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Humberto Dantas 
José Paulo Martins Júnior (orgs.) 
PAULUS 
Introdução à 
política brasileira 
Z 
1 DEMOCRACIA E CIDADANIA: 
CONSCIENCIA E PARTICIPACAO 
Humberto Dantas 
No Brasil, grande parte da sociedade enxerga a politica com 
desinteresse e descrédito. Pesquisas divulgadas em 2002 pela USP 
e pela UNICAMP revelam que metade do eleitorado nio votaria se 
não fosse obrigado. Esse indicador aponta a distancia entre o eleitor 
e a administragdo do patriménio puablico. Popularmente convencio- 
nou-se separar os politicos (representantes) e a sociedade em geral, 
sendo “eles” os corruptos, e nés as vitimas. Mas devemos lembrar 
que “eles” somos nés, ou seja, qualquer politico eleito é um cidadão 
comum escolhido para representar-nos nas diferentes esferas de po- 
der. Um deputado federal, um vereador, um prefeito são represen- 
tantes de idéias selecionadas pela sociedade. 
Dessa maneira, nas eleições, os partidos e seus candidatos nos 
convencem de um plano que deverd ser posto em pritica em deter- 
minado periodo de tempo, e para isso disputam voto. Esse voto é tão 
desvalorizado por parcelas da população, que poucos sio os cida- 
dãos que cobram, fiscalizam, acompanham, sugerem e participam 
ativamente da vida de seus representantes. Esse distanciamento cria 
desconfiangas. Principalmente porque são poucos os individuos que 
entendem o funcionamento da politica, e raras as escolas que envol- 
vem seus alunos com esse tipo de questdo. Para endossar essa afir- 
magio, uma pesquisa realizada em 2002 pela ONG paulistana Agora 
revelou que 90% dos professores do ensino médio não definiam com 
clareza a fungio de um deputado federal e de um senador. A distan- 
cia significativa entre a pequena participagio politica no Brasil e a 
expressiva falta de informagio alimenta questdes do tipo: Por que 
DEMOCRACIA E CIDADANIA: CONSCIÊNCIA E PARTICIRAGAO | 11
somos obrigados a votar? Existem políticos honestos ou todos são 
corruptos? 
O vOTO OBRIGATÓRIO 
Os cidaddos que não conseguem reconhecer a importancia do 
voto, entendendo-o como um dever, e ndo como direito, afirmam 
que não votariam se não fossem obrigados. E costumam acreditar 
que se esse direito fosse facultativo, “quase ninguém” votaria. Veja- 
mos se isso é verdadeiro, pois a relação entre participação e obrigato- 
riedade não é tio automdtica quanto parece. A exposição do cendrio 
mundial nos mostra isso. Em nagées como a Itália, a Africa do Sul, 
Israel, Suécia e Espanha, o voto é opcional. Nem por isso os eleito- 
res se abstém, e em média mais de 80% do contingente cadastrado 
comparece as urnas. Em contrapartida, em paises como o Peru, o 
Meéxico, a Venezuela, o Paraguai e a Guatemala, o exercicio é obriga- 
tório, e menos de 60% dos cidaddos exercem seu direito. No Brasil, 
a média de participagio é pouco inferior a 80% - maior que paises 
desenvolvidos onde o voto é obrigatério, caso da Bélgica. Em outras 
nagdes onde esse direito é compulsério, os resultados são ainda mais 
elevados: Uruguai, Costa Rica, Grécia, Austrélia e Chile registram 
mais de 80% de comparecimento. Em termos de volume, o total de 
brasileiros que normalmente deixa de votar supera 22 milhdes. 
Para contemplarmos todas as situações possiveis, é importante 
lembrar que também é comum a auséncia expressiva do eleitorado 
onde ndo existe o carater obrigatério. Em paises desenvolvidos como 
0 Japão, a Suica, o Canadá, os Estados Unidos e a Franga, a auséncia 
supera a casa dos quarenta pontos percentuais. No caso dessa última 
nagio, em 2002 o descaso do eleitorado permitiu que um candidato 
de extrema direita chegasse ao segundo turno, surpreendendo todo o 
mundo. Recobrados do susto, os franceses elegeram seu oponente. 
