Logo Passei Direto
Buscar

vigario_de_cristo_o_lado_negro_do_papado

Ferramentas de estudo

Material
páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.
left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

Prévia do material em texto

&DWiORJR
Sobre o autor
Peter de Rosa, licenciado pela Universidade Gregoriana de
Roma, foi Professor de Metafísica e Ética no Westinster
Seminary e Deão de Teologia no Corpus Christi College de
Londres. As suas obras incluem: Rebels: The Irish Rising of
1916 e o romance Pope Patrick. Deixou o sacerdócio em
1970 e vive actualmente na Irlanda com a mulher e dois
filhos.
Peter de Rosa
Os Vigários de Cristo
O Lado Negro do Papado
Luis A. P. Varela Pinto
 
Luis A. P. Varela Pinto
Traduzido do original 
Luis A. P. Varela Pinto
por
Luis A. P. Varela Pinto
Luís Varela Pinto
Luis A. P. Varela Pinto
 
Luis A. P. Varela Pinto
Espinho
Luis A. P. Varela Pinto
2000/2001
Luis A. P. Varela Pinto
 
Título do original: Vicars of Christ, The Dark Side of the Papacy
Edição que serviu de base à tradução:
Poolbeg Press Ltd, 123,
Baldoyle Industrial Estate,
Dublin 13, Ireland
2000
A
Todas as Vítimas do Holocausto,
com Humildade e Penitência
Índice
Um Novo Prefácio para um Novo Milénio 9
Prólogo: O Grande Encobrimento 13
Primeira Parte: O Poder 17
1 Do Calvário ao Vaticano 19
2 A Busca do Poder Absoluto 35
3 A Pornocracia Papal 51
4 O Apogeu do Papado 59
5 O Poder em declínio 75
6 A Descida do Papado aos Infernos 87
7 A Inevitável Reforma 107
8 O Crepúsculo do Poder Absoluto 117
Segunda Parte: A Verdade 131
9 O Esmagamento da Dissidência 133
10 A Imposição da Verdade 145
11 A Perseguição às Bruxas e aos Judeus 171
12 As Heresias Papais 191
13 O Primeiro Papa Infalível 219
14 A Grande Purga 235
Terceira Parte: O Amor 247
15 O Papa que Amava o Mundo 249
16 O Novo Caso Galileu 261
17 Uma Visão Pouco Amorosa do Sexo 289
18 Os Papas, Pioneiros do Divórcio 303
19 O Holocausto Silencioso 329
20 Celibatários Pouco Castos 351
Epílogo 391
Cronologia 395
Os Papas 403
Os Concílios 409
Nota sobre as Fontes 414
Bibliografia Selecta 415
9
Um Novo Prefácio para um Novo Milénio
O sucesso internacional de Os Vigários de Cristo: O Lado Negro do Papado foi para
mim uma surpresa. Muitos católicos escreveram-me a agradecer. Com uma educação
baseada apenas no lado eternamente luminoso do papado, ficaram com a ideia de que,
à parte uma ocasional maçã podre, como o Papa Bórgia, Alexandre VI, os papas eram
escolhidos pela sua santidade.
Este livro mostra que nos primeiros dois mil anos o papado foi campo de muito mais
escândalos clericais do que a Irlanda ou a América hoje.
Muitos papas, como Benedito IX, eleito em 1032 quando tinha onze anos, foram
desumanos; outros foram assassinos; Júlio II, que lutou pelos Estados Papais
envergando a sua armadura, estava convencido de que Jesus tinha dado ao Pescador e
seus herdeiros uma boa fatia da Itália Central a título perpétuo. Foi este o papa que
proibiu toda a gente de beijar-lhe os pés na Sexta-Feira Santa de 1508. A sífilis estava a
matá-lo.
O papa é católico? O leitor de Os Vigários de Cristo pode ficar surpreendido ao
descobrir que alguns não o eram. Segundo o Papa Adriano VI (1522-3), muitos
pontífices romanos eram hereges. Marcelino (296-304) foi apóstata. Vigílio (537-55) e
Honório (625-38) foram condenados como hereges por Concílios Gerais da Igreja.
Como disse Adriano VI, «Não há dúvida de que o Papa pode errar em matéria de fé
quando ensina a heresia».
Muitos papas criaram culturas de morte e cometeram crimes contra a humanidade.
As Cruzadas, que levaram ao massacre de centenas de milhar de vítimas, não foram
ideia de católicos renegados, mas de papas renegados. Impiedosamente, eles puseram
as suas jihads ou Guerras Santas sob a protecção de Jesus, que em Getsémani obrigou
Pedro a embainhar a espada.
Também foram os papas que inventaram a Inquisição, o gueto e as roupas que
identificavam os Judeus, a destruição pelo fogo de cidades heréticas e a fogueira para
velhas mulheres apelidadas de bruxas. Foram milhões os que morreram às ordens dos
papas. Alguns papas, que podiam ter dado lições de brutalidade a Cromwell, foram
canonizados.
Muitos papas do Renascimento, ao serviço de um Cristo da Wall Street, não
conseguiram passar sem meter a mão na gaveta. Foram simoníacos em grande escala.
Para conseguirem a eleição subornaram cardeais oferecendo-lhes abadias e montes de
ouro e prata. Uma vez em exercício, usavam os lucros das vendas de bispados e
