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&DWiORJR Sobre o autor Peter de Rosa, licenciado pela Universidade Gregoriana de Roma, foi Professor de Metafísica e Ética no Westinster Seminary e Deão de Teologia no Corpus Christi College de Londres. As suas obras incluem: Rebels: The Irish Rising of 1916 e o romance Pope Patrick. Deixou o sacerdócio em 1970 e vive actualmente na Irlanda com a mulher e dois filhos. Peter de Rosa Os Vigários de Cristo O Lado Negro do Papado Luis A. P. Varela Pinto Luis A. P. Varela Pinto Traduzido do original Luis A. P. Varela Pinto por Luis A. P. Varela Pinto Luís Varela Pinto Luis A. P. Varela Pinto Luis A. P. Varela Pinto Espinho Luis A. P. Varela Pinto 2000/2001 Luis A. P. Varela Pinto Título do original: Vicars of Christ, The Dark Side of the Papacy Edição que serviu de base à tradução: Poolbeg Press Ltd, 123, Baldoyle Industrial Estate, Dublin 13, Ireland 2000 A Todas as Vítimas do Holocausto, com Humildade e Penitência Índice Um Novo Prefácio para um Novo Milénio 9 Prólogo: O Grande Encobrimento 13 Primeira Parte: O Poder 17 1 Do Calvário ao Vaticano 19 2 A Busca do Poder Absoluto 35 3 A Pornocracia Papal 51 4 O Apogeu do Papado 59 5 O Poder em declínio 75 6 A Descida do Papado aos Infernos 87 7 A Inevitável Reforma 107 8 O Crepúsculo do Poder Absoluto 117 Segunda Parte: A Verdade 131 9 O Esmagamento da Dissidência 133 10 A Imposição da Verdade 145 11 A Perseguição às Bruxas e aos Judeus 171 12 As Heresias Papais 191 13 O Primeiro Papa Infalível 219 14 A Grande Purga 235 Terceira Parte: O Amor 247 15 O Papa que Amava o Mundo 249 16 O Novo Caso Galileu 261 17 Uma Visão Pouco Amorosa do Sexo 289 18 Os Papas, Pioneiros do Divórcio 303 19 O Holocausto Silencioso 329 20 Celibatários Pouco Castos 351 Epílogo 391 Cronologia 395 Os Papas 403 Os Concílios 409 Nota sobre as Fontes 414 Bibliografia Selecta 415 9 Um Novo Prefácio para um Novo Milénio O sucesso internacional de Os Vigários de Cristo: O Lado Negro do Papado foi para mim uma surpresa. Muitos católicos escreveram-me a agradecer. Com uma educação baseada apenas no lado eternamente luminoso do papado, ficaram com a ideia de que, à parte uma ocasional maçã podre, como o Papa Bórgia, Alexandre VI, os papas eram escolhidos pela sua santidade. Este livro mostra que nos primeiros dois mil anos o papado foi campo de muito mais escândalos clericais do que a Irlanda ou a América hoje. Muitos papas, como Benedito IX, eleito em 1032 quando tinha onze anos, foram desumanos; outros foram assassinos; Júlio II, que lutou pelos Estados Papais envergando a sua armadura, estava convencido de que Jesus tinha dado ao Pescador e seus herdeiros uma boa fatia da Itália Central a título perpétuo. Foi este o papa que proibiu toda a gente de beijar-lhe os pés na Sexta-Feira Santa de 1508. A sífilis estava a matá-lo. O papa é católico? O leitor de Os Vigários de Cristo pode ficar surpreendido ao descobrir que alguns não o eram. Segundo o Papa Adriano VI (1522-3), muitos pontífices romanos eram hereges. Marcelino (296-304) foi apóstata. Vigílio (537-55) e Honório (625-38) foram condenados como hereges por Concílios Gerais da Igreja. Como disse Adriano VI, «Não há dúvida de que o Papa pode errar em matéria de fé quando ensina a heresia». Muitos papas criaram culturas de morte e cometeram crimes contra a humanidade. As Cruzadas, que levaram ao massacre de centenas de milhar de vítimas, não foram ideia de católicos renegados, mas de papas renegados. Impiedosamente, eles puseram as suas jihads ou Guerras Santas sob a protecção de Jesus, que em Getsémani obrigou Pedro a embainhar a espada. Também foram os papas que inventaram a Inquisição, o gueto e as roupas que identificavam os Judeus, a destruição pelo fogo de cidades heréticas e a fogueira para velhas mulheres apelidadas de bruxas. Foram milhões os que morreram às ordens dos papas. Alguns papas, que podiam ter dado lições de brutalidade a Cromwell, foram canonizados. Muitos papas do Renascimento, ao serviço de um Cristo da Wall Street, não conseguiram passar sem meter a mão na gaveta. Foram simoníacos em grande escala. Para conseguirem a eleição subornaram cardeais oferecendo-lhes abadias e montes de ouro e prata. Uma vez em exercício, usavam os lucros das vendas de bispados e indulgências para enriquecer as amantes, os filhos, os netos, os irmãos e as irmãs. Apropriaram-se do equivalente a milhões de dólares. O Bispo Casey, de Galway, ao entregar 125.000 dólares dos fundos da diocese à sua amante americana Annie Murphy quase não deixa marcas numa escala de Richter das más acções do clero. O que é que por fim pôs o papado num caminho mais próximo de Cristo? A Reforma. Foram homens devotados, como o destroçado Lutero, que levou cebolas para Roma e de lá voltou com alhos, foi o protesto de cristãos sérios, a maioria protestantes, que finalmente obrigaram Roma a arrepiar caminho. Nessa altura o mal para a unidade dos cristãos já estava feito. E continuou até hoje, como está à vista de toda a gente. Isto não se encontra nos sermões, nem nas encíclicas papais, nem no Catecismo Católico. Esta a razão por que muitos católicos, incluindo prelados do Vaticano, tendem 10 a presumir que o papa tem sempre razão e portanto tem de ser cegamente obedecido. De facto, é muito perigoso para os católicos escutar os papas que não escutam a Igreja. Este livro pergunta: não poderão os papas modernos, como Paulo VI e João Paulo II, errar da mesma maneira que os seus antecessores que obrigaram católicos leais a aceitar a Inquisição, a venda de indulgências, os guetos para os Judeus, a fogueira para as bruxas? E se não podem, por que é que não podem? Muitos apreciadores deste livro concluíram: «Nós temos sorte por o papado já se ter reformado». Discordo. O poder absoluto investido nos papas desde 1870 levou Roma a doutrinar com fundamento no papado. Esse mesmo poder absoluto fez com que, ao invés de acabarem, os crimes papais se multiplicassem. Consideremos a actual condenação da contracepção, contrária à crença quase universal da Igreja. Isto constitui uma moderna heresia papal. A comunidade mundial está a crescer um bilião em cada doze anos. A população cresce mais num ano do que cresceu nos quinze séculos que se seguiram à morte de Cristo. O diálogo morreu. João Paulo proibiu mesmo os bispos de discutirem a contracepção. Em África e na América do Sul esta cruzada papal levou a mais campos de concentração de miséria, a mais abortos provocados e, devido à pandemia da SIDA, a mais mortes do que em qualquer outra época da história do Cristianismo. As mulheres católicas em particular andam perturbadas. Os papas insultam-nas com cortesia requintada assegurando-lhes que a sua contribuição é indispensável em toda a parte, menos na Igreja. São filhas de um Deus menor. O maior escândalo da Igreja Católica desde a Reforma é o abuso sexual de crianças por parte do clero. Estranhamente, não houve da parte de João Paulo II, um homem nobre e bom, uma palavra de condenação. Entretanto, os seus ataques à contracepção saltavam como o sal do saleiro. O verdadeiro mistério da história papal não é o facto de os homens maus cometerem más acções. É sim o de os homens bons cometerem más acções e de os melhores homens cometerem as piores de todas acções. Edward Gibbon disse: «Os vícios do clero são muito menos perigosos do que as suas virtudes». A frase de Lord Acton «O poder absoluto corrompe absolutamente» serviu de guia às minhas investigações para este livro. Pouca gente sabe como essa frase termina: «Os grandes homens são quase sempre perversos. Não há maior heresia do que aquela em que o gabinete santifica o seu detentor». O amor do poder sempre há-de destruir o poder do amor. A Igreja Católica entra no terceiromilénio com uma moral do século XIX e uma estrutura medieval baseada no absolutismo papal e um clero masculino celibatário. Não admira que noventa por cento dos católicos modernos discordem do papa em questões- chave como a contracepção, o divórcio, o celibato do clero, as mulheres no sacerdócio e o aborto. A minha esperança é que este livro encoraje os católicos, clero e leigos, a exigir uma voz num terceiro Concílio Vaticano. Sem isso, não há a mínima possibilidade de a Igreja se reformar e enfrentar um futuro desconhecido mas excitante. Os Vigários de Cristo 13 Prólogo O Grande Encobrimento Facilmente se pode considerar o maior encobrimento da história. Dura há séculos, tendo sacrificado, primeiro, milhares e depois milhões de vidas. Embora perfeitamente visível, ninguém parece ter reparado nele. Inconscientemente, muitos artistas, grandes e menos grandes, contribuíram para ele. E a camuflagem tem apenas o tamanho de um pequeno pedaço de pano — aquele pano que cobre o ventre de Jesus Cristo crucificado. No princípio, a cruz nunca era representada na arte ou na escultura. Enquanto Jesus foi adorado pelo seu despojamento e a cruz era o centro da fé, ninguém se atreveu a representá-lo na sua extrema humilhação. Diz-se que os exércitos de Constantino ostentavam a cruz nas suas insígnias. Isto não era bem assim. O escudo e o estandarte tinham as duas primeiras letras do nome grego de Cristo, , fundidas assim: .. Só quando a memória dos milhares que morreram crucificados por todo o mundo romano se desvaneceu é que os cristãos se sentiram livres para representar a cruz como símbolo da paixão de Cristo. Era uma cruz vazia. Quem é que se atrevia a recrucificar Cristo? Mais tarde, este simples símbolo da sua vitória sobre as forças do mal começou a parecer demasiado austero. Os artista do século V começaram a pintar uma cruz com um cordeiro junto a ela, porque Jesus era «o Cordeiro de Deus» sacrificado pelos pecados do mundo. Depois, com crescente ousadia, começaram a pintar um Jesus junto da cruz. Só nos fins do século VI, e apenas com duas excepções, é que ele foi representado mesmo na cruz. E ainda assim, o artista não se atreveu a reproduzir a dor e a humilhação. Jesus estava envolto numa comprida túnica e só as mãos e os pés estavam nus para mostrar de maneira estilizada os pregos que o prendiam à madeira. Era uma imagem de triunfo, ele não estava a sofrer e a morrer, mas a reinar, de olhos abertos e por vezes coroado, no trono da cruz. A primeira representação grega de Jesus em sofrimento na cruz, do século X, foi condenada por Roma como blasfema. Mas a Igreja de Roma depressa se rendeu ao seu fascínio. Com Jesus cada vez mais longínquo e com a teologia medieval cada vez mais seca e mais escolástica, a devoção exigia um Cristo mais humano: um homem que se pudesse ver e quase tocar, um homem com as provações e sofrimentos por que eles próprios passavam em cada dia das suas vidas curtas e sofridas. Os artistas agora representavam livremente Cristo em agonia na cruz; feridas profundas e sangue, agonia em cada membro, abandono no olhar. Reduziram-lhe as vestes para inculcar no espírito dos fiéis a dimensão da humilhação do Senhor. E por aí se ficaram: uma tanga. Se o artista tivesse ido mais longe, quem teria tido a coragem de olhar Cristo tal como ele estava: nu como um escravo? O que deteve a mão do artista não foi o decoro mas a teologia. A culpa não foi dos artistas. Afinal, como é que eles podiam perceber que o sofrimento do Cristo recrucificado, sem a verdade última que só a nudez integral consegue revelar, levaria a uma catástrofe? Ao conceder a Jesus os farrapos finais da decência, aquela tanga retirou-lhe a condição de judeu. Cobriu-lhe literalmente a dignidade e tornou-o um não- judeu honorário. Porque o que aquilo escondia não era apenas o sexo mas aquela 14 cicatriz na sua carne, a circuncisão, que mostrava que ele era judeu. Era isso o que os cristãos receavam ver. Nas crucificações de Rafael e Rubens, e mesmo nas de Bosch e Grünwald, a tanga torna-se ornamental; ela cai decorosamente em pregas. Na crucificação Colmar de Grünwald, diz Husmans, Jesus está curvado em arco; o corpo torturado brilha palidamente, polvilhado de sangue, eriçado de espinhos como a casca da castanha da Índia. Foi isto, parece o artista dizer, o que o pecado fez a… quem? A Deus, é a resposta da teologia. Isto é a morte de Deus. Quanto mais intensa for a agonia, quanto menos a Sua glória transparecer, mais aterradora ela é. «Deus morreu no Calvário». Isto parece boa teologia. Poderia ter sido, não fora aquele pedaço de pano. Porque, parece o artista dizer, alguém é responsável por aquilo que fizeram a Deus. Mas quem? Uma leitura superficial do Evangelho Segundo S. Mateus dá a resposta: os Judeus. Eles gritaram a Pilatos: «Crucifica-o. Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos». A palavra de Deus parece culpar os judeus contemporâneos de Jesus e seus descendentes pela Morte de Deus. Os Judeus são, portanto, deicidas. Uma gota daquele Sangue salvaria um milhar de mundos; os judeus derramaram-no todo. Para eles, o Sangue não é a salvação, mas antes uma eterna maldição. Com a sua descrença, os judeus continuam a matar Deus. Tendo assassinado Cristo, sendo culpados do maior crime que se pode imaginar, eles eram certamente capazes de tudo. É esta a calúnia. É esta a grande heresia. Por via disto, as estórias de rituais de judeus a assassinarem crianças cristãs e a beberem o seu sangue enquadravam-se no padrão estabelecido pelo Crime da Morte de Deus. Essas falsidades ainda circulam por aí. Sem o encobrimento, sem aquele pedaço de pano, teria sido evidente para toda a gente que o que se passou no Calvário foi também o assassinato de um judeu. Deus era judeu. Não era tanto o facto de os Judeus matarem Deus, mas o de um judeu derramar o seu sangue pelo pecado do mundo. Teriam os cristãos ao longo dos séculos instituído pogroms contra os Judeus em nome da Cruz se nela Jesus ostentasse a marca da circuncisão? Teria um judeu autorizado o massacre de Judeus? Não seria natural que Jesus estivesse presente em todos os pogroms a dizer: «Por que me perseguis? Porque o que fazeis ao mais humilde dos meus irmãos, fazei-lo a mim»? Esse encobrimento, agora com quase vinte séculos, não foi perpetrado por uma seita dissidente, mas pela linha principal da Cristandade, pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Nenhuma outra doutrina foi ensinada mais universalmente, com menos reservas — mais infalivelmente, em termos católicos — do que a que reza que «Os Judeus são malditos por matarem Deus», uma acusação ainda não retirada oficialmente. Numa reviravolta bizarra, os Judeus, donde proveio o Salvador, foram os únicos culpados pela sua morte. Não foi Jesus que foi recrucificado, mas a raça donde ele proveio. No Terceiro e Quarto Concílios de Latrão (1179 e 1215), a Igreja codificou todas as leis anteriores contra os Judeus. Eles tinham de usar um distintivo da vergonha. Na Inglaterra era cor de açafrão, e com o alegado formato das tábuas de Moisés. Na França e na Alemanha era amarelo e redondo. Na Itália o distintivo era um chapéu vermelho, até que um prelado romano míope tomou um judeu por um cardeal e a cor foi mudada para o amarelo. Aos Judeus era proibido todo o contacto com cristãos, a administração estava-lhes vedada e as suas terras eram-lhes confiscadas, não podiam ser proprietários de lojas e eram arrebanhados para guetos que à noite eram fechados. Nenhum outro sistema de apartheid foi imposto com tanto rigor. Por se recusarem a negar a sua fé ancestral e a converterem-se ao Cristianismo, os Judeus foram enxotados de terra para terra. Um papa deu-lhes um mês para abandonarem as suas 15 casas na Itália, deixando-lhes apenas dois locais de refúgio. Durante as Cruzadas, eles foram chacinados aos milhares por devoção a Cristo. Um judeu que pusesseo nariz de fora na Sexta-feira Santa estava virtualmente a cometer um suicídio, isto apesar de o Homem na Cruz ter um nariz judeu. Assim, ao longo dos séculos foram milhões os que sofreram e morreram. Uma arte deficiente e uma teologia desastrosa prepararam o caminho para Hitler e a sua «solução final». Para começar, na Alemanha Nazi pintavam estrelas nas casas e lojas de judeus; era o sinal de que podiam ser destruídas e pilhadas. As cidades gabavam-se, tal como tinham feito nos tempos medievais, de estarem Judenrein, livres da contaminação judia. Muito tipicamente, nos arredores da aldeia de Oberstdorf havia umas alminhas à borda da estrada com um crucifixo. Sobre a cabeça de Jesus estava a inscrição INLI («Jesus da Nazaré, Rei dos Judeus»). Em primeiro plano lia-se um aviso: «Juden sind hier nicht erschwüncht» — «Os judeus não são benvindos aqui.» Em 1936, o Bispo Berning de Osnabrüch esteve a falar com o Führer durante mais de uma hora. Hitler assegurou a Sua Reverência que não havia qualquer diferença fundamental entre o Nacional Socialismo e a Igreja Católica. Não é verdade, argumentava ele, que a Igreja tinha considerado os Judeus como parasitas e os tinha fechado em guetos? «Eu só estou a fazer» gabava-se ele «o que a Igreja fez durante mil e quinhentos anos, só que com mais eficácia». Sendo ele próprio católico, disse ele a Berning, «admirava e queria promover a Cristandade». Parece que nunca lhe ocorreu a ele, Hitler, que Jesus, a quem ele se referiu em Mein Kampf como «o Grande Fundador deste novo credo» e o flagelo dos Judeus, era ele próprio judeu; e se de facto nunca lhe ocorreu, por que não? A partir de Setembro de 1941, todos os judeus do Reich com mais de seis anos tinham que usar em público, em sinal de vergonha, a Estrela de David. Por que é que Hitler não obrigou a que na tanga de todos os Cristos crucificados em exposição no Reich fosse afixada essa mesma Estrela de David? Teria ele sido tão veemente a promover a sua qualidade de cristão se só uma vez que fosse tivesse visto Cristo crucificado exactamente como ele era? Suponhamos que Jesus aparecia nu em todas as cruzes da Alemanha? Teriam os bispos alemães e Pio XII mantido o silêncio durante tanto tempo se tivessem o seu Senhor crucificado sem a tanga? Apesar da crueldade cristã, que em certa medida preparou o Holocausto, alguns católicos continuam a dizer que a sua Igreja nunca pecou. Quinze anos depois de os portões de Auschwitz, Bergen-Belsen, Dachau, Ravensbruch e Treblinka terem sido misericordiosamente abertos, um papa, João XXIII, como que para confundir os críticos que dizem que o papado nunca muda, compôs esta notável oração: «A marca de Caim está-nos estampada na testa. Ao longo dos séculos, o nosso irmão Abel tem estado banhado em sangue que nós derramámos e tem chorado as lágrimas que nós provocámos ao esquecer o Vosso amor. Perdoai-nos, Senhor, pela maldição que nós erradamente atribuímos ao seu nome de Judeus. Perdoai-nos por Vos crucificarmos pela segunda vez na sua carne. Porque nós não sabíamos o que fazíamos.» Foi uma expiação por mais de uma centena de documentos publicados pela Igreja entre os séculos sexto e vinte. Não há um único decreto conciliar, encíclica papal, Bula ou directiva pastoral que sugira que o mandamento de Jesus «Ama o próximo como a ti mesmo» se aplicava aos Judeus. Contra toda esta tradição, João o Bom apontou a marca de Cain na sua própria testa. Ele aceitou a culpa da Igreja de derramar sangue judeu ao longo dos séculos, de acusá-los de serem amaldiçoados por Deus. E ainda mais comovidamente, afirma que a perseguição dos católicos aos judeus resultou na 16 segunda crucificação de Jesus na carne do seu próprio povo. O papa, representante de uma igreja sagrada e infalível, pediu perdão por estes terríveis pecados e erros. A nossa única desculpa, disse ele, foi a ignorância. Antes de se tornar Sumo Pontífice, João já tinha sido delegado apostólico para a Turquia e Grécia, quando Hitler subiu ao poder. Emitiu certificados de baptismo falsos para quatro mil judeus para eles poderem afirmar-se como cristãos e assim escaparem ao Holocausto. Quando a guerra acabou e ele foi nomeado núncio em Paris, foi a um cinema ver as primeiras imagens dos sobreviventes do campo de morte de Belsen. Saiu em lágrimas dizendo, «Isto é o Corpo Místico de Cristo». Foi talvez esta traumática experiência que fez com que ele fosse o primeiro papa a ver Jesus na cruz sem o pano à volta da cintura. O Papa João não teve qualquer dificuldade em reconhecer que a Igreja errou. Errou desastrosamente — e errou ao longo de muitos séculos. Foi um dos raros pontífices que viram que o único caminho da Igreja era encarar sem medo o próprio passado, por muito pouco cristão que ele pudesse ter sido. Quase um quarto de século depois da sua morte, ainda há alguns crentes que insistem que a Igreja deve ter sido sempre aquilo que é hoje — a despeito das provas irrefutáveis em contrário. Esses, que são milhões, acham que não é fácil aceitar que a Igreja Cristã, a Igreja de Roma, inspirada por papas, muitos deles canonizados, tenha sido tão cruel. Nem que pontífices após pontífices tenham quase invertido o texto das Escrituras que diz «Vale mais um homem morrer por amor do povo» que passou a ler-se, «Vale mais um povo sofrer por amor de um homem». Há, tragicamente, um inegável elo entre o fogo, as cruzes, a legislação papal, os pogroms — e as câmaras de gás e os fornos crematórios dos campos de morte nazis. Há outras matérias vitais nas áreas do poder, da verdade e do amor sobre as quais a Igreja errou desastrosamente século após século. O Concílio Vaticano II convocado pelo Papa João em 1962 começou a aceitar isto. De uma maneira revolucionária, João, o Sumo Pontífice, tornou-se o Advogado do Diabo da própria Igreja. No processo de canonização, o Advogado do Diabo tem um papel central, porque a santidade de um candidato a santo tem de ser sujeita ao mais intenso escrutínio. É como se a Igreja deixasse Satanás completamente livre para atirar sobre a memória do santo toda a sujidade que possa encontrar — para ver se alguma cola. Só então é que esse homem, essa mulher ou essa criança serão dignos de veneração pública. Claro que o Advogado do Diabo é, na realidade, o defensor da Igreja. Quando o Papa João disse que a Igreja precisa de constantes reformas, parecia sugerir que precisa de um Advogado do Diabo permanente. Como historiador que era, ele sabia que a Igreja tinha causado muitos danos. Como ser humano afectuoso e indulgente, sabia que qualquer outra instituição que durasse tanto tempo e tivesse tanto poder teria provavelmente feito muitíssimo mais mal e muitíssimo menos bem. Finalmente, ele deixou atrás de si a clara impressão de que o mal feito pela sua Igreja não deve ser escamoteado, nem a história falsificada. Primeira Parte O Poder «Todo o poder tende a corromper; o poder absoluto corrompe absolutamente» Lord Acton, em carta ao Bispo Mandell Creighton, 1887 19 1 Do Calvário ao Vaticano Nesta grande festividade de Pedro e Paulo, o dia vinte e nove de Junho, vieram todos, novos e velhos, pecadores e santos, de todos os cantos do mundo, para estarem com o Bispo de Roma, Vigário de Cristo, Sucessor dos Apóstolos, Sumo Pontífice da Igreja Universal, Patriarca do Ocidente, Primaz da Itália, Arcebispo e Metropolita da Província de Roma, Chefe de Estado da Cidade do Vaticano e Servidor dos servidores de Deus, o Papa João Paulo II. Alguns peregrinos vêm vestidos em tons escuros, outros com vistosos trajos folclóricos das suas terras. Há também turistas entre eles, mas a maioria são peregrinos. Uma visita a Roma e assistir a uma missa papal são a realização de uma ambição de uma vida. Antes do amanhecer, começaram a sair da colmeia que Roma é. Emergiram dos caros hotéis de luxo da Via Veneto, de tranquilos conventos e pensões baratas. Na sua curta viagem passaram porvivendas a cair, palácios renascentistas cujas enormes portas tachonadas dão a impressão de que os seus donos se estão a preparar para uma nova invasão de Godos e Vândalos. Atravessam piazzas com fontes a borbulhar, mal identificando as quatrocentas igrejas de Roma, muitas das quais só se encontram abertas um dia por ano, o dia da sua festividade. Atravessam o Tibre, que durante séculos serviu à cidade simultaneamente de esgoto e de cemitério. O Tibre contabilizou provavelmente mais mortes do que qualquer outro rio fora da China; num só dia morreram lá milhares afogados. Esta manhã corre devagar e está acastanhado como o hábito dos franciscanos. Finalmente, os peregrinos chegaram à Via della Conciliazione, de cujo extremo se desfruta uma das vistas mais impressivas do mundo. À luz trémula do calor de verão, a cúpula da Basílica de S.Pedro parece flutuar no espaço. Miguel Ângelo, que a desenhou, exprimiu, mais do que qualquer papa, a força maciça e pertinaz da maior instituição que o mundo alguma vez conheceu. Ela preservou a velha herança. Deu às hordas bárbaras uma nova religião e uma lei. Criou a Europa, dando a povos diversos uma lealdade e um destino que ultrapassam todas as fronteiras. Como disse Lord Macauley há mais de um século, ao reflectir sobre a Igreja de Roma: Já era grande e respeitada antes de os saxões porem o pé na Grã- Bretanha, e de os franceses passarem o Reno, quando a eloquência grega ainda florescia em Antióquia, quando em Meca ainda se adoravam os ídolos. E talvez ainda exista com o mesmo vigor quando um qualquer viajante da Nova Zelândia, no meio de vasta solidão, tomar posição num arco quebrado da Ponte de Londres para fazer um esboço das ruínas da Catedral de S. Paulo. Enquanto entram na Praça de S. Pedro, rodeada pela pavorosa arcada de Bernini, os fiéis observam a janela do terceiro andar do palácio apostólico de onde o papa, aos domingos ao meio-dia, abençoa a multidão. Poucos sabem como o palácio é vasto. Quando um envelhecido Leão XIII queria dar um passeio pelos jardins do Vaticano, sentava-se numa pequena cadeira no seu gabinete. Depois os criados levavam-no por 20 uma escada de caracol, ao longo de um labirinto de corredores, através de salas e galerias cheias de alguns dos maiores tesouros do mundo, num percurso de mais de quilómetro e meio dentro do palácio para chegar até uma carruagem puxada a cavalos. Quarenta anos depois da morte de Leão XIII o Vaticano foi profanado. As únicas bombas lançadas sobre a cidade eram de fabrico britânico. Numa noite sem lua, durante a Segunda Guerra Mundial, um avião alemão lançou quatro bombas capturadas em Tobruk, para fazer crer que os Aliados tinham atacado o mais sagrado santuário católico. Embora o Vaticano tenha apenas o tamanho de um campo de golfe, os peregrinos ficam esmagados diante da extensão daquilo que os circunda. No centro da praça está o obelisco de Calígula de 322 toneladas e 40 metros de altura, que originalmente se encontrava no circo de Nero junto do local onde S.Pedro foi crucificado. Este monumento fá-los lembrar que estão em solo sagrado. Subindo os degraus de pedra, chegam ao pórtico. É também enorme e cheio de história. À direita fica a Porta Santa, agora selada, uma vez que este não é Ano de Jubileu. Por cima do arco central, está uma representação do Navicella, o frágil barco de S.Pedro que resistiu às intempéries dos tempos. Este fragmento de mosaico, que sobreviveu à demolição da primeira Basílica de S.Pedro, foi obra de Giotto, o artista do século XIII que impressionou o papa reinante por ser capaz de desenhar um círculo perfeito à mão livre. Em frente da porta central, está colocado um disco porfitírico que assinala o local onde Carlos Magno, no dia de Natal de 800, depois de subir os degraus de joelhos, beijando cada um deles, ajoelhou e recebeu de Leão III a coroa do Sacro Império Romano. Afastando as pesadas cortinas de couro, os fiéis entram na basílica. Mesmo num dia cinzento, uma luz dourada escorre das altas janelas. O chão de mármore de várias cores cobre uma extensão de 24.000 metros quadrados. A nave tem 182 metros de comprimento e 24 de largura, e no topo, mais altas do que qualquer palácio de Roma, erguem-se as colunas espiraladas de Bernini. As colunas coríntias, ornamentadas neste dia das festividades dos Apóstolos de colgaduras no vermelho do martírio, sustentam uma abóbada amarela de 40 metros de altura. As pias de água benta são do tamanho de banheiras e os anjos sobre elas têm 1,80 metros de altura. Para a esquerda e direita há estátuas gigantescas e capelas do tamanho de igrejas. A mais apreciada obra de Miguel Ângelo, a Pietà, que ele esculpiu quando tinha vinte e cinco anos e que é a única que tem o seu nome, ergue-se por detrás de um vidro protector. Há túmulos de papas a que os escultores deram anos das suas vidas. Chateaubriand, o escritor francês que viveu a Revolução, anotou nas suas Memoires que em Roma há mais túmulos do que cadáveres; e imagina os esqueletos a mudar de um túmulo de mármore para outro para se manterem frescos, tal como um doente se mudaria de uma cama para outra mais confortável. No topo da nave lateral esquerda há um altar sob o qual jaz o corpo do Papa Leão o Grande. Um dos mais nobres papas, ele foi o primeiro a ser sepultado na Basílica de S.Pedro no ano de 688. A partir de então instalou-se o costume de construir mais do que um altar nos locais de oração. Agora, a Basílica de S.Pedro, mais do que qualquer outra igreja do mundo cristão, está cheia de altares. No topo da abside encontra-se a gigantesca Cadeira de S.Pedro, de bronze dourado, sustentada por efígies de quatro Doutores da Igreja. A decoração cobre uma vulgar cadeirinha, tipo liteira, que data pelo menos do século II. Este é provavelmente o mais antigo dos tronos. A “Cadeira dentro da Cadeira” foi vista pela última vez na Festividade dos Apóstolos em 1867. O que se viu foi uma peça 21 de carvalho gasta e lascada com retalhos de madeira de acácia e enfeitada com figuras de marfim, algumas de cabeça para baixo. Dando uma volta para a direita, da abside para a nave, os peregrinos chegam à famosa estátua de bronze de S.Pedro. Nesta altura, na festa dos santos, ela está paramentada com um manto de brocado dourado e coroada com uma tiara enfeitada de jóias. A superfície do pé direito estendido está gasta e macia dos beijos de todos os outros peregrinos que os antecederam. É uma lembrança de tempos bastante recentes em que o papa nas audiências era obrigado a pôr o pé numa almofada própria para os visitantes o beijarem. Em 26 de Setembro de 1967, Paulo VI, já com a morte espelhada no rosto, veio aqui, qual passarinho condenado, antes da abertura do primeiro Sínodo dos Bispos. Colocou uma vela acesa no chão e depois, envolto numa nuvem de incenso, inclinou-se para beijar o pé da estátua. Muitos pontífices devem certamente ter feito o mesmo, vindo orar na Vigília de Pedro e Paulo no santuário do Príncipe dos Apóstolos. * * * Na capela do Abençoado Sacramento, prepara-se a procissão papal. A viagem de João Paulo foi a mais curta de todas; veio apenas do seu gabinete no terceiro andar do palácio. Contudo, em muitos aspectos, ele viajou mais nos últimos minutos do que qualquer outra pessoa. Deixou os assuntos de Estado, os problemas da Cidade do Vaticano, e assumiu o papel de que mais gosta: o de chefe da Igreja. Por momentos, pode incluir as preocupações da igreja nas suas orações. Ninguém melhor do que ele sabe que entre aquela multidão ali reunida e de que ouve murmúrios há muitos membros do seu rebanho que andam desorientados. Os padres andam em conflito com os seus bispos, as freiras com as madres superioras; os leigos andam mais do que nunca activos contra os ensinamentos morais da Igreja. Nenhum papa foi tão adulado e tão pouco obedecido. Nestes tempos tão sagrados, ele concentra-se no seu papel de Pastor da Igreja Universal. Os membrosdo seu séquito multicor — prelados, camareiros, príncipes da igreja, Guardas Suíços — atarefam-se a compor a procissão pela ordem que o protocolo estabelece, fazendo os ajustes finais nos seus uniformes. Paulo VI acabou com toda a agitação de penas, aparato militar, armas desembainhadas. Mas as armas estão lá na mesma. Diferentemente de qualquer outro papa, à volta do Papa João Paulo andam os membros vestidos de azul do Ufficio centrale di vigilanza. Eles constituem o corpo de segurança efectivo da pequena cidade-estado. Não só andam armados como também têm ordens para atirar a matar no caso de a vida do papa estar em perigo. Os walky- talkies, sob os casacos, estão ligados aos quartéis-generais da polícia da cidade de Roma e às repartições da Digos, a brigada anti-terrorista italiana. Na linguagem da segurança, o papa é irreverentemente referido como “Il Bersaglio“ (“O Alvo”). Finalmente, ao som de trombetas, o pontífice avança a passos largos pela nave abençoando a multidão de pescoço estendido. Os fiéis não reparam nos bispos vestidos de branco, nos cardeais geminados ou nos monsenhores vestidos de púrpura. Só têm olhos para o papa com o solidéu branco, o homem que chefia uma igreja de quase um bilião de fiéis, 4000 bispos, 400000 padres e um milhão de freiras. Embora estejam alegres na basílica, embora ajoelhem e batam palmas e desfaleçam e mesmo as freiras de mais idade esqueçam pela primeira vez em anos as suas inibições, todos eles sentem que ele está concentrado no Outro, no Deus que ele representa na terra e a única entidade a quem tem de prestar contas. O papa não é nenhum ídolo pop, mas o vigário de Cristo, e, logo abaixo de Cristo, essencial para a 22 salvação. No meio de ondas e mais ondas de adulação, flashes e o coro da Capela Sistina que mal se ouve a cantar Tu es Petrus, «Tu és Pedro», o papa chega ao altar- mor. O seu séquito dispersa-se tomando os seus lugares em cadeiras menores. Os homens da segurança desaparecem nas capelas laterais. O papa está agora só, em todos os sentidos. Sempre assim foi com os pontífices romanos, mas nenhum esteve jamais tão só e vulnerável como João Paulo II. Nas listas do Vaticano ele é considerado como o 263º pontífice, mas o número não está correcto. Houve alturas em que ninguém sabia quem era o papa de direito de entre diversos reclamantes. Além disso, só no ano de 1073 é que o Papa Gregório VI proibiu os católicos de chamarem papa a alguém para além do Bispo de Roma. Antes disso, muitos bispos eram carinhosamente chamados de «papa» ou «papá». Mesmo o título «Bispo de Roma» tem hoje um peso dignitário que nem sempre teve. Um chefe ou administrador de uma inicialmente pequena comunidade cristã dificilmente se pode comparar com um bispo moderno em poder e jurisdição. Muitas outras coisas estão também longe de estar claras. Por exemplo, quanto tempo é que Pedro viveu em Roma? Há um relato de fins do século IV segundo o qual ele teria lá vivido durante vinte e cinco anos, mas não há qualquer fundamento histórico para isto. O que se sabe é que cerca do ano 58, Paulo o Apóstolo escreveu mais uma das suas cartas, desta vez aos romanos. Nela saudava famílias inteiras e mencionava vinte e nove pessoas individualmente pelo nome. Mas não saudava Pedro. Isto seria certamente uma omissão surpreendente se Pedro lá estivesse a residir e fosse o Bispo de Roma. E mais, Eusébio de Cesareia, reconhecido como o Pai da História da Igreja, ao escrever sobre o ano de 300, dizia: «Diz-se que Pedro pregou aos Judeus por todas as terras de Pôncio, Galateia, Bithnya, Capadócia e que, para o fim dos seus dias, detendo-se em Roma, foi crucificado». Hoje, os historiadores dizem que Pedro teria vivido em Roma durante três ou quatro anos no máximo. Não há qualquer testemunho que indique que ele tivesse chefiado aquela comunidade. Isso não pode ter sido automático. Ele nem sequer tinha sido bispo em Jerusalém depois da morte de Jesus. Jaime, irmão do Senhor, é que o foi. Depois há este facto surpreendente: nas primeiras listas de bispos de Roma o nome de Pedro nunca apareceu. Por exemplo, Ireneu, Bispo de Lyons de 178 a 200, foi discípulo de Policarpo, Bispo de Esmirna, que foi por sua vez discípulo de Paulo o Apóstolo. Ele enumerou todos os bispos de Roma até ao décimo segundo, Eleutério. Segundo Ireneu, o primeiro bispo de Roma não foi Pedro nem Paulo, mas Lino. A Constituição Apostólica de 270 também mencionava Lino como o primeiro bispo de Roma, nomeado por S.Paulo. Depois de Lino foi Clemente, escolhido por Pedro. O mistério adensa-se. Em todos os seus escritos, Eusébio nem uma só vez fala de Pedro como Bispo de Roma. Como é que isto se pode explicar? Parece que no espírito dos primeiros comentadores cristãos os apóstolos constituíam uma classe à parte. Não pertenciam a nenhuma igreja em particular, nem mesmo quando eles a «plantavam», isto é, quando a fundavam, como Paulo fez por toda a Ásia Menor. Os apóstolos pertenciam a toda a Igreja. Ser apóstolo impossibilitava um homem de ser bispo de um só lugar. Também Pedro, fossem quais fossem as momentosas decisões que tomou em Jerusalém, Antióquia ou fosse onde fosse, continuava a ser um apóstolo de toda a comunidade. A Igreja Católica considerou uma questão de fé que os papas fossem os sucessores de Pedro como Bispo de Roma. Mas Pedro nunca teve esse título; apenas lhe foi atribuído alguns séculos depois da sua morte. Naturalmente que ele deve ter tido uma enorme autoridade moral na comunidade judaico-cristã de Roma, mas ao contrário de Paulo, que era um cidadão romano, deve ter sido considerado estrangeiro. Quase dois mil anos 23 mais tarde, outro estrangeiro, um homem de um país distante, senta-se naquilo a que se chama a Cadeira de Pedro, enquanto a toada de um motete de Palestrina se eleva na cúpula. * * * Já se passaram quase dez anos desde que Karol Wojtyla de Cracóvia se tornou pontífice quando o primeiro João Paulo morreu, muito chorado, depois de trinta e três dias de reinado. Depois da eleição, Albino Luciani apareceu na galeria da Basílica de S.Pedro e em poucos segundos sorriu mais do que o seu antecessor Paulo VI em quinze anos, e depois, profeticamente, sem dirigir uma só palavra à multidão, desapareceu nas sombras do Vaticano. Diz a anedota, em Roma, que a mais velha, a mais secreta e a mais poderosa das instituições é a Sagrada Congregação para a Disseminação de Boatos. Acredita-se em alguma coisa na Cidade Eterna que não seja dito num sussurro? Correu o boato de que João Paulo I tinha sido envenenado. Coisas deste tipo sempre se disseram durante séculos quando um pontífice adoecia e morria subitamente. Muitos destes boatos eram falsos. Mas nem todos. No dia 27 de Julho de 1304, ao fim de nove meses de reinado, Benedito XI estava em Perugia quando um jovem disfarçado de irmã da Ordem de S.Petronilla se apresentou a Sua Santidade com uma salva de prata cheia de figos. «É um presente da Madre Abadessa,» murmurou a recatada “irmã“. Toda a gente sabia que Benedito tinha uma paixão pelos figos. Poucos dias depois, era enterrado. Fosse este ou aquele boato verdadeiro ou não, o facto é que os papas eram sempre aconselhados a empregar um provador de vinhos e a inspeccionar os figos. Mas no caso do antecessor de João Paulo II onde está a prova? Uma autópsia teria esclarecido o assunto. E apesar das negações, provavelmente houve uma autópsia que o fez. Sobre assuntos destes o Vaticano mantém sempre os lábios bem cerrados. No conclave que se seguiu à inesperada morte de Luciani em 1978, foi eleito Karol Wojtyla. Quando foi entronizado parecia mais jovem do que os cinquenta e oito anos que tinha. Agora parece mais velho do que os sessenta e sete que tem. Os ombros estão mais arredondados. Está mais magro, tem as veias do pescoço salientes. Os olhos ficaram mais estreitos traindo a sua origem eslava. Como o cabelo ficou para trás sob o solidéu, as orelhas tornaram-se proeminentescomo quando era um rapaz. Muitas coisas contribuíram para o envelhecer. As penosas viagens. O atentado contra a sua vida em 13 de Maio de 1981, que quase foi bem sucedido, tendo sido necessária uma transfusão de seis quartilhos de sangue numa operação de cinco horas e meia. Os papeis que se amontoam todos os dias sobre a sua secretária — «Para livrar o papa de qualquer maldade» como dizia um seu ajudante. E a Cúria. Um papa e os seus funcionários sobrevivem, no melhor dos casos, num compromisso nada fácil. A Cúria tem em João Paulo um pontífice que a princípio nada sabia das suas artimanhas. Os sussurros — outra vez essa poderosa Congregação — chegam até às suas instalações. Os poucos prelados liberais que sobreviveram em Roma não gostam dele por causa daquilo a que eles chamam a sua intransigência. Alguns conservadores da sua entourage nesta grande festividade dos Apóstolos são também muito críticos. Aos seus olhos, João Paulo fez uma coisa que é quase uma heresia: desmitificou o papado. Fotografias nos meios de comunicação revelam um papa mediático de sombrero, um papa de mãos dadas com jovens a balançar-se ao som de música rock, um papa na Austrália abraçado por um coala meio confundido. Porquê, perguntam estes conservadores, por que é que ele não se deixa estar no Vaticano 24 mantendo um perfil de mistério e temor, como o velho Leão XIII, que foi suficientemente sensato para olhar o mundo através de uma janela — uma janela fechada, ao contrário, acrescentam eles, daquele cripto-comunista João XXIII que abriu a janela e deixou entrar um furacão? O papa está acima desse tipo de conversas. Tem os olhos bem fechados enquanto reza por todo o seu rebanho, não só por aqueles que estão reunidos em S.Pedro, mas também por todos os que se encontram espalhados pelo mundo. Está convencido de que só a sua voz, a voz de Pedro, a voz de Cristo, é suficientemente forte para deter a precipitação do mundo moderno no lago da morte. Fica aterrado perante a insensível indiferença em relação aos vindouros. Fica consternado por a virgindade ser quase um palavrão e a homosexualidade se ter tornado não apenas legal, mas romântica. Teme que mesmo os padres e as freiras estejam a perder a dedicação aos seus votos. Enquanto o Evangelho é lido por um diácono, ele sabe que é a Pedra, ele, pelo menos, tem de se manter firme. Os erros podem ser corrigidos, as tendências invertidas, bastando para isso que a sua fé não lhe falte. Agora os seus olhos estão húmidos, a dor orla-lhe a boca. Nestes dias, a sua expressão é triste mesmo quando, cada vez mais raramente, sorri, como se a tristeza da sua Polónia natal lhe tivesse inundado a alma. No memento de todas as missas ele nunca deixa de mencionar os vivos e os mortos da sua pátria. Como é polaco, nunca esperou ser papa. Nem mesmo quando foi feito cardeal em 1964, nem quando Paulo VI o escolheu em 1976 para o retiro quaresmal da casa papal ele alimentou esse pensamento. Isso era contra a corrente da história. Há quatro séculos e meio que o papado era italiano. Durante esse retiro quaresmal, Karol Wojtyla ouviu o Papa Paulo em confissão e sem dúvida que fez os possíveis por fortalecer a sua determinação, mas como é que ele podia imaginar que um dia viria a celebrar missa solene em S. Pedro como Sumo pontífice? Os seus antecedentes: operário fabril, alpinista, actor amador, resistente espiritual contra o nazismo e, mais tarde, contra o comunismo, sonhador, poeta nas horas vagas. Um dos seus poemas, “O Operário da Fábrica de Armamento”, começa assim: «Eu não posso influenciar o destino do mundo». Os fiéis reunidos à sua frente, pelo contrário, pensam que a sua influência para o bem do mundo é a maior. A sua integridade ilumina. Eis aqui um homem que não se pode comprar ou vender, um prelado à maneira de Thomas à Becket que preferiu morrer a ceder nas exigências da igreja. Da sua figura, quando se dirige para o altar para iniciar a missa, irradia um sentido de majestade. João Paulo é o último dos monarcas absolutos. Os católicos em S.Pedro, que agora ficaram em silêncio, não aceitariam outra coisa. Ele é o oráculo supremo, Senhor da Igreja, Vigário de Cristo. Para eles, ele possui o dom da infalibilidade, que é pouco menos do que divino. Conforta-os a ideia de saberem que de todos os religiosos na Terra — Judeus, Hindus, Protestantes, Budistas — Deus fala para eles uma linguagem especial através de Sua Santidade. Dele flui a sua vida espiritual; como chefe da Igreja, ele é o laço que os une a Deus e uns aos outros. Muitos pensam, porém erradamente, que a sua fé deriva dele e que os bispos dele derivam o seu poder. Não são poucos os não católicos em S.Pedro para esta missa festiva que também sentem que o Papa João Paulo II é o melhor baluarte do mundo contra o comunismo ateu de Leste e o muito espalhado e mais subtil ateísmo de um Ocidente secularizado. O papa diz as palavras da missa em voz baixa mas clara. Cada gesto está de acordo com as rubricas do missal, porque ele sabe que se se afastar delas, os padres em toda a parte vão decidir fazer alterações da sua lavra. Enquanto ele prossegue, os fiéis na basílica interrogam-se sobre como João Paulo se verá a si mesmo. Em certo sentido, não é difícil saber. Apesar das suas viagens, das suas intermináveis alocuções, mesmo 25 depois do Vaticano II — talvez por causa do Vaticano II — ele compreende que este cerimonial em S.Pedro não é a verdade toda sobre a igreja que ele chefia. Quando pára para lembrar os vivos, o seu muito disperso rebanho, a sua oração é influenciada por todas aquelas estatísticas desanimadoras empilhadas sobre a sua secretária. Os padres são a primeira preocupação do pontífice. Em 1971, uma fuga de informação levou até à imprensa um estudo encomendado pela Sagrada Congregação para a Fé. Revelava que entre 1963 e 1969 mais de 8000 padres tinham pedido dispensa dos seus votos e quase mais outros 3000 não tinham esperado pela permissão. O estudo estimava que nos cinco anos seguintes 20000 abandonariam. Este cálculo veio a mostrar-se demasiado optimista. O pior passava-se nos países em que os papas confiavam para fornecer missionários. A Holanda, por exemplo, costumava produzir mais de 300 padres por ano. Agora as ordenações são lá quase tão raras como as montanhas. Na Irlanda, nos fins de 1987, havia 6000 padres e mais de 1000 ex-padres. Nos Estados Unidos da América, calcula- se que existam mais de 17000 ex-padres. A média de idades dos que ficaram é surpreendentemente alta: 54 anos. Também o futuro parece negro. Nos últimos vinte anos, o número de seminaristas nos Estados Unidos caiu de 50000 para 12000. O pontífice reza pelos leigos com as suas variadas preocupações. Reza pelos presentes e por aqueles que, por todo o mundo, começaram a desfilar a sua desobediência. Antes da sua viagem à América, em Setembro de 1987, deve ter lido a sondagem da revista Time. Ela revelava que 93% dos católicos defendiam que «é possível discordar do papa e continuar a ser um bom católico». Mesmo na Irlanda, uma sondagem da mesma altura mostrava que só um em cada três jovens concordava com ele sobre a contracepção. Todos os indicadores apontam para uma comunidade mundial em retirada napoleónica. A igreja continua a ensinar, mas cada vez há menos pessoas a ouvir. A missa devia dar ao pontífice uma trégua nas preocupações e na sobrecarga do governo. Em certo sentido, ela aprofunda essas preocupações. Ele tem que deixar que Jesus, cujo sacrifício vai comemorar, o alivie desses fardos. À medida que a consagração se aproxima, talvez o espírito de João Paulo regresse ao passado, à sua infância em Wadowice quando ajudava no altar e aprendeu os responsos da missa em latim. Nesses tempos, Catolicismo é que era a palavra do papa. É desanimador para ele descobrir que, agora que é o pontífice, em muitas matérias que considera cruciais está em minoria. Esta a razão por que nesta missa papal ele não vê oscardeais magníficos, quais flamingos à sua volta, os prelados, como Ratzinger de Munique, de cabelo branco, Prefeito, desde 1982, da Congregação para a Fé, antigamente chamada de Santa Inquisição. O papa também não dá pelas manchas vermelhas e purpúreas dos mantos prelatícios de todos os graus. Não se dá ao trabalho de olhar para as tribunas apinhadas de embaixadores, personagens reais obscuras e ainda mais obscuros príncipes e princesas num esplendor de ouro e diamantes. Ele não vê ninguém; e ninguém vê mais ninguém senão a ele. «Este é o meu corpo». O papa pronuncia estas palavras com esmagadora devoção, tão cheio de temor religioso hoje como quando as pronunciou na sua primeira missa há quarenta anos. «Este é o meu sangue». Agora já não é o Vigário de Cristo mas o próprio Cristo o centro de convergência da congregação silenciosa. É assim em todas as missas, quer seja dita na mais humilde igreja de aldeia ou numa basílica como a de S.Pedro. Jesus Cristo é o Senhor; e o papa representa-o a ele e à 26 sua autoridade doutrinal no mundo de hoje. Não tem a congregação razão em ver o papa como a pessoa mais livre e mais soberana do mundo? A verdade é que o pontífice é um prisioneiro. A primeira consequência do absolutismo é que os que estão mais próximos da fonte do poder inalam o mesmo ar do monarca. No caso do papa, há homens sem rosto, burocratas, em gabinetes escuros no Vaticano e imediações que providenciam para que a visão do papa corresponda à deles próprios. Fornecem-lhe informações seleccionadas; escamoteiam tudo o que possa contradizer uma causa que eles desejam promover. Estes são os primeiros carcereiros do papa. O Concílio Vaticano II, 1962-65, pretendia liberalizar a Igreja Romana. Mal acabou logo os velhos burocratas tomaram o controle; e continuam no controle desde então, interpretando os decretos liberais de uma maneira iliberal. Mesmo o Concílio Vaticano I, convocado por Pio IX em 1869 para o declarar infalível, recusou discutir os projectos de decretos redigidos pela Cúria. Eles não representavam, diziam