De acordo com os dados acima é possivel supor que existam ou- 
tros fatores que influenciem na participagio do eleitorado, além da 
caracteristica facultativa ou compulséria do voto. O que percebemos 
é que esse direito pode ser entendido como uma questio de cons- 
ciéncia, e a participagdo é um sinénimo do envolvimento da popula- 
12 | HumserTo Dantas
ção no processo. Sob esse ponto de vista, poderíamos imaginar que 
o atendimento dos representantes às expectativas dos representados 
é o que estimula a crença da sociedade no processo de escolha. Mas 
para que isso ocorra, os cidadãos precisam estar prontos para cobrar 
efiscalizar. A mudança precisa ser sentida quando os grupos se alter- 
nam no poder, mas os indivíduos comuns também são responsáveis 
por esse movimento. 
Assim, o cenário político depende dos cidadãos, pois a represen- 
tação é exercida mediante uma escolha. A despeito dos vencedores, 
esse indivíduo tem todo o direito de se queixar, reclamar e mostrar 
sua insatisfação. Isso porque, no processo eleitoral, ele se posicionou. 
Quando o sujeito não vota, ele está dizendo que os outros cidadãos 
podem responder por ele. Que qualquer coisa que resolvam está 
bom - ele é indiferente, e a apatia é um mau à democracia. 
É importante lembrar que, no país, a obrigatoriedade de com- 
parecimento às urnas é exigida entre os 18 e os 70 anos de idade, de 
todos os brasileiros alfabetizados. Isso significa dizer que, ao lon- 
go de 52 anos, iremos às urnas para escolher nossos representantes. 
Como as eleições ocorrem há cada dois anos, votaremos pelo menos 
26 vezes em nossa vida - o que justifica a necessidade de pensarmos 
em planos para a inclusdo da Educação Politica em nossas escolas. 
Lembrando que o compromisso ético do educador é com a formagao 
suprapartidéria, e ndo com um partido em especial. 
O desinteresse de boa parte de nossos cidadios em relação à po- 
litica é justificavel pela falta de conhecimento. Na Ciéncia Politica 
parece consensual aceitar que, quanto mais complexo o sistema poli- 
tico, maior esse desinteresse. Se o problema entdo é entender de poli- 
tica, explicá-la é tarefa urgente. Fechar os olhos para nossa realidade, 
afastar-se do cotidiano e ndo participar ativamente da resolução de 
problemas de ordem publica interfere não apenas em sua vida, mas 
no cotidiano de familiares, amigos, vizinhos, colegas de trabalho e 
da sociedade em geral. 
A politica está presente em todas as nossas atividades sociais. 
Fazemos politica em casa, no servigo, e em nossos relacionamen- 
tos pessoais. Há trinta séculos Aristoteles já dizia que o “homem é 
DEMOCRACIA E CIDADANIA! CONSCIENCIA E PARTICIPAÇÃO | 13
um ser político”. Nesse sentido, devemos entendê-la como uma are- 
na onde cedemos e ganhamos espaços, buscamos benefícios e, ao 
mesmo tempo, aceitamos posições diferentes. Isso, em nossa vida, é 
cotidiano. A participação, nesse caso, é automática. Fazemos política 
até mesmo sem saber que estamos fazendo. 
Se os cidadãos interessados estiverem próximos dos represen- 
tantes, a administração pública e o exercício dos mais diversos man- 
datos se tornarão ainda mais transparentes, e veremos como é tra- 
balhoso administrar um municipio, um estado ou um pais. Desse 
modo, gostar de politica, informar-se, entender e acompanhar signi- 
fica cuidar de nossas próprias vidas, ou simplesmente daquilo que é 
nosso: o patrimoénio publico. 
CORRUPGAO NA POLITICA 
Da mesma forma que parte da sociedade mostra-se indigna- 
da com a obrigatoriedade do voto, existe uma grande parcela que 
afirma que os politicos são todos corruptos. Mas se os represen- 
tantes são todos iguais, e se envolvem com corrupgio, como po- 
deremos votar tranqiiilos? É certo que existem representantes que 
infringem os limites da ética e da legalidade. Mas existe uma parte 
significativa que é responsével, e busca o melhor para a sociedade. 
Independente de quem é bom e de quem é ruim, os politicos que 
nos representam são colocados onde estão por nós. Isso significa 
dizer que, se não estamos satisfeitos com a conduta dos sujeitos que 
nos representam, boa parte da culpa é nossa. As eleigdes ocorrem 
em intervalos marcados de tempo justamentepara que possamos 
refletir a respeito de nossa satisfação com aqueles que escolhemos. 
Portanto, o momento de optar por um candidato não é o dia das 
eleições, e sim todo o seu mandato ou sua trajetéria enquanto re- 
presentante e cidaddo. 
