÃO | 23 — Lei de Iniciativa Popular: representa a criação de um instru- mento que permite à sociedade encaminhar projetos de lei para a Câmara dos Deputados. Para tanto, são exigidas mais de um mi- lhão de assinaturas colhidas em diferentes estados do país. Além do trabalho de coleta, o abaixo-assinado precisa ser conferido. As exi- gências são tão complexas, que apenas dois projetos foram apresen- tados. Após algumas manobras para que fosse aceito, foi aprovada a Lei 9.840/99 que combate a corrupção eleitoral. À outra proposta, sobre habitação, engatinha faz anos no Congresso. — Conselhos Gestores de Políticas Públicas: surgiram para dis- cutir temas pontuais, dando aos governos as diretrizes e idéias a respeito de serviços específicos. Os conselhos (de saúde, educação, de assistência social, infância e juventude etc.), instalados princi- palmente em âmbito municipal, são órgãos deliberativos, controla- dores de políticas públicas e paritários - compostos por represen- tantes do Estado e da sociedade em geral. Cabe aos conselhos, por exemplo, aprovar ou não os programas de atendimento dos órgãos governamentais. Esses canais institucionais de participação propor- cionam maior participação social em assuntos de interesse geral, e funcionam no formato de reuniões. A despeito dessas garantias institucionais, o país tornou-se símbolo de medidas inovadoras. Os mecanismos alternativos são ferramentas utilizadas pelos governantes que permitem uma maior aproximação entre representantes e representados. De acordo com a ONU, vários países se destacam na criação de fer- ramentas dessa natureza. O Brasil desenvolveu mecanismos em diversas localidades. Tais dispositivos podem ser entendidos da seguinte maneira: — Orçamento Participativo: a sociedade é chamada a participar de reuniões em que é discutido o destino do dinheiro público, de acordo com o orçamento oficial, destinado aos investimentos. Em grandes cidades e estados, as reuniões ocorrem em inúmeros lugares e o mecanismo decisório depende da metodologia adotada em cada local. Normalmente são escolhidos alguns cidadãos que dirigem as reuniões, acompanhadas de perto por representantes do governo. 24 | Humeerto Dantas Até 2000, existiam cerca de 103 planos de Orçamento Participativo nos municípios. — Gestão Participativa: a sociedade passou a participar de reu- niões que visam democratizar o gerenciamento de alguns serviços. Os encontros têm o intuito de debater, com os cidadãos interessa- dos, idéias, alternativas administrativas e possibilidades de melho- ria e aperfeiçoamento, conferindo maior transparência aos negócios públicos. A experiência é muito semelhante ao conceito utilizado por empresas modernas, que dão liberdade de expressão aos seus funcionários. As áreas de atuação e, conseqiientemente, de abertura à sociedade da administração pública podem variar - saúde, edu- cação, cultura, segurança, transporte etc. - assim como a magnitu- de, o modelo dos programas, a interferência no orçamento público etc. O aspecto mais importante desse instrumento é o entendimen- to de que a administração pública e suas entidades pertencem aos cidadãos. - Comissão de Legislação Participativa: iniciativa inaugurada pela Câmara dos Deputadosem 2001 que, rapidamente, espalhou-se por dezenas de estados e municípios. A idéia consiste em viabilizar a participação da sociedade nos trabalhos legislativos, tornando-se uma alternativa bastante viável à Lei de Iniciativa Popular. O funcio- namento desse mecanismo é bastante simples. Qualquer organiza- ção da sociedade civil que possua um estatuto - ONG, OSCIP, Fun- dação, Sindicato, Associação etc. — inscreve-se na Comissão e pode enviar propostas legislativas à Câmara dos Deputados. — Governo Eletrônico: representa o compromisso de as autori- dades colocarem à disposição dos cidadãos o maior conteúdo possí- vel de informações sobre a administração pública em canais como a Internet. A transparência e a oportunidade de acompanhamento são fundamentais na democracia. A despeito da importancia dessa aproximação e das novas for- mas de participação que transcendem o voto, e dão à democracia características participativas que superam a representação formal, a grande questão é saber se todos esses mecanismos funcionam. Enquanto alguns estudiosos defendem ardorosamente tais idéias, DEMOCRACIA E CIDADANIA: CONSCIÊNCIA E PARTICIPAÇÃO | 25 outros as questionam, afirmando que essas ferramentas tornam-se espaços loteados por lideranças políticas já consolidadas. O que podemos notar é que todas essas experiências apontam para a necessária implementação de um cuidadoso programa de educação política. Antes de participar, o cidadão precisa entender a lógica desses mecanismos e valorizar a sua existência. Além disso, é importante destacar que a democracia não é apenas um sinônimo de escolha, mas também de participação ampla. Ao cidadão moderno já não basta votar, ele deve estar atento às possibilidades de adminis- trar aquilo que é seu. A democracia, dinâmica e inovadora, trans- | cende o “simples” conceito de votar. Humerrto DanTas