os bispos, a fé da igreja, mas apenas uma escola teológica tendenciosa. Mas, no fim, os burocratas acabam sempre por vencer. Eles permanecem nos seus lugares enquanto os homens de espírito mais liberal se dispersam. Os funcionários da Cúria, muitos dos quais estão presentes nesta missa, sempre detestaram os concílios por ousarem ameaçar a sua infalibilidade. Como disse recentemente um bispo diocesano amargurado: «A Cúria é um Concílio da Igreja em sessão permanente». Apesar de toda a sua força aparente, João Paulo continua a assinar os documentos preparados pelos prelados do Santo Ofício ou da Secretaria de Estado. Alguém sugere- lhe que um determinado bispo da América do Norte não é muito ortodoxo, na interpretação que a Cúria faz desta palavra. Não seria prudente mantê-lo sob vigilância? Depois há aqueles volumosos dossiers do Santo Ofício sobre teólogos como Küng de Tübigen ou Currant de Washington. E também sobre clérigos prometedores. Onde é que este padre ou aquele monsenhor se situam em relação a Cristo, a Maria, à prática frequente da confissão? Já alguma vez se mostraram flexíveis sobre a contracepção? Já alguma vez tomaram parte em manifestações anti-nucleares? Revelaram simpatias por Karl Marx? Muitos clérigos empreendedores podem ser permanentemente retidos nas suas carreiras por uma simples insinuação. Muito do veneno da Cúria é administrado por via auricular. Pode-se dizer que neste aspecto o pontífice não é servido de maneira muito diferente de qualquer outro líder apanhado na teia da função pública. Só que o próprio papa tem um exército de “observadores” a vigiá-lo a ele. Um pontífice, mais do que qualquer outro monarca, está prisioneiro do passado. A congregação pode ver sinais disto mesmo no vestuário do papa. Na mitra, no pálio, no Anel do Pescador. Não apenas a basílica em si mesma, as famosas relíquias que contém; mesmo as peças de vestuário mostram que o pontífice está, ele próprio, prisioneiro da história. Mas a maioria das grilhetas está no espírito. O pontífice nunca pode falar sem ter em atenção aquilo que os seus antecessores disseram sobre o mesmo assunto ou assunto relacionado. Em qualquer encíclica papal, por cada citação bíblica haverá provavelmente uma dúzia de referências a papas anteriores. Todos os pontífices conduzem com os olhos fixos no espelho retrovisor. Um passado há muito morto, muitas vezes chamado de tradição, dita o caminho para o futuro. Um papa morto é mais poderoso do que mil bispos vivos. «Pax vobiscum», diz o papa. «A paz esteja convosco». Os membros da congregação abraçam-se e passam este sinal de paz. Mas quem quer que carregue o fardo da infalibilidade nem sempre pode ser um homem de paz; carrega também uma espada. Porque não pode, por suposta compaixão, nem uma única vez, cometer, ou correr o 27 risco de cometer o mais ligeiro erro na doutrina ou na moral. Tem de ter o cuidado de não contradizer um pontífice de há sete ou dez séculos. Não admira que a sua Cúria nem sempre consiga fazer a distinção entre inovação e originalidade. O Papa João Paulo, de olhos reverentemente fechados, recebe o corpo e o sangue de Cristo. Por toda a basílica surgem os padres de sobrepliz e estola para distribuírem a comunhão, o corpo de Cristo, aos fiéis. A própria Igreja é chamada de o corpo de Cristo. Ao receberem a comunhão, os fiéis ficam em contacto com o seu Senhor crucificado e ressuscitado e com todos os seus irmãos cristãos, vivos e mortos. Aquela pequena hóstia liga-os sacramentalmente a toda a história da igreja. Essa história foi boa e má, cheia de feitos heróicos e de crimes ignóbeis. O pontífice está prisioneiro mesmo desses crimes. Ele sabe que a Igreja foi responsável por perseguições aos Judeus, pela Inquisição, por chacinar hereges aos milhares, por reintroduzir a tortura na Europa como parte do processo judicial. Mas tem de ter cuidado. As doutrinas responsáveis por essas coisas terríveis ainda escoram a sua posição. Os métodos podem diferir, os objectivos continuam os mesmos. Todo o mundo tem de ser levado a reconhecer Cristo e a sua Igreja. Governada e guiada pelo papa, a Igreja Católica tem a plenitude da verdade, da qual as outras religiões podem, quando muito, aproximar-se. João Paulo, a rezar enquanto a comunhão é distribuída, não quer que as pessoas pensem que a compaixão é incompatível com a inflexibilidade em relação à verdade. A liberdade de ensinar o que está mal, quanto a ele, é um erro. Como é que alguém pode ter o direito de ensinar como verdadeiro aquilo que a Igreja diz que não é verdade ou é imoral? Tal como todos os pontífices, ele tem como certo que onde a Igreja é forte o seu poder deve ser usado para ilegalizar aquilo que ela condena. Pio IX, proclamado infalível nesta mesma basílica em 1870, era bastante aberto a este respeito. Nos arquivos do Foreign Office, em Londres, há uma carta classificada como “confidencial”. Era de Odo Russel, representante do governo britânico no Vaticano. Relatava o que o papa lhe disse numa audiência: «Aquela liberdade de consciência e tolerância que aqui [em Roma] condeno, reivindico eu na Inglaterra e noutros países estrangeiros para a Igreja Católica». Pio IX estava apenas preocupado com um juízo político: suportaria a Igreja perder ou ganhar por recusar aos outros a liberdade que exige para si própria? Pio IX, tal como o actual pontífice, estava convencido de que a Igreja conseguiu permanecer doutrinariamente imutável através dos tempos. Os fiéis em S.Pedro partilham essa convicção, acreditando que o papado é que é o principal responsável por esta continuidade quase miraculosa. A verdade é que a Igreja mudou radicalmente mesmo em áreas vitais como o sexo, o dinheiro e a salvação. Tomemos dois dos exemplos mais interessantes. Todos os pontífices até ao século dezanove, inclusive, condenavam a cobrança de juros sobre osempréstimos (a usura) em quaisquer circunstâncias. Não importava se os juros estabelecidos eram altos ou baixos, se o empréstimo era feito a um pobre camponês ou a um imperador. Séculos depois de as comunidades de camponeses deixarem de ser a norma, a Igreja continuou a condenar a cobrança de juros e, surpreendentemente, nunca retirou a sua interdição. Contudo, hoje o Vaticano tem o seu próprio banco, fundado em 1942 por Pio XII, o qual foi recentemente o centro de terríveis escândalos financeiros. Uma segunda prova de mudança radical diz respeito aos ensinamentos da Igreja. «Não há salvação fora da igreja». Esta doutrina foi inicialmente formulada para excluir todos os não baptizados, como os Judeus e os não crentes. Mesmo os bebés de pais 28 cristãos que morressem antes de serem baptizados eram tidos como excluídos do Céu. Hoje João Paulo continua a ensinar que não há salvação fora da Igreja, mas “Igreja” e “salvação” são interpretadas de uma maneira tão alargada que todas as pessoas de boa vontade, mesmo os ateus, podem ser salvos. Este truque linguístico evita que os católicos pensem que houve uma inversão nos ensinamentos tradicionais. Admitir uma mudança exporia uma parte demasiado grande do passado como um pesadelo. Essa a razão por que, tal como todos os corpos autoritários, a Igreja Católica se recusa a admitir que tenha mudado no essencial, mesmo quando isso representa um aperfeiçoamento. À parte estes indicadores, basta lembrar que quase todos os documentos do Vaticano II teriam sido condenados como heréticos pelo Vaticano I. A ortodoxia de uma época não é a ortodoxia de outra. A principal desvantagem de uma instituição infalível é que nenhuma afirmação pode ser retirada, nenhuma doutrina negada, nenhuma decisão moral invertida, mesmo quando novos argumentos sugerem um exame radical. Nada disto preocupa os fiéis em S.Pedro. Eles acreditam que João Paulo é infalível e, embora não estejam agora a pensar nessa questão, isso influencia o seu amor e lealdade. Enquanto ele faz as suas orações depois da comunhão, eles vêem-no no altar com os olhos da fé. Em frente daquele altar em que só ele diz missa há um espaço oval. É a Confissão ou o Túmulo dos Mártires. Está iluminado, como todos os dias, por noventa e três candeeiros de feixe triplo; as paredes e soalhos são cobertos de jaspe, ágata e pórfiro. Santos como Domingos e Inácio de Loiola, imperadores como Carlos Magno e Frederico Barbarrossa ajoelharam aqui para honrar Pedro. Porque por baixo dos pés de João Paulo está sepultado S.Pedro, cujas ossadas consagraram não só esta poderosa basílica mas também os seus sucessores na Sé de Roma. Nem uma só pessoa duvida que S.Pedro esteja sepultado nesta igreja que tem o seu nome. Mas estará de facto? A Igreja Católica por vezes é dogmática quando estão em causa dúvidas ou pelo menos reservas. De facto, não há uma resposta simples sobre a questão do lugar onde Pedro estará sepultado. Nos primeiros tempos após a morte de Pedro, as suas ossadas foram transferidas por duas vezes para lugares mais seguros. Quando as coisas serenaram, o corpo foi levado de volta para o lugar onde Pedro deu testemunho da sua vida. Por cima do túmulo, foi erigido um pequeno oratório, e, mais tarde, no século IV, foi construída a basílica de Constantino, que ali ficou durante mil e cem anos. Poucos dos fiéis em S.Pedro nestas festividades dos Apóstolos sabem que foi há mais de mil anos que se tomou a decisão de separar as cabeças de Pedro e Paulo dos respectivos troncos. As cabeças têm estado desde então em S.João de Latrão, que é a catedral do papa e a igreja-mãe da Cristandade. S.João de Latrão foi também construída por Constantino junto do palácio de Latrão, que ele outorgou ao Bispo de Roma. De acordo com as antigas leis de Roma e com os cânones da teologia católica, conclui-se que Pedro não está realmente sepultado em S.Pedro, mas, juntamente com Paulo, em S.João de Latrão. O local onde está a cabeça, assim reza a antiga máxima, é o local da sepultura. Mesmo hoje, a prática pastoral considera a cabeça a parte mais importante dos restos mortais. No caso de decapitação ou de uma morte com mutilação é a cabeça que é ungida com a sagrada crisma. Houve uma ocasião em que a cabeça de Pedro se juntou ao tronco. Em 1241, o Imperador Frederico II marchou sobre Roma. Muitos cidadãos, desgostosos com o 29 comportamento do papado, preparavam-se para escancarar os portões da cidade para deixar entrar os invasores. O Papa Gregório IX, pouco antes de morrer, teve a ideia de trazer em procissão as cabeças dos dois grandes apóstolos de Latrão para S.Pedro. A ideia resultou. Os cidadãos de Roma, compreendendo que se arriscavam a perder não só a sua herança mas também a sua principal fonte de rendimento, cerraram fileiras e o perigo foi afastado. Em 1370, o Papa Urbano V meteu as cabeças em bustos de prata encrostados com pedras preciosas. Desta maneira, abriu caminho a outro drama. Em 1438, um veneziano rico estava às portas da morte. Perdida a esperança com os médicos, rezou a Pedro e Paulo, prometendo que adornaria os seus relicários com uma pérola de grande valor se recuperasse a saúde. Recuperou e cumpriu a promessa. Pouco depois, descobriu-se que faltava uma dúzia de pérolas nos relicários, bem como dois rubis de quarenta e sete e quarenta e oito quilates, uma safira e dois grandes diamantes. A pérola do veneziano também fora arrancada, provavelmente durante as próprias festividades de S.Pedro e S.Paulo, quando os relicários estavam em exposição. Os culpados foram logo descobertos. Dois primos confessaram terem escondido o fruto da sua pilhagem em casa de um tio. Tornaram-se motivo de divertimento em Roma. Como ponto alto de uma festança, na praça de S.João de Latrão, deceparam a mão direita dos jovens antes de os queimarem. O tio, simples receptador, foi tratado com mais clemência. Depois de agrilhoado com tenazes em brasa, foi enforcado. Em 1799, os soldados de Napoleão roubaram os relicários. Meteram ao bolso as pedras preciosas, incluindo a pérola, mas deixaram as relíquias. Diz-se que estas foram encontradas com o lacre original intacto. Nada restou a não ser vértebras, um maxilar com alguns dentes soltos e um pedaço de crânio. Fizeram-se novos relicários e as cabeças repousam agora no santuário por sobre o altar papal de Latrão. É ali, em sentido restrito, que ambos os apóstolos estão enterrados juntos. Uma vez que S.João de Latrão é também «a Mãe e chefe de toda a igreja da cidade e do mundo», era certamente ali que o Santo Padre devia ter celebrado a missa das festividades de S.Pedro e S.Paulo. Há uma razão primordial para que ele não tenha procedido assim. O papa diz a missa com o tronco de Pedro sob os seus pés. Setenta metros acima da sua cabeça, há qualquer coisa muito mais importante do que os restos mortais de Pedro: as palavras do Senhor. Em letras de um metro e meio de altura, à volta da cúpula, está o mais famoso de todos os trocadilhos: «Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam, et portae inferi non praevalebunt adversus eam» («Tu és Pedro e sobre esta Pedra construirei a minha igreja, e os portões do inferno não prevalecerão sobre ela»). Os eruditos assumem que no aramaico original o trocadilho era perfeito: Pedro e Pedra são ambos Cepha. É este o texto que constitui o pano de fundo de todo o pensamento do Papa João Paulo. Quem duvidaria de que ele pega neste texto, com toda a humildade, para as suas meditações? Este texto é a razão por que os pontífices agora celebram as festas de S.Pedro e S.Paulo em S.Pedro, de preferência ao local mais óbvio de S.João de Latrão. Porque os pontífices romanos afirmaram-se sucessores não de Pedro e Paulo, mas apenas e só de Pedro. O Novo Testamento fala de Pedro como o apóstolo para os Judeus e de Paulo como o apóstolo para os cristãos. Mas no espírito do papa, Pedro era o superior de Paulo; Pedro tinhajurisdição sobre Paulo e os outros discípulos. Esta autoridade foi outorgada a Pedro pelo próprio Senhor naquelas palavras que se encontram à volta da grande cúpula. Foi esta autoridade suprema que ele, João Paulo II, herdou. Por que é que os Protestantes não hão-de ser lógicos? — 30 deve Sua Santidade pensar. Jesus, o Filho de Deus, deu a Pedro supremacia sobre a Igreja; esta supremacia deve continuar na Igreja como um ofício permanente; ele, João Paulo, é o actual detentor de tal ofício. Há, porém, uma outra interpretação deste texto com uma linhagem melhor do que aquela de que a maioria dos católicos se dá conta. Pode chocá-los ouvir dizer que os grandes Padres da Igreja não viam qualquer relação entre ele e o papa. Nenhum deles aplica o «Tu és Pedro» a ninguém senão a Pedro. Um após outro todos o analisam: Cipriano, Orígenes, Cirilo, Hilário, Jerónimo, Ambrósio, Agostinho. E eles não são propriamente Protestantes. Nenhum deles chama ao Bispo de Roma uma Pedra ou lhe aplica especificamente a ele o compromisso das Chaves. Isto para os católicos é tão chocante como se não encontrassem nos Padres qualquer menção ao Espírito Santo ou à ressurreição dos mortos. O grande trocadilho, o jogo de palavras, foi aplicado apenas a Pedro. E as surpresas não acabam aqui. Para os Padres é a fé de Pedro — ou o Senhor em que Pedro tem fé — que se chama Pedra, e não Pedro. Todos os Concílios da Igreja, desde Niceia, no século IV, a Constança, no século XV, concordam que o próprio Cristo é o único fundamento da Igreja, isto é, a Pedra em que a Igreja assenta. Talvez por isso, nem um só dos Padres fale da transferência de poder de Pedro para aqueles que lhe sucederam; nenhum deles fala, como fazem os documentos da Igreja hoje, de uma “herança”. Não há qualquer indício de um ofício Petrino perdurável. Ao falar de um ofício, a referência é ao episcopado em geral. Todos os bispos são sucessores de todos os apóstolos. A análise de um outro texto do Evangelho produz o mesmo resultado. Jesus disse a Pedro: «Rezei por ti para que a tua fé não te falte; e quando estiveres convertido, crisma os teus irmãos». Esta afirmação aplica-se apenas e pessoalmente a Pedro. Nunca ocorreu aos cerca de dezoito Padres da Igreja que comentaram este texto que houvesse nele um compromisso para com os “sucessores de Pedro”. Pedro, individualmente considerado, não teve sucessores. Então, e os compromissos que se diz terem sido feitos via Pedro para com os seus “sucessores”, os papas? Então os papas não herdam de Pedro a infalibilidade e a jurisdição sobre todo o mundo? O primeiro problema da infalibilidade é que o Novo Testamento deixa muito claro que o próprio Pedro cometeu erros tremendos tanto antes como depois da morte de Cristo. Quando, por exemplo, Jesus insistiu que tinha de ir até Jerusalém, onde seria crucificado, Pedro protestou de tal maneira que Jesus lhe disse que ele era o “Satanás“ no seu caminho. Alguns teólogos católicos sugeriram que as palavras «Sai do meu caminho Satanás» deviam ser acrescentadas ao texto Petrino já inscrito à volta da cúpula de Miguel Ângelo. Depois da ressurreição de Jesus, Pedro fez outro enorme disparate. “Heresia” não é uma palavra excessiva para o descrever. O maior jurista canónico da Igreja de todos os tempos, Graciano, disse em 1150: «Petrus cogebat Gentes Judaizare et a veritate evangelii recedere», «Pedro obrigou os não-Judeus a viverem como Judeus e a afastarem-se da verdade do Evangelho». Quanto à jurisdição em todo o mundo, quando Pedro pregava ao seu rebanho em Antióquia ou em Roma, alguma vez lhe passou pela cabeça a ideia de que dirigia toda a Igreja? Tal ideia teve de esperar até a Cristandade ser integrada no Império Romano. Mesmo nessa altura, o papado ainda levou algum tempo a atingir a estatura que tornou tal pretensão plausível. E as dificuldades não se ficam por aqui. Os papas só são considerados infalíveis quando se dirigem a toda a Igreja. E quando é que eles o fizeram pela primeira vez? Certamente não durante o primeiro milénio. Neste período todos concordam que só os 31 Concílios Gerais exprimiam o pensamento da Igreja. Então, o poder supremo do papa esteve suspenso todo esse tempo? Se a Igreja conseguiu funcionar sem ele durante mil anos, por que é que havia de precisar dele? Por pouca sorte, um dos primeiros, senão mesmo o primeiro documento papal dirigido à Igreja universal foi a Unam Sanctam, uma Bula de Bonifácio VIII, em 1302. Era um documento tão forçado que levantou questões delicadas sobre a infalibilidade no Concílio Vaticano I, em 1870. Assim, a Igreja dos primeiros tempos não considerava Pedro como Bispo de Roma, nem pensava, portanto, que cada Bispo de Roma sucedia a Pedro. No entanto, Roma era tida na mais alta consideração por razões bastante diferentes. Em primeiro lugar, foi aqui que Pedro e Paulo viveram a sua vida. Depois, Roma era um lugar sagrado porque aí os fiéis, clérigos e leigos, conservaram os seus corpos e reverenciaram-nos. Esses corpos foram uma espécie de garantia da ortodoxia através dos tempos. Passaram-se décadas. O Bispo de Roma tornou-se cada vez mais importante, especialmente quando a corte imperial foi transferida para Constantinopla, no século IV. Isto deixou um enorme vazio político, administrativo e emocional. Os Bispos de Roma estavam, por assim dizer, ali à mão para o preencher. A partir de então, os Bispos de Roma começaram a separar Pedro de Paulo e aplicaram a si próprios as promessas feitas a Pedro no Evangelho. O prestígio do Bispo de Roma era agora tal que os eruditos procuraram nas Escrituras textos que sustentassem o seu papel de líder e patriarca do Ocidente. Nada mais limpo do que aplicar ao bispo que governa a cidade onde Pedro morreu textos que nos Evangelhos se referem apenas a Pedro. Os Evangelhos não criaram o papado; o papado é que, uma vez criado, procura suporte nos Evangelhos. Este suporte não apareceu facilmente; foi necessária muita perícia para pegar em afirmações feitas por um pobre Carpinteiro a um igualmente pobre Pescador e aplicá-las a um pontífice régio que em breve viria a ser chamado de Senhor do Mundo. Em S.Pedro, nestas festividades, João Paulo não está a pensar em si próprio como Senhor do Mundo, mas sim como o Pastor Chefe do rebanho. Dá a sua bênção final e a multidão rompe em aplausos. Pela primeira vez desde que entrou na basílica, o pontífice permite-se um sorriso. A liturgia sagrada está terminada e ele volta a descer pela nave em direcção à Capela do Santíssimo Sacramento, distribuindo bênçãos pelo caminho. Para muitas das pessoas que vão a sair da basílica este foi o dia mais memorável das suas vidas. Enquanto a basílica volta ao normal, apetece perguntar: Se Pedro se levantasse do túmulo sob a cúpula e lhe dissessem que tudo aquilo foi erigido em sua honra, como é que ele reagiria? Claro que alguém que regressasse do mundo dos mortos apenas quinze dias depois da sua morte ficaria completamente aturdido, e Pedro morreu por Cristo há mais de dezanove séculos. Quem é que pode saber como ele reagiria às maravilhas da moderna tecnologia: aviões, automóveis, televisão, telefones? Só em S.Pedro há oitenta telefones — se se marcar o 3712 o telefone tocará na obscuridade do altar-mor. O crescimento e a organização da Igreja também o espantariam. Uma vaga ligação de uns poucos pescadores e os seus convertidos, na sua maioria camponeses, tem de ser diferente de uma igreja de malha bem apertada que se estende pelo mundo inteiro e abrange quase um bilião. A única pergunta certa é esta: se Pedro voltasse como peregrino, como é que ele julgaria, à luz dos Evangelhos, o que se passa no Vaticano? Jesus nasceu num estábulo. Durante o seu ministério, não tinha onde pousar a cabeça. 32 Hoje, o seu Vigário habita um palácio com onze mil salas. E depois há ainda Castelgandolfo, sobranceiro ao Lago Albano, onde os pontífices se resguardam do calor do verão.O belo Castelgandolfo, ligeiramente maior do que o Vaticano, foi onde João Paulo, com algum dispêndio, mandou construir uma piscina para seu uso pessoal. Jesus renunciou aos seus bens. Ele ensinava constantemente: «Vai vender tudo o que possuis e dá aos pobres, e depois vem comigo». Ele condenava os ricos e os poderosos. Armazenai para vós tesouros no Céu, dizia ele, onde nem a ferrugem nem a traça conseguem estragá-los. O Vigário de Cristo vive rodeado de tesouros, alguns de origem pagã. Qualquer sugestão no sentido de que o papa devia vender tudo o que tem e dar aos pobres é recebida com irrisão, como impraticável. O jovem rico dos Evangelhos reagiu da mesma maneira. Durante toda a sua vida, Jesus viveu de maneira simples; morreu nu, oferecendo o seu sacrifício na cruz. Quando o papa renova esse sacrifício na missa solene pontifical, maior contraste não se poderia imaginar. Sem qualquer ironia, o Vigário de Cristo está vestido de ouro e das sedas mais caras. Isto tem sido frequentemente fonte de escândalo. Por exemplo, no século XIV o grande Petrarca descrevia assim uma missa papal em Avignon, que era muito menos esplendorosa do que a recente cerimónia em S.Pedro: «Fico espantado quando recordo os antecessores do papa e vejo estes homens carregados de ouro e vestidos de púrpura. Parece que estamos entre os reis dos Persas ou dos Partianos, diante dos quais nos temos de prostrar e venerar. Ó apóstolos e primeiros papas, rudes velhos definhados, foi para isto que trabalhastes, vós?» O único título de Jesus foi Pilatos que lho atribuiu por troça: “Rei dos Judeus”. No anuário pontifício, Pedro vê que o papa tem uma dúzia de títulos ilustres: incluindo o de chefe de estado. Ele acharia o de Pontifex Maximus o mais surpreendente, porque no seu tempo era esse o título do Sumo Sacerdote de Roma. Além disso, Jesus era apenas um leigo. Os assistentes do papa também têm títulos algo inesperados à luz do Sermão da Montanha: Excelência, Eminência, Vossa Graça, Meu Senhor, Ilustre, Reverendíssimo, etc.. Contudo os chapéus cardinalícios, que outrora renderam milhões aos cofres do papa, são agora distribuídos gratuitamente. Mas suas Eminências continuam a vestir-se como realezas, mesmo que as suas caudas tenham sido reduzidas recentemente de alguns metros. As impressões é que contam. Aqueles que vestem púrpura e seda, vivem em palácios, sentam-se em tronos — não lhes é fácil agir como servos de Deus ou representar o Pobre de Nazaré perante os pobres e os famintos do mundo. João Paulo apenas reuniu os seus cardeais por duas vezes. E em ambos os casos foi para discutir o estado perigoso das finanças do Vaticano. Pedro, sempre sem tostão, ficaria intrigado ao saber que, de acordo com o cânone 1518 do código de 1917, o seu sucessor é o «administrador e gestor supremo de todos os bens da Igreja». E também que o Vaticano tem o seu próprio banco, que só admite como cliente quem, além de sólidas referências, possa fornecer uma coisa que o próprio Pedro nunca teve: um certificado de baptismo. O celibato do clero, papa incluído, devia também surpreender Pedro, ao pensar como Jesus o escolheu a ele sabendo que era casado. E finalmente Pedro ficaria desconcertado só com o simples número de imagens em S.Pedro. Ele e o Mestre, como judeus que eram, opunham-se às imagens religiosas. Deus, cujo simples nome não podia ser pronunciado, também não podia ser representado. Alguém que reside numa luz inacessível exige as maiores reticências. 33 Mesmo o mais Sagrado dos Sagrados no Templo de Jerusalém não era mais do que uma sala despida e escura. Em S.Pedro Jesus está crucificado em todos os altares. A basílica está decorada com estátuas de papas ajoelhados e inclinados numa vénia. Algumas figuras são muito pouco edificantes. O Papa Paulo III, por exemplo, jaz enterrado na ábside. O seu monumento está decorado com belezas reclinadas, uma das quais é a Justiça. Originalmente nua, ajustaram-lhe, por ordem de Pio IX, uma camisa metálica pintada para parecer o mármore original. Sua Santidade tinha descoberto que o modelo para a Justiça fora a irmã de Paulo III, Giulia, a amante do Papa Alexandre VI. Pedro assistiu à simples cerimónia da Ceia na noite da véspera em que Jesus morreu. Ele soube que na colina rochosa dos arredores de Jerusalém, Jesus, depois de ultrajado, açoitado, cuspido, coroado com espinhos, foi despido e crucificado entre dois ladrões. Que ligação há, se alguma poderá haver, perguntar-se-ia Pedro, entre esses acontecimentos e uma missa papal? Será que todo este cerimonial distorceu e banalizou a mensagem de Jesus? Como e por que tortuosos caminhos é que uma pequena comunidade perseguida transpôs a aparentemente infinita distância entre o Calvário e o Vaticano? 34 35 2 A Busca do Poder Absoluto Os milhões que todos os anos visitam o Vaticano pressentem o poder da Igreja. As paredes, as estátuas, as gigantescas colunas, aquela cúpula omnipresente, tudo isto exala poder. Se têm a sorte de ter uma audiência com o Santo Padre, ou simplesmente recebem a sua bênção da janela do seu gabinete, a maioria dos peregrinos sente uma força passar dele para si próprios. Ele possui, crêem eles, o dom do Espírito de Deus num grau elevado. Mesmo um rosário abençoado pelo pontífice tem uma significação especial; é como um autógrafo invisível. Ele tem um grande poder vindo de Deus e tem o compromisso de o usar para o bem da humanidade. O prestígio do papa hoje é enorme. Neste século, os pontífices adquiriram renome mundial. Os acontecimentos históricos e as comunicações instantâneas contribuíram para os tornar os “Porta-vozes da religião”. As suas personalidades também tiveram alguma coisa a ver com o facto. Os antecessores próximos de João Paulo também foram homens eminentes: Pio XI, Pio XII, João XXIII, Paulo VI, João Paulo I. Tiveram os seus críticos dentro e fora da Igreja. Pouca gente negaria que o seu objectivo principal foi seguir Jesus Cristo. O resultado é que João Paulo II é comummente considerado como o único líder cuja reputação na religião iguala a influência política do presidente americano e do secretário-geral soviético. Como não entendem que o passado é imprevisível, muitos católicos estão convencidos de que a maior parte dos papas seguiu este padrão. Desconhecedores da história, permitem-se, como diz Acton, «ser governados pelo Passado Desconhecido». Podem ter ouvido falar do Papa Alexandre VI, o infame Bórgia. Ele foi, sem dúvida, a excepção que confirma a regra. Além disso, por muito mau papa que fosse, eles têm a convicção, tal como Joseph de Maistre, o historiador do século XIX, de que «as Bulas destes monstros foram irrepreensíveis». Fosse qual fosse o seu comportamento moral, nunca comprometeram a fé da Igreja. Neste contexto, até Judas Iscariote é reconfortante. Se um dos discípulos mais próximos de Jesus traiu o Senhor, não devemos ficar surpreendidos se um ou alguns papas abusaram do poder que Deus lhes conferiu. A traição de Judas levou à salvação do mundo. Será que Deus usa o mau papa ocasional para provar que na providência divina mesmo Alexandre VI serve de medianeiro da verdade e do amor de Deus? Em 1895, o Cardeal Vaughan de Westminster afirmou num sermão: «A vida do papado é, como a do próprio Cristo, marcada por sofrimento e por tempos tranquilos; hossanas hoje, a paixão e crucificação amanhã; mas seguida, depois, da ressurreição. O Vigário de Cristo e a sua Igreja estão necessariamente em conflito com as falsas máximas do mundo; o sofrimento e as perseguições são consequência inevitável». Quem é que não perdoará aos seus ouvintes por concluírem que a maioria dos papas foram uma imagem de Cristo? Mas este lado eternamente luminoso do papado tem de ser complementado com o lado mais negro. A maioria dos católicos nunca ouve durante a sua vida, na escola ou na igreja, uma só palavra de censura a qualquer papa. Contudo, um católico devoto comoDante não teve qualquer escrúpulo em lançar pontífice após pontífice para as profundezas do Inferno. Se os Judeus nos seus salmos 36 condenam — e até amaldiçoam — Deus, não podem os católicos condenar os papas quando eles o merecem? A história dos papas está, para utilizar uma expressão do senhor Gorbachev, cheia de páginas em branco. Nem todos os papas foram santos, muitos mal cristãos foram. Antes de Pio IX perder os Estados Papais em 1870, os papas raramente eram amados. Eram muitas vezes odiados e temidos. A distorção começa logo nas listas dos papas, onde, dentre os primeiros trinta, todos, excepto um, são descritos como mártires. Provavelmente foram mártires no sentido de “testemunhas da fé”. Não há provas de que todos tenham morrido por Cristo. Mais ainda: entre os papas houve um grande número de homens casados, alguns dos quais trocaram a mulher e os filhos pelo ofício papal. Muitos eram filhos de padres, bispos e papas; alguns, bastardos; um era viúvo, outro um ex-escravo; vários foram assassinos, alguns, descrentes; alguns eram eremitas, outros, hereges, sádicos ou sodomitas; muitos tornaram-se papas comprando o cargo (simonia) e continuaram os seus dias a vender coisas sagradas para encher os bolsos; pelo menos um era adorador de Satanás; alguns tinham filhos ilegítimos, outros eram fornicadores e adúlteros em grande escala; alguns eram espantosamente velhos e outros ainda mais espantosamente jovens; alguns foram envenenados, outros, estrangulados; e, pior do que todos, foram aqueles que veneraram um deus granítico. Mas houve igualmente muitos que foram papas bons, santos e generosos, e mais uns poucos mártires. É tempo de se deixar de tratar o papado em termos hagiográficos. O silêncio estudado sobre os pecados do papado é um escândalo e uma forma errada de fé. Pior, faz com que a presente crise da Igreja se torne insolúvel. O maior dos pecados do papado, origem da maioria dos outros, foi o abuso do seu imenso poder. É estranho pensar que a pessoa de que esse poder alegadamente derivou viveu e morreu sem poder absolutamente nenhum. “O Primeiro Papa” Esteve tanto tempo nas masmorras que perdeu a noção do tempo. As paredes e o chão estavam cobertas de crostas de sangue. O calor e a pestilência eram insuportáveis. Mordido das pulgas e das ratazanas, velho e magro, estava deitado numa cama de palha húmida. Era o homem mais feliz de Roma, talvez mesmo do mundo. Os seus carcereiros chamavam a isto “reclusão solitária”; o prisioneiro sabia que nunca estivera menos só. No seu coração estava o Mestre que ele servira todos aqueles anos na sua terra junto das águas azuis de um lago interior. Na escuridão, vivia à luz deslumbrante de Cristo. Com as grilhetas, era um homem livre. As recordações inundavam-no. Recordou o chamamento: «Vem, segue-me». Ele deixou tudo: redes, modo de vida, independência. Deu a sua palavra e nunca voltou atrás, apesar da ocasional renegação. Havia realmente coisas que envergonhavam. Quando, por exemplo, o Mestre sugeriu que tinham de ir a Jerusalém, onde a morte o esperava, Pedro protestou. Jesus caiu sobre ele: «Sai do meu caminho, Satanás». Aquilo ainda lhe soava nos ouvidos. Pedro, então, não entendeu. Como é que ele podia entender? O pior ainda estava para vir. No jardim de Getsâmani, à noite, já tarde, depois de uma ceia de Páscoa, Jesus, muito só, muito temeroso, pediu-lhe para velar e rezar. O prisioneiro era então jovem, precisava de dormir mais do que agora, mas aquela lembrança envergonhava-o. Sentia ainda aquela mão sobre o seu ombro a procurar mantê-lo acordado e aquela voz suave, magoada mas não ressentida: «Não podias velar uma hora comigo?» Os servos do Alto Sacerdote vieram com bordões e espadas para prender Jesus. O prisioneiro pegou numa espada e deu um golpe numa orelha de 37 um servo chamado Malchus. Jesus odiava as espadas. Disse a Pedro que o lugar das espadas era nas bainhas e fez o melhor que pôde por Malchus, pedindo desculpa o tempo todo. Foi então que Pedro e os outros fugiram. Para quê ficar com um homem que recusava defender-se e tratava os inimigos como trataria um amigo? Pedro dirigiu-se para o pátio do Alto Sacerdote. Tentou aquecer-se à fogueira mas o frio que o dominava não estava nos seus membros. Agora, no sufocante calor da cela, tremia à amarga lembrança de renegar o Mestre diante de uma serva. Nunca ia esquecer o olhar que Jesus lhe lançou quando foi levado como um cordeiro para a matança. Nem uma palavra, apenas um olhar. Ele tinha obrigação de ser duro, mas não aguentou; foi-se embora a chorar como uma criança. No dia seguinte, assistiu, sem dúvida, de longe, à crucificação. Era então aquele o fim? Ou iria Deus intervir e salvar Jesus, arrancar os pregos, devolvê-lo aos seus seguidores incólume e triunfante? Se assim fosse, seria a prova de que ele era o Messias, o ungido de Deus, que os guiaria à glória. O que é extraordinário é que nada aconteceu. Não veio nenhum anjo confortá-lo. Morreu, simplesmente. Pedro viu os soldados levarem o corpo e os dos dois que foram crucificados com ele. Ficou arrasado. A cruz parecia mostrar que Jesus era, apesar de todo o seu espírito cativante, um falso messias, enganado como tantos outros. Pedro foi para casa com os seus amigos galileus. Foi na Galileia, onde Jesus outrora o chamara, junto ao lago, que ele teve uma experiência de ressurreição. Paulo iria dizer que Pedro foi o primeiro que viu o Senhor. Por uma inspiração, uma visão não atribuível à carne e ao sangue, ele entendeu que a cruz não era o fim, mas o princípio; era um escândalo mas também a salvação. Convenceu os outros discípulos; eles tiveram a mesma experiência. Também eles viram o Senhor. Mais tarde, espalharam-se algumas estórias complicadas contando que Jesus fora enterrado num túmulo não usado, com uma pedra por cima, e como, no dia que viria a ser chamado de Páscoa, a pedra foi removida revelando um cova vazia. As estórias contradiziam-se em muitos pontos. Mas expressavam, à maneira dos Judeus, a experiência dos discípulos: Jesus não foi amaldiçoado na cruz; tornou-se por seu intermédio o Senhor e Cristo. Afinal ele era de facto o Messias. Ele ressuscitou. Os discípulos tinham voltado a Jerusalém pregando a sua fé. As suas histórias falavam de comer e beber com Jesus depois da ressurreição para fazer com que os outros acreditassem. Pedro adquiriu um prestígio especial. Foi a Pedra sobre a qual o novo grupo — mais tarde chamado Igreja — foi edificado. A sua fé tinha crismado os seus irmãos. Foi o pastor que trouxe para o redil o rebanho perdido. Era o pescador chefe de homens. Foi o primeiro cristão. Juntos, os discípulos leram outra vez Moisés e os profetas. Estes também deixavam claro que a cruz era parte do plano de Deus. Os homens devem viver a sua vida à sombra da cruz que os salvaria tal como outrora tinha elevado Jesus da agonia até à glória. O prisioneiro passou todos os seus dias a sorrir na escuridão de Mamertine. Nada lhe interessava, nem a ele nem aos discípulos, depois de saberem que o Senhor ressuscitara dos mortos. Ele era o Sofredor Servo de Deus. Que mais é que ele lhes tinha pregado e mostrado senão que tinha vindo não para ser servido mas para servir, para dar a vida pelos outros? Isto explica a razão por que ele virou costas à força, por que ele se riu com a ideia de uma espada a ajudar a promover a sua mensagem. Ele viera não para ferir e matar mas para ser ferido e, se necessário, morrer para que o amor e a compaixão de Deus brilhassem por entre as feridas abertas no seu corpo. 38 Por um momento, uma coisa preocupou Pedro: que pessoas podiam ser discípulos de Jesus? Só judeus? Se os não-judeus também pudessem, teriam eles de se tornar judeus primeiro? Encontrou a resposta num estranho sonho que o convenceu de que nada era exigido aos não-judeus convertidos a não ser a fé em Cristo. Mais tarde recuou. Instou os não-judeus a seguirem as leisda dieta dos judeus. Foi então que um enérgico recém-convertido mostrou o seu fervor: «Quando Cephas [Pedro] veio a Antióquia» disse Paulo, «eu contestei-o frontalmente, porque era evidente que ele não tinha razão. […] Eu disse a Cephas em frente de toda a gente “Tu és judeu e vives como um não-judeu. Como é que queres obrigar os não-judeus a viver como judeus?» Pedro aceitou a correcção. Tinha cometido um erro terrível. Se Paulo o não tivesse corrigido, a mensagem de que o homem se justifica apenas pela fé teria ficado arruinada desde o começo. Depois disto, Pedro e Paulo dividiram a missão: Pedro pregava aos judeus e Paulo, cidadão romano, aos não-judeus. Depois de organizar a Igreja em muitos lugares, Pedro, muito mais tarde, sentiu-se atraído pela capital do Império. Quando Jesus nasceu foi registado num censo ordenado por Augusto. Foi executado pelos Romanos. Como eles eram donos do mundo, era em Roma, onde, segundo Tácito, todas as vergonhas e todos os vícios do mundo se congregavam, que Pedro tinha de converter. Os Judeus estavam há muito estabelecidos em Roma. Eram olhados com desconfiança por causa da sua recusa em venerarem os deuses do Panteão, como faziam os imigrantes bem educados,. Isto era traição, mas os Romanos eram geralmente tolerantes em assuntos de religião. Os Judeus sobreviveram, foram dispensados de adorar os manes. Com o tempo vieram a conceder-lhes mesmo estatuto legal. Pedro tinha uma tarefa difícil em pregar Jesus aos Judeus. Para estes, Pedro era um herege. Aceitava a Bíblia Judaica, mas não a circuncisão. Venerava Abraão, Moisés e David, mas não manteve as suas festividades. Venerava mesmo Deus num Sabath próprio. Os Judeus não aceitavam sobretudo a ideia de um messias crucificado. Jesus não convenceu ninguém enquanto vivo, morreu como um fora de lei que era, e a sua chamada ressurreição baseava-se no testemunho de umas poucas mulheres loucas. Na Roma do tempo de Pedro, o Forum e o Palatino impressionavam mesmo à distância. O palácio de Augusto brilhava ao sol na sua brancura. Pedro sentia-se contente por os cristãos não possuírem nada senão algumas sepulturas subterrâneas. Ele não podia deixar de pôr em contraste os Césares e o seu Mestre. Jesus não tinha exércitos, nem armas, à parte uma espada ferrugenta que um dos seus seguidores tinha apanhado no caminho. A sua única autoridade era o amor; era a única autoridade que legava aos seus discípulos. Todas as formas de coacção e títulos mundanos lhe eram estranhos. Fugiu a esconder-se nos montes quando a multidão queria fazê-lo rei. A lei régia era a de Deus e realizava-se pela misericórdia, pela pobreza, pela entrega a Deus e ao próximo. Mesmo depois da morte, Jesus continuou a sofrer nos seus irmãos. Ele ajudá-los-ia a carregarem a sua cruz; nunca aprovaria qualquer crueldade que fizessem. O império de Jesus era o do amor e da paz. Os cristãos eram considerados pelos Romanos como uma seita judaica. Também eles eram considerados hostis à sociedade. Eram mesmo acusados de terem o seu próprio rei. Pedro sabia que Cristo não era nenhum rival de César, nem os cristãos traidores por o venerarem. A fé era uma coisa distinta da cidadania; fazia deles melhores cidadãos. 39 O Imperador Nero não concordava. Gostava de perseguir estes rebeldes. Obrigou os cristãos a fazerem o papel de Actéon. Vestidos com peles de animais, eles eram despedaçados pelos cães. No dia 19 de Julho do ano 64, Roma ardeu. As circunstâncias eram suspeitas. Nero estava a gozar os ares do mar em Anzio; os triumviri nocturnii, soldados vigilantes dos fogos, estavam de folga. O fogo durou uma semana destruindo dez das catorze regiões da cidade. Quando Nero regressou, Popeia, a imperatriz, e o actor Alituro sussurraram- lhe: «Os cristãos». Claro, eram eles os responsáveis. No circo, construído nos belos prados Quintilianos, os cristãos foram devidamente punidos. O circo, com o obelisco de Heliópolis no topo, brilhou noite após noite de velas acesas. Os cristãos, homens, mulheres e crianças, presos em cruzes, arderam bem. De facto, morreram magnificamente, os primeiros de muitos. Pouco depois do fogo, Pedro foi preso. Era com a sua própria morte que ele agora contava, sem medo. O seu desejo era ir para junto de Deus, tal como Jesus. E o seu desejo cumpriu-se. Um dia levaram-no para o ar livre, que quase o sufocou, e para o sol, que cegava. Entregaram-lhe uma cruz e disseram-lhe que começasse a andar. A notícia espalhou-se e logo Lino apareceu em cena. O Grande Pescador ia para junto de Jesus. Discretamente, à distância, eles viram como ele estava magro e fraco depois daquela longa prisão. Mas estava feliz, também repararam nisso. Quando chegaram ao lado norte do circo, Pedro pediu para ser crucificado de cabeça para baixo por respeito ao seu Mestre. Os soldados não levantaram objecções. O último desejo de um criminoso devia, se possível, ser respeitado. A morte veio depressa; o sangue afluiu-lhe à cabeça. Passou da inconsciência à glória. Nessa noite, os seus seguidores reclamaram o corpo e enterraram-no junto do muro onde as vítimas do circo eram geralmente sepultadas. O terreno era junto do primeiro marco miliário na Via Cornélia. Trinta anos depois, Anacleto viria a construir sobre ele uma capelinha onde podiam rezar três ou quatro ao mesmo tempo. O escritor Tertuliano disse: «Orientem fidem primus Nero cruentavit […]» («Nero foi o primeiro a manchar de sangue a fé nascente. Pedro, como Cristo previu, foi atado por outro, quando foi preso à cruz; foi então que Paulo conseguiu, no seu sentido mais elevado, a liberdade de Roma. […] Que feliz é esta igreja cujos ensinamentos os Apóstolos regaram com o seu sangue»). Não passará muito tempo e os sucessores de Pedro deixarão de ser os servos para passarem a ser os donos do mundo. Vestir-se-ão de púrpura, como Nero, e chamar-se- ão de Pontifex Maximus. Irão referir-se ao Pescador como “o primeiro papa” e não apelarão para a autoridade do amor, mas para o poder nele investido para agirem como Nero. Em oposição a Jesus, os cristãos vão fazer aos outros o que lhes fizeram a eles, e pior ainda. A religião que se orgulhava de ter triunfado sobre as perseguições pelo sofrimento, irá tornar-se a fé mais perseguidora que o mundo alguma vez conheceu. Irão perseguir até a raça de que Pedro — e também Jesus — eram oriundos. Irão ordenar, em nome de Cristo, que todos aqueles que discordem sejam torturados e algumas vezes crucificados sobre a fogueira. Farão uma aliança entre o trono e o altar; insistirão em que o trono é o guardião do altar e o garante da fé. A sua ideia será a de o trono (o Estado) impor a religião cristã a todos os seus súbditos. Não os perturbará o facto de que Pedro lutou contra tal aliança e morreu por causa dela. Durante três séculos, após a morte do apóstolo no Monte do Vaticano, a Igreja, apesar da perseguição, cresceu em força até chegar o dia em que se deixou tentar em partilhar a sorte de César. 40 A grande tentação Era o amanhecer, os dedos rosados do sol começavam a abraçar as colinas. Antes de o sol estar visível, houve um silêncio longo e profundo apenas quebrado pela música palpitante da cotovia e o ladrar de um cão algures no deserto da Campânia. Precisamente quando o sol se erguia acima do horizonte, ouviu-se um novo som: os passos de um exército em marcha. Levantou-se uma nuvem de poeira na grande Estrada do Norte. No meio da poeira e da neblina tomaram forma filas sobre filas de homens armados. No escudo e no estandarte o exército tinha um símbolo na diagonal que representava Christos, Cristo. O comandante-em-chefe apareceu à vista a cavalgar. Montado em magnífico corcel, Constantino tinha acabado de tomar sozinho o poder do Império. Ele não pensava ter muitas possibilidades. O seu rival, Maxêncio, tinha os trunfos todos. As suas tropas eram mais numerosas e estavam mais frescas. Bastava manter-se dentro das muralhas de Roma paraficar inexpugnável. Mas mesmo assim, Constantino continuou a sua marcha; não tinha outra saída. Tinha de combater até ao fim. No dia anterior, tivera uma estranha experiência. Ninguém podia ser mais devoto do Deus-Sol do que ele; também venerava frequentemente Apolo. Então, estava ele de joelhos, virado para o sol, venerando aquela divindade incandescente quando — seria uma visão? Uma ilusão devida a tonturas? Um sonho? — viu uns raios negros a saltar do sol na diagonal e ouviu na sua cabeça um nome: Christos. A mãe, Helena, era cristã; andava sempre com Christos na boca, mas Constantino nem nunca tinha pensado nele. Nunca, até então. Uma voz vinda de outro mundo parecia estar a dizer: «Por este sinal vencerás». Estava a agarrar-se a ilusões, sem dúvida, mas deu ordens aos seus oficiais para que substituíssem a Águia Imperial pelo símbolo de Cristo. Diziam que aquele Cristo, pensou ele, tinha ressuscitado dos mortos. Quando se defrontasse com Maxêncio, ele próprio precisaria provavelmente de um truque desses. Durante a marcha, os seus batedores informaram-no de que Maxêncio tinha saído da cidade e se dirigia para Saxa Rubra, nove milhas a norte de Roma. Sabia agora que afinal tinha uma possibilidade. Naquele ponto a estrada tornava-se um desfiladeiro entre duas colinas. Traçou planos para cortar a retirada a Maxêncio pela retaguarda. Nessa noite rezou com fervor dirigindo-se ao sol e pronunciando o nome da sua nova divindade. Na manhã seguinte, 27 de Outubro de 312, esperou pelo nascer do sol para ter a certeza de que Jesus estava com ele, e ordenou um ataque. Cercado, o inimigo ficou descontrolado na Ponte Milviana. Maxêncio tentou escapar mergulhando no Tibre, mas a armadura arrastou-o para o fundo e, tal como muitos dos seus soldados, morreu afogado. Constantino entrou triunfalmente em Roma, como o novo imperador, com mais uma divindade a protegê-lo. Pouco tempo depois já ele tratava com o novo papa, Silvestre, que sucedeu ao mais cauteloso Miltíades como Bispo de Roma. Silvestre, tal como muitos prelados depois dele, não via nada de estranho num guerreiro convertido à fé num Cristo crucificado por via da chacina dos seus inimigos. Assim começou a aliança entre César e Papa, entre o Trono e o Altar. Com o tempo isto viria a tornar-se parte da ortodoxia católica. O Imperador Constantino nunca renunciou ao título de Pontifex Maximus, chefe do culto pagão oficial. Quando, no ano 315, a sua vitória se consolidou, atribuiu-a à «inspiração da divindade» não especificada. Nas suas moedas continuava a aparecer a 41 imagem do Deus-Sol. Não aboliu as Vestais nem o Altar da Vitória no Senado. Jamais fez do Cristianismo a religião oficial. Nascido em 274 de uma ligação de Constâncio com uma mera concubina, Helena, ele nunca teria sido elegível para honras imperiais. Conseguiu a consagração pela espada. Casado por duas vezes, assassinou Crispo, seu filho da primeira mulher, em 326. Mandou matar a segunda mulher por afogamento no banho; matou o sobrinho de onze anos e a seguir o cunhado depois de ter jurado garantir-lhe segurança. Não perseguiu os cristãos, apenas familiares e amigos. Longe de ser o modelo de príncipe cristão, nunca deixou de ser um político intransigente e, segundo Jacob Burckhardt, com «uma terrível e fria ambição de poder». Patrocinou o Cristianismo porque se mostrara útil ao dar-lhe a vitória numa batalha decisiva. A Igreja curvou-se-lhe, sem grande susceptibilidade em relação aos seus enredos matrimoniais, porque ele era útil à sua causa. Pouco depois disto, Constantino fez com Licínio, o seu rival do Oriente, um acordo, conhecido como o Édito de Milão. Já há muito tempo que consideramos que não se deve negar a ninguém a liberdade de culto. Pelo contrário, o pensamento e o desejo de cada um deve ser garantido, permitindo-lhe tratar das coisas do espírito de acordo com as suas opções. Esta a razão por que demos ordens no sentido de que a cada um seja permitido ter as suas próprias crenças e fazer as suas devoções conforme queira. Isto era uma expressão exemplar dos direitos religiosos de todas as pessoas sem distinção. A tolerância que isto revelava permitiu aos cristãos saírem das catacumbas para a plenitude dos direitos de cidadania. O que é trágico é que este princípio nunca foi aceite pela Igreja Católica. A verdade, insistia ela, nunca pode ser objecto de compromisso. Daí que, sempre que teve o controle, ela negou aos outros a liberdade de religião. Quando a Paz de Westfália em 1648 estabeleceu que «Os cidadãos cuja religião seja diferente da do seu soberano devem ter direitos iguais aos outros cidadãos» isto foi condenado por Inocêncio X. Outras declarações de liberdade religiosa semelhantes foram anatemizadas século após século pela Igreja Católica como não cristãs, perniciosas, insensatas, e em nada diferentes do ateísmo. É irónico que nenhum documento da história da Igreja, nem mesmo do Concílio Vaticano II, seja tão tolerante, generoso e sensato como o Édito de Milão, elaborado por dois guerreiros sanguinários. No ano de 380 aconteceu ao Cristianismo uma coisa que teria espantado Jesus e Pedro: tornou-se a religião oficial do Império Romano. Nas palavras de Acton, a Igreja tornou-se «a muleta dourada do absolutismo». Com o novo prestígio da Igreja vieram também perigos sempre presentes. No princípio, o estado entrou nos domínios da Igreja tentando moldar a fé aos seus requisitos da lei e da ordem. A partir de então, a Igreja, que começou por ser um movimento de massas e de libertação espiritual, adoptou um padrão conservador que se manteve até hoje. Muito frequentemente, os prelados alinharam com os ricos contra os pobres; fizeram escolhas à direita e não à esquerda. Temiam instintivamente mais o comunismo do que o fascismo. Com o tempo, a Igreja começou a inverter as posições invadindo os direitos dos príncipes. Os papas nomeavam e destituíam até os imperadores exigindo que estes impusessem o Cristianismo aos seus súbditos sob a ameaça da tortura e da morte. 