Lamentavelmente, no entanto, parte do eleitorado utiliza crité- 
rios pouco racionais para votar: aparéncia fisica, condi¢io econdmi- 
ca, fama, promessas infundadas, troca de favores, propagandas bem 
articuladas etc. Essa atitude compromete todo o restante da socie- 
dade. A importancia da educação politica nesse caso é fundamental. 
14 | Humeerto Dantas
Considerar todos os políticos como corruptos é concordar que tam- 
bém trazemos dentro de nós um pouco dessa corrupção, ou no mi- 
nimo uma dose de irresponsabilidade, conivência e cumplicidade. 
Isso porque cada representante é um pedaço de um grupo. Eles agem 
por nós, pois a lógica da representação é exatamente essa: conceder a 
outro uma responsabilidade que não podemos (ou queremos) assu- 
mir. O voto nada mais é do que a procuração que passamos para um 
político responder por nós. 
Toda essa discussão acerca do voto e da corrupção, que pode ser 
traduzida na importância de entendermos nossos papéis na socieda- 
de, e na relevância da participação e educação política, nos remete à 
discussão de dois conceitos fundamentais: cidadania e democracia. 
O objetivo aqui é traçar um caminho capaz de mostrar os significa- 
dos desses termos no mundo político. 
//CIDADANIA 
Dificilmente encontraremos uma pessoa que nunca tenha ouvi- 
do a palavra cidadania. Theodor Marshall a define como um proces- 
so dividido em etapas. Primeiramente cabe ao Estado a garantia de 
um conjunto de direitos fundamentais. De modo geral, esses direitos 
foram sendo conquistados na Europa ao longo dos séculos: os direi- 
tos civis datam do séc. XVIII, os direitos políticos do séc. XIX e os 
direitos sociais do séc. XX. Tais conjuntos de garantias podem ser 
definidos da seguinte maneira: 
— Direitos Civis: são os direitos individuais e coletivos. Repre- 
sentam a possibilidade de promovermos escolhas que serão respei- 
tadas e asseguradas. São os princípios gerais que regulam as rela- 
ções entre os cidadãos. Por exemplo: a opção por uma religião, por 
uma profissão, o direito de ir e vir, a liberdade de expressão, a li- 
berdade de associação, de imprensa, o direito de propriedade etc. 
— Direitos Políticos: são os direitos que temos de nos oferecer 
para representar outros cidadãos, ou indicar os nossos representan- 
tes na esfera política (votar e ser votado). Se a maior expressão desse 
direito é o voto, devemos ter em mente alguns detalhes. O pleno 
exercício dos direitos políticos pressupõe a possibilidade de parcela 
DEMOCRACIA E CIDADANIA: CONSCIÊNCIA E PARTICIPAÇÃO | 15
da sociedade organizar-se livremente em oposição ao governo vigen- 
te. Isso significa dizer que temos o direito de votar ou ser votados, 
e ainda a possibilidade de apoiar o governo ou ser contrário a ele. 
— Direitos sociais: são os direitos que temos de compartilhar 
da herança pública. Os direitos que nos tornam iguais e nos permi- 
tem gozar de serviços que o Estado deve nos oferecer. Falamos, por 
exemplo: da educação, da saúde, do lazer, da cultura, da segurança, 
da aposentadoria, dos direitos trabalhistas, do emprego etc. Todo o 
cidadão tem um conjunto de direitos que lhe garante o bem-estar 
social. Em termos históricos, apenas durante o século XX o Estado 
começa a reconhecer que tem uma parcela maior de responsabilida- 
de sobre seus cidadãos. 
No Brasil, a Constituição de 1988 foi chamada de Cidadã. Justa- 
mente porque garante aos indivíduos, pela primeira vez de maneira 
integral, esses três conjuntos de direitos. Quem lê o documento, tem 
a impressão de que vivemos em um país desenvolvido e sem proble- 
mas sociais. A distância existente entre as garantias constitucionais 
e a realidade da nação revela o enorme esforço a ser cumprido por 
muitos dos governos que ainda irão administrar o Brasil. 
Seguindo com as idéias de Marshall, é importante destacarmos 
que a definição de cidadania não pode se limitar apenas ao cumpri- 
mento dos direitos do cidadão por parte do Estado. Devemos ter em 
mente que cidadania é uma troca, e assim como possuímos direitos 
também temos um conjunto expressivo de deveres. 