indulgências para enriquecer as amantes, os filhos, os netos, os irmãos e as irmãs.
Apropriaram-se do equivalente a milhões de dólares. O Bispo Casey, de Galway, ao
entregar 125.000 dólares dos fundos da diocese à sua amante americana Annie Murphy
quase não deixa marcas numa escala de Richter das más acções do clero.
O que é que por fim pôs o papado num caminho mais próximo de Cristo? A
Reforma. Foram homens devotados, como o destroçado Lutero, que levou cebolas para
Roma e de lá voltou com alhos, foi o protesto de cristãos sérios, a maioria protestantes,
que finalmente obrigaram Roma a arrepiar caminho. Nessa altura o mal para a unidade
dos cristãos já estava feito. E continuou até hoje, como está à vista de toda a gente.
Isto não se encontra nos sermões, nem nas encíclicas papais, nem no Catecismo
Católico. Esta a razão por que muitos católicos, incluindo prelados do Vaticano, tendem
10
a presumir que o papa tem sempre razão e portanto tem de ser cegamente obedecido.
De facto, é muito perigoso para os católicos escutar os papas que não escutam a Igreja.
Este livro pergunta: não poderão os papas modernos, como Paulo VI e João Paulo II,
errar da mesma maneira que os seus antecessores que obrigaram católicos leais a
aceitar a Inquisição, a venda de indulgências, os guetos para os Judeus, a fogueira para
as bruxas? E se não podem, por que é que não podem?
Muitos apreciadores deste livro concluíram: «Nós temos sorte por o papado já se ter
reformado». Discordo. O poder absoluto investido nos papas desde 1870 levou Roma a
doutrinar com fundamento no papado. Esse mesmo poder absoluto fez com que, ao
invés de acabarem, os crimes papais se multiplicassem.
Consideremos a actual condenação da contracepção, contrária à crença quase
universal da Igreja. Isto constitui uma moderna heresia papal. A comunidade mundial
está a crescer um bilião em cada doze anos. A população cresce mais num ano do que
cresceu nos quinze séculos que se seguiram à morte de Cristo. O diálogo morreu. João
Paulo proibiu mesmo os bispos de discutirem a contracepção. Em África e na América
do Sul esta cruzada papal levou a mais campos de concentração de miséria, a mais
abortos provocados e, devido à pandemia da SIDA, a mais mortes do que em qualquer
outra época da história do Cristianismo.
As mulheres católicas em particular andam perturbadas. Os papas insultam-nas
com cortesia requintada assegurando-lhes que a sua contribuição é indispensável em
toda a parte, menos na Igreja. São filhas de um Deus menor.
O maior escândalo da Igreja Católica desde a Reforma é o abuso sexual de
crianças por parte do clero. Estranhamente, não houve da parte de João Paulo II, um
homem nobre e bom, uma palavra de condenação. Entretanto, os seus ataques à
contracepção saltavam como o sal do saleiro.
O verdadeiro mistério da história papal não é o facto de os homens maus
cometerem más acções. É sim o de os homens bons cometerem más acções e de os
melhores homens cometerem as piores de todas acções. Edward Gibbon disse: «Os
vícios do clero são muito menos perigosos do que as suas virtudes». A frase de Lord
Acton «O poder absoluto corrompe absolutamente» serviu de guia às minhas
investigações para este livro. Pouca gente sabe como essa frase termina: «Os grandes
homens são quase sempre perversos. Não há maior heresia do que aquela em que o
gabinete santifica o seu detentor». O amor do poder sempre há-de destruir o poder do
amor.
A Igreja Católica entra no terceiromilénio com uma moral do século XIX e uma
estrutura medieval baseada no absolutismo papal e um clero masculino celibatário. Não
admira que noventa por cento dos católicos modernos discordem do papa em questões-
chave como a contracepção, o divórcio, o celibato do clero, as mulheres no sacerdócio
e o aborto.
A minha esperança é que este livro encoraje os católicos, clero e leigos, a exigir
uma voz num terceiro Concílio Vaticano. Sem isso, não há a mínima possibilidade de a
Igreja se reformar e enfrentar um futuro desconhecido mas excitante.
Os Vigários de Cristo
13
Prólogo
O Grande Encobrimento
Facilmente se pode considerar o maior encobrimento da história. Dura há séculos,
tendo sacrificado, primeiro, milhares e depois milhões de vidas. Embora perfeitamente
visível, ninguém parece ter reparado nele. Inconscientemente, muitos artistas, grandes
e menos grandes, contribuíram para ele. E a camuflagem tem apenas o tamanho de um
pequeno pedaço de pano — aquele pano que cobre o ventre de Jesus Cristo
crucificado.
No princípio, a cruz nunca era representada na arte ou na escultura. Enquanto Jesus