42 O resultado final foi a Cristandade. Em muitos aspectos esta foi a maior força civilizadora jamais vista no mundo. Os custos para a mensagem do Evangelho foram terríveis. Tudo isto foi no futuro. Nos primeiros tempos depois de Constantino, a Igreja, já respeitável, contentou-se em tirar partido da Pax Romana: uma língua comum, um sistema jurídico e estradas directas para levar a mensagem de Jesus a todo o Império. A Igreja já não tinha de temer perseguições. Os Judeus e os “descrentes“ é que estavam agora ameaçados. Agora, eles é que seriam torturados, queimados e crucificados em nome de Jesus, o Judeu Crucificado. Os primeiros pontífices Segundo o historiador germânico Gregorovius, «Até ao reinado de Leão I, no século V, a Cadeira de Pedro nunca fora ocupada por um simples bispo de importância histórica». Houve razões para isto. Nos primeiros tempos, a comunidade cristã estava empenhada na sobrevivência num meio hostil. Eram detestados pelos Judeus e olhados com suspeita pelos Romanos por não venerarem as divindades locais. E os cristãos também não se alistavam no exército, levantando assim dúvidas sobre a sua fidedignidade como cidadãos. Apesar disto, o Cristianismo cresceu, especialmente entre os escravos e as classes mais pobres. Estes responderam com ardor ao Sermão da Montanha e à pregação de Jesus, que foi crucificado como um escravo e ressuscitado dos mortos como precursor da Ressurreição Final. Foi quando a Igreja emergiu da sombra, quando as perseguições de Nero e Diocleciano já se tinham tornado más recordações que as coisas começaram a piorar. Já havia sinais disso mesmo antes da conversão de Constantino. Por exemplo, depois da morte de Marcelino, em 304, não houve bispo de Roma durante quatro anos por causa de uma disputa dentro da comunidade cristã sobre se os apóstatas que regressassem deviam ou não fazer penitência. Embora os tempos fossemdifíceis para a fé e as heresias estivessem a crescer, a escolha de um novo bispo (papa) não era de primordial importância. Quando a Igreja se tornou respeitável, depois do Imperador Constantino, é que as querelas viciosas rebentaram. A comunidade recebeu terras e muitos privilégios. Para o diaconato e sacerdócio perfilou-se o tipo errado de candidatos. Mamona entrou em conflito directo com Deus na Igreja. Com a morte de um papa revelavam-se muitas azedas rivalidades. Por exemplo, quando Libério morreu, em 366, duas facções elegeram cada uma o seu sucessor. Ursino era um papa, Dâmaso, outro. Depois de muita luta nas ruas, os seguidores de Ursino trancaram-se no interior da Basílica de Santa Maria Maior, conhecida como Nossa Senhora da Neve, acabada de construir pouco tempo antes. Alguns apoiantes de Dâmaso subiram ao telhado, fizeram nele um buraco e bombardearam os ocupantes com telhas e pedras. Entretanto outros atacavam a porta principal. Quando esta cedeu, seguiu-se uma luta sangrenta que durou três dias. No fim, 137 corpos foram trazidos para fora, todos eles de seguidores de Ursino. O representante do imperador mandou Ursino para o exílio, mas o crime de Santa Maria Maior ficou como um borrão indelével no caderno de Dâmaso. Como compensação, Dâmaso acentuou a sua autoridade espiritual como “sucessor de S.Pedro“, um direito, como já foi assinalado, não reconhecido pelos Pais da Igreja. «Só depois de Dâmaso, em 382,» escreve Henry Chadwick, «é que este texto Petrino [«Tu 43 és Pedro»] se começou a tornar importante como fonte de fundamentação teológica e evangélica em que se baseava o direito à dignidade de primaz». Por essa altura, o Bispo de Roma era um grande proprietário de terras e um líder civil. O paradoxo é que os papas só se tornaram papas quando, a juntar ao seu papel religioso, começaram a tomar outros cargos completamente seculares. «O resultado desta associação,» diz Jeffrey Richards no seu livro The Popes and the Papacy in the Early Middle Ages, «foi um papado cujo poder aumentou para além dos seus sonhos mais extravagantes». Dâmaso ilustra bem este facto. Chegou ao poder à custa de muito sangue. Tornou-se por esse meio um homem muito rico e poderoso. Quando pediu ao prefeito de Roma, um pagão com muitos títulos sacerdotais, que se convertesse, este respondeu-lhe:«De boa vontade, se o senhor me fizer Bispo de Roma». O escritor dessa época Aniano Marcelino sugeriu que devia haver uma concorrência muito viva para um cargo tão lucrativo. «Porque uma vez obtido esse cargo, um homem goza em paz um destino assegurado pela generosidade das matronas; pode viajar em carruagem, vestido com magníficos mantos; pode oferecer banquetes cujo luxo ultrapassa o da mesa do imperador». O secretário de Dâmaso, o ascético S.Jerónimo, descreveu o tipo de clérigos que rodeavam Dâmaso; tinham mais o aspecto de noivos, disse ele. E o papa, que chegara ao poder com a ajuda da guarda, precisava constantemente da protecção desta contra os seguidores de Ursino. Episódios desagradáveis como este não foram assim tão raros. Noutras ocasiões houve dois ou até três candidatos rivais para o bispado. Às vezes o lugar ficava vago durante meses e anos, porque os Romanos não se entendiam. Uma vez dois rivais foram derrubados por um terceiro que dera ao exarca em Ravena, o representante do imperador, cem libras em ouro pelo seu apoio. A tradição da eleição do Bispo de Roma pelo povo da cidade remontava aos tempos apostólicos. Isto levou muitas vezes à confusão. No século XI puseram ordem nas coisas tornando-se os cardeais, representantes do clero local, os únicos eleitores. Os leigos nunca mais recuperaram o seu direito a uma palavra na escolha do seu bispo. Mas nem mesmo os conclaves de cardeais resolveram o problema, tanto assim que na Idade Média e posteriormente houve muitas vezes mais do que um “papa”. Mas nestes primeiros tempos a situação foi algumas vezes crónica. Gregorovius salientou que nos séculos VI e VII a maior parte dos papas reinou apenas dois ou três anos. Será que eles eram escolhidos quando já estavam perto da morte, ou a sua morte era apressada por facções rivais? Ele não sabia. De acordo com Richards, a maioria dos papas foi escolhida segundo o critério da recompensa por serviços prestados, de modo que quase todos eram de idade e doentes. O Papa Sisino, por exemplo, foi consagrado em 15 de Janeiro de 708. Estava tão diminuído pela artrite que nem sequer conseguia levar a comida à boca para se alimentar. Morreu vinte dias depois. Escreve Richards: «Com esta parada de enfermidades e incapacidades é de admirar que o papado tenha conseguido alguma coisa». Assim, mesmo as eleições que envolviam corrupção, suborno e derramamento de sangue resultavam muito frequentemente na entrega do cargo papal a homens velhos e doentes. Richards relata o seguinte: «O fogo e os condimentos desses tempos chegam até nós nos documentos desse período que sobreviveram. […] Esta é que é a carne vermelha crua da história do papado, e não as doses dissecadas e pré-embaladas servidas à moda da história papal». Apesar de toda esta chicana e corrupção, não passou muito tempo sem que aquele período fosse olhado como cândido, quase como a Idade de Ouro do Papado. 44 Um documento assombroso Estêvão III tornou-se pontífice no ano 752 depois de o seu antecessor, Estêvão II ter reinado apenas quatro dias, o reinado mais curto de que há registo. O novo pontífice tinha sido educado praticamente na corte papal. Sabia que o papa não era um líder meramente religioso, mas, como vassalo leal do imperador, também governador civil com extensos territórios sob a sua jurisdição. A secularização da Igreja iniciada por Constantino estava no bom caminho. Ele tinha visto o potencial da hierarquia como classe governante. Estavam tão bem organizados como o seu próprio funcionalismo civil, que foram lentamente substituindo nos tribunais e na diplomacia. Quando, no ano 330, o imperador levou a sua entourage para Constantinopla, local da antiga cidade grega de Bizâncio, os bispos de Roma envolviam- se cada vez mais nos assuntos civis. Dois papas em particular contam-se entre os maiores homens de sempre. Leão o Grande (440-61) num acto de grande coragem salvou Roma de Átila o Huno. Gregório o Grande (590-604) foi efectivamente o líder civil, bem como o Patriarca, do Ocidente. Com este duplo papel lançado sobre eles, houve um inevitável crescimento da burocracia. Trabalharam heroicamente, mas na Roma cristã nunca mais se viu a simplicidade cristã. Quando os Lombardos, uma tribo bárbara do Báltico, se estabeleceram na Itália depois do ano 568, o papado deixou de ter paz. Os recém-chegados tomaram a maior parte do norte. Gradualmente convertidos, os Lombardos nunca tiveram a confiança da Santa Sé. Quando os laços que ligavam os papas e os imperadores, seus vassalos, abrandaram, os pontífices tiveram de forjar uma nova aliança militar, para conservar Roma e os territórios vizinhos. Teria sido provavelmente melhor se as tivessem restituído, mas para os grandes proprietários isso sempre foi impensável. Após um ano de pontificado, Estêvão III viajou para o norte, no inverno, para se avistar com Pepino, Rei dos Francos. Nunca um papa tinha procurado auxílio junto de um soberano ocidental; e este viria a ser o primeiro de muitos pedidos de auxílio militar. Vestido de negro, o cabelo coberto de cinzas, o papa ajoelhou aos pés do rei implorando-lhe que usasse os seus exércitos para salvar os interesses de Pedro e Paulo e da comunidade de Roma. Aí, na Abadia de S.Dinis, sagrou Pepino e seu filho Carlos Magno como “patrícios dos Romanos“. É muito provável que neste encontro Estêvão tivesse mostrado ao seu anfitrião real um documento muito antigo. Cheio de pó e a desfazer-se, tinha sido preservado durante séculos nos arquivos papais. Datado de 15 de Março de 315, chamava-se “A Doação de Constantino”. Era uma escrituraou um presente do primeiro imperador ao Papa Silvestre. A Doação conta a comevedora estória de como Constantino contraiu a lepra por todo o corpo. Os sacerdotes pagãos erigiram uma fonte no Capitólio e tentaram persuadi-lo a enchê-la de sangue de crianças. Enquanto o sangue estivesse quente, Constantino deveria banhar-se nele para ficar curado. Arrebanharam muitas crianças acompanhadas das mães em lágrimas. O imperador, comovido com as suas lágrimas, mandou-as para casa carregadas de presentes. Nessa noite ele teve um sonho. Pedro e Paulo disseram- lhe que contactasse o Papa Silvestre, então escondido no Monte Soracte. O papa mostrar-lhe-ia o verdadeiro “lago da piedade”. Uma vez recuperada a saúde, teria de restaurar as igrejas cristãs em todo o mundo, deixar de rezar aos ídolos e venerar o verdadeiro Deus. Constantino fez como lhe disseram. «Quando eu estava no fundo da 45 fonte,» disse ele, «vi uma mão vinda do Céu a tocar-me». Voltou do seu baptismo curado. Silvestre pregou-lhe a Trindade e repetiu as palavras de Jesus para Pedro: «Tu és Pedro […] e eu vou entregar-te as Chaves do Reino». Convencido de que se tinha curado pelo poder do Apóstolo, Constantino, em nome do Senado e de todo o povo de Roma, ofereceu um presente ao Filho do Vigário de Deus e a todos os seus sucessores: Considerando que o nosso poder imperial é terreno, decretámos que ele venerará e honrará a sua muito santa Igreja Romana e que a sagrada Sé do Abençoado Pedro será gloriosamente exaltada mesmo acima do nosso Império e trono terreno. […] Ele dirigirá as quatro principais Sés, Antióquia, Alexandria, Constantinopla e Jerusalém, como todas as igrejas de Deus em todo o mundo… Finalmente, vede, transferimos para Silvestre, papa universal, a propriedade do nosso palácio assim como de todas as províncias e palácios e distritos da cidade de Roma e Itália e das regiões de ocidente. Constantino também deu uma explicação até então desconhecida sobre a razão por que se mudara para o oriente. Desejava que Roma, onde a religião cristã foi fundada pelo Imperador do Céu (Cristo), não tivesse rival na terra. A Roma pagã abdicara em favor da Roma cristã. O Rei Pepino ficou impressionado. O documento provava que o papa era o sucessor de Pedro e também de Constantino. O imperador tinha mesmo agido como vassalo de Silvestre, inspirando muitos reis e imperadores a imitarem a sua humildade nas coroações papais nos séculos seguintes. Quando Pepino desbaratou os Lombardos, devolveu ao papa todas as terras que eram suas por direito devido à Doação. Foi um desenvolvimento surpreendente dos Evangelhos. Jesus só possuía as roupas que trazia no corpo. Os seus principais discípulos agora não só tinham enormes territórios a que se tornaram excessivamente apegados, como também precisavam de alianças militares para os manter. A Doação continuou a ter influência. Por exemplo, o único papa inglês, Adriano IV, recorreu a ela quando deu a Irlanda a Henrique II da Inglaterra. Adriano fora anteriormente Nicholas Breakspear, filho de um padre. Quando Henrique iniciou a longa e trágica ocupação da Irlanda em 1171, o episcopado irlandês, reunido em Cashel, reconheceu-o e aos seus sucessores como legítimos reis da Irlanda. Isto foi depois confirmado pelo novo papa, Alexandre III, não sem antes ter insistido em que teria de receber uma quantia anual por cada membro do seu pessoal. Este era o preço do papado por entregar estas muito católicas e célticas terras ao normando inglês. O que torna isto mais difícil de suportar é que a Doação foi uma falsificação. A Doação foi uma invenção, provavelmente maquinada por um padre de Latrão pouco antes da visita de Estêvão III ao Rei Pepino. Tal era o estado da erudição nesse tempo. Todos se deixaram enganar por uma coisa que hoje não enganaria um miúdo da escola. Só quando um assessor papal, Lorenzo Valla, o analisou linha por linha em 1440 é que ficou provado que era uma fraude. Valla mostrou que o papa naquela alegada data da Doação não era Silvestre mas Miltíades. O texto refere “Constantinopla”, enquanto a cidade de Constantino no Oriente ainda conservava o nome original de Bizâncio. A Doação não estava escrita em latim clássico mas numa forma abastardada posterior. Também se dão explicações sobre, por 46 exemplo, as insígnias de Constantino, que não teriam sido necessárias no século IV, mas que o eram no século VIII. De inúmeras e irrefutáveis maneiras, Valla desfez completamente o documento. Fê-lo com apreensão porque sabia que muitos prelados romanos iriam vingar-se. Como eu ataquei não os mortos, mas os vivos, não meramente um qualquer legislador, mas o mais alto legislador, nomeadamente, o Sumo Pontífice, contra cuja excomunhão nenhum príncipe pode proteger. […] O papa não tem o direito de me intimar por defender a verdade. […] Quando tantos suportam a morte em defesa de uma pátria terrena, não havia eu de correr perigo por amor da minha pátria celeste? Só em 1517 é que o livro de Valla foi publicado. Foi no crítico ano em que Lutero atacou as indulgências. Uma cópia chegou às mãos de Lutero, que viu pela primeira vez que muitas das suas crenças sobre o papado se baseavam em falsidades como a da Doação. Embora todos os eruditos se tivessem rendido aos argumentos de Valla, Roma não os aceitou; continuou a afirmar durante séculos a autenticidade da Doação. E foi pena, na medida em que a verdade sobre ela era muito mais incrível do que a série de mentiras que ela continha. A estória da lepra de Constantino e da sua subsequente cura baptismal foi uma invenção piedosa do século V. A lenda ficou perpetuada no baptistério de S.João de Latrão em Roma. Uma inscrição relata a maneira como o imperador lá foi baptizado pelo Papa Silvestre. Os factos são estes: Constantino foi um militar num tempo em que para a Igreja o derramamento de sangue era inaceitável. Talvez seja esta a razão por que ele adiou o baptismo para uma altura em que já estava à beira da morte e não tinha já forças para pecar ou matar mais alguém. Não muito tempo antes, a sua mãe, Helena, morrera com mais de oitenta anos. Só então é que o imperador se juntou aos catecúmenos, não na sede da Igreja, mas na distante Helenópolis, no Oriente. Foi aí baptizado não pelo papa, nem sequer por um bispo ou padre, mas por um bispo ariano herege chamado Eusébio. Morreu no último dia do período do Pentecostes no ano de 337. Isto lança algumas sombras sobre muitos dos mais significativos acontecimentos da história dos primeiros tempos da Igreja. Quando chamou aos bispos seus queridos irmãos e se intitulou ele próprio “Bispo dos Bispos”, nome de que os papas se apropriaram mais tarde, Constantino não era cristão nem sequer catacúmeno. Contudo, ninguém se lhe podia comparar em estatura e autoridade. Mesmo o Bispo de Roma — que não havia de se chamar “o papa” ainda durante muitos séculos — era, em comparação, uma pessoa sem importância. Em termos civis, era vassalo do imperador; em termos espirituais, era, comparado com Constantino, um bispo de segunda categoria, com um título honorífico superior à maioria dos outros bispos porque detinha a Sé Apostólica onde Pedro e Paulo tinham trabalhado e estavam sepultados. Como Burckhardt acentua na sua obra The Age of Constantine, o título de bispo ecuménico do imperador «não era uma simples maneira de dizer; na realidade, a Igreja não tinha qualquer outro centro de poder». Não era o papa, mas sim ele, tal como, mais tarde, Carlos Magno, que era o chefe da Igreja, a sua fonte de unidade, perante quem o Bispo de Roma se tinha de prostrar e jurar a sua lealdade. 47 Todos os bispos concordavam em que ele era o «oráculo inspirado, o apóstolo da sabedoria da Igreja». Até ao fim da sua vida, Constantino construiu magníficas igrejas na Palestina e noutros locais e ao mesmo tempo construía templos pagãos igualmente magníficos em Constantinopla. Isto foi claramente entendidocomo a primeira afirmação da “Questão Romana”. O imperador foi considerado pessoa sagrada, Pontifex Maximus, outro título que o papa havia de assumir mais tarde. Daí que o imperador, e só ele, tivesse autoridade para convocar assembleias religiosas como o Concílio de Arles no ano de 314. Como diz um bispo seu contemporâneo: «A Igreja fazia parte do Estado. A Igreja nasceu dentro do Império e não o Império dentro da Igreja». Era, portanto, Constantino, e não o Bispo de Roma, quem marcava a data e o local dos sínodos da Igreja e até a maneira como os votos eram distribuídos. Sem a sua aprovação não podiam ser transformados em lei; ele era o único legislador do Império. Outro paradoxo da história é que foi Constantino, um pagão, quem inventou a ideia de um concílio de todas as comunidades cristãs. Só desta maneira, dizia-lhe o seu génio, é que a fé da Igreja seria formulada de maneira incontestável e para sempre. Nenhum bispo desse tempo teria pedido ao Bispo de Roma para decidir sobre espinhosas questões de crença. Depois de derrotar Licínio no Oriente em 321, Constantino convocou o Primeiro Concílio Geral da Igreja, que se realizou em 325 na Bitínia, num lugar chamado Niceia, que significa “Vitória”. Foi talvez a mais importante assembleia cristã da história. O Arianismo, uma heresia que subordinava o Filho ao Pai, tinha-se espalhado por todo o mundo. A controvérsia não foi simplesmente amarga, foi sangrenta. Ter os cristãos a guerrearem-se uns aos outros não era do interesse do imperador; eles deviam ser a força estabilizadora do Império. Ficou desanimado quando descobriu que, depois de os libertar das perseguições, estavam a despedaçar-se uns aos outros em nome da Santíssima Trindade. Em Niceia o Pai Fundador dos Concílios Ecuménicos reuniu 300 bispos, tendo providenciado transporte gratuito. Todos eles, à excepção de uma dúzia, eram do Oriente. Silvestre, o Bispo de Roma, não assistiu; enviou dois presbíteros. Silvestre não teve, sem sombra de dúvida, qualquer papel na convocação do Concílio, nem na sua direcção. Este foi completamente controlado por um imperador pagão que o realizou no grande átrio do seu palácio. Segundo o historiador Eusébio, ele era alto e magro, cheio de graça e majestade. Para fazer sentir a sua presença abriu os trabalhos «rígido no seu manto de púrpura, ouro e pedras preciosas». Cedo ficou claro que a maioria dos bispos era a favor da posição ariana. Constantino não tinha quaisquer preferências teológicas conhecidas, mas ergueu-se do seu trono dourado para pôr fim à discussão. Provavelmente queria apenas mostrar quem mandava. Propôs aquilo que veio a chamar-se «o ponto de vista ortodoxo» do facto de o Filho de Deus ser «de uma única substância» com o Pai. Todos os bispos dissidentes cederam, à excepção de dois que Constantino imediatamente destituiu mandando-os fazer as malas. Depois, escreveu para Alexandria, onde os Arianos ainda tinham apoio: «Aquilo que satisfez trezentos bispos não foi senão a vontade de Deus». O resultado não foi aquele que ele esperava. A “heresia” ariana continuou por gerações. E o mesmo se passou com a completa imersão do Estado nos assuntos da Igreja. A política eclesiástica substituiu as prioridades do Evangelho. A religião não era importante, o que era sumamente importante era a Igreja. O resultado, é Burckhardt quem o diz, foi uma «Igreja a desintegrar-se rapidamente na vitória». O preço da “conversão” de Constantino ao Cristianismo foi a perda da inocência. O cínico uso que fez de Cristo, com que toda a gente condescendeu, incluindo o Bispo de 48 Roma, significou uma profunda falsificação da mensagem do Evangelho e a introdução de valores a ela estranhos. A partir de então, o Catolicismo floresceu em detrimento do Cristianismo e de Jesus, que não pretendia qualquer papel no mundo do poder e da política e que preferiu ser crucificado a impor as suas opiniões a quem quer que fosse. * * * Na altura em que Estêvão III se tornou papa, a Igreja já se tinha completamente convertido no Império Romano. A partir da Doação, é muito claro que o Bispo de Roma se parecia com Constantino: vivia como ele, vestia-se como ele, habitava os seus palácios, governava as suas terras, tinha exactamente o mesmo aspecto imperial. Também o papa queria ser senhor da Igreja e do Estado. Apenas setecentos anos após a morte de Pedro, os papas tinham-se tornado obcecados pelo poder e pelos bens. O pontífice passeava-se pomposamente pela terra, figura da mundanidade e da espiritualidade. Queria, literalmente, o melhor dos dois mundos, mas alguns imperadores controlaram a sua ambição. O Sacro Império Romano Carlos Magno tinha cinquenta e oito anos, estatura enorme para aquele tempo, cabeça redonda e cabelo branco, nariz comprido e olhos grandes e vivos. Inteligente e capaz de conversar em latim, fundador de universidades, nunca conseguiu dominar a leitura, nem nunca foi capaz, apesar de ter os melhores tutores, de escrever o nome. Nos cinquenta e três anos que se seguiram a Estêvão III, crescera a necessidade de auxílio militar por parte do papado. Os laços que ligavam Roma e Constantinopla, devido à distância e à diferença de pontos de vista, estavam já quase completamente quebrados. Carlos Magno, rei dos Francos, era homem para aproveitar a brecha para entrar. No ano 782 tinha feito prisioneiros quatro mil e quinhentos saxões, mandando-os decapitar nas margens do Rio Aller. Era perfeitamente capaz de tratar dos Lombardos, que continuavam a ameaçar o papado. O novo defensor da Igreja não era mais virtuoso do que Constantino. Tinha-se divorciado da primeira mulher e teve seis filhos da segunda. Depois de dispensar os serviços desta, teve duas filhas da terceira e ainda mais uma filha de uma amante. Sem filhos da quarta mulher, quando ela morreu mantinha quatro amantes — doze foi a sua conta ao longo da vida — e teve pelo menos um filho de cada. Einhard, o seu biógrafo franco que forneceu estes pormenores, insiste que ele sempre foi um pai dedicado. Alcuin, um inglês, o monge mais erudito da época, já há muito que tinha pressionado Carlos Magno a aceitar a coroa do Ocidente. Havia apenas três grandes homens no mundo, disse ele ao seu mestre, sendo dois deles o papa e o imperador de Constantinopla. «O terceiro é a dignidade real que por disposição de Nosso Senhor Jesus Cristo vos é conferida como governador do povo cristão; e esta é mais excelente do que as outras dignidades do poder, mais forte em sabedoria, mais sublime em categoria». O papa reinante, Leão III, estava ansioso pela vinda de Carlos Magno para Roma. Precisava de protecção contra os intrusos; também queria ter o seu nome limpo ao mais alto nível de insistentes acusações de adultério. Pouco antes de Carlos Magno chegar, Leão foi atacado por uma turba hostil. Rasgaram-lhe os olhos e cortaram-lhe a língua. O resultado foi que a coroação de 800 não teve nada do esplendor e do aparato da de 49 Napoleão quando em 1804 este se coroou como “Imperador dos Franceses“ em Notre Dame de Paris. Carlos Magno estava ajoelhado em frente do túmulo de Pedro quando Leão, a tactear á procura da cabeça onde devia colocar a coroa balbuciou que Carlos Magno era Imperador e Augusto e ajoelhou a venerá-lo. Segundo Einhard, o seu mestre ficou vermelho de raiva. Mais tarde Einhard ouviu Carlos Magno dizer «que não teria ido à igreja naquele dia mesmo que se tratasse de uma festa solene [o Natal] se tivesse adivinhado os planos do pontífice». Ele queria as honras, claro, mas não à custa de ter de as receber de um vassalo. Tendo tido a maçada de vir a Roma para desculpar um miserável súbdito, não queria aparecer como objecto da sua bênção. Carlos Magno intuiu aquilo que os historiadores haviam de ver muito claramente. Com um golpe de mestre, Leão III estava a afirmar um poder que, nos seus sucessores, iria triunfar sobre os grandes soberanos temporais da terra. Carlos Magno não tardoua agir como governador supremo da Igreja, legislando, escolhendo de entre os nobres os bispos, arcebispos e abades. Tentou fazer com que os monges deixassem de fornicar e, pior, de praticar a sodomia. Também punia com a morte qualquer saxão que, fingindo ser cristão, se escusasse a ser baptizado. Carlos Magno cumpriu de todas as maneiras os desejos de Aluin. Agiu como chefe da Comunidade Cristã. Havia uma lógica nisto, na medida em que o antecessor de Leão, Adriano I, já lhe tinha dado, como recompensa por ele ter aumentado os Estados do Papado, o considerável privilégio de escolher o pontífice Romano. Acontece que o futuro da Europa foi escrito naquele momento de surpreendente ambiguidade em que um papa, criado por Carlos Magno, o coroou como imperador. Qual deles era o maior? De momento, não havia dúvidas acerca disso: Carlos Magno. Mas nos anos que se seguiriam, por este coup de théâtre, Leão tinha assegurado ao papado uma suada oportunidade de supremacia. Foi assim que a Basílica de S.Pedro viu o começo do Sacro Império Romano que, como até uma criança sabe, não foi nem sacro, nem romano, nem império. Havia de vir a durar mil anos, até que, em 1806, Napoleão destronou um monarca de Habsburgo e o dissolveu. Tinham passado então mil e quinhentos anos durante os quais o papado, não contente em confiar apenas no poder de Deus, se tinha apoiado nos príncipes para se proteger contra os portões do inferno. Mas os ataques mais ferozes contra a Igreja não vieram de fora; vieram de dentro — vieram de facto do próprio papado. 50 51 3 A Pornocracia Papal A vinte e cinco quilómetros de Roma, no cimo dos Montes Albanos, moravam no século X os famosos Conti, os Condes Alberico de Túscolo. Estes senhores da guerra tomaram completo controle das eleições papais. Desta única família saíram sete papas, três seguidos, e todos eles, quase sem excepção, ajudaram a dar forma à Roma Deplorabilis (“Roma da Vergonha”). A História desmente o mito popular de que Bórgia foi a maçã podre do papado. Não muito tempo depois de Carlos Magno, e durante bem mais de século e meio, toda a fornada foi podre. Eram discípulos mais de Belial, o Príncipe das Trevas, do que de Cristo. Muitos eram libertinos, assassinos, adúlteros, amantes da guerra, tiranos, simoníacos, prontos a vender tudo o que era sagrado. Quase todos eles estavam mais envolvidos com o dinheiro e a intriga do que com a religião. Com incessantes manobras políticas e uma obsessão pelas questões temporais, por meio do abuso do poder e com uma espantosa perversidade, os papas, supostamente o núcleo da unidade, corromperam toda a Cristandade. Foi o papado, e não a heresia, que finalmente abriu brechas na Igreja. Há realmente um mistério em tudo isto: como é que a Igreja do Ocidente, apesar dos papas, se conseguiu manter unida durante tanto tempo? Para começar, busquemos a ajuda de um exame a uma qualquer lista dos papas a partir do ano 880. Nos cento e cinquenta anos seguintes houve trinta e cinco pontífices que reinaram em média quatro anos cada. Já anteriormente se verificara o mesmo tipo de transmissões de poder; isto explica-se pelo facto de os papas serem escolhidos por serem já velhos e doentes. Mas nos séculos VIII e IX muitos papas andavam na casa dos vinte anos, e vários eram adolescentes. Alguns reinaram vinte dias, um mês, ou três meses. Seis deles foram destronados, e alguns outros assassinados. É de facto impossível saber ao certo quantos papas e antipapas (falsos) houve neste período, porque nessa altura não havia ainda um método de eleição fixo nem um número certo de pretendentes. Quando um papa desaparecia subitamente, não se sabia se lhe teriam cortado o pescoço e atirado ao Tibre; se teria sido estrangulado na prisão; se teria passado a noite num bordel; se lhe teriam cortado as orelhas e o nariz, como em 930 fizeram a Estêvão VIII, que, compreensivelmente, nunca mais mostrou a cara em público; se teria fugido, como Benedito V em 964, que, depois de desonrar uma jovem, partiu imediatamente para Constantinopla com todo o tesouro da Basílica de S.Pedro, para apenas voltar quando os fundos se esgotaram e provocar ainda mais estragos em Roma. Gerbert, o piedoso historiador da Igreja, chamou a Benedito «o mais iníquo de todos os monstros da impiedade», mas o seu juízo foi prematuro. Este pontífice foi por fim assassinado por um marido ciumento. O seu corpo, com centenas de punhaladas, foi arrastado pelas ruas antes de ser lançado para um esgoto. Estes pontífices constituem, sem dúvida, o mais desprezível grupo de líderes, religiosos ou leigos, da História. Eles eram, com toda a evidência, selvagens. A antiga Roma não se lhes comparava em podridão. 52 Estêvão VII era completamente louco. Desenterrou um seu antecessor corso, o Papa Formoso (891-6), mais de nove meses após a sua morte. Naquilo que veio a ser conhecido como o Sínodo Cadavérico, vestiu o fétido cadáver com todas as vestes pontifícias, colocou-o no trono em Latrão e fez-lhe pessoalmente um interrogatório. Formoso era acusado de se ter tornado papa por meios ilegais; era bispo em outro lugar e portanto inelegível para Roma. Segundo o Papa Estêvão, isto tornava todos os seus actos inválidos, especialmente as suas ordenações. Um diácono fala-barato, ainda adolescente, respondeu em nome de Formoso. Depois de considerado culpado, o cadáver foi condenado como antipapa, despido de todas as roupas excepto uma camisa de cilício colada à carne engelhada e, sem os dois dedos com que tinha dado as suas falsas bênçãos, foi lançado ao Tibre. Alguns admiradores de Formoso recuperaram o corpo, qual carcassa de carne, ainda inteiro graças à camisa de cilício, e fizeram-lhe um funeral discreto. Mais tarde foi trazido de novo para o seu túmulo na Basílica de S.Pedro. O próprio Estêvão foi estrangulado passado pouco tempo. Os papas mutilaram e foram mutilados, mataram e foram mortos. As suas vidas não se assemelhavam em nada aos Evangelhos. Tinham mais em comum com os modernos meninos ricos transformados em hooligans e rufiões que infestam os cafés de praia e clubes nocturnos do que com os pontífices tal como o mundo os vê hoje. Uns ficaram a dever a sua nomeação a pais ambiciosos, outros à espada, outros ainda à influência de belas amantes bem nascidas, naquilo que ficou conhecido como “O Reinado das Prostitutas“. Entre as cortesãs, salientou-se Marózia da família Teofilato. Segundo o Bispo Liutprand de Cremona, seu contemporâneo, ela fora bem treinada pela mãe, Teodora, que teve uma segunda filha, também chamada Teodora, do Papa João X (914-29). Aqueles que dizem que as mulheres nunca tiveram qualquer influência na maneira como a Igreja é governada nunca conheceram estas duas mulheres incrivelmente determinadas. Em menos de uma década, elas criaram — e, quando isso lhes conveio, destruíram — nada menos do que oito papas. No seu Decline and Fall, Gibbon sugere que foram estes “papas-fêmeas“ que condensaram a política do sexo que deu origem à lenda, ou sátira, da Papisa Joana. Durante vários séculos, até à Reforma, acreditou-se na existência deste pontífice feminino. Para os ingleses é uma consolação saberem que a única papisa foi uma bela rapariga anglo-saxónica. Reza a estória que, vestida a rigor com as vestes papais, ela deu à luz um filho quando viajava do Coliseu para a Igreja de S.Clemente e, coitada, morreu ali mesmo. Esta lenda gerou outras lendas. Em S.João de Latrão havia uma cadeira de mármore cor de sangue com um buraco no assento. Todos os papas recém-eleitos se sentavam nela para receberem a afirmação de obediência dos seus clérigos. Mas corria o boato de que depois da papisa Joana todos os papas eram obrigados a sentar-se nesta cadeira e a submeter-se a uma espécie de exame ginecológico para evitar que uma segunda mulher ascendesse ao trono papal. O exame — feito por cardeais-mulheres? — era acompanhado por orações em latim. De facto, há um completoritual escrito que aparece em muitos manuscritos medievais com toda a seriedade. Uma outra interpretação mais prosaica desta cadeira era que ela era na verdade uma cadeira-sanita, símbolo visível do facto de o papa ter sido promovido da esterqueira, como um pedinte, e colocado por Deus entre os príncipes. Parece não haver qualquer obstáculo teológico ao desempenho do cargo de papa por uma mulher, mesmo, como diz João Paulo, estando as mulheres proibidas pela lei divina de serem padres. Muitos arcebispos e bispos não tinham ordens. Por exemplo, Adriano V aparece nas listas de pontífices, embora tenha reinado apenas seis semanas, de 11 de Julho a 18 de Agosto de 1276. Não era bispo, nem sequer padre, mas foi um papa legítimo. 53 A Bela Prostituta Marózia, a principal fonte da lenda da Papisa Joana, esteve primeiro intimamente envolvida com o papado na pessoa de Sérgio III (904-11). A barrar o caminho deste para o trono, estivera Leão V, que após um mês de reinado foi preso por um usurpador, o Cardeal Cristóvão. Sérgio procedeu a uma limpeza assassinando ambos. Sérgio exumou uma vez mais o Papa Formoso, já morto então há dez anos e fê-lo condenar outra vez. Como tinha sido ordenado por Formoso, Sérgio devia realmente ter-se considerado ilegítimo a si próprio, mas as argumentações teológicas eram estranhas à sua natureza. E ainda não satisfeito, mandou que decapitassem o cadáver e também lhe arrancou mais três dedos antes de o lançar ao Tibre. Quando o corpo sem cabeça ficou preso na rede de um pescador, o cadáver foi mais uma vez milagrosamente salvo, sendo pela segunda vez restituído à Basílica de S.Pedro. Marózia tinha quinze anos quando se tornou amante de Sérgio, que tinha quarenta e cinco. Dele, ela teve um filho a cuja carreira se devotou. Sérgio viria a morrer cinco anos mais tarde, depois de um pontificado de sete anos carregado de sangue, intrigas e paixão. Marózia nunca iria esquecer o seu amor da juventude. A relação íntima com o papa tinha-lhe dado um desígnio e uma satisfação que nem os seus três casamentos e inúmeras ligações amorosas posteriores conseguiram apagar. A primeira vez que o Papa Sérgio a seduziu foi no palácio de Latrão. Os seus caminhos tinham-se cruzado porque ela passara ali grande parte da juventude, dado que o pai era senador em Roma. Mas depois chegou a altura em que Sérgio se apercebeu de que aquela que outrora fora uma criança espantosa se tinha tornado uma mulher de uma beleza de cortar a respiração. Pela parte de Marózia, não era tanto o prazer que procurava nos braços papais, mas antes o êxtase do poder. A mãe, Teodora, já tinha feito e desfeito dois papas quando, em contravenção da lei canónica, pegou na mão do seu amante favorito e o levou do bispado de Bolonha ao arcebispado de Ravena e por fim à Cadeira de Pedro, como João X. Liutprand, Bispo de Cremona, escreveu: «Teodora, prostituta como era, temendo ter poucas oportunidades de partilhar a cama com o seu amado, obrigou-o a abandonar o bispado e tomar para si — oh, crime monstruoso - o papado de Roma». Isto aconteceu em Março de 914 quando Marózia tinha vinte e dois anos. Não se importou muito com isso; o filho dela e de Sérgio tinha apenas seis anos, muito novo ainda para o papado, mesmo nesses tempos ímpios. Foi neste ponto que os Albericos da Toscânia, oriundos do norte, entraram em cena. O Papa João sugeriu a Teodora, sua companheira de cama, que um casamento entre Marózia e Alberico poderia vir a ser benéfico para todas as partes. Marózia sabia reconhecer uma estrela em ascensão, e dessa união nasceu Alberico Júnior. Alberico Sénior, provavelmente induzido pela mulher, tentou prematuramente tomar o controle de Roma e foi morto. O Papa João obrigou a jovem viúva a ver o cadáver mutilado. Isto foi um erro. Uma mulher que dormira com o Papa Sérgio sabia tudo sobre a vingança. Quando Teodora morreu, em 928, Marózia mandou prender o pontífice e depois deu ordens para que fosse morto por asfixia. O seu primeiro filho tinha agora dezassete anos. Em breve, muito em breve, teria já a experiência suficiente para o papado. Uma vida totalmente sensual e imoral tinha-o preparado para isso. Os dois papas seguintes tiveram reinados curtos, tendo ambos desaparecido em circunstâncias misteriosas. Então, com vinte anos, o filho de Marózia e do Papa Sérgio tornou-se o Papa João XI. Mas Marózia tinha ainda outras ambições. Morto o seu segundo marido, Gui, casou com o meio irmão deste, o Rei Hugo da Provença. Hugo já era casado, mas foi fácil 54 despachar a mulher. Para Marózia foi uma sorte o filho ser o papa, pois este conseguiu dispensar o feliz casal de todos os impedimentos, tais como o incesto. O que é que podia impedir o seu novo marido de se tornar imperador e ela própria imperatriz? Isto era uma coisa que Sérgio teria desejado. João XI oficiou o casamento de sua mãe em Roma na primavera de 932. Depois tudo se desfez por causa do segundo filho de Marózia, o ciumento Alberico Júnior, de dezoito anos, que tomou o poder em Roma para se tornar o novo fazedor de papas. Hugo da Provença abandonou a mulher e fugiu em desgraça. Alberico pôs João XI, seu meio irmão e filho de uma papa, sob prisão permanente em Latrão — morreu aí quatro anos mais tarde — e, o mais cruel golpe de todos, mandou prender a própria mãe. Passado o seu apogeu, Marózia conservou a sua distinção quando pela primeira vez pisou o Mausoléu de Hadrian, popularmente conhecido como o Castel Sant’Ângelo. Iria ficar naquele terrível lugar junto ao Tibre, durante mais de cinquenta anos, sem um único dia de redução. Já tinha passado dos sessenta quando soube, na prisão, que Alberico tinha morrido aos quarenta e o filho, seu neto, chamado Octaviano, se tinha introduzido na Igreja como papa. Chamou-se João XII, tendo sido o primeiro pontífice a mudar de nome. Isto passou-se no inverno de 955. Ela virou as costas ao assunto e mergulhou no seu sonho de passadas glórias com o seu amante Sérgio. A juventude do novo papa pode explicar em parte o seu comportamento muito pouco religioso, uma vez que tinha apenas dezasseis anos quando assumiu o pesado cargo. Mosteiros inteiros passavam os dias a rezar pela sua morte. Mesmo para um papa desse período, ele era tão mau que os cidadãos queriam vingança. Inventou pecados desconhecidos desde o princípio do mundo, diziam eles, incluindo o de dormir com a mãe. Tinha um harém no palácio de Latrão. Jogava com as ofertas dos peregrinos. Mantinha uma coudelaria de dois mil cavalos que alimentava com almôndegas e figos passados por vinho. Recompensava as companheiras das suas noites de amor com cálices de ouro da Basílica de S.Pedro. Não fez nada pelo negócio turístico mais lucrativo da época, nomeadamente, as peregrinações. As mulheres em particular eram avisadas de que não deviam entrar em S.João de Latrão se prezavam a sua honra; o papa andava sempre em busca de uma presa. Chegou até a brindar ao Diabo em frente do altar-mor da igreja-mãe da Cristandade. O Papa João provocou tal ira que, temendo pela sua vida, saqueou a Basílica e fugiu para o Tivoli. Quando soube disto, Otão da Saxónia, de cinquenta anos — coroado imperador em S.Pedro em 961 — ordenou ao jovem que regressasse imediatamente. Não convinha aos seus planos ter um pontífice ausente; era mau para os negócios do império. Foi convocado um sínodo para pôr as coisas em ordem. Estiveram presentes dezasseis cardeais, todos os numerosos bispos italianos e muitos outros que foram recrutados na Alemanha. O Bispo de Cremona deixou um registo preciso das acusações feitas ao papa. Tinha dito missa sem comungar. Tinha ordenado um diácono num estábulo. Tinha levado dinheiro pelas ordenações. Tinha tido relações sexuais com uma quantidade de damas, incluindo a velha paixão de seu pai e a sua própria sobrinha. Tinha cegado o seu próprio director espiritual. Tinha castrado um cardeal, causando-lhe a morte. Todas estas acusações foramconfirmadas sob juramento. Depois Otão escreveu a João uma carta que deve figurar entre as grandes curiosidades de todos os tempos. 55 Toda a gente, clérigos e leigos, acusa Vossa Santidade de homicídio, perjúrio, sacrilégio, incesto com parentes, incluindo duas de vossas irmãs, e de terdes, como um pagão, invocado Júpiter, Vénus e outros demónios. João respondeu ditando uma carta dirigida aos bispos e destituída de gosto e de gramática. Avisava-os de que se o depusessem os excomungaria a todos, impedindo-os assim de ordenar e celebrar missa. Depois montou num cavalo e foi caçar. Quando Otão por fim se cansou de esperar e voltou à Saxónia, a família de João reuniu um exército para lhe assegurar um regresso seguro a casa. Em Roma, retomou as suas funções Petrinas. Não satisfeito com uma coisa tão suave como a excomunhão, mutilou ou executou todos aqueles que tinham contribuído para o seu exílio. Papa nenhum foi para Deus numa situação tão embaraçosa. Uma noite, um marido ciumento, um dos muitos, apanhou Sua Santidade com a mulher in flagrante delicto e deu-lhe os últimos sacramentos com uma martelada na cabeça. Tinha ele vinte e quatro anos. Os Romanos, conhecidos pelo seu espírito selvagem, disseram que aquilo foi o clímax da sua carreira. Pelo menos teve a sorte de morrer na cama, mesmo sendo a de outrem. O Cardeal Belarmino no seu livro sobre o papado De Romano Pontifice, no século XVII, havia de dizer: «O papa é o juiz supremo para decidir as questões da fé e da moral». Este grande defensor do papado escreveu no mesmo livro: «Se o papa errasse impondo os pecados e proibindo as virtudes, a Igreja teria mesmo assim de considerar os pecados bons e as virtudes como vícios, senão pecaria contra a consciência». Não admira que os papas adolescentes fizessem tanta coisa impunemente. Contudo, mesmo Belarmino, que sabia tudo acerca dos Bórgias, teve de admitir que João XII «era a escória». Fuerit fieri omnium deterrimus. Com um monstro fora do caminho, os Romanos escolheram Benedito V para o substituir. Otão, sentindo-se enganado, ficou furioso. «Ninguém pode ser papa sem o consentimento do imperador» declarou ele. «Sempre assim foi». A sua escolha recaiu em Leão VIII. O Cardeal Barónio, no seu Ecclesistical Annals do século XVI, a que Acton chamou «a maior história da Igreja jamais escrita», sustentou que Benedito era o verdadeiro papa e Leão o antipapa. É difícil discutir isto. Contudo, Benedito prostrou-se aos pés de Otão e declarou-se um impostor. Para o provar, tirou as suas insígnias e confessou, de joelhos, perante Leão que ele, Leão, era o sucessor legítimo de S.Pedro. Não é muito claro se a afirmação genuína de um papa de que ele próprio não é legítimo é um exercício de infalibilidade, embora deva transmitir uma mensagem para toda a Igreja sobre a fé e a moral. Quando Leão e Benedito morreram, Otão colocou no trono João XIII. Não foi uma escolha sensata. Os romanos mandaram-no imediatamente fazer as malas. Otão trouxe- o de volta para apenas chegar à conclusão de que o instinto local estava correcto. O novo papa cometeu actos de uma crueldade incrível. Segundo Liutprand, nas suas crónicas, ele arrancava os olhos aos inimigos e passou metade da população à espada. Pouco depois de João XIII, veio Benedito VII, outro que viria a morrer em pleno acto de adultério às mãos de um marido furioso. O Cardeal Barónio ficou compreensivelmente embaraçado com os acontecimentos que relatou com notável honestidade. Chamou aos pontífices deste período “invasores da Santa Sé, mais apóstatas do que apóstolos” (non apostolicos sed apostaticos). Confessa que treme ao ter de escrever sobre eles. Na Cadeira de S.Pedro sentaram-se não homens mas monstros com a forma de homens. «Messalinas presunçosas cheias 56 de luxúria e astúcia em todas as formas da maldade governaram Roma e prostituíram a Cadeira de S.Pedro para seus lacaios e amantes. À luz dos decretos do Concílio Vaticano I, em 1870, as suas conclusões são surpreendentes. A principal lição destes tempos é que a Igreja pode viver muito bem sem os papas. O que é vital para a sobrevivência não é o papa mas Jesus Cristo. Ele é que é o chefe da Igreja, não o papa. Alguns séculos mais tarde, Barónio teria sido estigmatizado como herege. Agora a fé católica define-se assim: o papa é o chefe da Igreja na terra, o Vigário de Cristo, a Pedra sobre a qual a Igreja está edificada, o laço da unidade, o que preserva a fé e a moral. Mas o longo período em revista revela um retrato inteiramente diferente. Não só Barónio mas também o povo de Roma teriam rido de tamanha patetice. Para eles era evidente que as Portas do Inferno tinham prevalecido. Se isto não era a vitória do Príncipe das Trevas, o que é que o era, então? A única questão que os intrigava não era «Como é que o papa pode salvar a Igreja?», mas «Como é que o papa pode salvar a própria alma?» Durante todos estes tempos tempestuosos e outros que se seguiram, Marózia continuou na sua cela da prisão. Aquela que outrora fora a criatura mais arrebatadora do seu tempo, estava reduzida a um monte de ossos engelhado e viscoso envolto em trapos. Agora já nos noventa e cinco anos, a recordação de ter dormido com um papa e de lhe ter dado um filho que ela por sua vez fez papa também, deve ter-lhe dado forças para sobreviver. Abandonada, nunca, porém, foi completamente esquecida na alta roda do poder. Na primavera de 986, o Papa Gregório V, com vinte e três anos, e seu primo, o Imperador Otão III, com quinze, decidiram que a pobre velha já tinha definhado na prisão tempo suficiente. O papa mandou um bispo submisso exorcizá-la dos seus demónios e levantar-lhe a sentença de excomunhão. Foi absolvida dos seus pecados. Depois foi executada. O Papa-Menino Quase cinquenta anos mais tarde, em 1032, o Papa João XIX da Casa de Túscolo morreu. O Conde Alberico III pagou uma fortuna para manter o cargo na família. Quem melhor para preencher a vaga do que o seu próprio filho Teofilato? Raoul Glaber, um monge de Cluny, conta que, na altura da sua eleição, em Outubro de 1032, Sua Santidade Benedito IX tinha onze anos de idade. Segundo Monsenhor Louis Duchesne, Benedito era «apenas um garoto que em pouco tempo se havia de tornar diligentemente agressivo». Era um espectáculo singular: um miúdo que ainda nem adolescente era, que nem tinha ainda mudado de voz, era o principal legislador e governante da Igreja Católica, chamado a usar a tiara, a celebrar missa solene em S.Pedro, a conceder benefícios eclesiásticos, a nomear bispos e a excomungar hereges. As proezas de Sua Santidade com as damas provam que o papa-menino atingiu a puberdade muito cedo. Aos catorze anos, diz um cronista, já tinha superado em devassidão e extravagância todos os que o precederam. 