Viver em sociedade não é tão simples quanto parece. O respeito 
às regras é fundamental para que nossos direitos sejam preservados, 
e para que possamos respeitar o espaço alheio. O grande problema é 
que convivemos com alguns fantasmas que nos afastam desse con- 
vívio saudável. Três deles podem ser destacados: a impunidade, a 
cultura e a educação. No primeiro caso, as pessoas transcendem a lei 
porque sabem que dificilmente serão flagradas e punidas. Estudos 
realizados no Rio de Janeiro em 2003 revelam um absurdo: mais de 
90% dos homicídios não foram solucionados na cidade. A situação 
de descaso com as regras é tão grande, que no Brasil costuma-se 
dizer que algumas leis “não pegam”, ou seja, não funcionam. Além 
n 
-h 
16 | Humeerto Dantas , 
» OAbtent AH
disso, a população convive com o caráter parcial da justiça. Um idên- 
tico crime, cometido por diferentes sujeitos, resultará em punições 
distintas, principalmente se esses indivíduos gozarem de posições 
sociais opostas. Isso acontece porque acreditamos que: “para tudo 
existe um jeito”. 
Esse “jeito” é o responsável pelo segundo grande fantasma que 
assombra a possibilidade de um convívio mais saudável na socieda- 
de brasileira, e está presente em nossa cultura popular. Cultiva-se, 
em alguns casos com muito orgulho, a iafªiclgge de nosso povo 
Wmmjbmaralela à regra oficial. O conhecido 
“jeitinho brasileiro” parece motivar o compomto de enormes 
parcelas da populagio, e é responsavel por distorgdes profundas em 
nosso convivio social. As pessoas que atropelam as regras sentem-se 
bem porque estão enganando o Estado e seus semelhantes, mas se 
esquecem que, quando “lucram” de maneira ilegal, estão atropelan- 
do o interesse comum. 
O terceiro problema remete a definição de cidadania de Mar- 
shall. Se somos conhecidos como o povo do “jeitinho” e da vanta- 
gem, como fazer para ajustar essa situação? A impunidade e a sen- 
sação da vantagem impulsionam o sujeito a descumprir as regras 
estabelecidas para um convivio social adequado. Se por um lado 
falta uma fiscalização adequada, e o rigor em algumas punicdes, o 
maior investimento para combater esses problemas está na área da 
educagio. Um cidaddo educado adequadamente é conhecedor de 
seus direitos e deveres. É capaz de perceber sua responsabilidade na 
construção conjunta das leis, e justamente porque vive sob o que 
concorda, passa a respeitar a sociedade e seus principios. 
Se o papel da educação é central, para Marshall, não cabe ao 
individuo escolher se vai ou não a escola, a educagio é um direito 
e um dever de todos os cidaddos. O individuo educado, dentro de 
padrões e disciplinas especificas de cidadania, é aquele que conhece 
seus limites e respeita as diferencas e o espago de todos aqueles que 
dividem consigo a realidade. Essa educagio para a cidadania não é 
uma questio de dogmatizar e aprisionar o individuo num mundo 
de regras rigidas, mas de criar em cada um a consciéncia acerca da 
DEMOCRACHA E CIDADANIA: CONSCENCIA E PARTICIPAÇÃO | 17
tolerância e do convívio com as diferenças. Nesse contexto, as regras 
não devem ser infringidas, mas podem ser modificadas pelo interes- 
se organizado de indivíduos conscientes. 
No Brasil vem crescendo essa consciência, e as pessoas vêm lu- 
tando por suas demandas. A caminhada rumo 2 inserção de todos 
no pleno conhecimento de seu espaço na sociedade, entretanto, ain- 
da está no começo. A conscientização é a principal característica do 
conceito de cidadania. Essa é a etapa final. O crescimento do Tercei- 
ro Setor e as demandas defendidas peloscidadãos organizados é um 
símbolo desse desenvolvimento. 
DEMOCRACIA 
Partiremos agora para uma definição do conceito de democra- 
cia. O compromisso é com a definição sob o ponto de vista político. 
Popularmente entendemos a democracia como o desejo da 
maioria. Quando tomamos uma decisão em conjunto, oferecendo 
aos presentes a oportunidade de selecionarem alternativas, falamos 
em escolha democrática. A opção mais votada vence, e o grupo 
segue aquele caminho. Essa é a visão mais simples que podemos 
ter do termo: o desejo da maioria, expresso em um momento de 
opção. Se olharmos para a sociedade em que vivemos, será possível 
notar que o voto simboliza esse tipo de escolha na esfera pública. 
As eleições representam um processo onde todos os cidadãos esco- 
lhem representantes, idéias, programas ou projetos. A democracia 
vista de forma simples é a possibilidade que temos de optar e seguir 
a orientagio daquilo que a maioria escolheu - respeitando a exis- 
téncia e a possibilidade de a posigao da minoria um dia tornar-se 
realidade. 
Essa é uma das principais caracteristicas da democracia: garantir 
atodos a oportunidade de expor suas idéias e convencer a sociedade, 
por meios previstos em lei, de que seu posicionamento é relevante e 
pode ser apoiado. A simples possibilidade de mudanga, promovida 
pelo desejo da maioria, é um dos motivos que nosleva a afirmar que 
a democracia é preferivel em relação a qualquer outro tipo de regi- 
18 | Humeerto Dantas
me. A liberdade de expressão e a possibilidade de formar oposição, 
sendo igualmente respeitadas, despertam em nós, cidadãos, a crença 
na garantia de expressarmos a nossa opiniáo. 
Esse valor não deve ser cultivado apenas na vida pública, mas 
também em nossos lares, empregos e relações cotidianas. O debate, 
a discussão e o confronto sadio de idéias são indispensáveis para o 
desenvolvimento dos cidadãos. A democracia se faz no dia-a-dia, e 
deve ser compreendida como um valor cultural. 
Com relação à sua história, costumamos aprender que a demo- 
cracia nasceu na Grécia Antiga, há cerca de vinte e cinco séculos. 
Mas devemos destacar que essa primeira experiência é bastante dife- 
rente do que enxergamos hoje. À Grécia Clássica não era uma nação. 
Era um conglomerado de cidades-Estado. Uma dessas cidades, ou 
pólis (usando o termo grego), era Atenas. E essa talvez tenha sido 
a mais importante e destacada cidade da Grécia Antiga. Foi ali que 
surgiu a experiência de democracia sobre a qual nos apoiamos. Lá, 
os cidadãos discutiam os assuntos públicos em uma praça (ágora), e 
a maioria presente definia os rumos que seriam tomados. O grande 
detalhe é que nem todos os atenienses eram considerados cidadãos, 
ou seja, nem todos tinham o direito de participar dessas reuniões 
públicas. 
Os cidadãos atenienses eram homens, ou seja, as mulheres não 
tinham o direito de participar. Além disso, os jovens não tinham voz 
ativa, assim como os escravos - que compunham grande parcela 
da população. Dessa forma, poucos eram os que podiam discutir o 
futuro da vida pública. Ainda assim, a experiência é louvável, pois 
esse é o primeiro sistema conhecido que fomentava o debate entre 
diversas partes. O termo democracia, que significa governo do povo 
- surge em oposição à autocracia (governo de um só homem) e a 
aristocracia (governo de poucos). 
As decisões tomadas em praça pública não pressupunham a 
existência de representantes. Para os gregos não era possível ima- 
ginar a idéia de que o povo podia ser representado, uma vez que os 
assuntos discutidos eram de interesse coletivo. Isso significa afirmar 
que o cidadão ateniense não escolhia um deputado, um senador ou 
DEMOCRACIA E CIDADANIA: CONSCIÊNCIA E PARTICIPAGAO | 19
um vereador. As decisões eram tomadas por cada um dos cidadãos 
de corpo presente. Esse modelo ficou conhecido como Democracia 
Direta, que representa uma forma de administrar sem intermediá- 
rios. 
O exemplo grego perdeu-se na história, quando as cidades-Es- 
tado foram invadidas. Um outro exemplo deu-se em Roma, alguns 
poucos séculos antes de Cristo. O sistema, no entanto, era um tanto 
mais complexo que o grego, e logo foi perdendo sua característica 
popular com a consolidação do Império Romano. 
A história atravessa mais de quinze séculos antes de conhecer 
uma nova experiência democrática relevante, deixando claro que 
durante muito tempo o mundo viveu sob a sombra do autoritaris- 
mo, baseado na força e nos acordos entre sujeitos que gozavam de —— 
grande poder. Wl&%w« 2 
Mesmo assim, os principios da democracia direta continuara'tfi?x/ 
sendo defendidos por filósofos politicos. Para Jean-Jacques Rousseau 
(1712-1788), por exemplo, a idéia de representagdo era absurda. Se o ) 
poder era do povo, não havia explicação para a existência de inter- 
mediários. O grande problema é que a despeito das considerações | 
filosóficas, a possibilidade de implementação de um sistema direto de, 
democracia tornou-se complexa por motivos óbvios: enorme contin- 
gente de cidadãos que conquistaram o direito de participar da políti- 
ca, significativa extensão dos Estados-Nação e falta de tempo imposta 
pela vida moderna. Além disso, a tradição absolutista não permitiria 
uma divisão tão grande das decisões instantaneamente. A democra- 
cia ressurge timidamente, e consolida-se ao longo dos séculos. 