57 S.Pedro Damião, um fino juiz do pecado, exclamou: «Esse miserável regalou-se com imoralidades do princípio ao fim da sua vida». Outro observador escreveu: «Um demónio do inferno disfarçado de padre ocupou a Cadeira de Pedro». Teve muitas vezes de sair de Roma à pressa. A primeira vez, nas festividades de S.Pedro e S.Paulo em 1033, um eclipse do sol que deu ao interior da Basílica um tom fantasmagórico de açafrão foi o pretexto para o expulsar. Quando regressou, alguns nobres tentaram derrubá-lo durante a missa. Falharam. Quando Benedito foi de novo varrido de Roma, o exército do Imperador Conrado empurrou-o de novo para lá. Em 1046, tendo sido uma vez mais expulso por saque, assassínio e opressão, voltou para o seu Túscolo natal. Na sua ausência, os Romanos escolheram outro pontífice, Silvestre III, um homem dos Montes Sabinos. Decidiram que era de longe melhor violar a lei canónica e ofender a divindade do que suportar Benedito IX. Depois de cinquenta dias felizes, o papa-menino foi reposto pela família, que persuadiu Silvestre a ir-se embora. Por fim, Benedito quis resignar. Tinha debaixo de olho a sua bela prima,filha de Girard de Saxo. Girard deu o seu consentimento na condição de que o papa abdicasse. Num surpreendente ataque de escrúpulos, Benedito decidiu verificar se esse era um dos seus direitos. Consultou o seu padrinho, João Graciano, Arcipreste de S.João ad Portam Latinam. Graciano era um homem notável; completamente analfabeto, vivia em castidade, como um lírio entre espinhos. Graciano assegurou-lhe que tinha o direito de resignar. E mais, já tinha um sucessor alinhado. E bateu no peito. Feliz por resignar, Benedito exigiu um prémio de despedida de uma a duas mil libras (peso). Depois de uma difícil negociação fixou-se na totalidade da Caixa das Esmolas de Pedro na Inglaterra. Nenhuma colecta feita pelos católicos ingleses foi alguma vez tão bem empregue. Por entre manifestações de júbilo, Benedito, depois de se dispensar da obrigação de celibato, abdicou no Primeiro de Maio de 1045. «Devotado ao prazer,» havia de escrever o Papa Victor II, «preferiu viver mais como Epicuro do que como bispo… Saiu da cidade e mudou-se para um dos seus castelos no campo». João Graciano, agora Gregório VI, foi alvo de severas críticas. Muitos papas houve que compraram o papado; nenhum, senão ele, jamais o tinha comprado de volta. Gregório argumentava que tinha feito um favor à Igreja. E Benedito salientava que não tinha sido pago para sair; tinha simplesmente recuperado a despesa original feita pelo pai. Gregório poderia ter conseguido os seus intentos se Benedito, agora o civil Teofilato de Túscolo não tivesse sido rejeitado pela sua amada dama. Estava determinado a voltar. Com Silvestre ainda no activo, havia agora três reclamantes ao trono: Silvestre em S.Pedro, Gregório em Latrão e Benedito à espera do momento propício nos Montes Albanos. Entretanto em Roma os cofres estavam vazios; toda a gente, desde os papas ao mais insignificante porteiro, era simoníaca; todos os clérigos tinham pelo menos uma amante; e as igrejas estavam a cair. Neste momento crítico, entra em cena Henrique da Alemanha. Era conhecido por duas coisas: detestava a simonia e queria ser imperador mais do que qualquer outra coisa no mundo. A força venceu onde a exortação moral tinha falhado. Em Sutria, no caminho para Roma, convocou um sínodo. Sob a sua direcção, Silvestre foi julgado como impostor; foi reduzido à condição de leigo e condenado a passar o resto dos seus dias num mosteiro muito rigoroso, se havia algum assim. Benedito tinha resignado e, segundo Henrique, destruíra ele mesmo qualquer possibilidade de regresso. Quanto a Gregório VI, Henrique agradeceu-lhe o ter livrado a 58 Igreja de uma peste mas não devia ter usado da simonia para o fazer. Isto era motivo para resignação. Literalmente confrontado com o poder temporal, Gregório declarou: «Eu, Gregório, bispo, Servo dos servos de Deus, por causa da simonia que, por astúcia do demónio, entrou na minha eleição, decidi que devo ser deposto do bispado de Roma». Presente na sua queda estava o seu jovem capelão, o monge Hildebrando, o futuro Gregório VII. Viu o servo a bater no amo e nunca mais havia de o esquecer ou perdoar. Henrique escolheu Clemente II para novo pontífice. No dia da sua nomeação, coroou Henrique como imperador, após o que Henrique, antecipando Napoleão, colocou na própria cabeça o diadema que os Romanos usavam para coroar os seus patrícios. Com este gesto, Henrique mostrou que era ele o chefe da Cristandade; o Bispo de Roma era apenas o seu capelão particular. Levou o velho papa com ele para a Alemanha para evitar que se tornasse incómodo. Em breve Gregório morreu no exílio e, quando Clemente também foi para junto do Criador, Benedito atirou-se ao trono papal onde ficou mais oito meses. Henrique andava demasiado atarefado para tratar dele, mas mandou que o Conde Bonifácio de Túscolo obrigasse Teofilato a cumprir as leis de uma vez por todas. O novo papa, Dâmaso II, depressa deu o último suspiro — envenenado, dizia-se, por Benedito. Provavelmente foi apenas o clima. Com a sua morte, Benedito tinha mais uma vez o caminho livre, mas decidiu desistir. Retirou-se para o mosteiro de Grotta Ferrata onde, segundo se dizia com alguma ambiguidade, a sua vida foi um exemplo para o resto da comunidade. Neste momento negro do papado, parecia que Deus se apiedara da Igreja. Mandou dois pontífices considerados por muitos historiadores católicos como os maiores que a Igreja alguma vez produziu: Gregório VII e Inocêncio III. 59 4 O Apogeu do Papado Foi o único papa que se canonizou a si próprio, mas é mais lembrado como um homem obcecado por uma única recordação que o perseguiu durante quase quarenta anos até que veio a morrer como o pontífice mais venerado da história. A recordação que praticamente transtornou a cabeça de Hildebrando, o Papa Gregório VII, foi a do seu homónimo Gregório VI a ser deposto e humilhado em 1046. O pecador que isto fez foi o Imperador Henrique III, que pôs uma marioneta no trono em sua substituição. Foi isto que o atormentou enquanto jovem, quando acompanhou Gregório VI no exílio na Alemanha; e também quando entrou para os beneditinos de Cluny e ascendeu gradualmente a prior. E ainda lhe doía quando, chamado a Roma, foi conselheiro durante mais de dezoito anos de quatro papas e por fim o seu chanceler. Esta amarga recordação veio sobretudo à tona quando na Basílica de Latrão apinhada para o funeral de Alexandre II, em 1073, a congregação exclamou espontaneamente: «Hildebrando é o papa. S.Pedro escolheu-o». Em circunstâncias normais Hildebrando teria rejeitado aquela maneira tão grosseira de escolher um pontífice. Tinha convencido um papa anterior a deixar a escolha exclusivamente ao Colégio dos Cardeais. Mas naquela altura aceitou «a vontade de S.Pedro». O novo papa, homem de muito pequena estatura, homuncio, não perdeu tempo e mandou sem demora uma mensagem ao jovem Imperador Henrique IV solicitando o seu reconhecimento. Nada em toda a sua vida foi feito tão a contragosto como apresentar uma petição a um inferior ímpio; ele, Hildebrando, que era o maior homem da terra. Porquê fazê-lo se era contra os seus princípios? Porque não queria que se levantasse qualquer dúvida subsequente sobre a sua legitimidade. Mas não estava longe o dia do ajuste de contas, o dia em que o cordeiro se transformaria em leão. Os conselheiros de Henrique avisaram-no de que Hildebrando era perigoso. Como era um asceta tratava os outros como se tratava a si próprio — abominavelmente. O inexperiente imperador não lhes deu ouvidos. Não é verdade que o pai tinha deposto um papa e nomeado sucessivamente os três seguintes? Como é que ele podia perceber que estava ali um pontífice cujos braços iriam crescer cada vez mais e que caminhava sobre andas? Gregório VII foi o último papa cuja eleição teve de ser confirmada pelo imperador e cuja consagração se realizou na presença de legados imperiais. Depois de obter a aprovação que desprezava, Gregório estava decidido a fazer vergar os príncipes de uma vez por todas. Para ele, todos eram corruptos. Tinham direito a menos respeito do que o mais mesquinho exorcista, que pelo menos expulsava os demónios e não lhes oferecia hospitalidade principesca. Os monarcas apenas desejam dominar, dizia este orgulhoso pontífice. Seria necessária uma magnanimidade obscena da parte de Deus para salvar um só que fosse das chamas eternas. Tudo o que eles fazem radica no orgulho e contudo o que é que eles têm para oferecer? Um rei moribundo vai ter com o mais humilde padre de aldeia para se confessar. Quando é que mesmo uma mulher leiga vai ter com o imperador para lhe pedir o perdão de Deus? Onde é que está o imperador que pode garantir a salvação ou fazer o Corpo e o Sangue de Cristo com um simples movimento dos lábios? Qualquer desmiolado percebe que os 60 padres são superiores aos reis. Então, a que distância acima de todos eles é que está o papa, sucessor de Pedro? Não era seu dever reduziros príncipes ao seu real tamanho para lhes dar uma lição de humildade? Aquela recordação inapagável fez com que este homem de vontade inflexível desprezasse toda a autoridade civil. E um dia, estava decidido a isso, iria vingar-se. Gregório VII e a sua escola de falsificadores Desde os seus tempos de rapaz na Toscânia, Hildebrando, que era filho de um carpinteiro de aldeia, sempre teve uma devoção apaixonada por S.Pedro. Como Príncipe dos Apóstolos, o poder de Pedro não tinha limites. Era o Pastor-chefe, podia unir e desunir no céu e na terra. Quando Hildebrando se tornou papa, elaborou um Dictatus, ou lista, de vinte e sete teses que esquematizavam os seus poderes como vigário de Pedro. Entre elas estavam as seguintes: O papa não pode ser julgado por ninguém na terra. A Igreja Romana nunca errou, nem pode errar até ao fim dos tempos. Só o papa pode depor os bispos. Só ele tem direito às insígnias imperiais. Pode destronar imperadores e reis e dispensar os seus súbditos dos juramentos de fidelidade. Todos os príncipes são obrigados a beijar-lhe os pés. Os seus legados, mesmo não sendo padres, têm precedência sobre todos os bispos. Um papa eleito legitimamente é, sem dúvida, um santo assim tornado pelos méritos de Pedro. Esta santidade, afirmava ele tê-la experimentado de maneira esmagadora na sua eleição. Esta foi, aliás, uma ideia que os seus sucessores deixaram cair como se fosse carvão a arder. Tais afirmações eram muito estranhas, na medida em que Hildebrando tinha conhecido o papa-menino Benedito IX. É difícil saber se ele tinha consciência de que a maior parte das suas teses eram baseadas em documentos falsificados. O menos que se pode dizer é que a sua ingenuidade era alarmante, especialmente se tivermos em conta aquilo que o Novo Testamento diz sobre os erros de S.Pedro. Estas falsificações faziam crer que as suas pretensões em relação ao poder absoluto eram baseadas em antigos registos zelosamente guardados nos arquivos de Roma. Durante sete séculos, os Gregos chamaram a Roma a pátria das falsificações. Sempre que tentavam falar com Roma, os papas apresentavam documentos falsos, e até alguns acrescentos a documentos conciliares que os Gregos, naturalmente, nunca tinham visto. Gregório foi mais longe do que a Doação de Constantino. Ele tinha toda uma escola de falsificadores mesmo debaixo do seu nariz a produzir documentos atrás de documentos, com o aval do selo papal, para alimentar todas as suas necessidades. Os líderes da escola eram Anselmo de Lucca, sobrinho do pontífice anterior, o Cardeal Deusdedit e, depois deles, o Cardeal Gregório de Pavia. Se o Papa Gregório (e mais tarde Urbano II) precisavam de qualquer justificação para uma acção contra um príncipe ou um bispo, logo estes prelados produziam, literalmente, o documento apropriado. Não era necessário procurar; era tudo feito ali mesmo. 61 Muitos documentos mais antigos eram retocados para ficarem a dizer o contrário daquilo que originalmente diziam. Alguns destes documentos mais antigos eram, eles próprios, falsificações. A escola de Hildebrando tratava todos os papeis, forjados ou genuínos, com uma desonestidade totalmente imparcial. O 1984 de Orwell foi antecipado de nove séculos, não num qualquer estado ímpio, às ordens do Big Brother, mas no coração do Catolicismo Romano e a favor do papa. Este método expedito de inventar a história foi extraordinariamente bem sucedido, especialmente quando as falsificações eram imediatamente inseridas na lei canónica. Por meio de inúmeras mudanças subtis eles fizeram com que o Catolicismo parecesse imutável. Mudaram o “hoje” para “sempre foi e será”, o que mesmo agora, contrariamente às descobertas da História, é a marca peculiar do Catolicismo. Assim se cumpriu a serena e mais longa de todas as revoluções, toda ela feita no papel. Isto não teria sido possível numa época de literacia universal, de imprensa, de fotocópias, de datação por carbono; foi possível sem o mínimo sobressalto numa época de raros manuscritos, de erudição nula, e quando até alguns imperadores não sabiam ler nem escrever. Gregório não ficou isento de uma fraude própria. A mais influente de todas as falsificações foram os Decretais Pseudo-Isidorianos, de origem francesa, de que Roma se apossou avidamente e que Gregório, que «não podia errar», tomou como autênticos. Consistiam de 115 documentos alegadamente escritos pelos primeiros bispos de Roma, a começar por Clemente (88-97). Outros 125 documentos tinham acrescentos falsificados que aumentavam o poder e o prestígio do papado. Segundo o falsificador, os primeiros papas proibiram todo o comércio com uma pessoa excomungada. Em 1078, Gregório, sabendo que não havia precedentes para isso, estendeu este princípio aos imperadores e aos reis. Se um papa excomungava um imperador e os seus súbditos ficavam proibidos de tratar com ele, para que servia esse imperador? Apenas lhe restava ser destronado, o que Gregório gostava muito de fazer. Mesmo os papistas mais ardentes acharam que era difícil perdoar tal coisa. Gregório confundia deliberadamente dois códigos de leis, o canónico e o civil, e fazia de um princípio espiritual de excomunhão uma arma política. Nas suas mãos esta arma foi devastadora. Depôs o imperador grego, bem como Baleslaus, o rei polaco, proibindo a Polónia de voltar a intitular-se reino. Semeou a intranquilidade civil em país após país; houve rebeliões e guerras civis. Avançando por momentos no tempo, os documentos forjados em Roma nesta altura foram sistematizados nos meados dos anos 1100 em Bolonha por Graciano, um monge beneditino. O seu Decretum, ou Código de Lei Canónica, facilmente se pode considerar como tendo sido o livro mais influente alguma vez escrito por um católico. Estava salpicado de três séculos de falsificações e conclusões delas retiradas com os seus próprios acrescentos fictícios. Das 324 citações que ele faz dos papas dos primeiros quatro séculos só onze são genuínas. Entre os seus acrescentos pessoais havia uma série de cânones que tratavam todas as pessoas excomungadas como hereges. Isto era alarmante tendo em vista a maneira como os hereges eram tratados. Urbano II já tinha decretado nos fins do século XI que eles deviam ser torturados e mortos. Graciano inventou de forma notável uma maneira de aumentar o poder papal. O papa, declarou ele com a aprovação de Roma, é superior a todas as leis e a sua fonte sem restrições. Portanto tem de estar em pé de igualdade com o filho de Deus. Esta 62 apoteose tornou-se a inspiração da Cúria, que agia em nome do papa. Todo o plumitivo era, em certo sentido, um deus. Avançando ainda mais, para o século XIII, o Decretum foi a fonte de Tomás de Aquino para as citações dos Padres e dos papas quando escreveu o seu magistral Summa Theologica, a segunda mais famosa obra de um católico. Tomás de Aquino, que pouco ou nada sabia de grego, foi induzido em erro por Graciano, especialmente no que diz respeito ao papado. Claro que Aquino teve uma enorme influência na Igreja, especialmente durante o Concílio Vaticano I, quando a infalibilidade papal foi definida. Uma pequena ironia: no seu Summa, Aquino diz que os hereges deviam ser executados com os mesmos fundamentos dos falsários. Os hereges não falsificam dinheiro, mas uma coisa muito mais preciosa: a fé. Não perguntava quais eram os castigos apropriados para os criminosos que forjaram os documentos que induziram em erro a Igreja, ele próprio incluído, geração atrás de geração. As falsificações de Gregório tinham a vantagem de ser simultaneamente originais e sacrossantas, novas e contudo antigas. Não era sensato da parte de um príncipe opor- se ao papa quando anteriores pontífices como Inocêncio I e Gregório o Grande tinham deposto um imperador e um rei. Não que eles tivessem feito tal coisa, embora Gregório VII tivesse um documento a prová-lo. Os próprios falsários acreditavam de todo o coraçãoque Gregório tinha o poder de depor monarcas, e se com um toque de caneta aqui e ali eles podiam ajudar um mundo ímpio a acreditar o mesmo, onde é que estava o mal? A História tornou-se um ramo menor da Teologia e assim ficou desde então. Afinal, mesmo a História não pode contradizer a verdade infalível. Daí que nos anos de formação do Cristianismo Católico Romano toda a discussão fosse abafada pelas “citações“ que eram imediatamente fabricadas. O desenvolvimento não veio espontaneamente, foi antes metido à força em padrões preestabelecidos. A tradicional sujeição dos papas aos Concílios Gerais em matérias de fé e de moral foi invertida. Opiniões controversas e por vezes absurdas tornaram-se dogmas; opiniões parciais eram consagradas como ensinamentos católicos intemporais e irreversíveis. Fabricar a História não é uma pequena coisa. Mal foi eleito, Gregório VII começou a reformar tudo. Primeiro, para assegurar que a Igreja nunca fosse despojada dos seus bens, tentou eliminar a “fornicação“ universal, isto é, o casamento do clero. A lei do celibato do clero tinha sido praticamente esquecida, mas não por Gregório. Se os padres não emendassem o seu comportamento seriam suspensos e os leigos não poderiam aceitar o seu ministério. Era como se os padres deixassem de ser padres. Perguntava um crítico: «Será que o papa diria que um homem que peca deixa de ser homem?» O resultado desta legislação foi, de acordo com Ray C. Petry, «fazer das inocentes mulheres dos pequenos clérigos desnorteados e zangados potenciais prostitutas aos milhares». Diz Lecky: «Quando Hildebrando separou as mulheres dos padres e as deixou arruinadas, inconsoláveis e desesperadas, muitas delas recorreram ao suicídio para acabar com a sua agonia». O clero germânico queria saber onde é que Gregório, depois de suspender os homens do sacerdócio, iria buscar os anjos para os substituir». Um grupo de bispos italianos reuniu-se em concílio em Pavia em 1076 e excomungou o papa por separar maridos e mulheres e por preferir a licenciosidade entre os padres ao casamento respeitável. Se Gregório tivesse concretizado a sua ameaça de suspender os padres incontinentes, teria praticamente varrido o Catolicismo do mapa. Feliz ou infelizmente, a sua campanha não obteve sucesso duradouro. O celibato podia ele impor, mas não a 63 castidade. Contudo, por via do celibato, conseguiu garantir o perpétuo sistema de apartheid no Catolicismo entre os clérigos que têm direitos e os leigos, homens e mulheres, que os não têm. Curiosamente, foram mais leigos do que padres os que se separaram das mulheres, talvez por se deixarem impressionar mais pelos ideais ascetas de Gregório. Os padres, depois de uma acalmia, continuaram a seguir a ideia de que o que faziam na cama só a eles dizia respeito. A seguir, Gregório voltou-se para a simonia, a compra e venda de coisas sagradas. Para os cardeais a excomunhão para estes casos parecia excessiva, pois eles sabiam que tudo, a começar pelo próprio papado, tinha muito naturalmente o seu preço. Contra uma prática velha de séculos, Gregório excomungava qualquer membro do clero que recebesse uma remuneração de um leigo, fosse ele duque ou príncipe. Isto fazia parte da sua busca de poder absoluto. Ninguém da Igreja podia dever lealdade a ninguém a não ser a ele próprio, Gregório. Contrariando uma tradição de mil anos, obrigou todos os bispos a um voto pessoal de lealdade ao papa. A partir de então, eles eram bispos por «concessão da Sé Apostólica». De um só golpe, os bispos diocesanos, sucessores dos apóstolos, perderam a independência que nem o Vaticano II conseguiu restaurar. A partir de Gregório VII, e apesar dos desmentidos, o papa é realmente o bispo de todas as dioceses. Qualquer membro do clero que entre em conflito com o papa sobre qualquer assunto pode ser demitido com a mesma facilidade com que foi nomeado. Se isto não é ser o bispo de facto, será difícil saber o que é que o é realmente. O grande confronto Gregório andara mais de trinta anos à espera de uma oportunidade para desafiar o imperador. Finalmente, acusou Henrique IV de simonia e de interferir nos assuntos da Igreja. Henrique ficou genuinamente espantado. Imiscuíra-se de facto, mas não fez nada mais do que os imperadores desde Constantino sempre tinham feito. Não é verdade que lhe tinham pedido o seu consentimento para a eleição de Gregório, e ele a tinha concedido? O que é que levava este papa a pensar que lhe podia dar ordens? Melindrado, Henrique convocou um concílio em Worms e declarou nula a eleição. Não tinha sido previamente consultado, na sua qualidade de imperador. Gregório respondeu com um anátema sobre Henrique seguido de uma carta circular. Em nome de Deus omnipotente, proíbo Henrique de governar os reinos de Itália e Alemanha. Dispenso todos os seus súbditos de todos os votos que façam ou tenham feito, e excomungo todos aqueles que o sirvam como rei. Isto foi a bomba papal daquele tempo. Os imperadores tinham destituído muitos papas: Gregório tinha testemunhado um desses sacrilégios. Nunca antes um papa ousara depor um imperador. Qual seria o resultado disto? Havia bons presságios. A mãe de Henrique, a Imperatriz Agnes, pôs-se ao lado do papa, assim como a prima, a temível Matilde, Condessa da Toscânia. Para desgosto de Henrique, aquele louco de Roma estava a obter bons resultados mesmo na Alemanha. Os príncipes começaram a denunciar a sua fidelidade. Para consolidar a sua vantagem, Gregório apoiou Rudolfo, Duque da Suábia e vassalo de Henrique, como primeiro sucessor ao trono. 64 Henrique, agora com vinte e um anos, compreendeu que estava encostado à parede. Aproximava-se o aniversário da sua excomunhão, altura em que perderia o reino oficialmente e para sempre, a menos que fizesse a paz com o papa. Com uma pequena comitiva, atravessou a Borgonha e passou um natal familiar agradável, mas apreensivo, em Besançon. Depois, a meio do Inverno de 1077, atravessou os Alpes. Com ele, seguiam a mulher e o filho bebé, Conrado. Os guias camponeses tiveram de escavar uma passagem na neve e puxar a rainha num trenó de pele de boi. Caíram por ravinas e perderam a maior parte dos cavalos. Uma vez em Itália, reuniram-se ao enorme exército Lombardo que esperava que ele viesse pôr o papa no seu lugar. Mas ele desiludiu-os. Gregório estava protegido dos Lombardos dentro das paredes triplas da fortaleza de Matilde, em Canossa. Esta fortaleza erguia-se no cume de uma colina escarpada, matizada de vermelho, nos contrafortes dos Apeninos. Trinta quilómetros para noroeste ficava Parma, invisível no meio das brumas daquele inverno particularmente rigoroso. Em Canossa Henrique apelou à paz. Através de intermediários Gregório impôs as regras. Henrique devia enviar a coroa e demais adereços reais para Sua Santidade se desfazer deles. Devia confessar publicamente que era indigno de ser imperador depois do seu vergonhoso comportamento em Worms e finalmente devia prometer cumprir a penitência que lhe fosse imposta pelo papa, fosse ela qual fosse. Depois de manifestar o seu acordo, Henrique subiu a branca encosta até à fortaleza, temeroso e só. Passada a primeira portada, detiveram-no no cercado seguinte. Muito acima dele apareceu o papa com todos os adereços pontifícios para saborear a sua humilhação. Com um vento de leste a assobiar à sua volta, Henrique foi despojado das suas insígnias reais e obrigado a despir-se. Atiraram-lhe uma túnica de lã tão grosseira como uma camisa de cilício. Veste isso. Gregório, com a sua própria camisa de cilício bem chegada às costas fustigadas e escondida pelas roupas, apenas gesticulou, não se dignando a falar para alguém que não estava em comunhão com Deus e com a Igreja. Henrique, a bater o dente, a pele roxa do frio, obedeceu. Em cabelo e descalço, estava de pé, enterrado na neve até aos tornozelos, envolto no pano de cilício de mendicância e penitência. Tinha numa dasmãos um vasculho e na outra uma tesoura de tosquiar, símbolos da sua vontade em ser chicoteado e ciliciado. E o imperador do Sacro Império Romano, herdeiro de Carlos Magno, ali esteve três dias e três noites, em jejum do nascer do sol até muito depois das estrelas começarem a brilhar, num espectáculo tão deplorável que os parentes nas ameias choravam sonoramente, incapazes de continuar a olhar. Hora após hora, Henrique com os cabelos e sobrancelhas hirtos do gelo, rezou a Deus e ao papa por misericórdia com estremecidos suspiros. Mais tarde, naquele mesmo ano, Gregório fez um relato das suas próprias acções numa carta aos príncipes germânicos: As pessoas que intercederam por Henrique murmuraram sobre a grande crueldade do Papa. Algumas ousaram mesmo dizer que tal comportamento era mais próprio da bárbara crueldade de um tirano do que da justa severidade de um juiz eclesiástico. 65 O que endureceu Gregório foi a distante lembrança do que o pai de Henrique fizera ao seu antecessor. Como dizem os italianos, a vingança serve-se fria. Só quando a sua anfitriã Matilde ao quarto dia alegou que o primo morreria se continuasse por mais tempo na neve é que o papa se compadeceu. Henrique foi arrastado para dentro, um monte de carne gelada, para se apresentar esfarrapado perante o pontífice de tiara na cabeça. Esbelto e bem parecido, aquele dominava o feio anão moreno da Toscânia com o seu grande nariz e olhar fixo e frio. Henrique teve de jurar que se submetia ao julgamento do papa em data e local a anunciar. Entretanto, não podia exercer a sua soberania até que o papa se pronunciasse. Como Maquiavel observou na sua História de Florença, «Henrique foi o primeiro príncipe que teve a honra de sentir a estocada cortante das armas espirituais». Mas Henrique também tinha o seu orgulho. Só pediu ao papa que mandasse levantar a condenação. Regressado à pátria, iniciou um campanha contra Rudolfo, o que fez com que Gregório lhe impusesse de novo a condenação. Numa batalha à distância, Henrique convocou um concílio para depor o papa. O Bispo Berno de Osnabrüch escondeu-se debaixo dos panos do altar da Catedral de Brixen até que terminassem os trabalhos contra Gregório e depois reapareceu como que por magia. Henrique escolheu Guibert de Ravena para ser o papa Clemente III. Com este procedimento, Gregório profetizou que Henrique morreria nesse ano. Ao invés disso, depois de duas estrondosas vitórias, Henrique marchou sobre Roma e pôs Clemente no trono. Gregório, velho, cansado e abandonado pelos seus cardeais, fugiu para Salerno, no Reino de Nápoles. Tinha sido papa durante doze anos. Era um típico verão napolitano, mas ele nunca tinha sentido tanto frio desde que estivera nas ameias de Canossa. Arrogante até ao fim, deu a sua absolvição à raça humana «excepto ao chamado rei Henrique», a quem, para que não ficassem dúvidas, excomungou pela quarta vez. Nem mesmo um pontífice com poderes divinos podia redimi-lo. Contrariando factos que são conhecidos, murmurou: «Amei a justiça e odiei a iniquidade e por isso morro no exílio». Esta falta de lógica não escapou a um assessor episcopal. «Como no exílio, se todo o mundo é vosso?» Gregório morreu em 25 de Maio de 1085. Gregório é tido em grande consideração pelos católicos. O seu prestígio reside no seu ascetismo, nas suas invectivas contra a simonia e a fornicação dos padres, na sua tentativa de fazer recuar a maré de séculos de imoralidade papal, na sua capacidade de, por força de uma única ideia, destronar monarcas. É também o expoente clássico do Catolicismo Romano, que praticamente criou. Nunca teve uma dúvida ou uma opinião; tinha sempre a certeza de tudo. Contudo, deixando de parte as falsificações que sustentaram as suas duvidosas pretensões, mesmo os seus admiradores têm de admitir que antes dele o trono e o altar eram aliados. Os papas e os príncipes nunca deixaram de medir forças e por vezes lutaram como tigres. Primeiro, um usurpava as terras do outro, depois invertiam-se os papeis. Mas, como representantes sagrados de Deus, nunca eles duvidaram de que, em certo sentido profundo e sagrado, estavam ligados. Gregório começou a estilhaçar essa frágil harmonia. Vira um imperador destronar um papa e havia de destronar um imperador desse por onde desse. Se tivesse posto um imperador no seu lugar, teria ficado acima de qualquer crítica. Mas fez muito mais do que isso. Ao introduzir uma doutrina perniciosa e herética, pôs-se no lugar do imperador. Em nome do Homem Pobre de Nazaré, que renunciou a todos os reinos, reclamava-se não só de Bispo dos bispos, mas também de rei dos reis. 66 Parodiando os Evangelhos: o diabo levou-o ao cimo de uma alta montanha e mostrou- lhe todos os reinos do mundo e Gregório VII exclamou: São todos meus. Como escreveu Henry Charles Lea, o mais objectivo dos historiadores, na sua obra The Inquisition in the Middle Ages: «Devotou a sua vida à realização deste ideal [a supremacia papal] com um zelo ardente e um propósito inabalável que não recuou perante obstáculo nenhum, e a ele estava pronto a sacrificar não só os homens que se lhe atravessassem no caminho, mas também os princípios imutáveis da verdade e da justiça». Desta maneira, Gregório deitou à terra as sementes que, depois de florescerem trouxeram não só o fim da Cristandade, mas também a Reforma. O Bispo de Trier apercebeu-se do perigo. Acusou Gregório de destruir a unidade da Igreja. O Bispo de Verdun disse que o papa estava errado na sua incrível arrogância. A nossa crença é pertença da nossa Igreja, o coração, do nosso país. O papa, disse ele, não deve roubar a fidelidade do coração. E isto foi precisamente o que Gregório fez. Quis tudo; não deixou nada para os imperadores e para os príncipes. Ao minar o patriotismo, o papado, tal como ele o moldou, minou a autoridade dos governantes seculares; estes sentiam-se ameaçados pelo Altar. Na Reforma, em Inglaterra e em toda a parte, os governantes viram-se obrigados a banir o Catolicismo das suas terras para se sentirem seguros. Outro legado de Gregório VII foi a imposição do Romanismo na Igreja. Depois dele, um Catolicismo genuíno, um Catolicismo enraizado e enriquecido por cada localidade e por cada cultura já não era possível. Todas as igrejas tinham de seguir a norma romana, por muito estranha que ela fosse para as suas origens e experiência. O latim, o celibato, a teologia escolástica, tudo isto foi imposto a tal ponto que a unanimidade foi substituída pela uniformidade baseada em Roma. As mudanças operadas por Gregório reflectiram-se na linguagem. Antes dele, o título tradicional do papa era o de “Vigário de S.Pedro”. Depois ele, era o de “Vigário de Cristo”. Só “Vigário de Cristo” podia justificar as suas pretensões absolutistas, que os seus sucessores herdaram, não de Pedro nem de Cristo, mas, de facto, dele mesmo. Ele estabeleceu uma tendência. Nos cem anos que a ele se seguiram, os papas excomungaram nada menos do que oito imperadores, depondo vários deles, e sempre perturbando a comunidade cristã. Os historiadores registaram setenta e cinco batalhas sangrentas directamente relacionadas com a contenda de Gregório com o imperador. Um resultado final paradoxal das reformas do ascético Gregório: as suas pretensões absolutistas abriram o caminho para papas como o licencioso Alexandre Bórgia. Mesmo quando havia um Satanás no trono papal, quem é que se atrevia a questionar o Vigário de Cristo? Gregório VII teve de esperar cinco séculos para que fosse canonizado oficialmente por outro papa que não ele próprio. Esse papa, Pio V, também tinha uma propensão para depor monarcas com resultados igualmente desastrosos. Mas, de todos os louvores póstumos que recebeu aquele que Gregório teria guardado como mais precioso seria certamente o que lhe foi dado, não por outro pontífice, mas pelo maior inimigo da Igreja do século XIX. «Se eu não fosse eu próprio, gostaria de ser GregórioVII». Quem assim falou foi Napoleão após a batalha de Austerlitz. Se Napoleão escolheu Gregório em vez de Inocêncio foi provavelmente em resultado de moeda ao ar. 67 Inocêncio III, o senhor do mundo Foi o mais extraordinário encontro entre dois homens desde que Jesus esteve perante Pilato no Pretório. Aquele que envergava mantos reais no trono de púrpura era o mais poderoso homem do mundo; o outro, o que tinha vinte e sete anos e estava ajoelhado a seus pés de vestes esfarrapadas e remendadas como um mendigo tinha apostado em afirmar-se o mais pobre dos pobres. Foi no verão de 1209. O Papa Inocêncio III tinha finalmente concordado em receber aquele pobre homem enxovalhado que tinha fama de santo. Aquele esquelético requerente tinha cabelo escuro e sobrancelhas regulares, dentes brancos, orelhas pequenas mas salientes. A barba era rara e esparsa. Os olhos negros e a piscar cintilavam, a voz era forte e musical e dele irradiava uma alegria peculiar. Era um poeta, diziam alguns. Falava do Irmão Sol e do Irmão Vento. A Lua, a Água, a Terra e até a Morte eram suas irmãs. Dizia-se que pregava aos pássaros e aos animais selvagens e que estes o escutavam. O seu grande amor era a Pobreza, a que ele chamava a Dama mais rica e mais generosa do mundo. Inocêncio não se lembrava, mas já uma vez se tinha cruzado com este estranho homenzinho. Francisco conseguiu chegar ao Palácio de Latrão. O seu objectivo era ir direito ao topo para conseguir a aprovação para a irmandade religiosa que pretendia fundar. Cruzou-se por acaso com Inocêncio num corredor. Francisco viera de S.Pedro onde tinha trocado as suas roupas com um mendigo cujos trapos estavam ainda mais mal cheirosos e andrajosos do que os dele. O pontífice fungou e expulsou-o. Só Ugolino, cardeal de Óstia, o conseguiu convencer a conceder uma audiência a Francisco. Ugolino, o futuro Gregório IX, também não compreendia Francisco, mas pensava que ele tinha alguma coisa a oferecer à Igreja. Nunca havia de o compreender, nem mesmo quando o canonizou com reservas, em 1228. A entrevista com Inocêncio III foi curta. O papa não concordava nem discordava de Francisco e do seu amor pela pobreza. Tinha coisas mais importantes na cabeça. Como, por exemplo, governar o mundo. O Cardeal Lothaire tinha sido eleito por unanimidade em 8 de Janeiro de 1198. Inocêncio, tal como o papa-menino Benedito IX, pertencia à família dos Albericos de Túscolo, uma família que havia de vir a gabar-se de ter tido treze papas, três anti-papas e quarenta cardeais. Aos trinta e oito anos, Inocêncio era o mais jovem membro do Sacro Colégio. Era baixo, entroncado, bem parecido, eloquente, de olhos cinzentos duros e queixo firme. Tinha estudado nas melhores universidades de Paris e Bolonha. De temperamento impetuoso, com grandeza estampada em todo ele, nasceu para governar a qualquer preço. Depois da sua sagração em S.Pedro, Inocêncio foi coroado numa tribuna cá fora. O Cardeal Arcediago tirou-lhe a mitra e substituiu-a pelo principesco Regnum. Originalmente feito de penas de pavão brancas, era agora um diadema com jóias, encimado por um carbúnculo. «Toma esta tiara», entoou o Arcediago num ritual que teria surpreendido S.Pedro, «e fica a saber que tu és o Pai de príncipes e reis, Governador do Mundo, o Vigário na Terra do nosso Salvador Jesus Cristo, cuja honra e glória perdurarão por toda a eternidade». O pontífice, discípulo de Gregório VII, nunca duvidou que aquela blasfémia lhe era devida. 68 Ele era a reencarnação de Constantino. A famosa mofa de Thomas Hobbes em Leviathan parece justificada: «O Papado não passa de um fantasma do falecido Império Romano, coroado e sentado sobre o túmulo deste». Com as suas vestes a brilhar de ouro e jóias, Inocêncio montou um cavalo branco coberto de vermelho e reuniu-se à cavalgada pela cidade engalanada ao longo da Via Papae, que serpenteava sob os velhos arcos imperiais. Na Torre de Estêvão Petri, um velho rabino, com os ombros envoltos no códice do Pentateuco, avançou para lhe prestar homenagem. «Nós reconhecemos a Lei», declarou Inocêncio formalmente, «mas condenamos os princípios do Judaísmo; porque a Lei já foi cumprida por meio de Cristo, que o cego povo de Judá ainda espera como seu Messias». O rabino, de olhos no chão, agradeceu ao pontífice as suas amáveis palavras e retirou-se, não fossem ainda mandar açoitá-lo. O cortejo prosseguiu atravessando o Fórum. Roma, tal como Inocêncio a herdou, não era mais do que um vasto campo por cultivar rodeado pela muralha Aureliana cheia de brechas e coberta de musgo. O pontífice decidiu mandar limpar o local e construir ali, para a família, uma torre, Torre de’ Conti, que dominasse toda a cidade. Passando por montes de entulho de templos, balneários e aquedutos destruídos, Inocêncio contornou o Coliseu e dirigiu-se para Latrão. Aí recebeu o voto de fidelidade do Senado Romano, prelados e príncipes beijaram-lhe os pés e depois de distribuir dádivas pelos pobres e menos pobres convidou os nobres para um banquete. O pontífice ficou isolado, como é próprio das divindades. O serviço era do mais caro. O príncipe mais velho presente serviu-lhe o primeiro prato antes de tomar o seu lugar à mesa com os cardeais. Inocêncio não comeu muito; a sua saúde nunca foi muito boa. Compensava um corpo frágil com a mais férrea vontade que um pontífice alguma vez teve. Já estava a planear tornar o seu título mais querido, o de “Governador do Mundo”, uma realidade. O papado estava praticamente impotente quando da sua posse. O seu primeiro objectivo, tal como o de muitos papas antes e depois dele, era restaurar os seus domínios temporais. Pouco tempo depois já ele tinha feito de Roma um estado clerical. Um crítico do Senado queixava-se deste modo: «Ele depenou Roma como um falcão depena uma galinha». Passados dois anos era ele, e não o imperador, o senhor de Roma e da Itália. Mas nem tudo correu como ele queria. Em princípios de Maio de 1203, durante um curto levantamento dos cidadãos romanos, teve de fugir para Palestrina. No ano seguinte andava demasiado doente para ouvir as estórias sobre a maneira como os cavaleiros da Quarta Cruzada tinham cometido o mais bárbaro dos crimes medievais: o saque de Constantinopla. Na grande catedral de Santa Sofia violaram túmulos de imperadores, roubaram relíquias, violaram e mataram mulheres, incluindo freiras. A cidade mais prestigiada do mundo foi arrasada por soldados católicos que pareciam pensar que os cismáticos não tinham direitos neste mundo nem no próximo. Isto, que foi o primeiro grande exemplo de vandalismo civil dentro da Cristandade, nunca foi esquecido pelos gregos. E Inocêncio não ajudou nada ao nomear um veneziano para Patriarca Latino de Bisâncio. Dois anos mais tarde, Inocêncio fez a paz com a cidade de Roma e voltou para retomar o seu cargo. O exílio apenas tinha feito aumentar o seu ardor pela dominação. Os primeiros papas não desgostavam de ser chamados de “Vigário de S.Pedro”. Ele 69 rejeitou o título. «Nós somos os sucessores de Pedro, mas não os seus vigários, nem os de qualquer homem ou apóstolo. Nós somos o Vigário de Jesus Cristo perante quem todos os joelhos se hão-de dobrar». Mesmo — melhor, especialmente — os joelhos de reis e imperadores. A Igreja, dizia ele, é a alma e o Império apenas o corpo do mundo. A Igreja é o sol e o Império uma lua morta que reflecte a luz da grande Orbe, a Igreja de Cristo. Os ensinamentos de Inocêncio sobre a sociedade contradiziam a Bíblia. Para ele, o poder dos príncipes é uma forma de usurpação; só o poder do clero provém de Deus. Isto era maniqueísmo aplicado às relações entre a Igreja e o Estado. A Igreja, espiritual, era boa; o Estado, material, era essencialmente obra do Demónio. Este puro absolutismo político minava a autoridade dos reis. Tomadas seriamente, as suas teorias conduziriam à anarquia. Inocêncio não pensava assim, claro, porque se sentiacapaz de dirigir a Igreja e o Estado. Era este o seu objectivo expresso. Mas com que pretexto poderia ele governar a sociedade secular? A resposta era esta: o Pecado. Onde quer que houvesse pecado, o papa era omnipotente. E onde é que, na Igreja e no Estado, não havia pecado? Convinha-lhe pintar os soberanos nas cores mais negras. Isto dava-lhe o direito, quanto a ele, de legislar para todo o mundo. Precisava de instrumentos maleáveis. Escolheu Otão IV para imperador porque ele prometeu fazer tudo o que o papa mandasse. Otão foi o primeiro “Rei dos Romanos” a ser chamado de “eleito pela graça de Deus e do papa“. Passado um ano Otão revoltou-se alegando, com razão, que a sua promessa não tinha base legal. Inocêncio excomungou-o e escolheu outro. E havia também de coroar Pedro de Aragão e o Rei de Inglaterra. Nem mesmo Gregório VII tinha conseguido dominar o rei de Inglaterra. Guilherme, o Conquistador, recusou ser seu feudo dizendo: «Eu devo o meu reino a Deus e à minha espada». João, que foi coroado quando Ricardo Coração de Leão morreu em 1199, era de calibre diferente. João Lackland, que tinha apenas um metro e sessenta de altura, era, segundo as palavras de um cronista, “um rei trapaceiro”. Mimado em criança, cresceu desregrado, rabugento e imprevisível. Tinha os olhos enviesados como um oriental e uma pele sempre pálida num rosto de raposa. Só em matéria de higiene é que não dava motivo a críticas; era conhecido por tomar oito banhos por ano. O seu desequilíbrio ficou patente na coroação. Contrariando o protocolo, recusou os sacramentos. Em momentos solenes, dizia gracejos obscenos. O seu desprezo pela Igreja já era evidente dez anos antes quando casou com a prima Isabel de Gloucester sem a devida dispensa. Uma ano após se ter tornado rei, apaixonou-se pela jovem e bela, e já noiva, Isabel de Angoulême. Depois de arquivado o seu próprio decreto de nulidade, casou com a sua segunda Isabel e fez dela a sua rainha. Quando Inocêncio mostrou o seu desagrado, João compensou-o enviando um milhar de homens para as Cruzadas e construindo uma abadia cisterciense com dinheiro roubado. Inocêncio consentiu tacitamente a segunda união. O papa acabou por entrar em conflito com João, não por causa do casamento, mas por motivos de dinheiro. O rei andava a interferir com as liberdades da Igreja — uma maneira de dizer que ele andava a cobrar impostos ao clero para pagar as suas guerras com a França. Quando João nomeou o seu próprio candidato para a sé de Canterbury o papa achou que já era demais e nomeou Stephen Laughton, que João se recusou a reconhecer. Inocêncio deu-lhe três meses para mudar de ideias, caso contrário iria sentir toda a força da lei canónica. Longe de ceder, João expulsou do reino os monges de Canterbury. 