No século XVII, funcionando com o intuito de limitar o poder 
absoluto, a Europa experimentou uma série de experiéncias de sepa- 
ração dos poderes, sendo o caso inglés o mais marcante. Ocupando 
lugar nos parlamentos estavam cidadaos eleitos para representar de- 
terminadas parcelas da sociedade - na maioria dos paises, os seg- 
mentos que tinham dinheiro ou propriedades. dessa escolha que 
nasce a idéia de Democracia Representativa. É interessante destacar 
que esse conceito nasceu ligado 4 posse. O cidadão que tinha algo a 
perder, sob o ponto de vista econémico, escolhia representantes, o 
20 | HumeertO DanTtas
restante era desprezado. Durante a maior parte do Império (1822 a 
1889), por exemplo, o voto no Brasil era censitário, ou seja, baseado 
em critérios de renda. o 
" Ao contrário de Rousseau, alguns pensadores chegam a consi- 
derar que a Democracia Representativa apresenta vantagens sobre o 
sistema direto por um simples motivo: existem cidadãos preparados 
para representar e aqueles que não teriam a menor capacidade para 
fazê-lo. Essa idéia está presente entre os norte-americanos do século 
XVIII. Dessa forma, pensava-se que os cidadãos estavam divididos 
em duas categorias distintas: os aptos a votar e os preparados para 
representar. 
Iniciamos o século XX com a percepgio de que não bastava per- 
mitir que a representago fosse exclusividade das classes mais pro- 
bas. Passou a vigorar o sentimento de que todos os cidadãos podiam 
contribuir para a construção da sociedade. Nasce a idéia do sufrágio 
universal (participagdo de todos). A mulher passa a fazer parte da 
politica ao longo do século XX em diferentes paises, assim como os 
cidadãos das classes mais pobres. Atravessamos grande parte desse 
século sob a crenca de que a forma representativa, desde que amplia- 
da a participagio de todos os cidadãos, era “ideal”. 
O cientista politico Robert Dahl apontou que existiam requisitos 
bésicos adicionais para a efetivagdo desse novo conceito de demo- 
cracia representativa. O que diferenciava a nova forma de compreen- 
dermos o termo era justamente essa caracteristica extensiva do voto. 
O sufragio universal é o diferencial das democracias do século XX, 
mas o autor vai além em suas consideragées, sendo necessario: 
— liberdade de formar e aderir a organizagdes; 
- liberdade de expressao; 
- direito de voto; 
- elegibilidade para cargos públicos; 
— direito de lideres politicos disputarem apoio e votos; 
- fontes alternativas de informação (liberdade de imprensa); 
- — eleiçõeslivres e idoneas; 
- — instituições imparciais quegarantam a realização periódica 
de eleições. 
DEMOCRACIA E CIDADANIA: CONSCIÊNCIA E PARTICIPAÇÃO | 21
Esses requisitos demonstram, principalmente, que uma demo- 
cracia não é apenas o direito que todos têm de votar, mas um con- 
junto de garantias que constituem um cenário propício à escolha de 
representantes pela maior parte possível de cidadãos. 
Após quase cem anos aperfeiçoando esse modelo de democra- 
cia, chegamos ao fim do século XX acreditando na existência de uma 
crise. Mas o que nos leva a essa percepção? Por uma série de motivos 
os representantes já não conseguem identificar e atender as deman- 
das da sociedade, que se tornou mais complexa e exigente. Os indi- 
víduos já não enxergam nos eleitos uma fonte de mudança ou defesa 
de opiniões e desejos. Pesquisas revelam que, no Brasil, por exemplo, 
os principais órgãos de representação politica contam com baixo in- 
dice de credibilidade. Em 2003, a Ordem dos Advogados do Brasil 
mostrou que apenas um terço dos brasileiros confiava no Congres- 
so Nacional. Essa desconfiança em relação ao Poder Legislativo é 
sinal claro do distanciamento entre representantes e representados. 
Comprovando esse sentimento, em 2004 o Instituto Valores divul- 
gou pesquisa com jovens de São Paulo que se mostravam descrentes 
e desmotivados com seus representantes políticos. 
Para diminuir essa falta de identificação, o conceito de demo- 
cracia sofre então uma nova guinada em sua trajetória dinâmica. 
O sistema representativo já não responde aos anseios da sociedade, 
enquanto a democracia direta parece inviável. Como resultado, co- 
meça a se fortalecer o conceito de Democracia Participativa, com 
características semidiretas. 
Nesse caso, é importante destacar que os eleitores não deixam 
de votar, e os poderes que representam a sociedade continuam exis- 
tindo. O grande diferencial é que, por meio de uma série de meca- 
nismos, os cidadãos se aproximam mais das decisões. Não apenas 
na condição de eleitor, mas também com possibilidade de opinar e 
participar de algumas escolhas importantes. 
A democracia participativa passa a configurar-se como um 
continuum entre a forma direta e a representativa. Cabe aos Esta- 
dos Modernos criarem mecanismos que viabilizem o estreitamento 
dessas relações entre o poder e a sociedade. A ONU já considera 
22 | Humeerto Dantas
o incentivo à participação como pressuposto básico dos regimes 
democráticos modernos. Para a Organização das Nações Unidas, a 
realização de eleições livres e idôneas, a liberdade de imprensa e o 
acesso ao voto são pré-requisitos elementares das democracias, e o 
grande diferencial é a possibilidade de aproximação. 
De forma simplificada, tais mecanismos de participação podem 
ser divididos em dois grupos: 1) os tradicionais e legais e; 2) os al- 
ternativos. O primeiro grupo está garantido, em parte ou integral- 
mente, em quase todos os países democráticos do mundo. São os 
referendos, os plebiscitos e as leis de iniciativa popular. No Brasil, 
essas ferramentas estão garantidas na Constituição, e logo após a sua 
promulgação em 1988, acreditava-se que seriam amplamente utili- 
zadas. Além desses, somam-se os Conselhos Gestores de Políticas 
Wxigênciª legal em áreas como a saúde, a eduí:ação, a me- 
renda escolar etc. 
— Plebiscito: antes que uma decisão seja tomada, o eleitorado 
é consultado a respeito de seu posicionamento. A decisão do povo 
determina o rumo a ser trilhado. No Brasil, tivemos um único ple- 
biscito após 1988. Em 1993 fomos às urnas para escolher entre a Re- \« Hj 
pública e a Monarquia, e entre o Presidencialismo e o Parlamentaris-S Q 
mo. Optamos por nos manter como uma República Presidencialista. 
É importante destacar que um plebiscito é um mecanismo oficial. 
Quando utilizado, as partes envolvidas desenvolvem campanhas, e 
mostram à sociedade, formalmente, as alternativas existentes. 
— Referendo: é entendido como a ferramenta de consulta à po- 
pulação que ocorre imediatamente após uma tomada de decisão ge- 
radora de polêmica ou causadora de grande impacto. Ao invés do 
plebiscito, que “pergunta” antes de tomar a decisão, no referendo a 
mudança ocorre, e a sociedade é consultada imediatamente após. O 
posicionamento da maioria dos eleitores é sempre acatado. Após a 
promulgação do estatuto do desarmamento em 2003, o povo foi con- 
vocado em 2005 para nosso único referendo nacional após 1988. A 
pergunta, bastante confusa, desejava saber se éramos favoráveis ou 
contrários ao comércio legal de armas de fogo e munição no país. 
Venceu o desejo de manter o comércio. 
DEMOCRACIA E CIDADANIA: CONSCIÊNCIA E PARTICIPAÇÃO | 23
— Lei de Iniciativa Popular: representa a criação de um instru- 
mento que permite à sociedade encaminhar projetos de lei para a 
Câmara dos Deputados. Para tanto, são exigidas mais de um mi- 
lhão de assinaturas colhidas em diferentes estados do país. Além do 
trabalho de coleta, o abaixo-assinado precisa ser conferido. As exi- 
gências são tão complexas, que apenas dois projetos foram apresen- 
tados. Após algumas manobras para que fosse aceito, foi aprovada a 
Lei 9.840/99 que combate a corrupção eleitoral. À outra proposta, 
sobre habitação, engatinha faz anos no Congresso. 