70 Todos, à excepção de um bispo, se puseram ao lado de Inocêncio e partiram para o exílio. Assim começara um conflito de sete anos entre o rei e o papa. Inocêncio mostrou até onde podia ir o seu espírito implacável, interditando toda a Inglaterra. Foi uma punição de uma severidade incrível. Já a aplicara à França, que interditara por oito meses pouco depois da sua eleição. João jurou «pelos dentes de Deus» que se algum bispo divulgasse esta punição em Inglaterra mandaria ao papa todos os clérigos com os olhos arrancados e os narizes cortados. Quando a interdição foi publicada, no Domingo de Ramos de 1208, a primeira reacção de João foi confiscar os bens da Igreja com a ajuda da cobiça dos barões. Ele próprio, vítima intencional do castigo, divertiu-se imenso. Lançou impostos sobre o clero, não enviando nada para Roma. O seu divertimento favorito era correr as paróquias à noite e tirar da cama dos párocos as esposas canonicamente ilegais — as focariae (companheiras). Se estes cavalheiros tonsurados quisessem as mulheres de volta tinham de pagar um alto resgate. Isto não era muito diferente das estropelias do oficial de diligências do arcediago, o mais odiado dos funcionários. Quando este desencantava a amante de um padre — e a sua média de sucesso era extremamente alta — cobrava- lhe uma “renda de pecado“ de duas libras por ano. O sofrimento atingiu a maior parte da Inglaterra. E as vítimas foram crianças e adultos. A religião, distracção e refrigério do povo, foi ilegalizada. As igrejas, únicos pontos de encontro, foram fechadas e trancadas contra tudo excepto os morcegos nas torres e os falcões que faziam ninho nos cumes das catedrais. Esta censura silenciou o mais encantador dos sons de toda a Inglaterra: o dos sinos. Não mais se ouviu na cidade e nos campos o dobre de finados ou o repicar do Gabriel de Angelus, nem a música com sabor a bronze, mas subtil, dos campanários, que afogava os gritos das gaivotas e dos corvos e que, segundo a crença popular, esvaziava a pressão do ar das tempestades. Os moribundos eram ungidos, os penitentes absolvidos e os recém-nascidos baptizados. Quanto ao resto, a Inglaterra tornou-se um estado pagão. Com oito mil catedrais e igrejas paroquiais fechadas, milhares de padres e clérigos menores ficaram desempregados. Não se realizavam serviços religiosos no Natal nem na Páscoa, não se diziam missas, nem mesmo nos conventos e mosteiros, não se dava a comunhão, não se celebravam casamentos, não havia sermões, nem se ensinava a doutrina; não se realizavam procissões nem peregrinações a santuários como o de Ely, Walsingham ou Canterbury. Os mortos eram envoltos nas suas mortalhas e enterrados como cães. Passou o verão, veio o inverno e voltou o verão sem uma única celebração cristã. Esta longa Sexta-feira Santa imposta pelo papa na sua misericórdia viria a durar, na Inglaterra, seis anos, três meses e catorze dias. À interdição seguiu-se a excomunhão do rei, em Outubro de 1209. Três anos depois, o papa depôs João e sugeriu a Filipe de França que se preparasse para o expulsar e tomar o trono da Inglaterra. Quem obedecesse ao papa tinha garantidas as mesmas indulgências dos Cruzados. A Inglaterra ansiava ver-se livre de um tirano que dormia com a mulher de qualquer homem quando muito bem lhe apetecia. Arrancava um a um os dentes dos judeus ricos que não lhe apareciam com o dinheiro. Fazia reféns e, quando houve um levantamento no País de Gales, mandou enforcar vinte e oito jovens, filhos de chefes galeses no Castelo de Nottingham no verão de 1212. Enquanto Filipe reunia as suas tropas junto da foz do Sena, João jogou a sua cartada mais forte: pediu a Roma que lhe enviasse um legado para fazer a paz. 71 Satisfeitíssimo, o papa enviou o Cardeal Pandulf. No dia 13 de Maio de 1213, perante uma assembleia de barões e povo, em Dover, João capitulou. Prometeu a restituição integral dos fundos e das terras da Igreja. Dois dias mais tarde, assinou de bom grado um segundo documento em que entregava a própria Inglaterra «a Deus e ao Nosso Senhor Papa Inocêncio e aos seus sucessores católicos». E selou o documento, não com o habitual selo de cera, mas com um selo de ouro. João prometia que, daí em diante, ele e os seus sucessores deteriam os seus domínios como vassalos do papa e pagariam uma renda anual de mil marcos pelo privilégio. Esta vitória deu a Inocêncio um enorme prazer, mas foi mais um exemplo de excesso papal. A suserania papal sobre a Inglaterra terminou efectivamente em 1333, ano em que Eduardo III se recusou a pagar ao papa qualquer renda. Quando o papa Urbano V impassivelmente pediu o pagamento de trinta e três anos de dívidas atrasadas, Eduardo, depois de consultar os seus assessores concluiu que a doação da Inglaterra feita por João à Santa Sé ia contra o seu juramento da coroação e, portanto, era inválida. Os papas não concordaram e esta questão viria a contribuir directamente para a secessão da Inglaterra da fé católica no reinado de Isabel I. Para esta não era importante ser chamado de feudo do papa ou pensar que a Inglaterra esteve apenas arrendada a um potentado estrangeiro. Filipe de França ficoufurioso com Inocêncio III. Tinha despejado sessenta mil libras no Canal, mas não se atreveu a pôr pé em solo inglês, e agora papal. Embora João fosse absolvido da excomunhão, a interdição manteve-se até Junho de 1214, altura em que ele pagou o resto do dinheiro. Só então é que as portas da igreja se abriram, se cantou o Te Deum, e os sinos voltaram a tocar. E por gentil permissão do Papa Inocêncio III, Cristo pôde de novo entrar em Inglaterra. Entretanto, o ódio dos barões a João atingiu um tal ponto que eles elaboraram a Magna Carta, que garantia os direitos da Igreja e do povo, especialmente os dos barões, e obrigaram João a apor-lhe o selo real. Nos termos da Carta, o rei, tal como todos os homens livres, estava sujeito às leis; e o corpo da lei não podia ser secreto, tinha de ser conhecido. João, agora piamente católico, informou naturalmente Sua Santidade. Inocêncio, quando soube, exclamou: «Por S.Pedro, nós não podemos deixar passar tal insulto sem punição». O documento, muitas vezes considerado como a fundação das liberdades inglesas, foi formalmente condenado pelo papa como «contrário à lei moral». O rei, explicava ele, não era, de modo nenhum, súbdito dos barões e do povo. Só o era de Deus e do papa. Consequentemente, os barões que tinham erradamente retirado prerrogativas a um vassalo do papa tinham de ser punidos. Numa Bula, Inocêncio, «na plenitude do seu poder e autoridade ilimitados, os quais lhe foram cometidos por Deus para sujeitar e destruir reinos, para plantar e extirpar», anulou a Carta; dispensou o rei de a cumprir. Excomungaria «quem quer que continuasse a manter tais pretensões traidoras e iníquas». Tem de se concluir que todos os ingleses continuam excomungados. Stephen Langton, Arcebispo de Canterbury, recusou-se a publicar a sentença. O poder do papa não era ilimitado, dizia ele. «A lei natural vincula príncipes e bispos igualmente: não há que fugir disto. Está acima do próprio papa». Langton foi suspenso. Para Inocêncio, que já dominara reis, os bispos foram uma pêra doce. Intitulou-se “Bispo Universal”, título repudiado por muitos dos primeiros pontífices. Com Inocêncio, a Igreja alcançou o ideal de Gregório; tornou-se uma diocese única. Inocêncio promulgou mais leis do que cinquenta dos papas que o precederam; ele próprio não estava sujeito 72 a qualquer lei. Até hoje, foram publicadas seis mil das suas cartas. O seu alcance é extraordinário. Depõe e substitui bispos e abades. Impõe penas para um vasto leque de ofensas. Por exemplo, um homem de nome Roberto foi capturado pelos Sarracenos, junto com a mulher e a filha. O chefe sarraceno promulgou uma ordem segundo a qual, devido à fome, os prisioneiros com filhos deviam matá-los e comê-los. «Este malvado», escreveu Inocêncio, «impelido pela agonia da fome, matou e comeu a própria filha. E quando, em outra ocasião, saiu outra ordem, matou a própria mulher; mas quando a sua carne foi cozinhada e lhe foi servida não conseguiu comê-la». Parte da sua penitência foi que nunca mais comeria carne. Nem nunca mais poderia voltar a casar. Inocêncio completou o seu domínio sobre a Igreja no Quarto Concilio de Latrão em 1215. Uma assembleia massiva de mil e quinhentos prelados escutou educadamente os seus decretos e aprovou-os sem uma pergunta ou uma palavra de debate. Uma das leis que eles aprovaram foi que todos os católicos tinham de confessar os seus pecados ao padre local e comungar pelo menos uma vez por ano. Desta maneira, os leigos ficaram sujeitos aos clérigos, os clérigos aos bispos e os bispos ao papa. Os únicos dissidentes eram os hereges. A segunda parte deste livro tratará da glória maior do reinado de Inocêncio, nomeadamente, o esmagamento dos Albigenses no Sul de França. Centenas de milhar deles foram mortos pelo fogo ou à espada por sua ordem. Na qualidade de único depositário da verdade, Inocêncio sentiu-se no direito de erradicar as heresias por quaisquer meios à sua disposição. Foi ele que deu um novo impulso à Inquisição e injectou no Catolicismo um tipo especial de intolerância que iria durar séculos. Inocêncio III, estadista de génio, pontífice de «uma espantosa força de vontade», governou o mundo com uma majestosa tranquilidade por um período de perto de vinte anos. Durante a maior parte do tempo cercou a Cristandade de terror. Coroou e depôs soberanos, interditou nações, criou praticamente os Estados Papais em toda a Itália central, do Mediterrâneo ao Adriático. Não perdeu uma única batalha. Perseguindo os seus objectivos, fez derramar mais sangue do que qualquer outro pontífice. Desvirtuou profundamente os Evangelhos, a Igreja, o papado e até a distinção entre o bem e o mal. A prodigiosa perversão que operou em tudo isto revela-se claramente numa simples afirmação de cortar a respiração: «Todo o clero tem de obedecer ao Papa, mesmo que ele ordene o que é mau; porque o papa não pode ser julgado por ninguém». Estava em Perugia quando o seu fim chegou, em Julho de 1216. Tinha-lhe chegado a notícia de que os Franceses tinham ousado uma vez mais assaltar o seu reino de Inglaterra. Como que para se retirar com sangue, fez uma comunicação final contra Luís e Filipe Augusto: «Espada, espada, salta da tua bainha. Espada, espada, afia-te e extermina». Ao morrer, deve ter voltado o olhar pisco, por sobre o vasto manto da Planície da Úmbria, para a pequena cidade sonolenta de Assis, aninhada na encosta de uma colina. Talvez uma distante lembrança o tenha feito estremecer. Aquele dia em que um pedinte de olhar brilhante veio ter com ele para lhe pedir o reconhecimento de uma irmandade que queria fundar. E ele concedeu-lho ou não? Posto na grande balança das coisas, isto não pode ter sido importante. O pedinte que ele expulsou do Palácio de Latrão, que não era uma ameaça para ninguém e que teria preferido morrer a privar alguém da consolação da religião, iria em breve sofrer no corpo as feridas do Cristo crucificado. Dele disse Dante no Paradiso: «Nacque al mondo un Sole» («Nasceu um Sol para o mundo»). 73 Inocêncio III, o verdadeiro “Augusto do papado”, já só é conhecido dos historiadores. Mas não há ninguém que não tenha ouvido falar, com alegria e afeição, de Francisco de Assis. * * * Os sucessores de Inocêncio continuaram as suas pretensões absolutistas, e vieram mesmo a aumentá-las. Gregório IX (1227-41), que canonizou o Pobre Homenzinho de Assis, declarou solenemente que o papa é o dono e senhor do universo, das coisas bem como das pessoas. Inocêncio IV (1243-54) decidiu que a Doação de Constantino estava mal apelidada. Constantino não deu poder secular aos papas; eles já tinham o poder secular supremo vindo de Cristo. Só faltava o papa a quem Dante chamou a Besta Negra, Bonifácio VIII, para selar o absolutismo papal. 74 75 5 O Poder em Declínio Benedito Gaetani foi coroado papa, com o nome de Bonifácio VIII, em 1294. Jacopone da Todi, o poeta que escreveu o famoso hino Stabat Mater, observou que nenhum nome lhe podia assentar tão mal. A sua não era nada uma “boa cara“. Alto e corpulento, tinha, aos oitenta anos, o olhar mais frio jamais visto num homem. Llanduff, um cardeal da Cúria, disse dele esta coisa notável: «Ele é todo língua e olhos e o resto está tudo podre». Uma vez recusou-se a confirmar a nomeação de um bispo metropolitano simplesmente porque não gostou da sua cara e disse-lhe isso mesmo. Até um cardeal com uma deficiência, por exemplo, com artrite numa perna ou uma corcunda, podia ser ridicularizado sem misericórdia. Dizia missa com ardor e lágrimas nos olhos como se estivesse no Calvário e estivesse a ver Jesus crucificado. Acabada a missa, era capaz de atirar com as cinzas da penitência para a cara de qualquer arcebispo que lhe desagradasse. Segundo F. M. Powick, «Era admirado por muitos, temido por todos e amado por ninguém». Bonifácio era calvo e tinha as orelhas espetadas num rosto oval inflamado da arrogância própriade alguém que sabe que não tem igual na terra. «O coração do pontífice romano», decretou ele, «é o repositório e fonte de toda a lei. Esta a razão por que a submissão cega à sua autoridade é essencial para a salvação». No Jubileu de 1300, encontraram-no sentado no trono com a coroa de Constantino na cabeça, uma espada na mão e a repetir impiedosamente: «Eu sou o pontífice, eu sou o imperador». As suas vestes eram das mais dispendiosas, vindas de Inglaterra e do Oriente, e andava coberto de peles e pedras preciosas. Quando falava, cuspia as palavras pelo espaço onde lhe faltavam dois dentes no maxilar superior. O seu antecessor, Celestino V, dizia sobre ele: «Saltaste para o trono como uma raposa, vais reinar como um leão e morrerás como um cão». Poucos papas fizeram enriquecer tanto os familiares como Bonifácio. Um diplomata espanhol dizia: «Este papa só se preocupa com três coisas: uma vida longa, uma vida rica e uma família bem dotada à sua volta». Conhecido como “O Pecador Magnânimo”, Magnanimus Peccator, não perdeu tempo e logo fez de três sobrinhos cardeais, outorgando-lhes vastas terras e bens. Nas palavras de Dante, ele fez do sepulcro de Pedro um esgoto. Era um libertino, que uma vez teve como amantes uma mulher casada e a filha desta. Num daqueles comentários de improviso por que era conhecido disse: «Fazer sexo é como esfregar as mãos». Depois, quando envelheceu, o seu único passatempo era, além de fazer dinheiro, fazer inimigos. O médico espanhol que lhe salvou a vida tornou- se o segundo homem mais odiado de Roma. Apesar de toda a sua aparente autoconfiança, Bonifácio teve uma preocupação que o acompanhou até ao fim da vida. Muitos prelados desconfiavam que ele tinha astuciosamente induzido o seu antecessor a resignar. Trata-se de uma das mais estranhas estórias da história da Igreja Católica e que começou no ano de 1292 com a morte do Papa Nicolau IV. O conclave, que se realizou em Perugia, não chegou a acordo quanto a um sucessor. Os onze eleitores estavam divididos entre os Colonnas e os Orsinis de tal maneira que a discussão se prolongou sem resultado por semanas e meses. Benedito Gaetani 76 manteve-se à parte, talvez na esperança de, numa solução de compromisso, vir ele a ser escolhido. Depois de dois anos de impasse, Gaetani fingiu ter recebido uma “carta inflamada” de um velho eremita. Pedro de Morone, que vivia escondido numa gruta nos Abruzzi, tinha fama de santo. Na pretensa carta exigia que os cardeais dessem um papa à órfã Igreja. Em vez de Gaetani, o Deão propôs, com sucesso, o próprio Pedro de Morone. No verão de 1294 partiu de Perugia uma comitiva papal. Após uma viagem de 240 quilómetros e uma escalada de trezentos metros, encontraram o novo papa. Magro, esfarrapado, sujo, espreitava por entre as grades da sua cela improvisada como um macaco desnorteado. O odor de santidade não era agradável. A comitiva papal, encabeçada pelo Cardeal Pedro Colonna, ajoelhou com as palavras «Vossa Santidade». Quando percebeu que aquilo não era uma piada e que não estava a sonhar, Pedro de Morone aceitou. Tomou o nome de Celestino V. O novo pontífice não concordava com a vida licenciosa de Roma e assim insistiu em estabelecer-se em Nápoles. Gaetani, para conquistar a sua confiança construiu-lhe uma cela de madeira numa das enormes salas do Castello Nuovo, o castelo de cinco torres sobranceiro ao mar. Aí, nas palavras de um seu contemporâneo, Sua Santidade esperava esconder-se como um camponês nas moitas. Este era o seu ambiente e aqueles príncipes mundanos eram-lhe completamente estranhos. Não conseguia entender as frases em latim erudito que eles usavam. Esvaziou os estábulos e quando tinha de viajar, fazia-o de burro, como Jesus. A Igreja tinha mudado tanto desde os primeiros tempos que o próprio Jesus não caberia nela. Os cardeais depressa compreenderam o seu erro. Celestino estava a desfazer-se dos bens da Igreja dando-os a pessoas indignas, como os pobres e os monges empobrecidos com quem sempre andara associado. Não tinha jeito para a simonia. Iria levar a Igreja à bancarrota em três tempos. Ele nem frequentava os banquetes, preferindo mordiscar uma côdea de pão e beberricar água em retiro. Alguém tinha de fazer qualquer coisa, e quem melhor para essa tarefa do que Benedito Gaetani? Este abriu um orifício na parede da cela do papa e introduziu nele um tubo para por ele se poder falar. A meio da noite, sussurrava através do tubo: «Celestino, Celestino, resigna do teu cargo. É um fardo grande demais para ti». Depois de muitas noites a ouvir a voz do Espírito Santo, o simplório monge abdicou. Apenas quinze dias após a sua coroação convocara os cardeais e pedira-lhes, sem grande esperança de sucesso, que mandassem as amantes para conventos e vivessem em pobreza como Jesus. Trocou os mantos papais pelo seu grosseiro hábito de eremita, resignou e partiu. Gaetani, jurista de formação, tinha engendrado este final bem sucedido; e agora, sendo a antítese de Celestino, reclamava o trono por direito. Subiu ao poder em Dezembro de 1294 e regressou imediatamente a Roma. Mas, temendo que Celestino pudesse reaparecer acompanhado de espirituais fanáticos como Jacopone da Todi, tomou a precaução de o fechar no castelo de Fumone; o velho eremita aí morreu, poucos meses mais tarde, de fome e abandono. A família Colonna veio a saber a maneira como Gaetani tinha forçado Celestino a resignar e usou este conhecimento para questionar a sua legitimidade. Bonifácio VIII, apesar de todo o seu poder, nunca se sentiu seguro no trono papal. Os Colonnas eram descendentes dos Condes de Túscolo. Além de usurpar o trono, o seu trono, eles acusavam ainda Bonifácio de se apossar das suas terras à volta de Roma e de as doar a membros da sua família. Quando os Colonnas armaram uma emboscada a uma escolta papal que carregava ouro, Bonifácio tratou-os como turcos, 77 pregando uma cruzada, com indulgências, contra eles. Quando por precaução eles sairam furtivamente de Roma, acusou-os de conspirarem com os franceses para o destituírem. Em retaliação, mandou os exércitos para destruir as suas cidadelas nas colinas à volta de Roma, matando os camponeses nas suas terras ou vendendo-os como escravos. Em breve, só as muralhas rochosas de Palestrina podiam arcar com o santuário dos Colonnas. Os dois cardeais Colonna não tinham outro remédio: tiveram de pedir misericórdia. Dirigiram-se apressadamente para Rieti, onde o papa estava instalado, e prostraram-se a seus pés com cordas à volta do pescoço e envergando mantos negros de penitência. Bonifácio, com um olhar mais brilhante do que a tiara, poupou-lhes a vida mas tirou- lhes uma coisa que eles prezavam ainda mais: a honra. Expulsou-os do Sacro Colégio e quebrou os seus selos com um martelo. Depois viajou para Anagni, a sua cidade favorita, situada sobre o vasto vale do Sacco, sessenta e cinco quilómetros a oriente de Roma. Aí, no cume inferior do Monte San Giorgio, nascera e fora criado. Dirigiu-se à janela da sala superior do palácio papal, donde desfrutava uma vista arrebatadora da vegetação primaveril. Palestrina, um dos sete pilares da Igreja Romana, empoleirava-se na encosta de uma colina, rodeada de oliveiras e loureiros. Horácio escreveu uma das suas mais belas Carmina em louvor de Palestrina, e foi aí que, no século III, o menino-mártir, Agapito, foi assassinado por amor de Cristo. Depois de murmurar uma oração, o pontífice ergueu e deixou cair o braço qual divindade vingadora. Logo uma bandeira foi arreada nas muralhas do palácio, sinal para as forças do papa começarem a atacar Palestrina. Nada foi poupado. Houve relatos que falavam em seis mil mortos, embora muitos dos habitantes tivessem fugido para as regiões circunvizinhas. Os palácios, incluindo a casa de Júlio César, antiguidades e belos mosaicos, um templo circular da Virgem Maria no cimo de uma escadaria de mármore com cem degraus, tudo teve o mesmo fim. Sóa catedral foi poupada. O resto foi tudo destruído de maneira tão cruel como a antiga Cartago. O solo foi lavrado e espalharam sal nos sulcos para a desolação ser completa. Ali iria nascer outra cidade, prometeu Bonifácio, uma Civitas Papalis, uma cidade que soubesse ser leal a Sua Santidade. Por este acto monstruoso na primavera de 1299, Dante enterrou Bonifácio VIII no Oitavo Círculo do Inferno, de cabeça para baixo, nas fendas da rocha. Três anos mais tarde, num dia frio de meados de Novembro do ano de 1302, Bonifácio estava de volta a Anagni. A sua disposição era de tal maneira abominável que nem a vista de uma Palestrina arrasada lhe aliviou o espírito. A que ponto estava a Cristandade a chegar quando ele não podia confiar no seu filho mais velho? A sua disputa com Filipe o Belo de França continuara a arrastar-se. O rei estava furioso com o pontífice por não o ter feito imperador como prometera. Por vingança tinha lançado impostos sobre o clero para financiar as suas campanhas militares. Bonifácio tinha retaliado seis anos antes com a sua Bula Clericis Laicos. Pegou nela e voltou a lê-la. Ainda ficava maravilhado com a sua intransigência. Gregório VII não podia ter feito melhor. «Os leigos sempre foram hostis ao clero». Tão verdadeiro, suspirou ele, no seu habitual tom sibilino. Filipe era um perfeito exemplo daquele princípio. Bonifácio tinha emitido excomunhões contra qualquer clérigo que pagasse um tostão que fosse a um leigo, fosse ele rei ou imperador. De facto ele decretou que se um monarca cobiçoso deitasse a mão a uma simples peça da baixela da Igreja seria imediatamente excluído de Jesus Cristo, e se não se arrependesse perderia o seu reino. Filipe ficou curado da sua loucura? De modo nenhum. Proibira a exportação de ouro e prata; o ladrão andava a embolsar todos os lucros da Igreja; e o pior de tudo é que 78 prendeu um bispo. A tremer de raiva, Bonifácio pegou na pena. Uma nova Bula. Esta seria dirigida à Igreja universal. Depois dele, muitos católicos, incluindo alguns papas, desejariam que ele nunca a tivesse escrito. A Bula “Unam Sanctam” e o fragor das espadas O pontífice estava sentado à secretária, absorto, e o único som que se ouvia era o da pena a arranhar o papel. As suas primeiras palavras iriam correr mundo: Unam Sanctam. «Só há uma única Santa Igreja Católica e Apostólica fora da qual não há salvação ou remissão de pecados». O melhor era fazer as suas alegações alto e bom som e de maneira clara. Ele, o papa, com Cristo e Pedro, era o único chefe da Igreja. Esta Igreja é a Arca da Salvação; alguém que esteja fora dela está condenado a afogar-se para sempre, especialmente os cristãos gregos que se recusam a admitir que o papa é o Pastor de todo o rebanho. Veio-lhe à ideia uma imagem menos pastoral. O olhar iluminou-se-lhe: as Duas Espadas. «Os apóstolos disseram a Jesus, "Estão aqui duas espadas". O Senhor não responde "É demais", mas sim, "Chegam!"» A exegese medieval raramente passou deste nível. Agora a pena corria. Aquele que nega que Pedro tem o poder da espada temporal está a interpretar erradamente as palavras do Senhor, «Embainha a tua espada». Ambas as espadas, a espiritual e a material, estão em poder da Igreja. A espiritual é manejada pela Igreja; a material para a Igreja. Uma pela mão do padre; a outra pela mão dos reis e cavaleiros segundo a vontade e consentimento tácito do padre. Uma espada tem de estar sob a outra; a material sob a espiritual, tal como a autoridade temporal em geral está sob a espiritual. Bonifácio fez uma pausa para olhar as ruínas de Palestrina. Que melhor prova da ordem correcta das coisas numa comunidade espiritual? «O poder espiritual», continuou ele, «tem de estabelecer o poder terreno e julgar se é bom ou não. Como disse Jeremias, "Vede, hoje pus-vos acima das nações e dos reinos"». Esperava que desta vez Filipe e todos os monarcas prestassem atenção às suas palavras. Um toque autoritário final para que as suas palavras não fossem mal interpretadas: «Nós declaramos, anunciamos e definimos que é absolutamente necessário para a salvação de todas as criaturas ser súbdito do Pontífice Romano». Para acentuar a sua autoridade, a Bula ia assinada do seu palácio de Latrão, no oitavo do seu pontificado. Chamando o secretário, um bispo, entregou-lhe a Unam Sanctam para copiar e distribuir por toda a Igreja. Em França a reacção não foi favorável. Um assessor do rei comentou: «A espada do Papa é feita apenas de palavras; a do meu Mestre é de aço». Filipe espalhou o boato de que Bonifácio tinha obrigado o seu antecessor a resignar, o tinha depois prendido e assassinado. Bonifácio é um tirano, declarou ele, um herege, uma presa de todos os vícios». O rei sabia que só as palavras não chegavam. Tinha de agir vigorosamente e com rapidez antes de ser excomungado. Convocou o seu chanceler, Guilherme de Nogaret. Em conjunto maquinaram uma trama ousada. Um esquadrão de homens armados seria 79 treinado com o objectivo de apanhar o papa e trazê-lo de volta a França. Aí seria submetido a julgamento por um Concílio Geral que, sem dúvida, o deporia. Nogaret fez uma vénia a sua Majestade e semanas depois a expedição estava pronta a partir. Em Roma Bonifácio exultava. A Unam Sanctam tinha-lhe dado mais prazer do que a destruição de Palestrina, mais ainda do que ter visto dois milhões de peregrinos a dirigirem-se para Roma em rebanho para lhe encher os cofres durante o Ano Santo dois anos antes. Era como se Deus lhe tivesse autenticado a Bula fazendo com que Filipe tivesse sido derrotado no campo de batalha pelas forças flamengas em Courtrai. Agora toda a Igreja sabia que as coisas de Deus são de Deus; e as coisas de César são… bem, também elas são de Deus. Evidentemente. Mesmo que alguns papas não tivessem tido estômago para o dizer. Afinal, todas as coisas são de Deus, porque foi ele que as criou, e o papa representa Deus. O papa, como Primeiro Pastor, tem o dever de alimentar todo o rebanho, incluindo as maiores ovelhas de todas: reis e imperadores. Saboreou de novo a sua frase favorita da Unam Sanctam: Ninguém pode ser salvo se não obedecer ao pontífice romano. Agora nem mesmo Filipe se atreveria a opor-se- lhe. Não era Filipe mas a família Colonna que o preocupava. Depois de ter despromovido os seus cardeais, eles não lhe tinham mostrado qualquer gratidão por ter poupado as suas vidas, antes fugiram da cidade. Não fazia ideia onde eles se encontrariam, mas estavam com certeza a tramar alguma coisa algures. Arrependia-se de não os ter logo executado. Passou-se um ano. Bonifácio estava uma vez mais no seu retiro favorito em Anagni. Estava a dar os últimos retoques numa Bula que excomungava Filipe e o expulsava do trono. Sim, ia despedi-lo como a um moço de estrebaria. A esplêndida sensação que isto lhe provocava só era estragada por uma estória singular vinda de Florença. Algum tempo antes, ele tinha doado àquela cidade um leão adulto. Os florentinos mantiveram- no acorrentado num cortile no coração da cidade. Um dia, um burro descobriu o caminho para o pátio e — mal podia acreditar — escoicinhou o rei dos animais até à morte. Os florentinos diziam que aquilo pressagiava os últimos dias de Bonifácio VIII. Donde viria uma calamidade daquelas? Ele não tinha o mínimo conhecimento de que Nogaret tinha reunido forças com Sciarra Colonna, sobrinho e irmão dos ex-cardeais. Sciarra, jovem voluntarioso e sanguinário, estivera em Rieti, também vestido de negro de penitência, quando os seus parentes foram depostos, lançando a vergonha sobre todo o clã Colonna. Sciarra nunca iria esquecer o ter-se ajoelhado aos pés daquele monstro e ouvido a sentença de excomunhão. Com esta, o papa baniu-o da irmandade dos cristãos e obrigou-o a um exílio perpétuo. Isto era praticamente uma sentença de morte, e ele tinha passado quatro anos nas galés até que um parente o resgatou. Esta aliança com os franceses daria aSciarra a possibilidade de ajustar todas as suas contas — de um só golpe. Num sábado, dia 7 de Outubro, os portões de Anagni foram traiçoeiramente abertos de madrugada pelo capitão da guarda do papa. Para as estreitas ruas entraram seiscentos cavaleiros e mil montadas. Esta cidade de escuras vielas escarpadas vibrava sob o som de patas dos cavalos e do bater de pés. Mesmo isto foi rapidamente abafado pelo clangor dos sinos de alarme. Os invasores depressa retiraram as barreiras erguidas à pressa e saquearam os palácios dos cardeais fieis ao papa. O palácio do papa estava bem fortificado no topo de uma colina e defendido pelos Gaetanis. De lá, o papa mandou às seis da manhã, um mensageiro a pedir uma trégua. 80 Secretamente pediu aos cidadãos mais importantes que viessem em seu auxílio. Prometeu-lhes imensas riquezas em troca da sua aliança nesta hora de necessidade. Eles recusaram. Esteve sentado na sala do trono durante horas a pensar, a rezar, e a dar de novo uma vista de olhos à Unam Sanctam, espantado pelo facto de um príncipe temporal ter ousado erguer a espada contra o Ungido de Deus, o Senhor do Mundo. À hora de vésperas, foram-lhe entregues as condições da trégua. Tinha de readmitir os cardeais Colonna no Sacro Colégio, resignar e render-se incondicionalmente a Sciarra Colonna. Para Bonifácio VIII, orgulhoso membro dos Gaetanis, isto significava luta até à morte. Os invasores começaram a destruir pelo fogo os portões principais da catedral para conseguirem entrar no palácio que ficava para além dela. Os clérigos nas suas compridas alvas brancas fugiam como gaivotas. Quando entraram, os homens de Sciarra saquearam a catedral e mataram toda a gente que lá se encontrava. Avançaram depois para o palácio, rebentando janelas e arrombando portas. Os guardas da segurança do papa, em inferioridade, renderam-se e ofereceram-se para lhes mostrar o desenho do edifício. Aos gritos, desvairadamente, as tropas, comandadas por Sciarra, abriram caminho até à grande escadaria que dava acesso aos aposentos privados do papa. Sciarra não se preocupara em contar quantos tinha matado nas últimas horas. Lembrava-se de se ter atirado a um arcebispo, mas o resto era tudo muito vago. Tinha o peitoral salpicado de sangue e a cheirar a ferrugem; a espada e o punhal estavam vermelhos até ao punho. Quando empurrou a porta da enorme câmara de audiências de altos tectos, ele e os seus homens foram engolidos por um tremendo silêncio. O velho papa, de oitenta e seis anos, estava majestosamente sentado no trono, só, salvo um cardeal auxiliar encolhido num canto. Estava imóvel, envergando todas as vestes e símbolos pontifícios: a tiara, que simbolizava que ele era o Senhor do Mundo; nos dedos, além da grande safira oval a brilhar, tinha o Anel do Pescador. A mais elevada fonte do seu poder tinha-a na mão, uma cruz de ouro. Sciarra ficou tão aterrado que a princípio nem conseguiu mexer-se. Quando se dirigiu lentamente para Bonifácio, de espada desembainhada, o pontífice beijou altivamente a cruz. Este gesto, o sonoro estalar dos lábios, teria feito parar um católico devoto, mas não Sciarra Colonna. Deu uma bofetada na cara manchada e marcada das veias do Vigário de Cristo que ecoou na câmara das audiências e que fez com que os seus próprios homens recuassem e se benzessem. Aquilo era um sacrilégio. E se Deus, como vingança, os fulminasse? A praguejar para manter a coragem, Sciarra gritou que aquele homem não era o papa, mas um impostor, filho de Satanás. «Resigna» ordenou ele. Bonifácio beijou de novo a cruz. «Antes morrer», murmurou. Orgulhoso demais para implorar misericórdia àquele patife excomungado, baixou a cabeça. Depois, naquele seu tom irritante, «Ec le col, ec le cape» («Aqui tens o meu pescoço; aqui tens a minha cabeça»). Nascera em Anagni; não se importava de ali morrer. Este pontífice que afirmava que a espada temporal estava ao seu serviço tinha agora essa mesma espada sobre o seu pescoço esquelético. Em ponto algum da história da Igreja há momento mais simbólico. Isto era a prova de que a aliança da Igreja e do Estado tinha atingido o ponto de rotura. Mesmo o sanguinário Sciarra hesitou. Seria ele capaz de cortar a Cabeça da Igreja? Tendo feito uma jura de vendetta, não tinha outro caminho. Num êxtase de alegria sádica, ergueu a espada e apontou cuidadosamente. 81 Foi então que Nogaret entrou de rompante a gritar que o rei de França queria o pontífice de volta a Lyons para enfrentar a deposição perante um concílio ecuménico. Sciarra, com o rosto cheio de sombras purpúreas, embainhou a espada. Para parcial compensação, começou a despir Bonifácio da sua dignidade. Derrubou-lhe a tiara, deixando à mostra uma careca oval, depois divertiu-se a arrancar-lhe, por vezes com o punhal, as caras vestes papais, peça por peça. Os seus homens, aliviados por não terem tido de participar na morte de um papa, saquearam as salas. Ficaram espantados como é que até um papa durante uma vida longa feita de cobiça podia ter acumulado tais tesouros. Bonifácio, de pé, como uma estátua, aparentemente esquecido da humilhação, continuava a repetir em tom irritado a lamentação de Job, «Dominus dedit, Dominus abstulit» («O Senhor deu, o Senhor tirou»). E por fim ficou ali de pé naquela câmara vazia praticamente nu. O corpo, amarelo, enrugado e supliciado, estava cheio de piolhos. Quando os medievais descreviam os tormentos do inferno, não era o fogo mas os piolhos o que eles mais temiam. O cronista disse friamente: «O pontífice teve uma má noite». O alívio chegou inesperadamente. Muitos dos homens de Sciarra eram mercenários e já tinham ido embora com os seus despojos. O povo da cidade estava com receio que Anagni viesse a ser interdita; nunca mais haveria missa. Podia mesmo vir a ser destruída como Palestrina. Três dias mais tarde, armaram-se e obrigaram o inimigo a retirar e libertaram o papa da sua masmorra. Ele estava mudado. Ao contrário do que fora o seu hábito de uma vida, falava entre soluços e lágrimas que lhe corriam pelas faces marcadas de negro. Tinha ressuscitado ao terceiro dia tal como Cristo, seu Mestre. «Obrigado» gemia ele repetidamente. «Obrigado». A senilidade apossara-se provavelmente dele; por orgulho ou por receio de ser envenenado, tinha recusado todo o alimento na prisão. A fome e a sede, as noites de solidão no escuro, com ratazanas a correrem sobre ele, a proximidade da morte, tudo isto o tinha desarticulado. Levado de volta para Roma sob escolta, ficou fechado no seu quarto em Latrão durante trinta e cinco dias. Segundo rumores que corriam, provavelmente fantasiosos, batia repetidamente com a cabeça na parede e mordia incessantemente o braço, como um cão de volta de um osso. E aí, na solidão e totalmente desprezado — «Morieris ut canis» foi a profecia de Celestino — morreu. No dia do funeral houve uma tremenda tempestade e ele foi enterrado com o mínimo cerimonial no imenso túmulo que ele próprio tinha preparado na velha Basílica de S.Pedro. Há uma curiosa nota de rodapé na história da Besta Negra de Dante, um pontífice ímpio que afirmava que tinha tantas possibilidades de sobreviver à morte como um frango assado. Quando, para acabar a construção da nova Basílica de S.Pedro, em 1605, o seu túmulo teve de ser mudado, fendeu e abriu-se. Para consternação geral, o corpo do pontífice, passados três séculos, estava incorrupto. Só o nariz e os lábios estavam ligeiramente mordidos. Mediram-no: um metro e setenta; ainda tinha no dedo o anel oval de safira; parecia em paz. Bonifácio tinha dado forma final à heresia do poder papal. Também noutros aspectos ele não era um bom adorno para uma Igreja que ao menos foi poupada, por cortesia de Nogaret, à última das indignidades: ter de o venerar como S.Bonifácio, papa e mártir. O exílio babilónico 82 Os problemas do papado não terminaram com Bonifácio VIII. Filipe de França, ainda não satisfeito de ver o seugrande inimigo dar a alma ao Criador, estava determinado a dessacralizar a sua memória. Benedito IX, que sucedeu a Bonifácio, tentou apaziguar sua Majestade absolvendo-o de toda a culpa de sacrilégio perpetrado contra o seu antecessor. Quando Benedito morreu, um ano depois, uma maquinação escandalosa no conclave levou à eleição de Bertrand de Grot, Arcebispo de Bordéus, como Clemente V. Filipe via finalmente satisfeitos os seus desejos: um papa francês, que ele podia moldar à sua vontade. Clemente fez imediatamente saber aos seus auxiliares atónitos que eles o iriam acompanhar para além dos Alpes. Anagni já fora revés bastante, mas isto era a humilhação final do papado: deixar o lugar do antigo império e os túmulos de S.Pedro e S.Paulo. Clemente temia, nas suas palavras, «desgostar o nosso querido filho, o Rei de França». Em breve se estabelecia dentro dos domínios do rei, sob o seu olhar vigilante, em Avignon, uma pequena cidade da Provença, na margem oriental do Ródano. Com Filipe a ameaçar julgar Bonifácio postumamente por ser uma fraude e um herege, o papa cedeu a sua Majestade em toda a linha. Filipe foi louvado pelo seu zelo religioso contra Bonifácio, e Celestino V, que Bonifácio enganara levando-o a resignar, foi canonizado com o nome de S.Pedro de Morone. O prestígio do papado sofreu um golpe quase fatal, e uma sucessão de pontífices cobiçosos e sensuais levaram o ofício de Pedro ao nível mais baixo desde o Reinado das Meretrizes. O paraíso papal da Provença Os papas de Avignon não foram uniformemente nem bons nem maus. Um bom representante foi Clemente VI, eleito no ano de 1342. Homem sem malícia nem princípios morais, teve o mérito de ser um bom pagão. O seu nome civil era Pierre Roger de Beaufort, monge beneditino, Arcebispo de Rouen, chanceler de sua Majestade o Rei de França. O rei deu-lhe a protecção de que sua Santidade precisava se quisesse viver comme il faut. O facto é que Clemente não gostava da Itália nem dos italianos. Tinham passado quarenta e cinco anos desde que Clemente V tinha feito aquela inspirada troca: o Tibre pelo Ródano; os pântanos de Roma cheios de malária, cólera e tifo, onde parecia que todos se queriam matar uns aos outros, pela perfumada Provença. Antes do seu tempo, vários papas — Celestino V, por exemplo — nunca tinham visto Roma; o próprio Clemente VI nunca tinha posto os pés na Itália. Nem os seus antecessores próximos, João XXII e Benedito XII. Clemente estava determinado a manter esta bela tradição francesa. Isto explica a enorme despesa que fez no seu novo palácio no Rocher de Doms, junto do Ródano. Ao contrário de Benedito XII, que era um desmancha-prazeres, Clemente sabia como gastar. «Antes de mim ninguém fazia ideia de como ser papa» brincava ele muitas vezes. «Se o rei da Inglaterra quiser fazer do seu burro bispo, é só pedir». Uma vez, um burro entrou no consistório com um cartaz pendurado ao pescoço: «Por favor, faça-me também bispo». Clemente não levou a mal, como aconteceu também quando recebeu uma carta em pleno consistório. A carta dizia: «Do Diabo para o seu irmão Clemente». Ele e os seus “diabinhos”, os cardeais, desataram às gargalhadas. 83 O único objectivo de Clemente era fazer os seus súbditos felizes. Conseguia isto esbanjando com o mais cobiçoso dos peticionários mais do que aquilo que ele se atreveria a pedir. Alguns cardeais tinham entre quatrocentos e quinhentos dos maiores rendimentos. Isto significava que podiam ter os rapazinhos mais formosos, se tivessem essa inclinação, ou as mais belas damas de companhia. Em Avignon toda a gente vivia bem: músicos, artesãos, banqueiros, ourives, astrólogos, carteiristas e as espectaculares prostitutas. Poucos se queixavam por Baco e Vénus serem mais venerados em Avignon do que Jesus Cristo. Um dos que realmente se queixaram foi Petrarca, o grande académico e Poeta Laureado do Império. Uma coisa que o deixou irritado foi o facto de Benedito XII ter desejado a sua irmã. Recusou mesmo um chapéu de cardeal como parte do negócio. Mas Benedito, mesmo assim, conseguiu tê-la; subornou o irmão do poeta, Gerardo. Depois de ter estado em Avignon, Petrarca descreveu — anonimamente, porque não queria ir para a fogueira — a corte papal como «a vergonha da humanidade, uma sarjeta de vícios, um esgoto onde se junta toda a porcaria do mundo. Lá, Deus é desprezado, só o dinheiro é que é venerado, e as leis de Deus e dos homens são espezinhadas. Tudo lá exala mentira: o ar, a terra, as casas e sobretudo os quartos de dormir». O Papa Clemente sofria de uma “enfermidade” diagnosticada oficialmente como um problema de rins, mas que tinha sido contraído no seu quarto de dormir. Ele não fora prudente nas suas aventuras amorosas, toda a gente o sabia, mas isso fazia parte da sua liberalidade. Nunca foi capaz de negar os seus favores, mesmo na cama. “Sessões de indulgência plena”, assim eram chamadas. Mas ultimamente tinha já legitimado todos os filhos. Uma grande parte do seu palácio foi entregue à Inquisição. A câmara de tortura era ampla, sólida e aberta no topo, com paredes irregulares, nas quais ecoavam os gritos estridentes dos prisioneiros no meio do silêncio. Para encorajar os frades, Clemente trepou uma ou duas vezes a escada em caracol de La Salle de Torture até à masmorra por cima daquela, onde havia um buraco no meio do soalho. De gosto delicado como era, não gostava de ver os corpos estropiados a serem lançados pelo buraco e a caírem na câmara de tortura, mas, raciocinava ele, a heresia tinha de ser eliminada de qualquer maneira. Froissart, o diarista francês, viria a chamar ao palácio de Avignon «o edifício mais belo e mais forte do mundo». Sete torres erguiam-se para o céu e, em frente, espessas paredes brancas com balestreiros belamente guarnecidos de mísulas reflectiam o sol. Do cume, Clemente podia olhar em baixo o Ródano correndo sob a grande ponte de Saint-Bénézet. Esta ponte, com o seus dezanove arcos, levou doze anos a construir e alguns dos arcos assentam na ilha no meio do rio. Os jovens costumavam dançar e cantar debaixo dela e fazer amor sobre a relva. «Sou le pont d’Ávignon on y dance tout en rond». Sua Santidade admirava a beleza de todas as coisas. Em primeiro lugar, a da mulher, essa puríssima arquitectura de carne, mas também a dos edifícios de pedra. As suas tapeçarias vinham de Espanha e da Flandres, os tecidos de ouro, de Damasco, na Síria, as sedas, da Toscânia, os tecidos de lã, de Carcassonne. A baixela de ouro e prata que pesava à volta de duzentos quilos, era-lhe muito querida. Ele queria desesperadamente ganhar as guerras italianas e reconquistar a Terra Santa para Cristo, mas não se isso significasse ter de vender a sua baixela. Ficaria muito mais barato mandar os seus trinta capelães rezar por milagres. Desconfiava que fora Petrarca que escrevera aquele malévolo poema sobre como em Avignon os cavalos tinham ferraduras de ouro. O pontífice sabia que uma tal calúnia 84 não afectava a sua reputação. Só os freios é que eram de ouro. Ele era o papa; tinha de pôr um certo ar. Os cardeais em particular apreciavam muito esta sua generosidade. Não era com tostões que se podia construir as suas grandes habitações do outro lado do Ródano, em Villeneuve, ou mantê-las com o necessário corpo de cento e cinquenta serviçais. O refúgio favorito de Clemente era um pequeno quarto na torre, com um cama de casal, com a fragrância do perfume da Condessa de Turenne. No tempo de Clemente V, aqueles que procuravam as bênçãos do pontífice deixavam as suas petições no seio sedoso da bela Perigord, filha do Conde de Foix. Mas Clemente VI achava que a sua condessa não tinha comparação. De todos os colos em que a sua nobre cabeça repousara, o de Cecília era de longe o mais doce. Apesar de ter feito da Cúria a máquina financeira mais eficiente da história, andava sempre com dificuldades de dinheiro. A compra da cidade inteira em 1348 tinha-lhe custadooitenta mil florins. Considerava este negócio o melhor investimento alguma vez feito por um papa, mas alguns andavam a dizer que a Igreja nunca mais se recomporia daquela sua imprevidência. Em 1350, o distrito de Avignon estava muito movimentado com os peregrinos a caminho de Roma. Chegavam aos milhares, vestidos com os tradicionais mantos de viajante ou trajos nacionais. Uns vinham a cavalo, outros em carroças a abarrotar com os seus haveres; a maioria vinha a pé, de cajado na mão. Clemente apreciava o simplismo da sua piedade. Levavam semanas a chegar a Roma, para o Jubileu, trilhando sombrios desfiladeiros alpinos cobertos de neves eternas antes de chegarem às encostas revestidas de ciprestes e vinhas da Itália e iniciarem a longa jornada para sul. Muitos nunca lá chegavam; morriam de velhice ou de doença, eram assaltados ou assassinados. Os mais afortunados depunham as suas dádivas no túmulo de S.Pedro para os clérigos as apanharem como feno e as mandarem ao sucessor de Pedro em Avignon. Bonifácio VIII decretara um Jubileu em cada século. Para Clemente isto parecia mesquinho. Reduziu o prazo para cinquenta anos. Os resultados surpreenderam-no a ele próprio, mas a maioria dos peregrinos queria agradecer a Deus o ter escapado à Peste Negra. Em três anos, a Peste dizimou um terço da Cristandade, incluindo Roma. Avignon perdera mais de metade da população. Quando a doença começou a atacar, como não notasse qualquer movimento no interior do mosteiro Carmelita, uma alma corajosa forçou a entrada e encontrou todos os 166 monges mortos. Num único dia, o balanço das vítimas na cidade foi de 1312. As pessoas contaminadas morriam geralmente em quarenta e oito horas. Algumas cidades ficaram vazias. O gado nos prados e colinas morria por falta de assistência. Os barcos no mar, com a tripulação toda morta, despedaçavam-se contra as rochas. Muitos culpavam os Judeus, queimando, enforcando e afogando milhares deles num piedoso esforço para se verem livres da peste. Em Avignon, Clemente protegera os Judeus. Portanto não lhe agradava nada ouvir dizer que não foram os Judeus, mas sim a vida dissoluta do papa que provocou aquela calamidade. Se ele tivesse descoberto o autor desta afirmação tê-lo-ia mandado torturar e queimar como àqueles monges e frades, chamados “espirituais”, que insistiam, contra toda a evidência, que Jesus tinha vivido na pobreza e não como as «prostitutas da Nova Babilónia», como Avignon era conhecida. Havia muitas pessoas em Roma que desejavam que o pontífice regressasse à sua diocese. A Rainha Bridget da Suécia era uma delas, e a jovem Catarina de Siena era outra. As duas, que mais tarde viriam a ser canonizadas, passavam os dias a rezar e a 85 escrever longas cartas a Clemente. Apelavam a que pusesse fim àquele escândalo e regressasse a casa. Bridget, com quase cinquenta anos, era famosa pelas suas visões e sonhos. Por vezes, quando contava os mais perturbadores de entre eles, os cidadãos cercavam-lhe a casa na Piazza Farnese, em Roma, gritando que a Principessa, como lhe chamavam, devia ser queimada como bruxa. Jesus falara com ela pela primeira vez quando ela era ainda uma criança. Nunca mais esqueceu aquela visão do seu amado estendido sobre as tábuas, como uma ave de rapina pregada na porta de um celeiro. Na sua noite de núpcias, só pediu ao esposo Ulf uma coisa: que o casamento deles fosse virginal. E assim foi durante dois anos. Depois, teve oito filhos em rápida sucessão. Houve um sonho que abalou mesmo esta austera dama. Apareceu-lhe S.Lourenço, o diácono. «Este Bispo» disse ele, sem querer mencionar o nome do papa, «permite aos padres a fornicação. Dá os bens da Igreja aos ricos». O santo desapareceu para dar lugar a um alto cavaleiro em brilhante armadura. Bridget aproximou-se dele, tirou-lhe o elmo, mas não foi uma forma humana que ela viu. Apenas uma carcassa mal cheirosa de ossos ocos e vermes a contorcerem-se. Isto, ela sabia, era o papa cheio de pústulas, moribundo e já mostrando sinais de decomposição. Se se lhe pudesse tirar a cabeça e olhar-lhe a alma era isto o que se veria. Aquela massa fedorenta tinha orelhas na testa para escutar a adulação; olhos na parte de trás da cabeça para ver só a podridão; e no coração abrigava um enorme verme. Nem mesmo Bridget podia prever que a nobre cabeça de Clemente, acariciada pelas mais encantadoras damas da Provença, seria um dia usada como bola pelos Huguenotes ou que o seu crânio acabaria como taça na mesa do Marquês de Courton. Em 3 de Dezembro de 1352, um vento quente e húmido, fora de época, vindo de África, atingiu Roma. O calor era insuportável, estava a gerar-se uma trovoada. A escuridão ameaçadora foi subitamente rasgada por relâmpagos; nesse mesmo momento, houve um estalido muito vivo e um estranho toque metálico de sinos. Bridget sentiu que o raio tinha caído perto. Saindo de casa no meio da escuridão de breu e da chuva torrencial, dirigiu-se instintivamente para a Basílica de S.Pedro. A basílica tinha sido atingida e os sinos tinham derretido. No mercado, toda a gente começou a festejar. «Morreu. Sim, o papa morreu e está enterrado bem fundo no Inferno». Três dias depois, os sinos de Avignon dobravam a anunciar oficialmente que o Bispo de Roma, Clemente VI, de feliz memória, já não vivia. Durante nove dias seguidos, naquela enorme capela, agora a gelar, cinquenta padres disseram missa pelo repouso da sua alma. Os misericordiosos diziam: Não chega. Os desapiedados diziam: Nunca será demais. 86 87 6 A Descida do Papado aos Infernos Em muitas gerações de católicos se disse: «O papado atingiu agora o seu nível mais baixo». Disse-o Dante de Bonifácio VIII. Disse-o Petrarca do Exílio Babilónico no período de Avignon. Ambos os eminentes poetas estavam enganados. Os dias mais negros ainda estavam para vir. A podridão instalou-se quando Catarina de Siena foi a Avignon para pressionar o pontífice reinante, Gregório XI, a voltar para Roma. Era o ano de 1377. Sete papas franceses seguidos tinham tornado o seu cantinho da Provença a maravilha do mundo. As mulheres da corte papal, despeitadas, não tiveram piedade de Catarina, aquela freira pálida e rude da Toscânia que parecia ter encantado sua Santidade. Talvez ele tivesse ficado impressionado com o seu êxtase na comunhão. Se ela se tornasse muito influente, elas teriam de fechar os seus salons, onde jovens deslumbrantes, filhos de duques e príncipes, vinham à procura de cargos eclesiásticos. Na capela revezavam-se para lhe picarem e beliscarem o corpo insensível para ver se o seu transe era genuíno ou não. Uma malvada furou-lhe um pé com uma agulha comprida de tal maneira que Catarina ficou impossibilitada de andar durante dias. No fim ela ganhou. Gregório voltou para Roma, sem seis dos seus cardeais que não conseguiam deixar as suas casas apetecíveis, as suas mulheres provençais e os seus vinhos da Borgonha. Um ultimato dos Romanos, segundo o qual se ele não voltasse eles elegeriam outro papa, pode também tê-lo influenciado. Em 278 anos, desde 1100, os papas só tinham passado oitenta e dois em Roma. Estes papas nómadas tinham passado uns longos 196 anos noutras partes. Não era um bom recorde; e o exemplo não se ficou pela Igreja. A Cidade Eterna depressa acabou com Gregório. Depois é que a verdadeira tragédia de Avignon se revelou. Um papa, dois papas Depois da morte de Gregório, o conclave, reunido para nomear o sucessor, estava dividido em duas facções, franceses e italianos. Durante o exílio, sete papas de Avignon tinham feito 134 cardeais, todos eles franceses, à excepção de vinte e dois. Os franceses estavam naturalmente determinados a manter o papado para si próprios. Como Latrão tinha ardido, o conclave reuniu no Vaticano. Lá fora, uma multidão de, segundo se dizia, trinta mil pessoas gritava-lhes que escolhessem finalmente um italiano. A escolha era muito limitada. Havia apenas quatro cardeais italianos e nenhumdeles papabile. Para lograr o seu intento, a multidão encheu de lenha a sala que ficava por cima do local da reunião e por baixo passaram toda a noite a bater nas tábuas do soalho com lanças e alabardas. E como se isto não bastasse, tocaram o sino do Capitólio, a que se juntaram os sinos da Basílica de S.Pedro. De manhã a multidão perdeu completamente a paciência e arrombou a porta do conclave. 88 Dos dezasseis cardeais presentes, todos esfomeados e sem dormir, treze votaram num estranho, Bartolomeu Prignano, o Arcebispo de Bari, entroncado, de pequena estatura e rosto amarelado. Não era romano. Um napolitano foi o melhor que eles puderam arranjar. Na dúvida de que aquilo fosse suficiente, vestiram, contra sua vontade, um romano octogenário, o Cardeal Tebaldeschi, com as vestes papais e mostraram-no. Um mensageiro partiu apressadamente para Pisa, onde a eleição de Tebaldeschi foi celebrada com fogo de artifício. Entretanto, os franceses fugiram a sete pés. Durante dois dias ninguém se preocupou em dar a notícia a Prignano nem a prestar-lhe as costumadas homenagens. Quando finalmente soube, tomou posse com o nome de Urbano IV. O Arcebispo de Bari, de família humilde, fora durante quinze anos um funcionário da Cúria muito meticuloso, mas pacífico e obediente. Os nobres cardeais franceses tinham a certeza de que ele continuaria a fazer o que lhe mandassem e que levaria a corte de volta a Avignon. Enganaram-se grave e redondamente sobre o seu homem. Urbano IV veio a revelar-se um dos pontífices mais rancorosos e de temperamento mais vil. O seu médico revelou que ele mal tocava na comida, mas não podia passar sem o álcool. Segundo o Cardeal da Bretanha, no banquete da coroação, ele bebeu oito vezes mais do que qualquer dos outros membros do Sacro Colégio — embora alguns tenham dito que isto não era humanamente possível. A bebida, a religião e a vingança — todos em excesso — provaram ser uma potente mistura. Nascido e criado nas vielas malcheirosas de Nápoles, não tinha estômago para os fracos e pretensiosos cardeais franceses. Contava-se que lhes pregava sermões como Jeremias com dores de barriga. Queria corrigi-los a qualquer preço. Na sua voz aguda de eunuco, falava-lhes abertamente do Cardeal Orsini como sendo sotus (“pateta”). Uma vez, de rosto vermelho de raiva, só não bateu no Cardeal de Limoges porque Robert de Geneva lhe segurou o braço. «Que fazeis, Santo Padre?» Quando estava para excomungar outro membro de Sacro Colégio por simonia e Geneva interveio de novo, Urbano ladrou como um cão: «Eu posso fazer tudo, absolutamente tudo o que quero». Um grande número de cardeais considerava que aquelas fúrias eram sintoma de loucura. Consultaram um jurista respeitado: Haveria algumas circunstâncias em que os cardeais pudessem substituir-se a um papa incapacitado? Urbano soube disto e provou que ainda estava no seu juízo perfeito. Primeiro, excomungou um velho inimigo, o Rei Carlos de Nápoles, que acusou de estar por detrás daquela “rebelião”. O rei reagiu bloqueando Sua Santidade na sua fortaleza de Nocera, perto de Pompeia. Urbano subia às muralhas quatro vezes por dia, e serenamente, com a campainha, o livro e a vela, excomungou todo o exército que o atacava. Parecia ignorar as setas que caíam à sua volta. Resgatado pelos Genoveses, mandou prender os cinco cardeais rebeldes. Foi visto depois em Génova, possivelmente entorpecido pelo álcool, a passear de um lado para o outro no jardim e a recitar o breviário a plenos pulmões. Numa câmara próxima, estavam os rebeldes a ser torturados. Os seus gritos não perturbavam de modo nenhum a sua paz com Deus. Amarrado, o velho Cardeal de Veneza estava a ser levantado e baixado numa roldana. Com a cabeça comprimida contra o tecto, conseguia ver o papa através das grades da janela, e de cada vez resmungava em agonia: «Santo Padre, Cristo morreu pelos nossos pecados». Depois era descido até ao chão. Os prisioneiros nunca mais foram vistos. Alguns cardeais franceses escapuliram-se separadamente e reuniram-se de novo em Anagni, onde prepararam uma Declaratio contra Prignano. Ele não era papa. Apenas o 89 tinham elegido, afirmavam eles, com medo da multidão. Escolheram outro pontífice: Robert de Geneva, primo do rei de França, que se chamou Clemente VII. Urbano contra- atacou nomeando vinte e seis novos cardeais que lhe deviam fidelidade. Já tinha havido dois papas em numerosas outras ocasiões, mas a presente crise era única. Estes dois papas tinham sido eleitos por mais ou menos o mesmo grupo de cardeais. Assim, quando estes afirmavam que a sua escolha de Urbano não tinha sido genuína, faziam-no com autoridade, mesmo que estivessem a mentir. Na Inglaterra, Wycliff lançou o primeiro sarcasmo: «Eu sempre soube que o papa tinha os cascos fendidos. Agora tem também a cabeça». A Cristandade foi obrigada a tomar partido. Se Urbano tinha sido de facto escolhido sob coacção, a eleição era inválida. Mas se eles estavam assim tão amedrontados por que é que não tinham escolhido um romano — por exemplo, o velho Tebaldeschi — e não se tinham retirado logo para Anagni para registar uma queixa oficial? A escolha de um saudável Napolitano e uma demora de três meses eram suspeitas. Como Catarina de Siena sensatamente lembrou, se eles já tinham um falso papa em Tebaldeschi, para que é que precisavam de outro? Dava a impressão de que os franceses se queriam descartar de alguém com quem não era possível uma relação. Seguiu-se o caos. Um papa ausente já era uma coisa bastante penosa; agora a própria Sede da Unidade estava a tornar-se fonte de desunião. Pelo decreto de eleição de 1059, um papa não canonicamente eleito pontífice romano era chamado de “o Destruidor da Cristandade”. Isto provou-se ser o caso. Se os cristãos não conseguiam identificar o verdadeiro papa, para que servia o papado? O rei da Inglaterra apoiou Urbano, o rei de França, Clemente. Nas universidades não havia consenso. O coxo e vesgo Clemente VII, como era de prever, voltou com os seus seguidores franceses para Avignon, onde a sua conduta foi tão má que não se tornou em nada diferente de um genuíno papa de Avignon. Já provara ser matéria prima papal quando, em 1377, agira como legado do papa em Cesena, no Adriático. Os locais protestaram contra os mercenários que violaram as suas mulheres, e mataram alguns dos culpados. Depois de conferenciar com os responsáveis da cidade, convenceu-os a deporem as armas. Em seguida enviou para lá uma força mista de Ingleses e Bretões para chacinar todos os oito mil habitantes, incluindo as crianças. Dois papas, três papas Em Outubro de 1389, Urbano, o papa que ninguém queria, realizou a única boa acção da sua vida: morreu. Os catorze cardeais que restavam em Roma escolheram para o substituir Bonifácio IX, um assassino e provavelmente o maior simoníaco da história. Vendeu todos os benefícios eclesiásticos a quem deu mais, daí resultando que a Alemanha e a França enxameavam de padres italianos, muitas vezes soldados reformados, que não sabiam uma palavra da língua. Os irmãos de Bonifácio, os sobrinhos e sobretudo a mãe foram quem mais beneficiou desta sua liberalidade. Dizia- se que ninguém jamais fizera tanto dinheiro com as canonizações. Nunca assinava qualquer documento sem logo estender a mão a exigir: «Um ducado». A única coisa por que ele não cobrou dinheiro foi a excomunhão de Clemente de Avignon. Clemente retribuiu-lhe o cumprimento. E assim continuaram as coisas. Quando morria um papa ou um antipapa, em vez de porem um fim à situação, os respectivos grupos de cardeais escolhiam um sucessor. O que são os cardeais sem um papa próprio? 90 Por esta altura, a Cristandade começava a ficar farta. Quem é que, afinal, quer comprar um bispado ou uma abadia a um pontífice que se revela um impostor? E se uma indulgência muito cara ou a autenticação de umas relíquias como o prepúcio do Salvador ou o seu umbigo não valessem opergaminho em que estavam escritos? Havia mesmo confusão no céu. Bridget da Suécia viria a ter um recorde de três canonizações para se ficar com a absoluta certeza de que era mesmo santa. O cisma também era mau para o negócio. Os banqueiros coração-de-pedra rezavam fervorosamente para que aquilo acabasse. Toda a vida do Império estava desintegrada. Quem diabo é que iria coroar o próximo imperador? Das universidades veio a sugestão de que, uma vez que a unidade da Igreja era prioridade maior do que o papado, e que Cristo, e não o pontífice romano, é que era o Chefe supremo da Igreja, era melhor retirar o apoio a ambos os papas. Os historiadores convidaram o imperador a depô-los com o sólido fundamento de que já muitos imperadores tinham feito isso antes e que a sua intervenção seria universalmente aplaudida. Contudo, a partir do papa-menino, no século XI, o papado tornara-se mais poderoso do que qualquer imperador. E agora, apesar de toda aquela confusão, um dos papas era autêntico. E se o imperador destituísse o papa errado? Não seria o mesmo que retirar a Bíblia da Igreja e substituí-la pelo Corão? O mesmo dilema se poria a um Concílio. Se se reunisse um Concílio para depor ambos os pretendentes, uma das deposições seria inválida, mas qual delas? Um outro problema era que os juristas desse tempo afirmavam que só um papa — o genuíno — podia convocar um Concílio. O estado catastrófico da Igreja significava que tinha de se fazer qualquer coisa, a despeito da névoa canónica. Em 1409 foi convocado um Concílio na maravilhosa cidade muralhada de Pisa, cuja torre, tal como a própria Igreja, já estava inclinada. Foi na Duomo, revestida de mármore preto e branco, sob o majestoso retrato de Cristo de Cimabue, que se reuniram os padres mitrados. Declararam solenemente que os papas em conflito, Gregório XII de Roma, e Benedito XIII de Avignon, eram ambos hereges e cismáticos. Foi uma medida inteligente: os papas que caíam em heresia depunham-se, em certo sentido, a si próprios. Em meados de Junho escolheram como substituto o Cardeal Filargi de Milão, um piedoso Franciscano septuagenário e desdentado, de família desconhecida e votado à pobreza. Tinha três defeitos difíceis de esconder. Embora magro e de pequena estatura, passava metade do dia à mesa; mantinha um palácio com quatrocentos serviçais, todos mulheres e todos vestidos de libré; distribuía benefícios eclesiásticos de maneira tão liberal que até os cardeais ficavam admirados. Filargi aceitou o nome de Alexandre V. Ao som dos sinos, vestido a rigor, desde as sapatas vermelhas à tiara, Filargi percorreu as ruas de Pisa, montado num cavalo branco. Os prelados saudaram-no aliviados. Passados trinta confusos anos, o Grande Cisma terminava. Só que Gregório e Benedito não concordaram, e assim o mundo acordou um dia espantado com a notícia que lhe chegava: ontem tínhamos só dois papas, agora temos três. Dizia um galhofeiro que a tiara tripla devia ser dividida, uma vez que a Igreja agora tinha três cabeças para pô-la. Tornou-se muito popular uma nova versão do Credo: «Creio em três Santas Igrejas Católicas». Os fiéis já tinham suportado gerações de papas ausentes, com períodos de dois a três anos em que não havia papa nenhum por os cardeais não se entenderem. O cenário actual era o pior de todos. 91 A única certeza saída de Pisa devia ter sido a de que o homem que eles escolheram não era papa; depois seguiu-se um espectáculo nunca visto: três papas infalíveis, todos a reclamarem a suprema autoridade sobre a Igreja, todos a excomungarem solenemente os outros dois, todos a ameaçarem convocar um Concílio próprio em três lugares diferentes. Os dramatis personae deste teatro do absurdo eram os seguintes: (1) Angelo Corrario, Gregório XII, veneziano, com perto de noventa anos e muitos “sobrinhos”, descendente em linha recta do intratável Urbano VI. Fora escolhido pela jurisdição romana porque, como o Cardeal de Florença confessou, «É velho e frágil demais para ser corrupto». Outro erro fatal. O primeiro acto papal do velho homem foi empenhar a tiara por seis mil florins para pagar as suas dívidas de jogo. Foi para Rimini e daí vendeu em Roma tudo o que era móvel e algumas coisas que o não eram, como a própria Roma, por exemplo, ao rei de Nápoles. (2) Piedro da Luna, um espanhol histérico, que representava a ressuscitada jurisdição de Avignon. Era o que menos contava. Deixado cair pelo rei de França e por todos menos três dos seus cardeais, em breve voltou para a sua Espanha natal, onde insistia que era o verdadeiro papa e praticamente excomungou toda a Igreja. (3) Baldassare Cossa, João XXIII. Alexandre V morrera passados apenas dez meses e era Cossa, um pontífice melífluo, encantador e cruel, quem representava a jurisdição de Pisa. Constava que nunca se confessara nem comungara. E nem acreditava na imortalidade da alma nem na ressurreição dos mortos. Alguns duvidavam que ele acreditasse em Deus. Era conhecido como antigo pirata, envenenador de papas (pobre Filargi), assassino em série, fornicador em série, com queda para as freiras, adúltero num grau desconhecido fora da ficção, simoníaco por excelência, chantagista, proxeneta, mestre em estratagemas sujos. Quando da sua eleição para o papado em Bolonha, Cossa era diácono. Ordenado padre num dia, no outro foi coroado papa. Este charlatão foi reconhecido pela maioria dos católicos como senhor e soberano que mantinha a Igreja unida pela sua fé de pedra. Quando um outro Papa João XXIII foi eleito em 1958, várias catedrais católicas tiveram de retirar à pressa o nome do João XXIII do século XV das suas listas de pontífices. Um concílio muito embaraçoso A maré de sorte de Cossa virou quando Segismundo, imperador eleito, o persuadiu a convocar um Concílio «para reduzir o número de papas, de acordo com o Evangelho». O local seria a cidade muralhada de Constança no sul da Alemanha, na fronteira com a Suíça. Em apenas meses a sua população iria aumentar de seis mil para sessenta mil e depois duplicar. Quando o clero se reunia em grande número era sempre prudente escolher uma cidade perto da água — lago ou rio — para se desfazerem dos corpos. O Lago Constança recebeu mais de quinhentos durante os trabalhos do Concílio; também o Reno escondeu muitos segredos. Outro requisito era que o local do encontro fosse suficientemente grande para acomodar o vasto número de prostitutas que achavam que o clero requeria os seus serviços mais urgentemente do que os militares e pagava 92 preços mais interessantes. Durante o Concílio foram calculadas em mais de mil e duzentas as prostitutas em Constança a trabalharem vinte e quarto horas por dia. No Dia de Todos os Santos de 1414, João XXIII, um flibusteiro de quarenta e oito anos, cheio de gota, enfeitado de ouro, celebrou missa e pregou na abertura formal do Concílio Geral. Foi uma reunião maciça, que incluiu trezentos bispos, trezentos teólogos de topo e os cardeais de todas as três jurisdições. Huss, reitor da Universidade de Praga, a quem Segismundo tinha garantido segurança, foi imediatamente preso por ordem de Cossa. Era uma lição para todos, especialmente para o Papa Benedito (a quem chamavam Benefictus, - “Falso”) e para o Papa Gregório (que apelidavam de Errorius, - “Erro”). João XXIII tinha corrido um risco ao atravessar os Alpes para entrar em terras imperiais, mas tinha votos suficientes no bolso para se sentir seguro. Havia então, como mais tarde, mais bispos italianos do que de todas as outras nacionalidades juntas. O que o derrotou foi a decisão do Concílio de se votar não individualmente, mas por nações. A sua maioria foi imediatamente varrida e ele viu que havia três para um contra ele. A seguir, às primeiras horas da manhã do dia de Natal, chegou Segismundo, que o mandou resignar. Cossa viu a acusação, um enorme catálogo dos seus delitos redigidos com perversa eficácia. As patroas de todas as casas deprostitutas da Cristandade devem ter testemunhado contra ele. Quando soube das crescentes exigências, especialmente dos ingleses, para que o queimassem para acabar com aquilo, concordou em resignar, desde que os outros dois papas fizessem o mesmo. Depois, disfarçado de criado, saiu de Constança à noite. Sem papa nenhum, não poderia haver Concílio nenhum, deve ele ter raciocinado. Entre a mão cheia de cardeais que se lhe juntaram no seu esconderijo a trinta milhas de distância, em Schaffhausen, estava Oddo Colonna. Os guardas imperiais trouxeram-no de volta para enfrentar a música. O Concílio tinha entretanto assumido plena autoridade. Nas quarta e quinta sessões fez uma declaração de fé unânime, que nunca mais abandonou a Igreja até hoje. O Sagrado Concílio de Constança […] declara, primeiro, que está legalmente reunido no Espírito Santo, que constitui um Concílio Geral que representa a Igreja Católica, e que, portanto, recebeu a sua autoridade de Cristo; e que todos os homens de todas as categorias e condições, incluindo o próprio papa, estão obrigados a obedecer-lhe nas questões de fé, na extinção do cisma e na reforma da chefia e dos membros da Igreja de Deus. Eneias Sílvio, que um dia viria a ser o Papa Pio II, escreveu: «Poucos duvidarão de que um Concílio está acima de um papa». Por que havia alguém de duvidar? A antiga doutrina da Igreja era que um Concílio Geral era soberano na fé e na disciplina. Com base nesta doutrina, mais do que um papa foi condenado em Concílios por heresia, como se verá na Parte 2 deste livro. Foram momentosas as consequências do Concílio de Constança. Se o papa está obrigado a obedecer à Igreja nas questões de fé, não pode por si só, e sem o consentimento da Igreja, ser infalível. De facto, quando fala independentemente do Concílio, o papa pode bem errar na fé. Esta doutrina foi esbatida por papas medievais como Gregório VII e Inocêncio III, por meios duvidosos. O Concílio de Constança, depois de afirmar a sua autoridade sobre o papa, procedeu à aplicação prática dessa autoridade depondo, em primeiro lugar, Benedito, que já estava em fuga para Peñiscola. 93 A seguir foi João XXIII. Este recusou firmemente a resignação. Os padres do Concílio concordavam que ele era o papa legítimo, mas a Igreja era mais importante do que o papado. As acusações contra ele foram reduzidas de cinquenta e quatro para cinco. Como, caracteristicamente, Gibbon observou em Decline and Fall: «As acusações mais escandalosas foram suprimidas; o Vigário de Cristo era acusado de pirataria, assassínio, violação, sodomia e incesto». Toda a gente sabia que, desde que se tornara Vigário de Cristo, o único ofício que ele exercia era na cama. É muito significativo o facto de João XXIII ter sido absolvido de heresia, provavelmente por nunca ter mostrado interesse bastante pela religião para ser classificado como heterodoxo. Até então, a única acusação suficientemente grave para depor um papa era a de heresia. Cossa foi deposto simplesmente porque não se comportava como um papa se deve comportar. Em 29 de Maio de 1415, os selos oficiais de João XXIII foram solenemente esmagados a martelo. Mas um ex-papa, tal como um ex-presidente, tem direito à consideração. Apesar da sua enorme promiscuidade, apenas lhe aplicaram uma sentença de três anos de prisão. Huss, corajoso, casto, incorruptível, severamente contrário à simonia e à concubinagem do clero, teve um destino mais sombrio. Sem direito a defesa, julgado por uma acusação forjada, interrogado por Dominicanos que não tinham lido os seus livros, nem sequer em tradução, foi condenado à morte. Com um alto chapéu decorado com três diabos dançantes, ladeado pelos espadachins do Conde Palatine, foi levado da prisão num belo dia de verão de 1415. Praticamente toda a cidade seguiu o cortejo, que passou pelo cemitério onde os livros de Huss estavam a ser queimados num brilhante prado verde. Rezou pelos seus perseguidores quando o fogo foi ateado. Por três vezes o ouviram dizer «Cristo, tu que és o filho de Deus vivo, tem misericórdia de mim» antes de o vento lhe ter soprado as chamas para o rosto. Os lábios ainda se moviam quando, sem um gemido, expirou. Para evitar que viesse a ser venerado como mártir, as suas cinzas foram atiradas para o Reno. Era evidentemente maior pecado dizer, como Huss e o Novo Testamento, que depois da bênção a Eucaristia se devia ainda chamar de “pão” do que ser um papa cobiçoso, assassino e incestuoso que enganou a Igreja em tudo. Finalmente, Gregório XII, agora com noventa anos e muito abatido, convocou o Concílio, que tinha estado em funções durante meses, e depois resignou. Completadas estas formalidades, todos os três papas estavam arrumados. A Cristandade podia respirar outra vez. Segismundo, ele próprio um libertino, queria reformar rapidamente a Igreja, antes que um novo pontífice fosse eleito, raciocinando que jamais se poderia confiar num papa para reformar a Igreja. Durante séculos, argumentava ele, o papado não esteve à altura de tal tarefa. Nesta altura, os clérigos castos eram tão poucos que aqueles que não tinham mulher nenhuma eram acusados de vícios ainda piores. Infelizmente Segismundo não foi apoiado pelo rei de França, nem por Henrique V de Inglaterra, acabado de sair vitorioso em Agincourt. O Cardeal Oddo Colonna, que jurara fidelidade a João XXIII quando este fugira para Schaffhausen, foi escolhido sem demora, e chamou-se de Martinho V. Com cinquenta e cinco anos, era um eclesiástico de nascimento e criação, sendo filho de um dos cardeais de Urbano VI, Agapito Colonna. A Igreja tinha de novo um só papa. Agora já não havia qualquer esperança de reforma, embora se pensasse muito em disciplinar o clero. Dois dias depois da eleição, Colonna, que era diácono, foi ordenado padre. Era o dia 13 de Novembro de 1417. No dia seguinte foi sagrado bispo. Uma semana depois, 94 após ser coroado papa, foi para o altar para o beija-pé antes do desfile a cavalo, em procissão, pela cidade. Segismundo e Frederico de Brandenburgo cavalgavam a seu lado, um à sua esquerda e o outro à sua direita. Tal como João XXIII, o único objectivo de Martinho era sair de Constança rapidamente. Não tinha qualquer desejo de reformar a Cúria ou o papado. De facto, quando Cossa foi libertado da sua confortável prisão em Heidelberga e foi para Florença, Martinho reintegrou este assassino e violador confesso, fazendo-o bispo de Frascati e Cardeal de Túscolo. A ansiedade de Martinho por um rápida saída era compreensível. O maior Concílio a que o Ocidente tinha assistido tinha decretado que os Concílios Gerais derivavam a sua autoridade directamente de Cristo. Toda a gente, o papa incluído, está sujeito a ele em questões de fé, resolução de cismas e reforma da Igreja. O que o deixava numa posição delicada é que isto fora aprovado por unanimidade. Ele próprio tinha-o votado favoravelmente como cardeal. Mas a História mostra que o papado quase invariavelmente transforma um homem logo que ele toma o poder. Ele queria voltar para Roma onde afirmaria a sua superioridade sobre o Concílio. Por outras palavras, queria negar o próprio fundamento da sua eleição. Porque se o papa é o chefe supremo da Igreja, João XXIII é que era o papa, não ele. Esta tensão não viria a ser resolvida nos 450 anos seguintes. E só aconteceu quando o Concílio Vaticano I afirmou que a crença na supremacia e infalibilidade papal era necessária para a salvação. Foi elevado o preço desta resolução. O Vaticano I contradizia tudo o que estava implícito nos primeiros Concílios da Igreja e o que fora explicitamente afirmado em Constança. Por exemplo, de acordo com o Vaticano I, quando um papa fala ex cathedra, as suas definições «são irreformáveis por si próprias e não por consentimento da Igreja». O Concílio de Constança declarou que o próprio papa «está obrigado a obedecer-lhe [ao Concílio] em matérias de fé». Esta a razão por que Thomas More,o leigo mais bem informado do seu tempo, escreveu a Thomas Cromwell em 1534 dizendo que enquanto que ele cria que a supremacia de Roma foi instituída por Deus, «contudo nunca pensei que o Papa estivesse acima do Concílio Geral». E se o dogma do absolutismo papal do Vaticano I estivesse em vigor antes do Concílio de Constança? Nesse caso, o Concílio não se teria sentido competente para depor um papa e a Igreja poderia ter sido vítima da praga de uma trindade durante séculos. Só negando pura e simplesmente aquilo que viria a tornar-se o dogma central do Catolicismo Romano é que o Concílio Geral de Constança pôde salvar a Igreja. Prenúncios de tempestade Não que o Concílio de Constança tenha realmente salvo a Igreja. O Concílio terminou sem que fosse aprovada uma única reforma importante. Semanas depois de voltar para Roma, Martinho já tinha dado a sua bênção ao sistema curial, que antes de mais, tinha feito ajoelhar a Igreja. A Cristandade estava em estado de desespero. No século X, apesar de todos os papas adolescentes, adúlteros e assassinos, o papado era um fenómeno localizado. O chefe de uma família romana poderosa punha o seu querido filho adolescente no trono; o rapaz provocava distúrbios durante alguns meses ou anos agitados e era emboscado pelos membros de uma família rival cuja hora tinha chegado. 95 Mas a partir do século XI, Gregório tinha aposto o seu selo no papado, cuja estatura e prestígio cresceram; conseguiu controlar toda a Igreja, desde o mais simples pároco de aldeia até ao mais poderoso arcebispo. O resultado foi a mais terrível corrupção que o Cristianismo jamais vira ou que provavelmente virá a ver. E isto começou de cima. O papado era leiloado em conclave e entregue a quem mais desse, independentemente do mérito do candidato. Um historiador do século XIX, T. A. Trollope, no seu livro The Papal Conclaves (1876) avaliava as coisas assim: «Poucas ou nenhumas eleições papais foram mais do que simoníacas. […] A invenção do Sacro Colégio foi, afinal, talvez a mais fértil fonte de corrupção da Igreja». Muitos cardeais iam para Roma para o conclave acompanhados dos seus banqueiros. Levavam os seus valores, especialmente as suas baixelas de prata; se eram eleitos papas, a multidão romana saqueava os seus palácios, e até levava portas e janelas. Os cardeais raramente eram escolhidos por serviços prestados à Igreja. Deviam a sua posição à trapaça e à intriga. No tempo do Renascimento quase todos tinham as “suas companheiras”. Uma vez escolhido de entre tais homens, o novo papa, com dinheiro fresco para sacar, não perdia tempo e começava logo a promover os familiares — filhos, sobrinhos, sobrinhos bisnetos — sem o mínimo pejo, segundo o princípio italiano “Bisogna far per la famiglia” (“Temos que fazer pela família”). O tempo era um factor essencial uma vez que o papado não é hereditário e o papa podia dispor apenas de alguns meses ou anos para estabelecer uma dinastia. Daí que tantos pontífices, logo que punham a tiara, olhassem à volta à procura de meios para encher os bolsos. Um bom exemplo disto foi, no século XIII, Clemente IV, que era viúvo. Vendeu milhares de italianos do sul a Carlos de Anjou a troco de um tributo anual de oitocentas onças de ouro. De acordo com os termos do contrato, se o duque se atrasasse no pagamento seria excomungado. Se o atraso se mantivesse, todos os seus territórios seriam interditos. Para um papa, privar distritos inteiros de missa e sacramentos simplesmente por os príncipes não honrarem os seus débitos, não constituía pecado. Os cardeais tinham enormes palácios com inúmeros serviçais. Um assessor papal conta que nunca ia falar com um cardeal que não o encontrasse a contar as suas moedas de ouro. A Cúria era composta por homens que tinham comprado o cargo e queriam desesperadamente recuperar a despesa feita. Todos os cargos em todos os departamentos tinham o seu preço. Estes cortesãos exerciam o poder do dia a dia com tremendas sanções à sua disposição. Podiam excomungar qualquer pessoa. Os bispos e os arcebispos tremiam perante eles. Era a Cúria que estabelecia a tarifa da simonia. Para cada benefício de sé, abadia e paróquia, para cada indulgência, havia uma determinada tarifa. O pálio, uma faixa de lã de cinco centímetros de largura, com cruzes bordadas em seda preta, era paga por todos os bispos. Estes modestos enfeites de lã produziram ao longo dos anos centenas de milhões de florins para os cofres papais, de tal maneira que o Concílio de Basle em 1432 havia de lhe chamar «a maquinação mais usurária inventada pelo papado». No século XVI, na Alemanha, dioceses inteiras foram dadas em arrendamento aos banqueiros, como os Fuggers, e a sociedades que vendiam os benefícios a retalho ao licitante que mais oferecesse. As dispensas eram outra fonte de rendimento papal. Aprovaram-se leis extremamente severas ou mesmo impossíveis para que a Cúria pudesse enriquecer com a venda das dispensas. Exigia-se o pagamento das dispensas de jejum durante a Quaresma, como também para autorizar um monge doente ou velho a ficar na cama em vez de se levantar de noite para o seu ofício divino. O casamento, em particular, 96 era uma rica fonte de rendimento. Alegava-se haver laços de consanguinidade entre casais que nunca tinham imaginado serem parentes. As dispensas de consanguinidade para casar montavam a um milhão de florins de ouro por ano. Presumia-se durante o Renascimento que os clérigos do topo da hierarquia tinham as mais lindas mulheres, e havia dioceses inteiras onde a concubinagem do clero se passava perfeitamente às claras. O clero romano, ali mesmo debaixo do nariz da Cúria, era o pior de todos. Nada disto é de admirar. Compravam-se e vendiam-se ofícios e benefícios como qualquer outra mercadoria. O clero não tinha qualquer prática de autodisciplina. Eles queriam simplesmente uma sinecura e uma vida ociosa. Muitos não sabiam ler nem escrever; estavam no altar a murmurar idiotices ininteligíveis porque nem conseguiam papaguear o latim. O pior insulto que se podia dirigir a um leigo nesta altura era chamar-lhe padre. Depois do Concílio de Constança, levantaram-se protestos por toda a parte. O próprio Martinho V admitia que muitos estabelecimentos religiosos eram antros de vício. Os bispos, as universidade e os mosteiros clamavam por um Concílio para reformar os abusos. A Cúria, superada e vencida em Constança, persuadiu o papa de que um Concílio não seria vantajoso para ele. Contudo, em Constança, tinha-se tomado um compromisso solene de que haveria um Concílio dentro de dez anos, e depois em intervalos regulares. Apesar dos esforços da Cúria para o inviabilizar, realizou-se um Concílio em Basle em 1432. Os bispos mostraram que as suas intenções eram sérias. A partir de agora, todas as nomeações eclesiásticas serão feitas de acordo com os cânones da Igreja; toda a simonia cessará. A partir de agora, todos os padres, da mais alta ou mais baixa categoria, deixarão as suas concubinas, e quem quer que, a partir de dois meses após este decreto, não cumpra as suas exigências será privado do seu ofício, mesmo que seja o Bispo de Roma. A partir de agora, a administração eclesiástica de cada país deixará de depender do capricho do papa. […] Acabará o abuso, por parte do papa, do banimento e do anátema. […] A partir de agora, a Cúria Romana, isto é, os papas, não exigirão nem receberão quaisquer taxas pelos ofícios eclesiásticos. A partir de agora, um papa deve pensar não nos tesouros deste mundo, mas tão só nos do mundo vindouro. Isto não era brincadeira. Brincadeira nenhuma. O papa em exercício, Eugénio IV, convocou o seu próprio Concílio em Florença. Rotulou o Concílio de Basle de «uma turba de pedintes, simples criaturas ordinárias, a escória do clero, apóstatas, rebeldes blasfemos, sacrílegos, cadastrados, homens que, sem excepção, apenas merecem ser acossados de volta para o diabo de onde vieram». O papado desperdiçouesta oportunidade; e não viria a haver outra. O mesmo século que viu Eugénio IV reprovar os melhores esforços de Basle para uma reforma, acabaria com o papa que, acima de todos, tinha vindo do diabo: Alexandre Bórgia. A tempestade em formação No século XV não houve uma única voz que se levantasse em defesa do papado. Com homens como Francesco de la Rovere no trono não é difícil perceber porquê. 97 Francesco tornou-se Sisto IV em 1471. Teve vários filhos, a que chamavam, de acordo com o costume da época, “os sobrinhos do papa”. Sisto deu o chapéu cardinalício a três sobrinhos e a seis outros parentes. Entre os beneficiários estava Juliano de Rovere, o futuro Júlio II. O favorito de Sisto era Pietro Riario, que o historiador Theodor Griesinger acreditava ser filho dele e da própria irmã. O novo papa tinha certamente uma grande amizade pelo rapaz. Fê-lo Bispo de Treviso, Cardeal Arcebispo de Sevilha, Patriarca de Constantinopla, Arcebispo de Valência e Arcebispo de Florença. Até então Pietro fora franciscano. Todos os anos queimava o hábito para matar os parasitas. Quando se tornou cardeal, mudou. Tornou-se um perdulário em grande escala, mantendo mulheres a quem fornecia bacios de ouro. Os cronistas da época queixavam-se da vil utilização dada aos tesouros da Igreja. Riario viria a morrer ainda novo, completamente consumido. Sisto IV construiu a capela que tem o seu nome, e onde todos os papas são agora eleitos. A capela já viu pompa e ignomínia. Os cardeais já lá fizeram piqueniques, já lá acamparam, já lá dormiram e até muitas vezes andaram à pancada. Debaixo da abóbada, guardou Napoleão os seus cavalos. A capela Sistina não é mais do que um ornamento num Vaticano que rapidamente ganhou esplendor na arte e na arquitectura, enquanto no seu interior grassava a corrupção. Sisto foi o primeiro papa a licenciar os bordéis de Roma; rendiam-lhe trinta mil ducados por ano. Também ganhou consideravelmente com um imposto lançado sobre os padres que mantinham amantes. Outra fonte de rendimento era garantir privilégios aos ricos «para que eles pudessem consolar certas matronas na ausência dos maridos». Foi no campo das indulgências que Sisto mostrou um toque de génio. Foi o primeiro pontífice a decidir que elas podiam ser aplicadas aos mortos. Até ele ficou admirado com a sua popularidade. Estava ali uma fonte inesgotável de rendimento em que nem mesmo os mais cobiçosos dos seus antecessores tinham sonhado. As suas implicações eram de cortar a respiração: o papa, criatura de carne e osso, tinha poder sobre o mundo dos mortos. As almas a penar pelos seus pecados podiam ser resgatadas pela sua palavra, desde que os seus parentes piedosos esvaziassem os bolsos. E quem é que o não faria se tivesse um pouco de bondade cristã? Viúvos e viúvas, pais que choravam os filhos, gastavam tudo na tentativa de tirar os seus entes queridos do Purgatório, que era pintado com cores cada vez mais lúgubres. Rezar pelos mortos era uma coisa, pagar por eles era outra. As pessoas simples eram levadas a pensar que o papa, ou aqueles que vinham à aldeia vender o perdão do papa, garantiam que os seus mortos iriam para o céu nas asas das indulgências. O potencial para o abuso era considerável. A venda de relíquias do século X já tinha sido um mal bastante. De facto, o maior negócio de exportação de Roma durante muito tempo tinha sido o dos cadáveres, inteiros ou em partes. Eram vendidos aos peregrinos por grandes quantias. T. H. Dyer escreveu: «Um dedo do pé ou da mão de um mártir podia ser um regalo para um homem de poucas posses, mas os príncipes e os bispos podiam comprar um esqueleto inteiro». Com as catacumbas como uma espécie de El Dourado, muitos pontífices doavam os ossos de mártires às cidades para as bajularem. O talento de Sisto consistia no seguinte: não se desfazia de nada, a não ser de bens incorpóreos. Os ossos dos mártires, tal como o petróleo, não eram um produto renovável, mas as indulgências eram ilimitadas e o seu preço podia ser adaptado a todas as bolsas. Nada era exigido ao doador ou ao doado, nem amor, nem compaixão, oração ou arrependimento — apenas dinheiro. Nunca houve prática mais anti-religiosa 98 do que esta. O papa enriquecia na mesma medida em que os pobres iam sendo ludibriados. O Purgatório não tinha qualquer justificação, nem nas Escrituras nem na lógica. O seu fundamento era apenas a ganância papal. Um escritor inglês, Simon Fish, em A Supplicacyion for the Beggars, escrito em 1529, viria a denunciar tudo isto irrefutavelmente. Não há em toda a Sagrada Escritura uma só palavra sobre isto, e além disso, se o papa, com o seu perdão, pode, em troca de dinheiro, libertar de lá uma alma, pode libertá-la também sem dinheiro: se ele pode libertar uma, também pode libertar um milhar delas, pode libertá-las a todas; e assim destruir o purgatório: e então, se ele as mantém lá presas, em sofrimento até que alguém lhe dê dinheiro, não passa de um tirano cruel, sem qualquer espécie de espírito caritativo. Em 1478 Sisto publicou uma Bula que ainda causou mais danos à Igreja. Sancionou a Inquisição em Castela. E esta alastrou, literalmente, como fogo. Em 1482, só na Andaluzia, foram queimados dois mil hereges. Dizia-se de Sisto que ele «se afundou em crime e em sangue até à mitra», mergulhando a Itália em guerras infindáveis. Quando morreu, em tempos relativamente pacíficos para o papado, alguém com espírito disse que este senhor da guerra tinha sido «assassinado pela paz». Era tido como tendo «incarnado a maior concentração de maldade humana». Nas palavras do Bispo Creighton, «ele enfraqueceu o carácter moral da Europa». Na morte, foi o seu meticuloso capelão alemão João Burchard que o lavou. Os compartimentos tinham sido saqueados de tal maneira que o capelão não tinha nada com que secar o cadáver. Despiu-lhe a camisa e utilizou-a para isso. Por fim, vestiu-o com uma batina e um par de chinelos emprestados. Oito anos mais tarde, em 1492, Burchard estava a ganhar coragem para desempenhar idêntica tarefa com o sucessor de Sisto, o velho sexagenário Inocêncio VIII. Magro e anémico, o pontífice estava na cama apoiado em almofadas. Dos cantos da boca escorria-lhe leite, o seu único sustento há várias semanas. Olhando para trás, ele sentia que tinha coisas de que se podia orgulhar. Tinha casado o seu filho favorito no seio dos grandes Medicis de Florença, trazendo assim aquela família para a linha de sucessão do papado com resultados desastrosos. Inocêncio também publicou um édito contra os judeus de Espanha. Aqueles que se recusavam a abraçar o Cristianismo eram expulsos da Península. Houve então uma onda de emigração que só teve paralelo nos anos trinta na Alemanha nazi. Cem mil fugiram, outros tantos ficaram fingindo terem-se convertido. «Isto», diz o The Catholic Dictionary com intencional ironia, «garantiu o emprego à Inquisição por muitos séculos». Na sua ficha ficaram uma ou duas nódoas. Por exemplo, não tinha feito nada para pôr a cidade em ordem. O seu vigário foi ter com ele e disse-lhe: «Temos realmente de fazer com que os padres deixem de manter mulheres, Vossa Santidade». A resposta de Inocêncio ficou assim registada: «É uma perda de tempo. Isso está tão espalhado entre os padres, mesmo na Cúria, que dificilmente se encontrará um que não tenha uma concubina». Quando isto constou alguém disse: «Sua Santidade levanta-se da cama das prostitutas para trancar e destrancar as portas do Purgatório e do Céu». 99 Na sala contígua, enquanto a sua vida chegava ao fim, o seu médico examinava três formosos jovens. Estava a dizer-lhes que podiam prestar um grande serviço ao Vigário de Cristo. O sangue do papa estava velho e gasto; se eles lhe dessem algum do seu ele poderia continuar a inspirar a Igreja. Burchard deu uma achega oferecendo um ducado a cada. O médico era judeu. Inocêncio acreditava que a própria maldade dos Judeus lhes dava acesso a uma sabedoriaoculta que faltava aos médicos cristãos. O médico informou Burchard que estava pronto para começar. Fez uma vénia e dirigiu-se para o quarto do papa e, de mãos a tremer, sangrou o pontífice. Trouxeram o primeiro jovem e, por transfusão directa, o sangue passou daquele para o papa. Isto não era uma prática científica rigorosa. O quarto tresandava; o sangue jorrava para as roupas da cama e para as carpetes no chão. O jovem foi levado para fora meio inconsciente. Chamaram o segundo jovem e depois o terceiro. Em breve todos os três estavam mortos na antecâmara. Burchard abriu-lhes as mãos pegajosas e tirou-lhes o dinheiro de volta. O sacrifício dos jovens foi em vão. Inocêncio confessou os seus pecados e, com o espírito em paz, morreu com um trocadilho nos lábios: «Vou para Vós, Senhor, na minha Inocência». No seu túmulo, disse alguém, estavam enterradas «a imundície, a gula, a avareza e a preguiça». Mais uma vez, parecia que o papado já não podia descer mais baixo. Depois veio o Bórgia. O núcleo da tempestade Era voz corrente que Rodrigo Bórgia, que era catalão, tinha cometido o seu primeiro assassínio quando tinha doze anos. Cravava constantemente a bainha da espada na barriga dos outros rapazes. Quando jovem, as suas inclinações amorosas não eram segredo. O seu azar foi ter um tio papa, Calisto III. Em 1456 Calisto fez Rodrigo, então com vinte e cinco anos, Arcebispo de Valência, a principal diocese de Espanha. Rodrigo já era famoso por ter relações simultâneas com uma viúva e com as suas duas belas filhas, uma das quais foi a sua sempre amada Vanozza Catanei. Chamado a Roma para se tornar cardeal aos vinte e seis anos e Vice-Chanceler da Igreja um ano mais tarde, não suportou a ideia de ficar longe da sua amante, e instalou-a com todo o estilo naquela que era a mais elegante das cidades, Veneza. Quando o tio morreu, o novo papa, Pio II, não foi assim tão tolerante para com ele. Chegou-lhe aos ouvidos uma orgia borgiana em Siena, da qual foram excluídos os maridos, os pais, os irmãos e outros familiares masculinos para que a sensualidade pudesse ter rédea livre. «Achais bem», perguntou-lhe Pio II diplomaticamente, uma vez que ele próprio tinha feito dois filhos, «não terdes nada na cabeça todo o dia senão pensamentos de prazer voluptuoso?» Quando Rodrigo se tornou papa, tomou o nome de Alexandre VI, parecendo não se preocupar muito com o facto de Alexandre V ter sido excluído das listas como o antipapa de Pisa. Depois da eleição, Bórgia rapidamente entrou na depravação. Não foi deposto nem sequer posto em causa. O sistema não o permitia. Lutero tinha nove anos quando Bórgia subiu ao poder. Em Roma tudo estava à venda, desde os benefícios e indulgências aos chapéus de cardeal e até o próprio papado. Segundo João Burchard, que desempenhava a função de Mestre de 100 Cerimónias do conclave, Bórgia conseguiu os votos do Sacro Colégio após uma dispendiosa campanha. É elucidativo ver, através dos diários de Burchard, como o Espírito Santo se desempenha da tarefa da escolha do sucessor de S.Pedro. O dinheiro jorrava em Roma vindo de toda a Europa e era canalizado para o conclave pelos banqueiros. Bórgia tinha uma oposição dura. O Cardeal da la Rovere tinha 200.000 ducados do rei de França e mais cem mil da República de Génova. Só cinco votos não foram comprados. Como era Vice-Chanceler, Bórgia era o mais rico dos cardeais. Pôde oferecer vivendas, cidades e abadias. Deu quatro mulas carregadas de prata ao seu grande rival, o Cardeal Sforza, para o convencer a desistir. Praticamente sem um tostão, viu com desgosto que ainda lhe faltava um voto. O Cardeal Gerardo de Veneza assegurou-lho, embora sem qualquer culpa. Há fortes razões para pensar que estava senil. Tinha noventa e seis anos e o mais notável é que não procurou subornar. Depois de elegerem Bórgia, os cardeais agradeceram ao Espírito Santo a escolha de um sucessor para S.Pedro. Mas Giovani de Medici disse depois ao Cardeal CibÒ: «Estamos agora nas garras do lobo mais selvagem que o mundo jamais viu. Se não fugimos ele vai sem dúvida devorar-nos». O Cardeal de la Rovere, o futuro Júlio II, pegou na ideia e fugiu, para regressar só dez anos depois quando o Faraó, o papa Bórgia, morreu. Por enquanto “o lobo” estava bem vivo. Num frenesim de alegria, exclamou: «Eu sou o papa, o Pontífice, o Vigário de Cristo». Nos aposentos de Bórgia do Palácio Apostólico há um retrato de corpo inteiro de Alexandre VI, de Pinturicchio. Mostra-o envolto numa capa de brocado enfeitada de jóias; só a cabeça e as mãos estão à mostra. É um homem alto, de testa estreita, faces e queixo gordos e nariz grande e carnudo. O pescoço é monstruoso, os lábios sensuais, os olhos penetrantes. Tem as mãos, de dedos intumescidos e cheios de anéis, postas em oração. Este homem, a quem Gibbon chamou «o Tibério da Roma Cristã», era perverso, mesmo para um papa do Renascimento. O seu olho para as mulheres bonitas era, dizia-se, infalível, mesmo quando já era velho. Conhecidos, teve dez filhos ilegítimos, quatro dos quais, incluindo os famosos César e Lucrécia, de Vanozza. Quando ela murchou, o papa, já com cinquenta anos, arranjou outra amante. Júlia Farnese tinha quinze anos e casara recentemente com Orsino Orsini. Este era um bom marido: cego de um olho, sabia quando havia de piscar o outro. Esta a razão por que Júlia ficou conhecida em toda a Itália como “a Prostituta do Papa” e “a Noiva de Cristo”. De uma beleza deslumbrante, ela era, nas palavras de um diplomata, «o coração e os olhos» do pontífice, sem quem ele não podia viver. Com as suas ligações papais, ela não teve dificuldade em conseguir um chapéu vermelho para o irmão, o futuro Paulo III, ganhando deste modo o título de “O Cardeal de Saias”. De Júlia o papa teve uma filha chamada Laura. Genericamente um homem honesto, ele seguiu o exemplo de Inocêncio VIII e reconheceu abertamente os filhos naquilo que ficou a chamar-se a Idade de Ouro dos Bastardos. Pio II tinha dito mesmo que Roma era a única cidade do mundo governada por bastardos. Mas Bórgia tentou deixar claro que Laura era uma Orsini; por outras palavras, que o marido de Júlia era o pai da filha de Júlia. Isto era difícil de acreditar. E mais, como Lorenzo Pucci, embaixador no Vaticano, escreveu ao seu mestre em Florença: «A parecença da criança com o papa é tal que ela tem de ser dele». O filho de Júlia chamado João, conhecido como Infans Romanus, a misteriosa Criança Romana, também era dele. Alexandre deve ter repetido até mesmo ao fim a 101 oração de Santo Agostinho: «Senhor, fazei-me casto, mas ainda não», porque a La Bella Giulia deu-lhe ainda um último filho, o seu homónimo Rodrigo, como presente de despedida quando ele morreu. A vida no Vaticano naquela época nunca foi monótona nem completamente evangélica. Havia estórias credíveis de orgias de vinho e sexo. Constava que Alexandre tinha tido relações incestuosas com a filha, a bela Lucrécia. Se isto é verdade, não é certo, era um recorde mesmo para um papa da Renascença ter tido relações sexuais com três gerações de mulheres: com a filha e com a mãe e a avó desta. César, o filho, foi o modelo de Maquiavel para o seu cruel Príncipe. O próprio pai temia-o. Sobre ele Lord Acton escreveu o seguinte: «Como não tinha qualquer preferência pelo bem ou pelo mal, avaliava com espírito igual e desapaixonado se era melhor poupar um homem ou cortar-lhe a cabeça». O político florentino Francesco Guicciardini, que se tornou lugar-tenente dos exércitos papais, confiou ao seu diário secreto I Ricordi, que César nasceu para que «haja no mundo um homem bastante vil para cumprir os desígnios do pai, Alexandre VI». Num estilo impressivamente espanhol, César uma vez matou cinco touros com uma lança na Praça de S.Pedro e depois, de um só golpe de espada decapitou um sexto. Não pensava duas vezes antes de roubar uma mulher ao marido, violá-la e depois atirá-la ao Tibre.No princípio do seu reinado, o papa, num gesto nostálgico, deu a César a sua velha diocese de Valência. O filho era então um formoso adolescente de dezassete anos, de nariz direito, olhos negros taciturnos e cabelo escuro matizado de vermelho. Um ano depois, no consistório em que Alexandre promoveu Ippolito d’Este, o irmão de quinze anos da sua amante, César tornou-se cardeal. Isto foi uma trapaça, porque os cardeais têm que ser homens nascidos em cama legal. Alexandre resolveu o problema de maneira brilhante. Em 20 de Setembro de 1493 assinou duas Bulas, ambas afiançadas pelas testemunhas mais fidedignas da sua corte. A primeira provava que César era filho de Vanozza e do marido. Na segunda, publicada secretamente, o papa reconhecia César como seu filho. Nesses tempos havia uma média de catorze assassínios por dia em Roma. Quando o culpado era apanhado, Alexandre não tinha escrúpulos em deixá-lo em liberdade, considerando que, como ele dizia com aquele seu sorriso cativante, «O Senhor exige não a morte do pecador mas sim que ele pague e continue a viver». Um dos seus hábitos menos cativantes era nomear cardeais a troco de uma choruda taxa, e depois mandá-los envenenar para aumentar o negócio. O seu veneno preferido era a cantarella, uma mistura composta na sua maior parte por arsénico branco. A Igreja, decretou ele, podia herdar os bens móveis e imóveis do cardeal. E ele, claro, como Vigário de Cristo, era a Igreja. Um dos poucos que protestaram abertamente contra o escândalo da corte papal foi o Prior Dominicano de S.Marcos em Florença. Savonarola, o maior pregador do seu tempo, foi declarado canonizável por um pontífice posterior, Benedito XIV. Mas esta não era a opinião de Alexandre. Tentou calar o frade prometendo-lhe um chapéu cardinalício de graça. Quando viu, para seu espanto, que isto falhou, não teve outra alternativa senão mandar que ele fosse julgado, enforcado e queimado — embora, como foi dito, não houvesse da parte do papa qualquer rancor. Passaram-se três turbulentos anos antes de se dar um dos acontecimentos mais grotescos da história do Vaticano, na noite do último dia de Outubro de 1501. Burchard, ajudante pessoal de quatro pontífices sucessivos, descreveu-o no seu estilo pedante, nos diários que só por acaso apareceram à luz do dia. 102 César convidou a irmã favorita, Lucrécia, e o papa, o outro único homem presente, para uma festa chamada “O Torneio das Prostitutas”. Cinquenta das mais belas de Roma dançaram vestidas de roupas que gradualmente se iam tornando cada vez mais escassas para depois começarem a saracotear nuas à volta da mesa do papa. Elas deviam ter ouvido falar no boato que corria em Roma de que o papa preferia uma orgia a uma missa solene. Num final frenético as prostitutas caíram de joelhos, engalfinhando-se a lutar pelas castanhas que os Bórgias lhes atiravam como se faz com os porcos. Mas o papa também teve o seu lado bom. Era um patrono das artes. Patrocinou um jovem monge sem tostão de nome Copérnico. Alexandre tinha olho para o negócio e foi de facto um dos poucos pontífices da época que equilibraram as contas. Não era hipócrita e nunca fingiu ser um cristão sincero, muito menos santo. Contudo, tal como a maioria dos pontífices, era um devoto fervoroso da Virgem Maria. Fez reviver o antigo costume de tocar o sino do Angelus três vezes por dia. Encomendou um quadro de uma soberba Madonna com o rosto de Júlia Farnese para aprofundar o seu amor. Também não era pessoa para esquecer os serviços das antigas amantes. Daí que, quando Vanozza morreu, poucos anos depois dele, com setenta e seis anos, ela tivesse sido tratada como viúva do papa. Foi enterrada com pompa ainda maior do que o próprio Bórgia na Igreja de Santa Maria del Popolo na presença de toda a corte papal «quase como se fosse um cardeal». Deve dizer-se também em abono do papa que ele era um pai orgulhoso e afectuoso. Baptizou os filhos e deu-lhes a melhor educação que a simonia podia pagar. Celebrou no Vaticano os seus casamentos com as mulheres das melhores famílias da época, mas afinal Inocêncio VIII não tinha feito o mesmo? Quando casou Lucrécia na Salla Reale, esta ia acompanhada pela neta do Papa Inocêncio e no cortejo seguiam “A Prostituta do Papa“ e mais 150 emocionadas damas romanas. Para Lucrécia, por ocasião do seu terceiro casamento, ele até adiou o início da Quaresma para que o povo de Ferrara, para onde ela ia, pudesse celebrar os esponsais com carne e danças. A afeição paternal do papa nunca foi tão clara como quando chorou a morte do filho, o Duque de Gandia, assassinado, muito provavelmente pelo seu outro filho, o impiedoso César. Quando Gandia foi retirado do Tibre e depositado aos pés do papa, os cínicos disseram: «Finalmente! Um pescador de homens!» Deve ter provocado lágrimas nos olhos do consistório quando lhes disse que teria dado sete tiaras para ter o filho de volta. E eles choraram ainda mais quando, durante os poucos dias de luto, ele proclamou o fim do nepotismo e ameaçou reformar a Cúria. Todas as concubinas do clero, decretou ele, seriam despedidas dentro de dez dias; mesmo os cardeais teriam de começar a ser frugais e castos. Júlia deve-lhe ter estragado as suas melhores intenções, porque lhe deu um filho no ano seguinte. Os historiadores já têm sugerido que a sua afeição por César estava deslocada. Ele sabia que César trazia sempre veneno consigo para o caso de precisar dele para um inimigo. E, depois de todo o trabalho que teve para fazer César cardeal, este quis renunciar ao chapéu vermelho. Alexandre arriscou provocar a ira do Sacro Colégio autorizando-o a sair do grupo dos “Purpurados“, como Corro lhes chamava. Estava em jogo a salvação da alma de César, alegava o papa. Nessa altura o rosto do filho estava coberto de manchas negras e borbulhas muito vivas, sinais de sífilis secundária. Suas Eminências talvez ficassem aliviadas com a sua partida, mas, como sensatamente observou um ajudante, se fosse permitido aos cardeais resignar por motivos tão triviais, não restaria nenhum. Quando a sífilis se agravou, César começou a usar uma máscara de seda negra em público. 