— Conselhos Gestores de Políticas Públicas: surgiram para dis- 
cutir temas pontuais, dando aos governos as diretrizes e idéias a 
respeito de serviços específicos. Os conselhos (de saúde, educação, 
de assistência social, infância e juventude etc.), instalados princi- 
palmente em âmbito municipal, são órgãos deliberativos, controla- 
dores de políticas públicas e paritários - compostos por represen- 
tantes do Estado e da sociedade em geral. Cabe aos conselhos, por 
exemplo, aprovar ou não os programas de atendimento dos órgãos 
governamentais. Esses canais institucionais de participação propor- 
cionam maior participação social em assuntos de interesse geral, e 
funcionam no formato de reuniões. 
A despeito dessas garantias institucionais, o país tornou-se 
símbolo de medidas inovadoras. Os mecanismos alternativos 
são ferramentas utilizadas pelos governantes que permitem uma 
maior aproximação entre representantes e representados. De 
acordo com a ONU, vários países se destacam na criação de fer- 
ramentas dessa natureza. O Brasil desenvolveu mecanismos em 
diversas localidades. Tais dispositivos podem ser entendidos da 
seguinte maneira: 
— Orçamento Participativo: a sociedade é chamada a participar 
de reuniões em que é discutido o destino do dinheiro público, de 
acordo com o orçamento oficial, destinado aos investimentos. Em 
grandes cidades e estados, as reuniões ocorrem em inúmeros lugares 
e o mecanismo decisório depende da metodologia adotada em cada 
local. Normalmente são escolhidos alguns cidadãos que dirigem as 
reuniões, acompanhadas de perto por representantes do governo. 
24 | Humeerto Dantas
Até 2000, existiam cerca de 103 planos de Orçamento Participativo 
nos municípios. 
— Gestão Participativa: a sociedade passou a participar de reu- 
niões que visam democratizar o gerenciamento de alguns serviços. 
Os encontros têm o intuito de debater, com os cidadãos interessa- 
dos, idéias, alternativas administrativas e possibilidades de melho- 
ria e aperfeiçoamento, conferindo maior transparência aos negócios 
públicos. A experiência é muito semelhante ao conceito utilizado 
por empresas modernas, que dão liberdade de expressão aos seus 
funcionários. As áreas de atuação e, conseqiientemente, de abertura 
à sociedade da administração pública podem variar - saúde, edu- 
cação, cultura, segurança, transporte etc. - assim como a magnitu- 
de, o modelo dos programas, a interferência no orçamento público 
etc. O aspecto mais importante desse instrumento é o entendimen- 
to de que a administração pública e suas entidades pertencem aos 
cidadãos. 
- Comissão de Legislação Participativa: iniciativa inaugurada 
pela Câmara dos Deputadosem 2001 que, rapidamente, espalhou-se 
por dezenas de estados e municípios. A idéia consiste em viabilizar 
a participação da sociedade nos trabalhos legislativos, tornando-se 
uma alternativa bastante viável à Lei de Iniciativa Popular. O funcio- 
namento desse mecanismo é bastante simples. Qualquer organiza- 
ção da sociedade civil que possua um estatuto - ONG, OSCIP, Fun- 
dação, Sindicato, Associação etc. — inscreve-se na Comissão e pode 
enviar propostas legislativas à Câmara dos Deputados. 
— Governo Eletrônico: representa o compromisso de as autori- 
dades colocarem à disposição dos cidadãos o maior conteúdo possí- 
vel de informações sobre a administração pública em canais como a 
Internet. A transparência e a oportunidade de acompanhamento são 
fundamentais na democracia. 
A despeito da importancia dessa aproximação e das novas for- 
mas de participação que transcendem o voto, e dão à democracia 
características participativas que superam a representação formal, 
a grande questão é saber se todos esses mecanismos funcionam. 
Enquanto alguns estudiosos defendem ardorosamente tais idéias, 
DEMOCRACIA E CIDADANIA: CONSCIÊNCIA E PARTICIPAÇÃO | 25
outros as questionam, afirmando que essas ferramentas tornam-se 
espaços loteados por lideranças políticas já consolidadas. 
O que podemos notar é que todas essas experiências apontam 
para a necessária implementação de um cuidadoso programa de 
educação política. Antes de participar, o cidadão precisa entender a 
lógica desses mecanismos e valorizar a sua existência. Além disso, é 
importante destacar que a democracia não é apenas um sinônimo de 
escolha, mas também de participação ampla. Ao cidadão moderno 
já não basta votar, ele deve estar atento às possibilidades de adminis- 
trar aquilo que é seu. A democracia, dinâmica e inovadora, trans- 
| cende o “simples” conceito de votar. 
Humerrto DanTas

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