103 Tendo-se descartado do chapéu vermelho quando tinha vinte e dois anos, ficou livre para casar e para realizar a sua maior ambição: arrebatar a Gandia o lugar de comandante-chefe dos exércitos papais. O pai devia saber que ele, mesmo só com uma simples faca na mão, não era de confiança. Uma vez, César fez em pedaços um jovem espanhol chamado Perroto, camareiro favorito de Alexandre, por ele ter tido relações com a irmã. Não foi o pecado, mas a insensatez do acto que ele condenou. Era vital para os interesses da família, e especialmente para os de César, que se pusesse fim ao primeiro casamento de Lucrécia com Giovanni Sforza para permitir que ela casasse dentro da família real Napolitana. Os fundamentos da anulação eram a não consumação. A comissão testemunhou a sua virgindade e, implicitamente, acusou o marido de impotência. Roma riu à gargalhada quando a notícia se soube. Lucrécia era conhecida como «a maior prostituta de Roma de todos os tempos». O marido, Sforza, recusou-se a cooperar com a comissão, salientando que tinha havido consumação em grande abundância. Jurou que «a tinha conhecido carnalmente em inúmeras ocasiões». Seu tio, Ludovico de Milão, sugeriu-lhe secamente que demonstrasse a sua capacidade perante testemunhas. Este não foi o único divórcio autorizado por Alexandre quando pretendia anular um casamento. Não que isso ajudasse o novo marido de Lucrécia. Em 1500, depois de ter servido os seus intentos, César mandou-o estrangular. Perroto foi uma primeira vítima. Aos olhos de César, ele era culpado de comprometer a reputação da irmã num momento delicado, e tinha de ser despachado. O papa, a piscar os olhos remelosos, tentou proteger o seu camareiro debaixo do seu manto, gritando em espanhol: «Não, César, por amor de Deus, não». César avançou como punhal e o sangue saltou para a cara do papa. Depois o corpo levou o tratamento habitual; foi atirado ao Tibre. Durante dias o pontífice continuou a ouvir os gritos do jovem, a sentir o cheiro do sangue que lhe ensopou a sotaina até ao peito vacilante, a sentir os estremeções de Perroto a cada nova estocada até ao estretor final da morte. A morte do próprio Alexandre, pressagiada por uma coruja que lhe entrou pela janela em pleno dia e morreu aos seus pés, foi feita à sua medida. Muito provavelmente, César envenenou-se a si e ao pai por engano. A cantarella no vinho destinava-se a alguns cardeais ricos que era preciso eliminar. César recuperou. Viria a morrer corajosamente três anos mais tarde no campo de batalha em Viana, Espanha, enfrentando sozinho um exército. Quando despiram o corpo, viram que tinha setenta e três golpes. O papa, de setenta e três anos, sucumbiu ao veneno. Burchard nos seus diários e embaixadores nos seus despachos registaram em pormenor os acontecimentos. O arsénico branco criou-lhe uma bola de fogo na barriga. Esteve na cama durante horas, de olhos vermelhos, pele amarela, incapaz de engolir. A princípio, tinha o rosto cor de amora e os lábios intumescidos. A pele, pintalgada como a do tigre, começou a descascar. A gordura da barriga liquefez-se. O estômago e os intestinos começaram a sangrar. Os médicos tentaram os eméticos e a venissecção, mas em vão. Depois de receber os últimos sacramentos, este homem, que, segundo Guicciardini, não tinha religião, deu o último suspiro na Torre Bórgia, num compartimento decorado por Pinturicchio. César, ainda de cama e destroçado pelo desaparecimento do seu papa-pai e patrono mandou selar os aposentos papais para que fossem os seu próprios homens, e não os lacaios dos cobiçosos cardeais, a saqueá-los. 104 O corpo foi deposto numa essa entre dois círios acesos. Estava negro e começava a entrar em decomposição. Burchard recorda a boca a espumar como uma chaleira ao lume. A língua ficou tão grande que lhe enchia toda a boca e a mantinha toda aberta. O corpo estava deformado e começava a inchar como uma rã, até que ficou tão largo como comprido. Giustiniani, o embaixador veneziano, escreveu num despacho que o corpo de Bórgia era «o cadáver mais feio, mais monstruoso mais horrível jamais visto, sem qualquer forma ou aspecto humano». Os capangas de César foram arrancar os anéis dos dedos do cadáver, tirar os castiçais, os enfeites, as vestes, o ouro, a prata e até as carpetes do chão. Neste cenário, o capelão continuou calmamente a lavar o corpo. Quando o compartimento ficou vazio, o corpo começava a explodir, e de cada orifício saíam vapores sulfurosos. Seis carregadores e dois carpinteiros, a apertar o nariz, tentaram levar a brincar uma experiência horrível. O seu maior problema era conseguir pôr aquele monte de carne mal cheiroso no caixão. Evitando tocar numa tal fonte de contágio, ataram uma corda à volta daquele sagrado pé, tantas vezes beijado por príncipes, prelados e mulheres bonitas, e arrastaram-no da essa. O corpo silvou quando bateu no chão frio. Tiraram-lhe a mitra e ergueram-no com cordas apenas o suficiente para o deixar cair com um chape dentro do caixão. Agora, segundo Burchard, «já não havia círios, nem luzes, nem padres, nem ninguém para velar o pontífice morto». Com a misericórdia de Deus, carregaram sobre o corpo para o abater, mas ele continuava a sair. Foi necessária toda a força de Burchard para o abater de forma a caber no caixão. Por fim, como não havia mais nada, cobriu o Servo dos servos de Deus com um bocado de carpete velha. Os carregadores do palácio tiveram de lutar com os clérigos da basílica que não queriam deixar entrar o cadáver para o enterro. Ao funeral apenas assistiram quatro prelados. O caixão esteve na cripta de S.Pedro por muito pouco tempo. O Papa Júlio afirmou mais tarde que era uma blasfémia rezar por uma alma danada. Portanto, qualquer missa pelo descanso da alma de Alexandre seria um sacrilégio. Em 1610, o corpo foi expulso da basílica e agora repousa na Igreja Espanhola na Via de Monserrato à espera, em ansiedade, do Julgamento Final. 105 106 107 7 A Inevitável Reforma Pouco depois do Bórgia, ascendeu ao trono papal um dos homens mais notáveis da história, Júlio II. Franciscano de Génova, alto, elegante e sifilítico, usou do suborno, em montantes de centenas de ducados, para alcançar o papado. Depois decretou que a partir de então quem subornasse o conclave seria deposto. Homem atlético, trazia sempre com ele uma bengala com que batia em quem o molestasse. Para este homem tempestuoso a religião nem chegava a ser um hobby. A sua alimentação quaresmal consistia em camarão, atum, lampreia da Flandres e o melhor caviar. É sobretudo lembrado como patrono das artes. Um dia levou um jovem escultor de trinta e um anos até à Capela Sistina. O jovem era magro, de ombros largos, estatura mediana e nariz partido, prémio por ter brigado com um rapaz maior do que ele quando era aprendiz. O Papa Júlio apontou para o tecto com a bengala. «É aquilo. Quero que me pintes aquilo». Miguel Ângelo olhou e reprimiu um gemido. O tecto tinha dezoito metros de altura e era côncavo. Como é que ele, como é que alguém seria capaz de resolver as perspectivas? Além disso, não era pintor. Até então só tinha pintado umas telas e não ficara muito orgulhoso delas. Preferia trabalhar a pedra. A pedra dura. Não, ia recusar. Sem aviso prévio, voltou para a terra natal, Florença, onde tinha sido criado no ar puro dos campos de Arezzo e assimilou o seu ofício de escultor ao leite da ama. Dois anos depois, em 1508, Júlio obrigou-o a voltar para Roma sem escopro nem martelo. Assim começou a pintura que levaria este jovem do anonimato aos píncaros da grandeza. Rebelde, como sempre, escreveu no seu primeiro recibo: «Eu, Miguel Ângelo Buonarotti, escultor, recebi 500 ducados por conta… da pintura da abóbada da Capela Sistina». Júlio viria a impressioná-lo mais do que uma vez na sua cólera por encontrar um homem tão violento como ele próprio. Uma vez, Miguel Ângelo foi obrigado a apresentar-se-lhe com um cabresto em sinal de submissão. Em quatro anos iria cobrir 500 metros quadrados de tecto com 300 figuras. Confidenciou as suas memórias desses anos num poema. De estar tanto tempo deitado de costas desenvolveu uma papeira que se derramava à volta como um balde donde os animais bebem. Ficou com as costas arqueadas como as de um remador. A barba virava-se para o céu de modo que o queixo e a barriga praticamente se fundiam num só. O pincel deixava-lhe cair constantemente um mosaico de tinta sobre o rosto. Isto não é coisa que se pinte, gemia ele, e eu que nem sequer pintor sou. No Dia de Todos os Santos de 1512 este não-pintor abriu as portas da capela. Lá em cima, no alto, naquela superfície impossível, estava mais do que uma obra de arte. Estava uma enciclopédia de humanidade. Os temas do Velho Testamento retratavam a jornada do homem do nascimento até à morte. Ao cantar a missa no altar, o exultante Júlio fazia-o com o conhecimento de que mandara fazer a maior obra de arte que o mundo jamais vira. Por intermédio de Miguel Ângelo, o papa começou a criar um novo Vaticano que se tem mantido como uma maravilha até hoje. Mas a mesma preocupação não teve ele em relação à fé cristã. Esta é uma das ironias do Vaticano: exteriormente, em termos de cultura, arte e arquitectura, a Igreja nunca estivera em melhor forma; Bramante, depois Miguel Ângelo e Rafael. Interiormente apenas havia corrupção. A principal e constante paixão de Júlio não era a arte mas a guerra. Como estratego militar poucos o igualavam. Com sessenta anos na altura da eleição, usava uma barba branca impressiva que metia dentro do elmo. Violando a lei canónica, envergou a armadura, montou o seu cavalo de batalha e cavalgou para norte para lutar por Deus e pelos Estados Papais. Também aí foi bemsucedido. Queria-os realmente para a Igreja e não para a sua família como a maioria dos papas do seu tempo. Viria a estabelecer territórios que iriam durar, sem praticamente qualquer alteração, até serem assimilados numa nova Itália nos fins do século XIX. De vez em quando presidia ao serviço religioso em S.Pedro. Mas houve problemas. Como grande mulherengo que era, gerou três filhas quando ainda era cardeal. Daí que na Sexta-Feira Santa de 1508 o seu Mestre de Cerimónias tenha anunciado que Sua Santidade não podia permitir que lhe beijassem o pé, «quia totus erat ex morbo gallico ulcerosus» («estava completamente crivado de sífilis». Isto não o impedia de montar o seu cavalo. Não há cena mais representativa do Renascimento do que a de Júlio II, de armadura completa, a deslizar sobre os fossos gelados para passar as muralhas fendidas de Mirandola, então em mãos francesas, e reclamá-las para Cristo. Nesse terrível inverno o Rio Pó estava gelado. O pontífice pôs um manto branco por cima da armadura, e cobriu a cabeça com uma pele de ovelha, de tal maneira que parecia um urso ao gritar: «Vamos ver quem é que tem as bolas maiores, se o rei de França se o papa». E o italiano deixou bem claro que não se tratava de bolas de canhão. Quando Miguel Ângelo esculpiu uma estátua sua, Júlio examinou-a com uma expressão intrigada. «O que é aquilo que tenho debaixo do braço?» «Um livro, Santidade» «O que é que eu sei de livros?» trovejou o papa. «Põe-me lá antes uma espada.» A preferência de Sua Santidade pela espada em vez da Bíblia, pela sela em vez da Cadeira de S.Pedro, teve os seus efeitos em Roma. Miguel Ângelo, que conhecia a Cidade Eterna como ninguém, deixou num poema as suas impressões sobre os papas que conheceu: Dos cálices elmos e espadas fizeram, Aos baldes, do Senhor o sangue negoceiam, Cruz e espinhos em lâminas envenenadas transformaram E até ao próprio Cristo tiram a resignação. Júlio ficou tão zangado com Luís XII de França por este não o ter apoiado nas suas campanhas militares que escreveu uma Bula em que lhe retirava o reino, que ficaria para o piedoso Henrique VIII de Inglaterra, cujo autor preferido era S.Tomás de Aquino, desde que se mostrasse um bom católico ajudando-o nas suas guerras. Balls no original, que em linguagem informal tem também o significado de testículos. (N. T.) No original: Of chalices they make helmet and sword And sell by the bucket the blood of the Lord. His cross, his thorns are blades in poison dipped And even Christ himself is of all patience stripped. (N. T.) 109 Júlio morreu antes de a Bula ser publicada. Só por isso é que a França não se tornou Protestante, como a Inglaterra, durante a Reforma, que se aproximava inelutavelmente. A corte de Leão X Após a morte de Júlio, o Cardeal Farnese saiu precipitadamente do conclave para a Praça de S.Pedro a gritar: «Bolas! Bolas!» Esta referência aos Palli do brasão dos Médicis foi logo aproveitada pela multidão espantada. Giovanni de Médicis tinha apenas trinta e oito anos. Ser filho do famoso Lorenzo o Magnífico e de uma Orsini não era desvantagem nenhuma. Tinha sido educado no luxo do seu palácio ancestral na Via Larga de Florença e de outros cenários opulentos. Aos sete anos foi feito abade para a sua primeira comunhão. Aos oito, o rei de França queria que ele fosse feito Arcebispo de Aix-en-Provence; felizmente houve alguém que investigou e descobriu no momento preciso que já havia um Arcebispo dessa sé que ninguém via há anos. Em compensação, o rei deu ao rapaz um priorato perto de Chartres e fê-lo cónego de todas as catedrais da Toscânia. Aos onze anos Giovanni recebeu a histórica abadia de Monte Cassino. Aos treze tornou-se o cardeal mais jovem de sempre, embora não conseguisse o feito de Benedito IX, feito papa aos onze anos. Mesmo o liberal Inocêncio VIII parece ter tido escrúpulos em elevar um adolescente ao Sacro Colégio; insistia em três anos probatórios que dessem ao rapaz todas as oportunidades de dominar a teologia e a lei canónica. Na altura da eleição para o papado, o lívido Giovanni era gordo, míope, de olhos arregalados e, por razões que então não se percebiam muito bem, casto. Isto é, não tinha amantes, nem “sobrinhos” (bastardos). A razão era que ele era provavelmente um ousado homossexual. Guicciardini dizia que o novo papa se devotava demasiado às coisas da carne «especialmente àqueles prazeres que, por questões de decência, não podem ser mencionados». Quando o conclave começou ele estava doente e teve de ser para lá transportado de maca. Uma tal entrada reforçou as suas expectativas. Os eleitores pensavam muito bem dele por outra razão: era conhecido por sofrer de úlceras crónicas nas costas. A cirurgia produziria certamente uma nova eleição. Apesar de tudo isto, Giovanni, que tomou o nome de Leão X, tinha um temperamento exaltado. As suas primeiras palavras como papa foram dirigidas ao seu primo ilegítimo Júlio de Medicis: «Agora é que vou realmente gozar». Ansioso por experimentar a tiara, tirou o chapéu vermelho e entregou-o a Júlio. «Isto é para ti, primo». Júlio usou-o bem. Viria a ser um dos mais desastrosos de todos os papas, Clemente VII. Leão foi coroado num pavilhão provisório em frente de S.Pedro. Da famosa igreja só ficara a fachada, o resto fora deitado abaixo para ser substituído. A concha vazia da velha Basílica de S.Pedro viria a aparecer retrospectivamente como presságio dos negros tempos que se avizinhavam. A basílica de Constantino esteve de pé quase mil e duzentos anos até que Júlio II meteu na cabeça a ideia de a deitar abaixo para construir outra. Os cardeais tentaram dissuadi-lo. O custo seria demasiado elevado; ir- se-iam perder belos mosaicos e relíquias insubstituíveis que ligavam todas as épocas à Igreja das catacumbas. Enquanto a nova basílica estivesse em construção, iria haver uma enorme rotura na fé e devoção do mundo cristão. Júlio não quis ouvir. Pela basílica que ele planeara, a maior do mundo, estava disposto a qualquer sacrifício. Sob Leão, a nova Basílica de S.Pedro iria custar a unidade da Cristandade. 110 Em vez de desistir de tudo para seguir Cristo, Leão apossava-se de tudo em nome de Cristo para si próprio. Jogador e grande perdulário, dizia-se que só obedecia a Jesus numa coisa: não pensava no dia de amanhã. Foi o único tipo de papa com que os romanos se sentiam descansados. Dava-lhes dinheiro, em vez de o esbanjar, como Júlio, em guerras dispendiosas. Foi um tempo de generoso divertimento. Um certo Cardeal Cornaro oferecia jantares de sessenta e cinco pratos, consistindo cada prato de três ementas. Os jantares de Leão rivalizavam com estes. Do menu faziam parte carnes doces, como língua de pavão. Dos pudins saíam rouxinóis a voar; rapazinhos nus saltavam dos doces. O seu principal animador, um frade dominicano anão, Frei Mariano, divertia-o comendo quarenta ovos ou vinte frangos de uma assentada. Durante o Carnaval, passavam dias inteiros a divertir-se com touradas seguidas de banquetes que terminavam com bailes de máscaras em que Leão entretinha os seus cardeais e suas damas. Leão tinha 683 cortesãos na sua folha de pagamentos. Também empregava muitos bobos, uma orquestra, um teatro permanente, especializado em peças de Rabelais, e vários animais selvagens. O seu favorito era um elefante branco, presente do Rei Manuel de Portugal. Em 12 de Março de 1514 realizou-se um cortejo que atravessou Roma em direcção à ponte de Sant’ Ângelo onde Leão se encontrava numa tribuna recebendo as saudações. Depois de um exótico desfile de aves de capoeira indianas, cavalos persas, uma pantera e dois leopardos, vinha Hanno, o elefante branco com um castelo de prata sobre o lombo. De acordo com a rigorosa etiqueta da corte, o elefante, dobrando o joelho saudou por três vezes um pontífice deliciado. Para um grande final, deram-lhe um balde com água para ele aspergir a multidão. Este elefante,alojado no Belvedere, tornou-se uma celebridade e produziu uma literatura completa. Escreveram-se centenas de poemas em sua honra. Ainda existem muitas xilogravuras dele. Rafael pintou-o na cúpula inferior do Vaticano, mas a pintura viria a perder-se em obras de renovação. Na Biblioteca do Vaticano há um diário secreto dos muitos compromissos do elefante, que acabou com uma morte mais chorada do que a de muitos papas: «Lundi XVI Juin, 1516, mourut l’éléphant». Contrariamente ao que diz a lei canónica, Leão caçou durante semanas em Magliana, o seu espectacular retiro, quase tão belo como Castelgandolfo. Magliana ficava a oito quilómetros de Roma, na estrada para Porto. Montava invariavelmente sentado de lado por causa do seu “achaque”, o cheiro que os cortesãos fingiam não sentir. Tal como tantos outros papas da Renascença, Leão foi um entusiástico construtor e patrono das artes. Dele disse o historiador contemporâneo Sarpi: «Teria sido um papa perfeito se a estas realizações [artísticas] tivesse acrescentado um mínimo conhecimento de religião». Nenhum dos interesses de Leão saiu barato, e ele teve de contrair empréstimos de somas fabulosas junto dos banqueiros a um juro de 40 por cento. Os bordéis simplesmente não davam dinheiro suficiente, muito embora houvesse sete mil prostitutas registadas numa população de menos de cinquenta mil. A sífilis era frequente — «um tipo de doença» dizia o sifilítico Benvenuto Celini com genuína compaixão, «muito comum entre os padres». Para reforçar o seu rendimento, Leão inventou os ofícios à volta do palácio. Estes postos trouxeram poder e prestígio e mostraram ser muito populares. Sisto IV tinha só 650 ofícios para venda; Leão tinha 2150. E leiloou-os. A maior procura era de chapéus cardinalícios, que davam em média trinta mil ducados. Suas Eminências recuperavam o dinheiro com vendas corruptas por sua conta. 111 Apesar da surpreendente liberalidade de Leão, muitos cardeais mais novos acusavam-no de não cumprir as promessas que fizera no conclave. Alfonso Petrucci de Siena, que aos vinte e sete anos era um homem de uma profunda impiedade e de um ateísmo inabalável, andava particularmente indignado. Com mais quatro membros do Sacro Colégio, decidiu assassinar o papa. O seu plano era atacar Sua Santidade no seu ponto mais fraco e tinha o mérito da originalidade. Subornou um médico florentino, Battista de Vercelli, para tratar o papa das hemorróidas e durante operação introduzir- lhe-ia veneno directamente pelo recto. Era uma variante para os figos. Leão recusou por duas vezes a oferta de Battista e por fim os seus serviços secretos interceptaram uma carta deste para Petrucci. Ambos os conspiradores foram encarcerados, o cardeal no Marocco, a mais baixa e pior das masmorras do Castel Sant’Angelo. Sob tortura, o médico confessou. Foi enforcado em público e esquartejado por um cirurgião muito menos hábil do que ele próprio. Leão perdoou a quatro dos cardeais rebeldes, mas as compensações foram enormes. O caso de Pertucciu, o líder, foi tratado no recato do Marocco. Sua Santidade não podia permitir que um cristão tocasse sequer com um dedo num antigo príncipe da Igreja e, assim, empregou um mouro como carrasco. O mouro pôs uma corda com nó corredio, apropriadamente de seda carmesim, à volta do pescoço de Petrucci e estrangulou-o lentamente. O maior perigo para Leão vinha de um quadrante que a sua demasiada miopia não o deixava reconhecer. Não vinha da corte papal, nem de Roma, mas da distante Alemanha. Lutero e o escândalo das Indulgências A Alemanha, mais do que qualquer outro país, já vacilava de tantas ofensas papais. Sofria de pesados impostos; o pagamento de um ano de rendimento de um benefício; dízimas impostas sobre os benefícios por Cruzadas contra os Turcos que nunca se realizaram. Por meio da terrível arma que era a excomunhão, o clero acumulou uma imensa riqueza. Muitos homens tornaram-se padres para adquirir imunidade nos tribunais civis. A Chancelaria Romana publicou um livro com os montantes exactos a ser pagos por variadas absolvições. Um diácono culpado de assassínio podia ser absolvido por vinte coroas. Um bispo ou abade que tivesse assassinado um inimigo podia ser absolvido por trezentas livres. O pior dos crimes tinha o seu preço. Estes “malfeitores ungidos”, como eram conhecidos na Alemanha, estavam fora da jurisdição civil. Ao contrário, traziam para dentro da rede eclesiástica, para julgamento, todas as formas de litígio, incluindo, testamentos, legitimação e usura. Qualquer magistrado civil que tentasse impedi-lo era excomungado, o que significava que perdia todos os direitos de cidadão e de homem. Os bens da Igreja, como pertenciam a Deus, eram inalienáveis. A Igreja tinha uma imensa riqueza em todos os países, mas na Alemanha calculava-se que metade estava nas mãos do clero. Estavam isentos de todos os impostos e obrigações, tais como as de defesa nacional. A faísca que incendiou estas terras secas foi inflamada pelo Príncipe Alberto de Hohenzollern. Aos vinte anos já detinha as ricas sés de Magdburgo e Halerstadt, mas a sua ambição era a de se tornar Arcebispo de Mainz e Primaz de Toda a Alemanha. Para isso estava pronto a pagar. Acontecia que o Papa Leão estava com falta de fundos para a nova Basílica de S.Pedro e disposto a negociar. Daria a Alberto a sé de Mainz e, contrariando a lei canónica, deixá-lo-ia ainda, manter as suas duas outras 112 dioceses, por dez mil ducados. Isto a acrescentar à taxa do pálio, neste caso vinte mil ducados. Como Alberto não tinha esse dinheiro para entrega imediata, Leão ignorou a condenação da usura pela Igreja. Arranjou maneira de Alberto conseguir um empréstimo do necessário junto dos Fuggers a um juro exorbitante. Como é que Alberto ia pagar a dívida? Leão também tinha pensado nisso. Pegando nos exemplos de Sisto IV e Júlio II, dotou-o de uma lucrativa indulgência que ele podia apregoar durante oito anos, muito embora, antes da sua eleição ele tivesse feito a promessa solene de que revogaria todas essas indulgências. Do lucro assim conseguido metade iria para os banqueiros e a outra metade para o Vigário de Cristo, para a Basílica de S.Pedro. O frade escolhido para pregar a indulgência na Alemanha foi o Dominicano Tetzel. Especulador astuto, de voz forte, foi bem pago pelos seus serviços. O seu salário, fora as despesas, era vinte vezes o de um professor universitário. Como representante do papa, Tetzel fazia sempre uma entrada solene numa cidade, rodeado por dignitários civis e religiosos. Era precedido de um acólito que transportava uma cruz com as armas papais. A Bula de Indulgência era levada em cima de uma almofada de veludo guarnecida a ouro. Com a cruz implantada no meio da praça do mercado, iniciava-se o negócio. À venda estavam salvo-condutos para o Paraíso. Um agente dos Fuggers estava ali a jeito para colocar os proventos num cofre forte. Tetzel era prodigioso a descrever o sofrimento das almas no Purgatório. Como elas se contorciam nas chamas, clamando incessantemente aos parentes na terra: «Tende piedade de nós! Tende piedade de nós!» Doze dinheiros permitiam a um filho libertar o pai da agonia. O refrão mais popular de Tetzel era: Se no cofre cai moedinha Do Purgatório salta alminha. * Um dos associados de Tetzel prometia uma indulgência tão poderosa que era capaz de redimir o pecado de alguém que, nem é bom pensar, tivesse violado a Virgem Maria. É provável que Tetzel tivesse continuado imperturbevelmente a sua tarefa não for a a acção de um pobre monge agostiniano de trinta e quatro anos. De origem camponesa, de olhar mortiço e rosto franco e amigável, Martinho Lutero parecia firme como uma árvore enraizada na terra. A sua paixão era a Bíblia, e não encontrava lá justificação para estes abusos papais. Ficava furioso ao ver os ministros do papa a vender indulgências ao desbarato, chegando mesmo a usá-las como fichas de jogo em estalagense tabernas. Estes abusos já aconteciam há muito tempo. Em 1491 Inocêncio VIII tinha outorgado a Indulgência Butterbrief por vinte anos. Por um vinteavos de um florim renano os alemães adquiriam anualmente o privilégio de comer alimentos lácteos nos dias de jejum. Isto significava que eles podiam deliciar-se com os seus pratos favoritos e ao mesmo tempo recolher os méritos do jejum. O produto da indulgência foi para a construção de uma ponte sobre o Rio Elbe em Torgau. No ano de 1509 Júlio II renovou a indulgência por mais vinte anos. O que mais encolerizava Lutero era o ludíbrio das pessoas simples que eram levadas a crer que podiam comprar a sua entrada no Céu. * No original: As soon as the coin in the coffers rings A soul from the Purgatory springs. (N. T.) 113 Durante as festividades de Todos os Santos de 1517 Lutero pegou num martelo e pregou as suas Noventa e Cinco Teses sobre Indulgências na grande porta da igreja do castelo de Alberto em Wittenberg. Lá dentro havia relíquias, entre as quais um caracol do cabelo da Virgem que concedia 2 milhões de anos de indulgências. Uma das teses de Lutero dizia: «A riqueza do papa excede em muito a de todos os outros homens. Por que é que ele não constrói a Basílica de S.Pedro com o seu dinheiro em vez de usar o dinheiro dos pobres cristãos?» Segundo este monge rebelde, as Chaves do Reino estavam a abrir todos os cofres de tesouros da Cristandade; a avareza papal estava a transformar o próprio Cristo num cúmplice de ladrões cujo único objectivo era roubar os pobres. Não admira que Lutero ameaçasse rebentar o tambor de Tetzel. Durante muito tempo o papado tinha traído os vulgares cristãos devotos das cidades, vilas e aldeias. Papa após papa tinham virado as costas a Cristo. O papado não só errava como era, ele próprio, o maior erro, porque a verdade não está primariamente no dizer, mas no ser e no fazer. A sua traição ao povo está ainda incorporada nos tijolos e mármores de S.Pedro. O preço daquela basílica foi a desintegração da Igreja que dura há quatro séculos; e que durará ainda muitos mais. O irreformável papado Martinho Lutero não foi o primeiro a querer ajudar e a sair chamuscado. De facto, os críticos mais severos do papado sempre foram não inimigos, mas amigos, incluindo muitos santos — e alguns papas! O seu testemunho data de há muito. Uma das conversas mais intrigantes alguma vez registadas em Roma foi a travada entre o papa inglês Adriano IV (1154-9) e o seu franco compatriota John de Salisbury, mais tarde Bispo de Chartres. «O que é que o povo pensa realmente do Papa e da Igreja?» sussurrou o papa. E John respondeu corajosamente: «O povo anda a dizer que a Igreja se comporta mais como madrasta do que como mãe; que há nela uma veia fatal para a avareza e os escribas e fariseus põem penosos fardos sobre os ombros dos homens, acumulando bens preciosos no mais alto grau. E que o próprio Santo Padre» acrescentou «é opressivo e pouco menos que insuportável». O Papa Inocêncio IV (1243-54), devido a uma disputa com o imperador Frederico II, foi obrigado a deixar Roma. Fez saber que queria exilar-se em Inglaterra. Os pares do reino recusaram recebê-lo. Disseram que a verde e perfumada Inglaterra não podia suportar o cheiro pestilento da corte papal. Em alternativa, Inocêncio levou a Cúria para Lyons. Quando Frederico II morreu, Inocêncio pôde voltar para Roma. O Cardeal Hugo, em nome do papa, escreveu ao povo de Lyons uma carta de gratidão. O documento, datado de 1250, é um dos mais vergonhosos da história papal. Durante a nossa estadia na vossa cidade, nós [a Cúria Romana] prestámo-vos uma assistência muito caritativa. Quando chegámos encontrámos apenas três ou quatro irmãs do amor e quando partimos deixámo-vos, por assim dizer, um bordel que se estende da porta ocidental à oriental. No mesmo século, S.Boaventura, Cardeal e Geral da Ordem dos Franciscanos, comparou Roma à prostituta do Apocalipse, antecipando assim Lutero em três séculos. Esta prostituta, dizia ele, embriagava reis e nações com o vinho da devassidão. Em Roma, afirmava não ter encontrado senão luxúria e simonia, mesmo nos escalões mais 114 elevados da Igreja. Roma corrompe os prelados, estes corrompem os padres e os padres corrompem as pessoas. Dante, católico devoto, não só atormentou papa após papa, como tratou com a mesma firmeza a Cúria. Os cardeais, segundo um devoto monge de Duhram, outrora «resplandecentes como prostitutas» jazem nus no Quarto Círculo do Inferno. Grupos destes, até aqui prelados indolentes, são obrigados a empurrar eternamente grandes pedras, que representam as riquezas, contra outras pedras empurradas por outros homens avarentos. O poeta inglês William Langland escreveu: País onde cardeais penetram, Onde eles mais estão e se demoram, O mais odioso de certo será, A devassidão aí reinará. * O Bispo Álvaro Pelayo, assessor em Avinhão, sugeriu que a Santa Sé infectou toda a Igreja com o veneno da avareza. «Se o papa se comporta assim, diz o povo, por que é que nós não havemos de fazer o mesmo?» Num dia perfeitamente normal, o mestre de Pelayo, João XXII, excomungou um patriarca, cinco arcebispos, trinta bispos e quarenta e seis abades. O seu único crime: atrasaram-se no pagamento dos impostos ao papa. Maquiavel, amigo de Petrarca, escreveu: «Os italianos têm uma grande dívida para com a Igreja Romana e seu clero. Com o seu exemplo perdemos toda a verdadeira religião e tornámo-nos totalmente descrentes. É de regra, quanto mais próxima da Cúria Romana está uma nação, menos religiosa ela é». Catarina de Siena disse a Gregório XI que não precisava de visitar a corte papal para lhe sentir o cheiro. «O mau cheiro da Cúria, Santidade, há muito que chegou à minha cidade». No século XV, Santo Antonino, Arcebispo de Florença, criticou a sua cidade por vender obrigações com lucro; isto é usura. Quando os seus críticos diziam «A Igreja Romana autorizou-o», Antonino respondia «Os membros da Cúria têm concubinas. Isto prova que a concubinagem é legal?» A simples vulgaridade do argumento é surpreendente. Uma das razões por que havia mais prostitutas em Roma do que em qualquer outra capital era o grande número de celibatários que lá havia. Os conventos eram muitas vezes bordéis. As mulheres por vezes levavam consigo para a comunhão um punhal como protecção contra o confessor. Os cronistas falam de como os clérigos passavam os dias nas tabernas e as noites nos doces braços das amantes. «O mais santo dos eremitas tem a sua prostituta». Como Santa Bridget disse ao Papa Gregório: «Os clérigos têm pouco de padres e muito de proxenetas do diabo». Os melhores coros romanos cantavam na missa músicas tão lascivas que uma comissão de cardeais discutiu se toda a música não devia ser proibida na igreja. Erasmo, o erudito do século XVI, um dos maiores espíritos do seu tempo, ou mesmo de todos os tempos, dizia que a tirania de Roma era pior do que a dos turcos. Escreveu um quadro teatral em que o Papa Júlio tenta com grandes fanfarronadas passar por S.Pedro nas portas do Céu. Pedro semicerrou os olhos não conseguindo reconhecer naquele guerreiro barbudo um sucessor seu. Júlio tirou o elmo e pôs a tiara. Pedro * No original: The country is the curseder that cardinals come in, And where they lie and linger most, lechery there reigneth. (N. T.) 115 ficou ainda mais desconfiado. Por fim, já exasperado, Júlio põe-lhe as suas chaves à frente do nariz. Depois de as examinar, o apóstolo abana lentamente a cabeça. «Desculpa, mas essas não servem em parte nenhuma deste reino». O Papa holandês Adriano VI confessou à Dieta de Nuremberga em 1522 que todos os males da Igreja vinham da Cúria Romana. «Durante muitos anos passaram-se coisas abomináveis na Cadeira de S.Pedro, abusos em matérias espirituais, transgressões aos Mandamentos, de tal maneira que tudo aqui foi infamemente pervertido».O Cardeal Jesuíta Belarmino tardou em confessar: «Durante alguns anos, antes de Lutero e Calvino, quase não havia na Igreja religião nenhuma». O papado, dizia ele, quase tinha eliminado o Cristianismo. Em 1518, cantando a sua “A Canção do Louco”, Lutero escreveu à nobreza alemã queixando-se da avareza papal. Descrevia a Santa Sé como «mais corrupta do que qualquer Babilónia ou Sodoma. É triste e terrível ver o Chefe da Cristandade, que se gaba de ser o Vigário de Cristo e sucessor de S.Pedro, a viver com uma pompa mundana que nenhum rei ou imperador pode igualar; de tal maneira que naquele que se intitula de muito santo e espiritual há mais mundanismo do que no próprio mundo». Dois anos mais tarde, Lutero foi excomungado pelo Papa Leão. Lutero apelou para um Concílio Geral. Durante vinte e cinco críticos anos os papas e a Cúria recusaram o apelo para o único fórum capaz de resolver as graves questões da Igreja. Por essa altura as coisas estavam tão mal que Contarini disse ao Papa Paulo III (1539-49) que toda a corte papal era herege; era contrária à essência do Evangelho. A lei de Cristo traz a liberdade; o papado, disse Contarini francamente, apenas traz a servidão e o capricho. «Escravidão maior do que esta, Santidade, não podia ser imposta aos fiéis de Cristo». Paulo III, o Cardeal de Saias, cuja única afirmação de eminência foram os irresistíveis encantos da irmã Giulia, não estava talhado para ser um reformador. O Concílio de Paulo — havia de durar vinte anos — começou em Trento em Dezembro de 1545. Edmund Campion, o virtuoso jesuíta que foi martirizado em Londres em 1580, disse orgulhosamente sobre Trento: «Meu Deus! Que variedade de nações! Que lote de bispos de todo o mundo!» A verdade é que em Trento 187 bispos, bastante mais do que metade, eram italianos. Dificilmente se pôde considerar um reunião “católica”. De qualquer maneira, chegou tarde demais para desfazer os danos que o papado já tinha causado. Os padres ficaram espantados ao ouvirem-se descritos, numa sessão aberta, como uma tribo indigna, lobos e não cordeiros, autores da corrupção na Itália e em toda a parte. Como é que Roma, que estava longe de ser a campeã do Evangelho, se tornou, na frase de Contarini, a encarnação da heresia? Foi o poder que esteve na base disso. Como que a confirmar a famosa frase de Acton, o poder absoluto corrompeu não só os detentores de ofícios, mas também o próprio ofício papal. Esta a razão por que homens como o Bórgia, longe de estarem deslocados na Cadeira de Pedro, tão bem nela assentaram. A Reforma não veio quando a Igreja se deteriorou ainda mais, mas quando apareceu a verdadeira santidade. Os Reformadores salvaram o papado, que se tinha afundado demais para se salvar a si próprio ou à Igreja. Jacob Burkhardt disse: «A salvação moral do papado deve-se aos seus inimigos mortais». Mas o preço foi elevado. Trento consagrou a teologia medieval, assegurando assim que o Catolicismo viesse a ser curto de vistas e retrógrado nos séculos seguintes. Foi o principio de uma 116 Guerra Fria religiosa. O padre Paulo Sarpi escreveu o seguinte sobre Trento: «Este Concílio, desejado e concretizado por homens piedosos para reunificar a Igreja, que ameaçava rotura, confirmou o contrário, o cisma, e endureceu atitudes tornando os desacordos insolúveis». Trento, em sua opinião, foi responsável pela maior «deformação na ordem eclesiástica jamais vista, com a consequência de que a Cristandade agora é odiada». Depois de Trento, o enorme poder de Roma foi confirmado e os bispos perderam a sua independência, de tal modo que não houve mais concílio nenhum durante mais de trezentos anos. Só então foi convocado um concílio para exprimir formal e finalmente o absolutismo papal. A Igreja Romana, separada dos Protestantes no Ocidente, era a partir de agora menos uma igreja católica do que uma seita temerosa virada para dentro de si própria e dominados pelo papa. O curioso é que Lutero não tinha a intenção de deixar a Igreja. Só que compreendeu que uma Cristandade dividida era melhor do que uma só que o papa governava na negação do Evangelho. É muito melhor ser governado pela Bíblia aberta do que por um papado corrupto e aparentemente irreformável. Os cristãos do Ocidente ainda debatem a sensatez do julgamento de Lutero. A sua análise não diferia muito da de Dante. O que estava mal na Igreja era o libido dominandi do papado, o seu apetite insaciável pelo poder. Leão X foi suficientemente obtuso para excomungar Lutero, mesmo dizendo este que «Queimar hereges é contra a vontade do Espírito Santo». Alguns dos papas seguintes não foram mais perceptivos. A tempestade há muito em formação eclodiu finalmente. O relâmpago rasgou o céu, atroou o trovão — e eles continuaram tranquilos como sempre. Calvino iniciou a Reforma em Genebra em 1541. Lenta e implacavelmente ela alastrou pela França, Holanda e Escócia. E continuava a não haver sinal de reconhecimento no Vaticano de que a sua influência se desvanecia. No ano de 1555 apareceu um novo pontífice. Lutero já morrera há quase uma década, a Cristandade estava praticamente a explodir e uma Igreja dividida já não estava disposta a escutar os delírios de um papa incapaz. E os príncipes muito menos. O novo pontífice era mais cego e mais surdo do que qualquer dos seus antecessores, mas não mudo. Tentou espantar a tempestade e comportou-se como se fosse Gregório VII ressuscitado. 117 8 O Crepúsculo do Poder Absoluto Dele diziam os romanos que se a mãe tivesse previsto a sua carreira o teria estrangulado à nascença. O homem em questão era João Pedro Carafa, a encarnação da ira de Deus, que se tornou Paulo IV (1555-9). Alto, magro e calvo, eleito aos setenta e nove anos quando estava atormentado com o reumatismo, Paulo IV ainda tinha um andar enérgico. Os seus gestos, súbitos e impetuosos, atiravam muitas vezes os seus assessores para o chão. O embaixador florentino descrevia-o como um homem de ferro que provocava faíscas nas próprias pedras sobre que caminhava. A cabeça maciça tinha a forma do Vesúvio, a cuja sombra ele tinha nascido. Também ele tinha inesperadas erupções que vomitavam destruição e morte. A barba desgrenhada e as sobrancelhas ásperas davam-lhe um ar selvagem; os olhos encovados, vermelhos e manchados brilhavam como lava incandescente. A voz rouca, quase sempre acompanhada de catarro, trovejava exigindo obediência cega e imediata. Até o historiador papal, Pastor, achou difícil dizer qualquer coisa de bom acerca de Paulo IV. Sulista desbocado, era «tão arrebatado» observou Pastor, «que utilizava expressões que pareceriam incríveis se não fossem confirmadas por testemunhas acima de qualquer suspeita». Completamente católico nas suas imprecações, era capaz de espancar um cardeal como se este fosse um lacaio. Fazia esperar os embaixadores quatro a sete horas, como se isto conviesse à imagem do sucessor de Pedro. Nunca os recebia sem lhes gritar aos ouvidos que era superior a todos os príncipes. Como Vigário de Cristo, dizia ele, era capaz, com um só dedo, de mudar todos os soberanos da terra. No ano de 1557 Paulo publicou a Bula Cum ex Apostolatus officio. Considerou-se Pontifex Maximus, o representante de Deus na Terra. E como tal, tinha poder ilimitado para depor todos os monarcas, entregar todos os países à invasão estrangeira, privar todas as pessoas dos seus bens sem processo legal. Qualquer pessoa que oferecesse ajuda a um deposto — nem que fosse por simples e elementar bondade humana - seria excomungado. Uma nova Rainha para a Inglaterra No princípio de 1559 o embaixador inglês Edward Carne apareceu diante deste papa vulcânico e informou Sua Santidade de que Isabel Tudor, filha de Henrique VIII e Ana Bolena, tinha sucedido a Maria no trono de Inglaterra. Paulo detestava as mulheres com inflexível ferocidade teológica e nunca admitia um único exemplar da espécie nas proximidades. Discordava violentamentede Platão, que dizia que as mulheres eram iguais aos homens. Tomás de Aquino tinha razão: as mulheres são homens inacabados. As suas almas não foram suficientemente potentes para moldar a figura masculina ou o superior intelecto masculino. Apesar de tudo isto, mostrou algum interesse em relação a Maria quando soube da maneira como ela tinha 118 tratado os restos mortais de Henrique, seu pai. Desenterrou o seu corpo herege e queimou-o. Alguns anos depois queimou vivos também mais de duzentos protestantes. Com Isabel era diferente. Não sabia essa mulher arrogante, perguntou o pontífice a Carne, que a Inglaterra era, desde o Rei João, um feudo da Santa Sé? E que os filhos ilegítimos não podem herdar? Não tinha ela lido a sua última Bula? Era puro atrevimento da sua parte pretender governar a Inglaterra, quando esta lhe pertencia a ele. Não, não podia deixar passar isto impunemente. Ela era uma usurpadora, uma bastarda, uma herege. Se ela renunciasse às suas ridículas pretensões e viesse imediatamente ter com ele em penitência, iria ver o que podia fazer por ela. Senão… Dois meses depois Isabel cortava relações diplomáticas com Roma. Este arrogante chauvinista do Vaticano não compreendeu a mulher de vinte e cinco anos com que estava a lidar. Apesar dos seus defeitos, ela tinha um coração de carvalho inglês. Isabel nascera numa magnífica cama francesa em Greenwich Palace. Assim que soube que era uma menina, Henrique deixou Greenwich com um ataque de cólera que durou três dias, a gritar que Ana Bolena, a sua segunda mulher, era tão estúpida como a primeira, e por aquilo tinha ele arriscado a excomunhão pelo papa e a perda do seu reino. Ana ficou então a saber que estava condenada. Tinha apenas trinta anos quando foi acusada e considerada culpada de ter amantes e de conspirar para matar as suas rivais. Foi executada com uma pesada espada francesa, deixando Isabel, de três anos, completamente só. A menina tinha os grandes olhos assombrados da mãe e o fino nariz Plantageneta do pai. Vivia de expedientes, é verdade. Mas tinha que ser. Quando cresceu, foi declarada, sucessivamente, legítima e ilegítima, herdeira do trono e, depois da morte do pai, esteve a um passo da execução. Os historiadores divergem sobre se Isabel, quando da sua subida ao trono, estaria já empenhada em reintroduzir o Protestantismo em Inglaterra. Quando Maria, sua meia irmã e a primeira mulher a governar a Inglaterra, se tornou rainha, Isabel mandou imediatamente celebrar missa na sua casa considerando que «uma vida valia bem uma missa». Os insultos gratuitos de Paulo IV selaram o destino dos católicos ingleses. Se ele pensava que era o superior na Inglaterra, ela tornar-se-ia a superiora da Igreja. Este jogo de deposições podia ser jogado por dois, especialmente nos tempos conturbados da Reforma. A acreditar na História, houve mais soberanos que depuseram papas do que o contrário. Excedendo-se e interpretando uma vez mais erradamente os acontecimentos, um papa iria ver mais um país retirar a sua aliança com a Santa Sé. Paulo não conseguiu evitá-lo. A heresia cegava-o para todos os factos e para as consequências. Era uma praga. Numa praga queimam-se as roupas e até as casas. Numa praga da alma o papa não tinha alternativa senão queimar o corpo onde a alma reside. Dessa maneira, os outros não eram contaminados. Isto explica a razão por que ele, apesar de se eximir a numerosas funções, nunca perdeu uma única reunião das Quintas-feiras do Santo Ofício. Mesmo quando já estava a morrer chamou os inquisidores ao seu quarto. Preparados para tratar da heresia, os inquisidores agora condenavam à morte fornicadores, sodomitas, actores, bobos, leigos que não cumpriam o jejum da Quaresma, e até um escultor que tinha esculpido um crucifixo considerado indigno de Cristo. Quando Paulo morreu no verão de 1559, os romanos deitaram fogo à prisão da Inquisição na Via Ripetta e destruíram-na. Uma turba apeou e destruiu a sua estátua no Capitólio, e os judeus, que ele perseguira mais do que qualquer outro pontífice, puseram-lhe um chapéu amarelo sobre a cabeça decepada. O rapazio cuspiu-lhe em 119 cima e andou aos pontapés à cabeça e depois arrastou-a pelas ruas para finalmente a atirar ao Tibre. Só ficaram com pena de não lhe poderem rasgar o corpo, membro a membro, com as próprias mãos. Depois de sondarem a opinião pública, as autoridades enterraram o corpo bem fundo em S.Pedro no meio da noite de 19 de Agosto e montaram-lhe uma guarda. Paulo IV nunca duvidara de que, em circunstâncias semelhantes, Jesus, um leal judeu, morto por heresia, teria feito exactamente o mesmo que ele. Ele não era amado. Alguém que em breve lhe sucedeu também não o seria mais. O último soberano a ser deposto Paulo IV sabia o que estava a fazer quando escolheu um Dominicano excessivamente escrupuloso, Michele Ghislieri, para seu Grande Inquisidor. Depois da sua eleição em 1566 com o nome de Pio V, Michele Ghislieri continuou a viver uma vida monástica numa cela no Vaticano. Comia pouco e ameaçou o cozinheiro de excomunhão se lhe pusesse ingredientes proibidos na sopa nos dias de abstinência. O seu principal propósito era transformar Roma num mosteiro. Só falava com Deus e só Deus ele ouvia. De aspecto, Pio era um pacote de pele amarela e ossos vacilantes. Calvo e com uma longa barba branca, a testa cor de cera era alta e estreita sobre um nariz adunco. Os olhos eram minúsculos e os lábios curvos como uma cimitarra. O seu primeiro acto como pontífice foi expulsar todas as prostitutas de Roma. O número de mulheres perdidas na sua diocese envergonhava-o. O Senado Romano resistiu porque, diziam eles, a licenciosidade sempre floresceu onde havia o celibato. Se as prostitutas se fossem embora, não só as rendas das casas cairiam, mas também nenhuma mulher decente estaria a salvo do clero. Pio proibiu os residentes de Roma de entrarem nas tabernas. Esteve à beira de fazer do adultério um pecado capital. Será que ele não sabe absolutamente nada da história papal? — queixava-se um membro da Cúria. A seguir, Pio elaborou aquilo que a comunidade inglesa apelidou de a Última Bula; aboliu as touradas em toda a Cristandade. A bula foi publicada em toda a parte, excepto na Península Ibérica, o que de certa forma diminuiu o seu impacto. A hierarquia espanhola desculpou-se com o fundamento de que não queria criar má reputação à Igreja. Pio depressa voltou a sua atenção para a Inglaterra. Na sombra, encorajou a desobediência civil a Isabel. Contribuiu com doze mil coroas para um levantamento no norte. Estava disposto, dizia ele, a ir pessoalmente, se necessário, ajudar «e empenhar nesse serviço todos os bens da Sé Apostólica». O levantamento falhou. Foi nessa altura que Pio cometeu um estúpido erro fatal. Na primeira semana da Quaresma de 1570, num tribunal de inquérito em Roma, Isabel foi declarada culpada de infidelidade em dezasseis pontos. O veredicto do próprio papa foi incorporado na Bula Regnan in Excelsis de 25 de Fevereiro. Descrevia Isabel como serva do vício e pretensa Rainha de Inglaterra. «Esta mesma mulher, tendo conseguido o reino e escandalosamente usurpado para si própria o lugar de Chefe Supremo da Igreja de Toda a Inglaterra» tinha de ser castigada. Esta última tentativa de um papa derrubar um soberano foi a mais radical e devastadora de todas. Nós declaramos que a sobredita Isabel é herege e instigadora de hereges e Nós declaramos que ela e os seus apoiantes incorreram 120 na pena de excomunhão. […] Declaramos que ela fica privada das suas pretensões ao sobredito reino e de toda a autoridade, dignidade e privilégios. Declaramos também que os nobres, súbditos e povo do sobredito reino e todos os outros que lhe juraram vassalagem ficam para sempre dispensados de qualquer voto de fidelidade e obediência. Consequentemente, Nós absolvemo-los e retiramos à mesma Isabel a sua pretensão ao reino. […] E Nós ordenamose proibimos os seus nobres, súbditos e povo de lhe obedecer. […] Nós condenaremos aqueles que façam o contrário a uma igual pena de excomunhão. O papa que escreveu isto viria a morrer na cama dois anos depois. Outros iriam pagar na forca os seus erros. Durante doze anos, antes da Regnans in Excelsis, os católicos ingleses, sob Isabel, tinham sido sujeitos a multas por não assistirem a Igreja Anglicana. Nem um só foi executado. O efeito da Bula foi o de transformar os católicos ingleses em traidores. Entre 1577 e 1603, foram executados 120 padres e sessenta leigos que os acolheram. Estes homens e mulheres corajosos tiveram de esperar mais 25 anos do que Pio V pela canonização. Muito depois do seu pontificado os católicos encontravam-se divididos entre a lealdade à Igreja e ao seu país. Foi o papa que decidiu «na plenitude do meu poder apostólico» que uma dupla lealdade era impossível. Fez uma coisa perigosa quando tentou minar o patriotismo dos ingleses. A arma forjada por Gregório VII, que tanta satisfação lhe deu em Canossa, foi afiada na perfeição por Inocêncio IV. E agora reclamava as suas derradeiras vítimas. Gregório tinha feito da excomunhão uma arma política para derrubar imperadores e reis. Esse erro foi o responsável pelo ódio e ilegalização de que os católicos foram alvo em país após país. Uma vez que a sua religião é uma religião de fé e não de raça, os cristãos deviam ser cidadãos do mundo. Pertencem ao Cristo que afirmava sofrer em todos os que sofrem. Um cristão, onde quer que esteja, devia ser um sinal desse amor católico universal. Mas Roma, pela sua tendência para o absolutismo, pela sua ambição de poder, transformou o Catolicismo em Romanismo. Os papas hereges e de heróico ascetismo pessoal exigiam aos católicos não uma obediência meramente espiritual, mas também política. Em resultado disto, parecia que os católicos deviam, e às vezes deviam mesmo, lealdade política a um poder estrangeiro mascarado de vigário de Cristo. Longe de serem um povo universal, eram vistos como menos do que patriotas. Na Inglaterra, Roma dispensou os católicos da obrigação de tentarem derrubar Isabel. No entanto foram avisados de que, se a Inglaterra fosse atacada, teriam de ajudar o invasor a depor a rainha. A partir de então, e durante séculos, os católicos passaram a não ser bem ingleses. Como escreveu Travelyan na sua A Shortened History of England «Enquanto a Igreja Romana não deixasse de usar em todo o mundo os métodos da Inquisição, do Massacre de S.Bartolomeu, da deposição e assassínio de Príncipes, os Estados sobre que ela lançou a sua formidável excomunhão não podiam garantir a tolerância aos seus missionários». No século XVI a Cristandade desintegrou-se. O Protestantismo era um facto consumado. A Reforma tomou de tal maneira conta da Europa que alguns países, antes solidamente católicos, como a Inglaterra, ficaram sob o domínio de monarcas “hereges“. Mesmo em França o Protestantismo foi uma força sujeita às mais cruéis perseguições. 121 A Igreja Católica fechou-se em si mesma no período que ficou conhecido como Contra-Reforma. Esta era tão sectária como o Luteranismo e o Calvinismo que se lhe opunham. As polémicas perturbavam-lhe todo o pensamento. A originalidade era um anátema. Era a hora de cerrar fileiras. A sobrevivência era o melhor que se podia esperar; e o papa era o maior sobrevivente da História. A Revolução Francesa em 1789 abalou ainda mais a paz de espírito da Igreja. Lá fora havia um novo espírito, o espírito da «liberdade sem restrições». A Revolução parecia determinada a destruir não só as velhas monarquias absolutas, os anciens régimes, mas também a decência moral e religiosa. Isto, aos olhos dos papas, era trabalho do Demónio. Para uma instituição que representava acima de tudo a ordem, isto era a anarquia. Era inevitável que a Igreja Católica se refugiasse ainda mais em si mesma e se alimentasse da sua velha herança. Como é que se podia esperar que ela se acomodasse à “liberdade“ à moda do ateísmo? Nos anos seguintes Napoleão desferiu mais um grande golpe no papado. Humilhou dois papas sucessivamente. Pio VI foi deposto e obrigado a exilar-se em Valência, onde morreu no último ano do século XVIII. No seu obituário, no registo local, lê-se: «Nome: Cidadão João Braschi. Profissão: pontífice». Também Pio VII, depois de uma concordata falhada em 1801, foi exilado e obrigado a oficiar na coroação de Napoleão em Notre Dame. Naquele momento solene, Napoleão pôs o papa no seu lugar coroando-se a si próprio e a Josefina; depois procedeu à anexação dos Estados Papais. Mas, deve ter pensado Pio IX (1846/78), não tinham aquelas preciosas terras sido devolvidas a Deus, seu dono por direito, pelo Congresso de Viena (1814/15)? O mesmo aconteceria outra vez a seu tempo. Ou seria o Rei Victor Emmanuel mais poderoso do que Napoleão. Era uma mera questão de paciência. Pio IX, um homem de força moral, não conseguiu ver aquilo que saltava à vista. O papado: o fim ou um novo princípio? O velhinho de cabelos brancos e cara vermelha redonda foi acordado pelo som do canhão. As janelas bateram e a sua cama de ferro balançou ligeiramente sobre o chão de mármore. As persianas ainda estavam subidas, mas como aquela manhã de fins de Setembro estava escura, não conseguiu ver as horas no relógio. A respirar pesadamente e a estremecer, o velho soergueu-se com esforço na almofada. O lumbago tornava-lhe cada movimento um tormento; as ancas, principalmente, faziam doer. Uma vez sentado, fez o sinal da cruz. Nesse momento, a porta abriu-se. Uma figura magra, de roupão, com uma lanterna acesa na mão, fez uma vénia antes de entrar e ajoelhou. O homem na cama gemeu: «Che ora?» «Cinco e pouco, Santidade». «Então, Leonardo, aquilo começou». O Cardeal Antonelli, há muito o Secretário de Estado de Pio IX, baixou a cabeça. «E Kanzler?» perguntou o pontífice. «O general está a cumprir as Vossas ordens, Santidade. Vai organizar uma resistência simbólica para mostrar que o inimigo não é bem-vindo. Mas… » Os dedos compridos e ossudos de Antonelli borboletearam para indicar que a cidade estava condenada a cair muito em breve. Depois de se vestir com a ajuda de um criado, Pio dirigiu-se, de muletas para a sua pequena capela para celebrar missa. A sua fervorosa intenção nunca esteve em dúvida. Que Deus preservasse a Cidade Eterna daqueles vândalos piemonteses que se tinham aliado a Satanás. O assobiar e o explodir das bombas eram perfeitamente audíveis enquanto o papa se entregava às suas devoções. As bombas estavam a cair a pouco mais de um 122 quilómetro. Era claramente um ataque em duas frentes. Quando estava a dar graças a Deus, vieram informá-lo de que a principal força sob o comando do General Cadorna estava concentrada na Porta Pia. Vinte dos defensores tinham sido mortos e cinquenta, feridos. «Requiscant in pace» murmurou o Papa, persignando-se. Estes jovens em vão arrancados à vida nos seus melhores anos eram as últimas vítimas das ambições temporais do papado. Pio pediu a Antonelli que arranjasse um encontro dos corpos diplomáticos o mais depressa possível. Os embaixadores reuniram-se a meio da manhã numa sala de audiências à vista do Castel Sant’Angelo. O papa, apontou sem dizer nada. Eles olharam para o sítio onde uma bandeira branca esvoaçava sobre o castelo. Rendição. Estava-se em 1870. Exactamente três séculos depois de Regans in Excelsis, o papa era destituído do seu trono por um monarca terreno. As grandes instituições são vítimas de grandes ironias. Mas durante todos os mil e quinhentos anos de poder temporal do papado nenhum momento foi mais pungente do que este. Contudo, isto era de prever; de facto, pelo menos há duas décadas que era inevitável. Mas Pio IX estava convencido de que o futuro seria sempre como o passado. Já era papa há vinte e quatro anos. Metternich, o chanceler austríaco, que dominava a Europa há quarenta anos, fez sobreele um juízo rápido que não está longe da verdade: «Coração quente, cabeça fraca e carecendo totalmente de bom senso». Começou em 1846 com a reputação de liberal. Na sua casa ancestral, dizia-se, até os gatos eram nacionalistas. Mal chegou ao trono concedeu logo a amnistia aos presos políticos. Por toda a Península todos os tipos de pessoas sentiam que talvez finalmente o Todo Poderoso tivesse piedade deles. Teria Ele feito um milagre e enviado um papa liberal, um papa que levasse todas as oito regiões separadas da Itália à unidade por que todos ansiavam? Meu Deus, por favor, alguém observou, o pontífice não vai desiludir o gato da família. Os italianos há muito que se queixavam de que Deus não tinha sido bom para a sua bela terra aconchegada ao mar: montanhas inultrapassáveis a norte, dois vulcões a sul e, o mais ameaçador de todos, um papa no meio. Depois de dois anos de reinado de Pio, o cargo apossou-se do homem. Um levantamento republicano em Roma obrigou-o a fugir, de sotaina e óculos escuros, para Gaeta no Reino de Nápoles. Foi nessa altura que ele se converteu à causa reaccionária. Em dois anos de exílio, arrependeu-se de todas as suas simpatias de esquerda para se tornar o mais duro dos da linha dura. O seu único conselheiro nesses anos decisivos foi Antonelli, filho de um bandido napolitano, e conhecido pelas suas aventuras amorosas. Este prelado, que era de antes quebrar que torcer, matar que perdoar, viria a morrer carregado de riquezas cuja origem, até hoje, ninguém sabe. Quando, alguns anos depois da sua primeira experiência amarga, pediram a Pio para chefiar uma federação da Itália, ele recusou liminarmente. Opunha-se a todas as formas de liberdade e mudança constitucional. O seu objectivo único era segurar os estados que governava como monarca absoluto, sem a interferência de ninguém. Estes estados, que os papas tinham entesourado, como o dogma da Trindade, tinham nesta altura o dobro do tamanho da Terra Santa com uma população de quase três milhões. Desde que a Igreja começou a adquiri-los depois de Constantino sair para Bizâncio, o seu efeito final foi sempre o de corromper e estropiar a sua missão espiritual. No século XIV Giovanni de’Mussi escrevera: «Desde o tempo de Silvestre as consequências do poder temporal foram inúmeras guerras… Como é que é possível que nunca tenha havido um papa bom para remediar estes males e que tenha havido tantas guerras por causa destes bens efémeros?» 123 Ninguém tinha lutado tão ferozmente por eles como Júlio II. Estavam mais ou menos intactos quando Clemente VII, desorientado pelo saque de Roma em 1527, se encontrou com o embaixador veneziano, Contarini, que em breve viria a ser cardeal. Contarini tentou consolar o papa. Vossa Santidade não deve pensar que o bem estar da Igreja de Cristo reside neste pequeno Estado da Igreja: pelo contrário, a Igreja já existia antes de possuir o Estado, e melhor assim. A Igreja é a comunidade dos cristãos; o Estado Temporal é como qualquer outra província da Itália, e portanto Vossa Santidade deve procurar acima de tudo promover o bem estar da verdadeira Igreja, o qual consiste na paz da Cristandade. Por volta de 1870 só a Rússia csarista era governada de maneira mais perversa do que os Estados Papais. Nestes não havia liberdade de pensamento nem de expressão, nem eleições. Os livros e jornais eram censurados. Os Judeus eram fechados em guetos. A justiça era um leão cego e esfomeado. Era claramente um estado policial sob a bandeira papal, com espiões, inquisidores, represálias, polícia secreta, e as execuções por crimes menores eram um lugar-comum. Uma pequena oligarquia clerical muito fechada, corrupta, lasciva, governava, em nome de Sua Santidade, com mão de ferro. A situação só se tinha deteriorado desde que Lord Macauley visitara a Itália em 1838. Este tentou então imaginar como seria a Inglaterra se todos os membros do parlamento, ministros, juizes, embaixadores, comandantes-em-chefe e lordes do Almirantado fossem bispos ou padres. Pior ainda, bispos e padres celibatários. Para conseguir uma promoção, os homens mais lascivos eram obrigados a tornarem-se clérigos e tomar votos de celibato. O resultado foi, segundo Macauley nas suas Cartas, que «a corrupção infecta todos os serviços públicos… Os Estados do Papa são, suponho, os mais mal governados em todo o mundo civilizado; e a imbecilidade da polícia, a venalidade dos funcionários públicos, a desolação do país mostram-se forçosamente ao viajante mais descuidado. Mais ou menos trinta anos depois, os Estados Papais estavam maduros para a rebelião. Pio recebeu muitas propostas no sentido de salvar a Itália e o papado. Diziam-lhe respeitosamente que Herodes é que era o rei da Judeia e não Jesus; e que no Evangelho não havia qualquer menção ao “poder temporal”. Pelo contrário, Jesus disse firmemente: «O meu reino não é deste mundo». Apesar da Doação de Constantino, os papas nunca foram senhores de nenhuma cidade fora de Roma até o Rei dos Lombardos lhes doar Sutria em 728. Pediam ao papa que se lembrasse de que na Renascença, quando estava no seu apogeu, o papado era tão pouco edificante que perdeu as alianças de metade da Cristandade. Davam-lhe a garantia de plena independência como chefe da Igreja. De facto a sua chefia em matéria de moral e religião seria mais brilhante do que nunca. O papa fez ouvidos de mercador a todos estes apelos. A civilização moderna era obra do Demónio, dizia ele, e recusava parlamentar com o Príncipe das Trevas. O movimento unificador reunia agora forças no Piemonte sob a liderança do Rei Victor Emmanuel II. Cavour, o seu arquitecto, proclamava o ideal de uma Igreja livre num estado livre. Tal como Moisés, ele não iria entrar na Terra Prometida, mas mesmo no leito da morte exclamou para o padre enviado para lhe dar a Extrema Unção: 124 «Padre, Padre! Uma Igreja livre num estado livre!» Pio IX pôs sobre este testamento de fé o selo da heresia. Em 1862 recebeu uma petição assinada por doze mil padres. Imploravam a Sua Santidade que lesse os sinais dos tempos. Roma tinha de ser a capital de uma nova Itália. Não quereria ele «pronunciar uma palavra de paz»? A reacção de Pio foi disciplinar aqueles rebeldes, todos eles. Mesmo no fatídico ano de 1870, quando as tropas francesas, que o tinham defendido durante tanto tempo, se retiraram para combater os prussianos, deixando-o com um exército de Gilbert e Sullivan, Pio manteve-se firme. Como ele disse ao corpo diplomático na manhã de 20 de Setembro, não se sentia capaz de se desfazer de uma herança de seis quilómetros quadrados que eram vitais para a sua autonomia espiritual. Assim, quando os canhões de Cadorna romperam a muralha Aureliana na Porta Pia, os emplumados Bersaglieri, parte de um forte exército de sessenta mil homens, inundaram a cidade. Arriaram a bandeira amarela papal em todos os edifícios e hastearam a tricolor. A multidão nas ruas entrou em delírio. Para eles o papa era mais um tirano civil do que o chefe da Igreja. Este era o dia da libertação. Um plebiscito mostrou que só um em cada mil era a favor do papa e contra o rei. Cadorna tinha recebido instruções rigorosas para não bombardear o Vaticano. Pio foi deixado em paz. Mas quando Victor Emmanuel lhe pediu uma audiência, Sua Santidade recusou. A única palavra que ele tinha para dizer ao rei era excomunhão, uma arma espiritual mais uma vez incorrectamente utilizada. E renovou a punição numa espécie de base bienal de modo que o rei foi excomungado quatro vezes antes de morrer em 1878, quando lhe foi permitido fazer as pazes com Deus, que não com o seu representante na Terra. Pio também proibiu os católicos de se envolverem nos processos democráticos da nova Itália, quer como eleitores quer como candidatos. Nos oito anos restantes após a invasão, o pontífice manteve-se no Vaticano, intitulando-se, algo dramaticamente, “O Prisioneiro do Vaticano”. Por toda a parte, especialmentena Irlanda e na Alemanha, circulavam gravuras benzidas que mostravam Pio deitado numa enxerga numa masmorra fétida. As contribuições para a Caixa das Esmolas de Pedro, a dádiva dos pobres, em resultado disto, aumentaram em flecha. A sua prisão era bastante confortável, em nada semelhante à de Pedro na Mamertine. Para falar verdade, ele tinha mais espaço vital do que tiveram todos os judeus de Roma durante séculos. Possuía um esplêndido jardim e inúmeras salas onde descansar ou jogar o bilhar com o Cardeal Antonelli. Um poeta jacobino disse mais prosaicamente do que Pio: «O papa está prisioneiro dele mesmo». Pela Lei das Garantias de 1870, o Rei da Itália propunha um muito generoso acordo. A todas as ofertas, mesmo as financeiras, Pio respondia «Non possumus», (Não podemos), como se tivesse sido convidado para comer carne de vaca em Sexta-feira Santa. E continuou mesmo até ao fim, tal como o Vaticano fazia há séculos, a transformar questões políticas em assuntos chave da religião. Embora afirmasse servir um Mestre que nada possuía de seu, insistia que não podia servir senão como monarca. Pio VII tinha dito o mesmo a Napoleão quando este se apossou do território papal. «Nós exigimos a restauração dos nossos estados, porque eles não são herança pessoal nossa, mas a herança de S.Pedro, que os recebeu de Cristo». Era necessária uma certa audácia para acreditar que Pedro — um pescador da Galileia que provavelmente nunca teve nada de seu a não ser um velho barco de madeira — tivesse recebido de Cristo uma tão grande fatia da Itália Central, sem a qual não podia pregar o Evangelho de Jesus crucificado. Mas Pio IX não recuou em tal crença, o que explica a razão por que o papado teve de ser arrastado à força e a estrebuchar para o Novo Testamento. 125 Os não-católicos ficaram deliciados com o facto de o papado ter sido finalmente reduzido à dimensão de qualquer coisa com o tamanho do Novo Testamento. Os mais desavisados profetizaram a sua extinção. Subvalorizaram a função e o homem. A teologia não era o forte de Pio. O seu secretário particular, Monsenhor Talbot, confessou numa carta a W. G. Ward: «Como o Papa não é grande teólogo, estou convencido de que quando escreve [as suas encíclicas] é inspirado por Deus». A total ignorância não era obstáculo à infalibilidade, dizia ele, porque Deus pode indicar o caminho certo mesmo pela boca de um burro falante. Talbot, sem querer, tinha atingido as alturas de Voltaire. O que lhe faltava em intelecto, colmatava Pio com astúcia animal. Ele já se preparara para um futuro que, de outra maneira, seria negro, com uma jogada que o audacioso Gregório VII teria aplaudido. Dois meses antes da invasão de Roma, Pio tinha presidido à sessão final do Concílio Vaticano. Em contraste com a abertura, um ano antes, S.Pedro estava quase deserta. Na tribuna real estavam duas damas, uma delas a Infanta de Portugal, bem como um decrépito oficial da Ordem de S.Januário, de faixa brasonada sobre o peito. A tribuna diplomática também tinha muitos lugares vagos. Os Grandes Poderes tinham instruído os seus embaixadores para boicotarem uma cerimónia que não lhes traria qualquer vantagem. O tempo estava mau. Uma tempestade ameaçara toda a noite. Para uma manhã romana de meados de Julho, a luz era extremamente fraca. Havia 532 bispos, homens já velhos, vestidos de casula branca e na cabeça a mitra também branca, sentados no transepto norte da basílica. Para muitos, como Manning de Westminster, o único convertido do Concílio, este era o maior dia das suas vidas. Só pela porta principal do transepto é que os de fora podiam vislumbrar os trabalhos. O papa entrou a coxear, quase despercebido; vinha paramentado e a entoar o Veni Creator Spiritus. Depois, no meio de um calor vaporoso, um bispo com voz de baixo numa ópera de Verdi leu a nova Constituição, Pastor aeternus (“Pastor eterno“). Seguiu- se a chamada. Foi então que deflagrou a mais famosa tempestade alguma vez registada, qual ira de Deus, sobre S.Pedro. Nos intervalos entre cada placet dos padres do Concílio ouvia-se o estrépito de um trovão. O timing era liturgicamente preciso. Os relâmpagos entravam por todas as janelas e cintilavam em volta do zimbório e de todas as cúpulas menores, transformando o bronze do baldacchino de Bernini em ouro brilhante. Durante hora e meia a tempestade continuou a rugir até terminar a chamada. Só dois bispos votaram non-placet: Riccio de Cajazzo, de Nápoles, e Fitzgerald, de Little Rock, Arkansas. Mas 140 bispos abstiveram-se. Votar placet ia contra as suas consciências; votar non-placet seria ofender o Santo Padre perante o mundo. Uma análise da votação é esclarecedora. Trezentos dos quinhentos bispos que apoiaram o papa eram bispos titulares ou funcionários do Vaticano que viviam em Roma a expensas do Papa Pio. A maioria dos dissidentes tinha dioceses cujas crenças e sentimentos representavam no Concílio. Pelo menos dois terços dos bispos americanos, liderados por Kenrick de St.Louis, opunham-se à decisão na convicção de que ela tornaria as conversões mais difíceis. A simples dimensão da oposição provava que a Igreja não estava preparada para tão momentosa decisão; ela foi aprovada, mas não reflectia adequadamente o espírito da Igreja Ocidental. Estava em jogo uma verdade muito importante e muitos sentiam que o decreto estava incompleto. Como disse o sincero bispo Strossmayer numa sessão: 126 Este Concílio carece de liberdade e verdade… Um Concílio que ignora a velha regra da necessidade da unanimidade moral e começa a decidir sobre propostas por maioria vai, é minha convicção profunda, perder o direito de vincular a consciência do mundo católico como condição da vida e morte eternas. Pio IX recusou ouvir a oposição afirmando que ele era «meramente o porta-voz do Espírito Santo». Ao aprovar o decreto sem se preocupar com a Igreja Ortodoxa nem com os Protestantes, Pio parecia estar a perpetuar a secular fractura entre Roma e as outras grandes comunhões cristãs. As divisões no Concílio de Pio contrastavam cruamente com o Concílio de Constança no século XV em que foi decretado que toda a Igreja, incluindo o papa, está sujeita a um Concílio Geral. Convém lembrar que Constança aprovou isto por unanimidade. Nem a Cúria, nem o futuro papa Martinho V levantaram a mais leve objecção. O Concílio Vaticano viria a provar mais uma vitória de Pirro para o papado, mais terrível até, nas suas consequências, do que a de Gregório VII em Canossa. Mostrou uma vez mais que não foram papas ímpios como Benedito IX e Alexandre VI que provocaram os estragos mais duradouros na Igreja, mas antes os piedosos como Gregório VII, Pio V e Pio IX. Porque a máxima de Acton de que o poder absoluto corrompe absolutamente aplica-se a pecadores e também a santos. Neste caso, Pio IX tinha triunfado; mas semeou a tempestade. Quando lhe levaram os resultados da votação em S.Pedro, a escuridão era tanta que ele não conseguia ver. Acenderam uma vela para que ele desse a sua aprovação à Constituição na sua voz musical: «Nosque sacro approbante Concilio» (Com a aprovação do Santo Concílio, Nós assim decretamos, decidimos e sancionamos o que acabou de ser lido). Os padres bateram palmas, a multidão no corpo da basílica acenou com lenços como asas de pombas fantasmais. A que é que Sua Santidade tinha acabado de dar força de lei? As exclamações da multidão forneceram a resposta: «Viva il Papa infallibile». Pio, a quem Montalembert chamou «o ídolo do Vaticano» tinha-se investido dos poderes de um deus; tinha infalivelmente decretado a sua própria infalibilidade. Aqueles corajosos bispos, que momentos antes a tinham negado, confessavam agora de joelhos a Pio IX — «Modo credo, Sancte Pater» — que criam nela tão sinceramente e sem reservas como criam em Deus e na divindade de Jesus. Foi a mais rápida conversão da História. Os bispos que tinham saído de Roma para evitarem magoar o Santo Padre votandode acordo com as suas consciências, também reconsideraram mais depressa do que seria de esperar e aceitaram o Pastor aeternus. Era uma questão de aceitar ou deixar a Igreja, e a segunda também teria seguramente magoado o Santo Padre. Voltaram para as suas terras para dizer aos fiéis que os decretos do Vaticano foram unânimes, o que ficava bastante aquém da verdade. Alguns até tiveram a coragem de despedir e excomungar teólogos académicos, homens de reputação internacional, como Döllinger de Munique, por continuarem a atrever-se a dizer aquilo que eles próprios tinham dito antes e durante o Concílio. Daqui para a frente, a autoridade vai calcar aos pés a razão e a consciência, porque o Vaticano I abrira um precedente. Qualquer académico católico que promova a democracia ou a liberdade religiosa ou a investigação científica das origens do homem 127 tem de estar preparado para levar umas marteladas - ou, pelo menos, esconder a cabeça num qualquer canto. Porque o que foi decidido no Concílio foi isto: quando o papa exerce a plenitude das suas funções e define uma doutrina para toda a Igreja, as suas decisões são infalíveis por si só, não dependem da aprovação da Igreja. A clara impressão que ficava é que, longe de ser o papa a ir buscar a sua fé à Igreja, é a Igreja que busca a fé no papa. O pontífice é auto-suficiente; não há fiscalização, nem balanços, nem governo, nem oposição parlamentar. O mundo pode tornar-se cada vez mais democrático, um homem (ou mulher), um voto; a Igreja, nunca. No Catolicismo, um homem, um voto tem um tom muito diferente. A Cúria ficou encantada. Eles receavam um Concílio e, passados três séculos sobre Trento, acreditavam sinceramente que os Concílios não eram necessários. Mas agora os bispos tinham generosamente e de uma vez por todas posto nas suas mãos a direcção da Igreja. Eles deram o seu consentimento ao papa e este nunca mais precisou dele. O episcopado católico era finalmente a força vazia que Gregório VII desejara que fosse; os bispos tinham abdicado perante o mundo. Por uma maravilhosa metamorfose, os pastores tinham-se tornado as ovelhas. O Concílio fez um interrupção numa atmosfera internacional tumultuosa. Poucos acreditavam que ele recomeçasse, mas, de qualquer maneira, porquê a preocupação? Este, previam muitos curialistas confiantes, seria o último Concílio da Igreja. Para convocar outro, só um papa completamente louco. Ou, pedindo desculpa à Cúria, um santo. Não-católicos complacentes observavam estarrecidos. Aos olhos de muitos, como por exemplo o Primeiro Ministro britânico, Gladstone, foi um Gigantesco Passo Atrás em direcção à Idade das Trevas. Muitos estavam genuinamente intrigados. Como é que dezoito séculos depois de Pedro, foram precisas semanas de debate agonizante para decidir, com a maioria de votos de um fragmento da Igreja, que uma doutrina, acaloradamente contestada até ao último minuto, era subitamente evangélica e vital para a salvação? Os mais inclinados para a teologia, com um claro sentido de ironia, ficaram satisfeitos por verem que havia pelo menos um Protestante a fazer juízos particulares na Igreja Católica: o papa. Era uma crítica astuta. O Vaticano I tinha transformado o papa de «o Católico dos Católicos» no único Protestante da Igreja. Os críticos mais filosóficos perguntavam como é que o papa pode falar infalivelmente sobre Deus, se Deus é inefável e reside em luz inacessível. Mas os mais sensatos de todos sugeriam: Isto é mais uma afirmação política do que religiosa. Quase a perder os seus estados, o papa estava determinado a ser um monarca absoluto numa terra que nem o monarca mais poderoso lhe pode alguma vez arrancar. A busca do poder absoluto não tinha parado; havia de continuar no campo da verdade. Com a verdade, tal como com o poder, o currículo da Igreja também não era bom. 128 129 130 131 Segunda Parte A Verdade «Os papas não só foram assassinos em grande estilo, como também fizeram do assassínio uma base legal da Igreja Cristã e uma condição de salvação.» Lord Acton 132 133 9 O Esmagamento da Dissidência A Casa Papal da Esquina Embora se tenha sempre chamado Santa, Católica e Apostólica, poucos ou nenhuns peregrinos a vão ver. Poucos guias turísticos se preocupam em mencioná-la. Tendo em vista a sua história, isto é estranho, porque poderia dizer-se que este edifício tem a chave para a compreensão da Igreja Romana. E é ainda mais estranho na medida em que fica a muito pouca distância da sacristia da Basílica de S.Pedro, numa rua sossegada, à esquerda da Basílica, por detrás da colunata quádrupla de Bernini. Uma grande casa de esquina, esta Casa Santa, com os seus grandes portões, é conhecida localmente como o Palácio da Inquisição. Devido à má reputação que adquiriu, e tal como aconteceu com a polícia secreta soviética, a Santa Inquisição Católica Apostólica, foi rebaptizada por mais de uma vez em anos recentes. Em 1908 a mais antiga das Sagradas Congregações de Roma passou a chamar-se Santo Ofício; e a partir de 1967, mudou o nome para Congregação para a Doutrina da Fé. O seu actual secretário e chefe do executivo — o antigo Grande Inquisidor — é o cardeal bávaro Ratzinger, mas o seu presidente sempre foi o pontífice reinante. Emílio Zola, no seu brilhante mas amargo Roma, escrito nos últimos anos do século XIX, descreve as impressões que o Palácio da Inquisição lhe deixou: É uma zona solitária e silenciosa, raramente perturbada pelos passos de peões ou pelo ruído de rodas. Só o sol ali vive em tiras de luz que alastram lentamente sobre o pequeno pavimento branco. Adivinha-se a proximidade da basílica porque se sente o cheiro do incenso, uma tranquilidade claustral como que de um torpor de séculos. E numa das esquinas ergue-se o Palácio da Inquisição de uma nudez pesada e inquietante, com apenas uma fila de janelas a rasgar a sua majestosa fachada amarela. A parede que margina uma rua lateral tem um aspecto ainda mais suspeito com a sua fila de janelas ainda mais pequenas, meros buracos de caixilhos glaucos. À luz brilhante do sol, este enorme cubo e a alvenaria cor de lama parecem adormecidos, misteriosos e fechados como uma prisão, quase sem qualquer abertura de comunicação com o mundo exterior. A aparente sonolência é uma ilusão. Neste local continua a fazer-se a leitura de uma enorme quantidade de documentos e daqui sai uma infindável corrente de avisos, instruções e censuras. As masmorras, onde num passado não muito distante tantos foram torturados, já o não são. Felizmente um estado secular arrancou o poder temporal das garras de Pio IX. 134 Desde 1870 as masmorras e as celas da Inquisição foram transformadas em gabinetes e arquivos onde o trabalho prossegue metodicamente como outrora, embora de uma maneira muito menos brutal. Os católicos fazem a sua vida em todo o mundo sem pensarem na Inquisição. São conhecidos pela sua devoção e normalidade. Poucos são os maníacos e os fanáticos que se encontram entre eles. O proselitismo esganiçado e ostensivo não é com eles. Os missionários católicos — padres, freiras e leigos — são discretos. Muitos deixam as suas terras para dedicarem a vida ao serviço dos mais necessitados. Quando pensam no Santo Ofício, assumem que ele é um braço essencial da ortodoxia, uma maneira de preservar a fé apostólica. Ficariam chocados se descobrissem os abusos que tiveram origem neste edifício na Via del Sant’Ufficio. O Papa João Paulo II Onde é que o actual pontífice se situa? Ele não está isento de contradições bem aparentes. Em primeiro lugar, é claramente um homem bom e compassivo. Em 1987 deu autorização a Madre Teresa de Calcutá para construir um lar para os sem abrigo dentro do Vaticano. Tem um profundo afecto pelas crianças e pelos doentes. Onde quer que vá, apela eloquentemente para os direitos e dignidade do homem. Por outro lado, aparece muitas vezes como o papa maissevero de que há memória viva. Teríamos de recuar até ao tempo de Pio X, no virar do século, para encontrar um papa que menos ouvisse e mais exigisse pronta obediência. A razão disto é clara. O pontífice é por natureza e por formação um platónico. Crê que a verdade é eterna e imutável. Como Vigário de Cristo, tem uma opinião privilegiada e espiritualmente inspirada sobre aquelas verdades que é seu dever apresentar à Igreja e das quais nenhum católico se pode desviar um centímetro que seja. E mais uma vez, João Paulo diz repetidamente que o clero se deve manter fora da política. Mas quando trabalhava na Polónia como padre, bispo ou cardeal empenhou-se constantemente naquilo que, pelo menos os Comunistas, designavam por «actividades políticas de direita». Além disso, Sua Santidade deve saber que as visitas à sua terra natal não podem deixar de ser interpretadas como actividade política. Isto, de facto, enquadra-se inteiramente na tradição do Vaticano. Durante séculos e séculos, a Igreja Católica foi a primeira força política da Europa. Envolvia-se nas actividades de todos os países como e quando queria. Os papas, quase à sua vontade, depunham imperadores e reis. Pio X, no seu primeiro consistório em 9 de Novembro de 1903, disse: Nós vamos ofender muita gente ao dizermos que temos necessariamente de nos preocupar com a política. Mas qualquer pessoa que julgue esta questão imparcialmente terá de reconhecer que o Soberano Pontífice, investido por Deus na Suprema Magistratura, não tem o direito de separar os assuntos políticos dos do domínio da fé e da moral. Muitos padres e irmãs da África do Sul, confrontados com o apartheid, ficaram perplexos ao ouvir o papa polaco dizer-lhes que o envolvimento na política é contrário à sua missão religiosa. Finalmente, a Igreja Católica é o único corpo religioso existente que é simultaneamente igreja e organização política. Esta a razão por que é a única de entre 135 as igrejas que procede à troca de representantes diplomáticos e reivindica o reconhecimento como membro independente da comunidade das nações. E não o faz como pequeno estado (o Vaticano) mas como organização religiosa mundial. A maioria dos comentadores concorda que João Paulo deu uma volta pelo Vaticano e fechou as janelas e correu os estores. Mesmo depois do Concílio Vaticano II, mandou rever o código canónico da Igreja em 1983 sem se preocupar em pedir a aprovação dos bispos de todo o mundo. Ao contrário do seu antecessor Paulo VI, não é de modo nenhum vítima de dúvidas ou hesitações. Isto explica o facto de ele tratar com severidade qualquer teólogo que ouse questionar as suas decisões, mesmo as não infalíveis. Logo em 1979, revogou a licença ao mais conhecido escritor católico do mundo, Hans Küng. Em consequência disto, Küng deixou de ser considerado como teólogo católico e perdeu o seu lugar na Faculdade Católica da Universidade de Tübingen. Se o reitor não lhe tivesse oferecido um lugar fora da Faculdade Católica, Küng ficaria desempregado. Roma pareceu ficar satisfeita por ele ter sido reduzido ao silêncio e os outros potenciais dissidentes na Europa e na América do Norte ficaram avisados. O teólogo holandês Edward Schillebeeckx é frequentemente repreendido pelo Santo Ofício; o Padre Leonardo Boff do Brasil, especialista em conciliar os pensamentos católico e marxista, também já foi repreendido. Ambos estão em situação probatória com a promessa de se comportarem bem. João Paulo ganhou a sua causa: alinhado com Gregório VII e Pio IX, não se contenta com menos do que a total submissão, mesmo em matérias que são altamente contestadas. Alvo: os Jesuítas Alvo maior do que os teólogos individuais foi a Ordem dos Jesuítas. João Paulo depressa deu mostras de que não estava satisfeito com os tradicionais defensores do papado. O então Geral da Ordem, Padre Pedro Aruppe, tinha fama de liberal. Andava apenas a tentar pôr em prática entre os irmãos os decretos progressistas do Vaticano II. Quando adoeceu, foi nomeado o Padre Vincent O’Keefe para Vigário Geral em exercício. O’Keefe, de nacionalidade americana, fora o reitor de Fordham, a Universidade Jesuíta de Nova Iorque. João Paulo achou que ele era inaceitável. Em 1981 impôs à Ordem o Padre Paolo Dezza, de setenta e nove anos e quase cego, como seu delegado pessoal. Nunca nenhum papa agira assim. Karl Rhoner, o mais distinto teólogo actual, juntamente com mais dezassete Jesuítas de proa da Alemanha Ocidental, apresentou uma petição ao papa: «Santo Padre, permiti que elejamos o nosso Superior Geral com a liberdade que, desde os primórdios da Igreja, sempre representou uma das regras básicas de todas as ordens». O papa ficou irritado. Se não conseguia uma obediência cega da parte dos Jesuítas, a quem mais é que ele podia fazer exigências? Não é verdade que o fundador da Ordem, Inácio de Loyola, na sua obra Exercícios Espirituais, disse aos seus seguidores que «Para chegar à verdade em todas as coisas devemos estar sempre prontos a acreditar que aquilo que nos parece branco é preto se a Igreja assim o decidir»? Não, antes de terem um novo Geral que fosse para ele aceitável, os Jesuítas tinham de deixar de discordar das proclamações papais. Só quando lhe asseguraram que tinham mudado as suas posições e que votariam num Geral que fosse para ele aceitável é que ele os deixou continuar. Mesmo assim, não correu riscos. Procedeu pessoalmente à abertura da 33ª Congregação Geral — o primeiro papa a fazê-lo — na casa dos Jesuítas no Borgo Santo Spirito, próximo do Santo Ofício. A sua presença foi mais uma ameaça do 136 que uma honra. Na primeira votação escolheram um moderado, o Padre holandês Piet Hans Kolvenbach. Resolvida a questão dos Jesuítas, o Santo Padre voltou a sua atenção para o maior de todos os alvos. Alvo: A Igreja dos Estados Unidos da América À excepção da Holanda, onde a oposição aos ensinamentos da moral católica é quase total, e onde praticamente deixou de haver ordenação de padres, não há país nenhum onde a crise seja tão palpável como nos Estados Unidos. A crise, deve dizer-se, concerne às estruturas e não ao espírito da comunidade, que continua vibrante e esperançosa. Em 1974, seis anos depois de Paulo VI ter ilegalizado os contraceptivos, só treze por cento dos católicos americanos concordavam com ele. A única coisa que o então Presidente da Conferência Episcopal, Arcebispo Bernardin, soube dizer foi que «Os valores éticos não podem ser alcançados através de uma mera contagem de cabeças». Contudo, havia indícios de que Bernardin não estava completamente satisfeito com a perspectiva de um exército composto apenas de generais. Em 1986 o Bispo James Marlow, de Youngtown, Ohio, Presidente cessante da Conferência Episcopal, admitiu haver «uma crescente e perigosa discórdia entre o Vaticano e a Igreja dos Estados Unidos». Quando, nos fins de 1987, o Santo Padre visitou a América pela segunda vez, o Arcebispo Weakland de Milwaukee disse-lhe que de 1958 a 1987 a frequência da igreja nos Estados Unidos caíra de 75 para 53 por cento. As últimas sondagens mostram que uma enorme maioria dos católicos americanos são activamente favoráveis à contracepção e ao casamento após o divórcio. Só 14 por cento pensam que o aborto devia ser ilegal em todos os casos e 93 por cento são de opinião de que se pode ser um bom católico e discordar do pontífice em questões morais básicas. O panorama da Igreja americana continua tempestuoso e a borrasca começou realmente quando João Paulo castigou o Arcebispo Hunthausen, de Seattle. O arcebispo foi informado secretamente pelo pro-núncio papal Pio Laghi de que lhe ia ser retirada a autoridade em quatro áreas-chave: ensinamentos morais, laicização dos padres, anulação de casamentos e a liturgia e ensino nos seminários. Um seu adjunto, Donald Wuerl, ordenado em Roma por João Paulo II, foi investido de plenos poderes em sua substituição. Contudo, Hunthausen não era propriamenteum funcionário do papa, mas, tal como o próprio pontífice, sucessor dos apóstolos. Daí que o Vaticano se sinta na necessidade de recorrer a estas tácticas clandestinas para o conter. João Paulo comporta-se como se fosse ele o Bispo de Seattle e Hunthausen o seu vice. Se o vice lhe desagrada pode ser substituído. Se e quando o vice dá provas de bom comportamento, isto é, de obedecer à letra a todos os decretos do Vaticano, pode vir a ser reinvestido nas suas funções. A livre iniciativa local é reduzida. Em tudo isto, o papa parece não ser apenas o Bispo de Roma, mas também o Bispo do Mundo. Benedito XIV disse o mesmo: «O Papa é o principal padre de toda a Igreja e pode retirar qualquer igreja local da jurisdição do seu bispo sempre que queira». Há uma lógica nisto; os bispos juram servir não a Igreja e a religião mas «manter, defender, aumentar e avançar os direitos, honras, privilégios e autoridade do seu Senhor, o Papa.» A maioria dos outros bispos estava do lado de Hunthausen, mas, como habitualmente, sentiram que não tinham outro remédio senão alinhar com o papa, 137 mesmo quando ele agia injustamente em relação a um dos seus. A ordem é a primeira prioridade do catolicismo. Hunthausen foi reinvestido nas suas funções em fins de Maio de 1987, e Wuerl foi transferido para outro posto. Isto aconteceu depois de uma comissão de bispos dos Estados Unidos, ordenada pelo Vaticano, garantir a ortodoxia de Hunthausen, muito embora «sem intenção», dizia o relatório, os outros ficassem com a impressão de que ele concordava com «uma certa permissividade». Assim, o arcebispo de uma grande diocese foi castigado por Roma por causa de impressões erradas com que ficaram alguns católicos “desembaraçados”. No futuro, ficam os bispos avisados de que terão de ter cuidado não só em relação à sua ortodoxia, mas também mesmo quanto às impressões que deixem em pessoas mal intencionadas. Foi também em 1986, em meados de Março, que Ratzinger, o braço direito do papa, retirou ao Padre Charles E. Curran a licença para ensinar. Para João Paulo, a função do teólogo é simplesmente transmitir as decisões vindas de cima. Curran é um ingénuo numa profissão onde a ingenuidade pode pôr a espécie em perigo. Ele pensa que o teólogo tem o sagrado dever de «avaliar e interpretar» as decisões da hierarquia à luz da Palavra de Deus. Curran perdeu o seu lugar na Universidade Católica de Washington em 1987. O Papa João XXIII afirmou no início do Concílio Vaticano II que os dias da condenação tinham acabado. E nenhum teólogo tinha sido demitido com base em questões éticas desde o Concílio. A alegação de Ratzinger de que Curran não é «nem adequado nem elegível» para ensinar num estabelecimento católico foi mais um aviso para os pensadores de espírito independente. Ratzinger também estabeleceu que os católicos leais devem obedecer não só às doutrinas definidas, mas também ao completo magistério ordinário expresso pelo papa e pelos bispos. Em termos práticos, isto é o mesmo que dizer “expresso pelo papa“. O caso do Arcebispo Hunthausen é a prova de que os bispos não usufruem de qualquer independência. Falando claro: os bispos e os teólogos só podem servir a verdade obedecendo ao papa. A dissidência leal é, tragicamente, no Vaticano, tal como no Kremlin, uma contradição. Outro dos “casos” americanos foi o do velho Padre Terence Sweeney, Jesuíta de Los Angeles. Com o encorajamento do seu superior, fez um inquérito aos 312 bispos católicos americanos sobre quatro questões relacionadas com o celibato dos padres e a ordenação das mulheres. Dos 145 que responderam, trinta e cinco eram a favor do casamento dos padres, tendo em vista a carência de vocações. Onze disseram que gostariam de ver mulheres ordenadas. Ratzinger e o Geral dos Jesuítas em Roma disseram-lhe mais do que uma vez: queime as suas investigações ou então abandone a Ordem. Sweeney, Jesuíta há vinte e quatro anos, viu que a única saída que lhe restava era abandonar a Ordem. Como é que ele podia queimar a verdade? Que valor é que tinha a obediência sem o fundamento da verdade e da razão? Esse tipo de obediência, afirmava ele, «não é compatível com a dignidade humana». É difícil de perceber a razão por que um distinto Jesuíta havia de ser obrigado a deixar a Ordem, não por desvios à doutrina ou à moral, mas por tornar públicas as atitudes dos bispos que livremente responderam ao seu inquérito. A impressão que fica é que o papa parece ficar aterrorizado com a ideia de se saber o que os bispos, os seus bispos, realmente pensam. Na cabeça fica-nos esta imagem: o papa pensa nos bispos como altos funcionários públicos. Eles não fazem política, concretizam-na. Quaisquer que sejam as ideias que tenham, devem guardá-las para si. Só ele é fala pela Igreja. Ficou a impressão de que um bispo que discorda do papa já é bastante mau, mas trinta e cinco num só país é intolerável Tal revelação ensombra a fachada de total 138 acordo que é o orgulho do Catolicismo. A Igreja do Silêncio também existe deste lado da Cortina de Ferro e inclui prelados que não desejam seguir o exemplo de Hunthausen. É difícil fugir a esta conclusão: os bispos têm muito receio do papa para dizerem o que realmente pensam sobre o que é melhor para a Igreja e para as suas dioceses. Aliás não existe qualquer meio de exprimir uma dissidência. Ao nível da paróquia, a situação é a mesma. Os padres aconselham o rebanho em termos liberais, mas só no confessionário. O papel de mártires públicos não é com eles. Crêem que é melhor ficar calado e sobreviver. Mas onde está o testemunho para a verdade do Evangelho? E o que é que está a acontecer a esta grande instituição que, a tantos níveis de responsabilidade, está a viver uma mentira? O choque frontal de dois sistemas gigantescos A principal razão por que o papa elegeu como alvo para os seus mísseis a Igreja americana foi esta: uma monarquia americana do tipo vaticano está em conflito directo com os ideais fundamentais da primeira e maior república do mundo. A América orgulha- se de ser a terra dos homens livres; e certas formas de liberdade são estranhas à noção de fé cristã do pontífice. Para este, a verdade católica é absoluta e a obediência a ela uma necessidade vital. O papa, como Porta-voz Ungido de Deus, tem a obrigação de exigir de todos, desde o mais humilde paroquiano ao teólogo mais astuto, uma obediência firme e pronta. A História revela um perfeito contraste entre os ideais de liberdade católicos e americanos. É este contraste que subjaz à profunda desconfiança do Vaticano em relação à Igreja americana. Primeiro, a Igreja. Em 1520, Leão X condenou Lutero por este se atrever a dizer que queimar os hereges era contrário à vontade de Deus. Gregório XIII celebrou com alegria o Massacre de S.Bartolomeu na noite de 24 de Agosto de 1572, em que morreram milhares de protestantes Huguenotes. Clemente VIII atacou o Édito de Nantes em 1598 porque ele atribuía igualdade de cidadania a todos, independentemente da sua religião. O Édito foi revogado em 1685 para satisfação da Igreja: nos três anos seguintes cinquenta mil famílias protestantes abandonaram a França, dispersando-se por terras estrangeiras, mais, segundo Voltaire, do que os próprios judeus. Inocêncio X tinha entretanto condenado a Paz de Vestfália por esta ousar garantir a tolerância para com todos os cidadãos, independentemente da sua religião ou da ausência desta. Em todos os casos, e durante séculos, a Igreja Católica proclamou orgulhosamente o seu dogma da intolerância religiosa. No século XIX, a política na Europa alterou-se profundamente, mas o mesmo não se passou com os ensinamentos católicos. A Igreja e o Estado, diziam os papas, estavam indissoluvelmente unidos, como num casamento cristão consumado. A liberdade era não-cristã, a lei e a ordem, o objectivo primordial. Pontífice após pontífice atacaram a liberdade com a veemência que os papas do século XX reservaram para