foi adorado pelo seu despojamento e a cruz era o centro da fé, ninguém se atreveu a
representá-lo na sua extrema humilhação.
Diz-se que os exércitos de Constantino ostentavam a cruz nas suas insígnias. Isto
não era bem assim. O escudo e o estandarte tinham as duas primeiras letras do nome
grego de Cristo, , fundidas assim: .. Só quando a memória dos milhares que
morreram crucificados por todo o mundo romano se desvaneceu é que os cristãos se
sentiram livres para representar a cruz como símbolo da paixão de Cristo. Era uma cruz
vazia. Quem é que se atrevia a recrucificar Cristo?
Mais tarde, este simples símbolo da sua vitória sobre as forças do mal começou a
parecer demasiado austero. Os artista do século V começaram a pintar uma cruz com
um cordeiro junto a ela, porque Jesus era «o Cordeiro de Deus» sacrificado pelos
pecados do mundo. Depois, com crescente ousadia, começaram a pintar um Jesus
junto da cruz. Só nos fins do século VI, e apenas com duas excepções, é que ele foi
representado mesmo na cruz. E ainda assim, o artista não se atreveu a reproduzir a dor
e a humilhação. Jesus estava envolto numa comprida túnica e só as mãos e os pés
estavam nus para mostrar de maneira estilizada os pregos que o prendiam à madeira.
Era uma imagem de triunfo, ele não estava a sofrer e a morrer, mas a reinar, de olhos
abertos e por vezes coroado, no trono da cruz. A primeira representação grega de
Jesus em sofrimento na cruz, do século X, foi condenada por Roma como blasfema.
Mas a Igreja de Roma depressa se rendeu ao seu fascínio.
Com Jesus cada vez mais longínquo e com a teologia medieval cada vez mais seca e
mais escolástica, a devoção exigia um Cristo mais humano: um homem que se pudesse
ver e quase tocar, um homem com as provações e sofrimentos por que eles próprios
passavam em cada dia das suas vidas curtas e sofridas. Os artistas agora
representavam livremente Cristo em agonia na cruz; feridas profundas e sangue, agonia
em cada membro, abandono no olhar. Reduziram-lhe as vestes para inculcar no espírito
dos fiéis a dimensão da humilhação do Senhor.
E por aí se ficaram: uma tanga. Se o artista tivesse ido mais longe, quem teria tido a
coragem de olhar Cristo tal como ele estava: nu como um escravo?
O que deteve a mão do artista não foi o decoro mas a teologia. A culpa não foi dos
artistas. Afinal, como é que eles podiam perceber que o sofrimento do Cristo
recrucificado, sem a verdade última que só a nudez integral consegue revelar, levaria a
uma catástrofe? Ao conceder a Jesus os farrapos finais da decência, aquela tanga
retirou-lhe a condição de judeu. Cobriu-lhe literalmente a dignidade e tornou-o um não-
judeu honorário. Porque o que aquilo escondia não era apenas o sexo mas aquela
14
cicatriz na sua carne, a circuncisão, que mostrava que ele era judeu. Era isso o que os
cristãos receavam ver.
Nas crucificações de Rafael e Rubens, e mesmo nas de Bosch e Grünwald, a tanga
torna-se ornamental; ela cai decorosamente em pregas. Na crucificação Colmar de
Grünwald, diz Husmans, Jesus está curvado em arco; o corpo torturado brilha
palidamente, polvilhado de sangue, eriçado de espinhos como a casca da castanha da
Índia. Foi isto, parece o artista dizer, o que o pecado fez a… quem?
A Deus, é a resposta da teologia. Isto é a morte de Deus. Quanto mais intensa for a
agonia, quanto menos a Sua glória transparecer, mais aterradora ela é. «Deus morreu
no Calvário». Isto parece boa teologia. Poderia ter sido, não fora aquele pedaço de
pano. Porque, parece o artista dizer, alguém é responsável por aquilo que fizeram a
Deus. Mas quem?
Uma leitura superficial do Evangelho Segundo S. Mateus dá a resposta: os Judeus.
Eles gritaram a Pilatos: «Crucifica-o. Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os
nossos filhos». A palavra de Deus parece culpar os judeus contemporâneos de Jesus e
seus descendentes pela Morte de Deus. Os Judeus são, portanto, deicidas. Uma gota
daquele Sangue salvaria um milhar de mundos; os judeus derramaram-no todo. Para
eles, o Sangue não é a salvação, mas antes uma eterna maldição. Com a sua
descrença, os judeus continuam a matar Deus. Tendo assassinado Cristo, sendo
culpados do maior crime que se pode imaginar, eles eram certamente capazes de tudo.
É esta a calúnia. É esta a grande heresia. Por via disto, as estórias de rituais de judeus
a assassinarem crianças cristãs e a beberem o seu sangue enquadravam-se no padrão
estabelecido pelo Crime da Morte de Deus. Essas falsidades ainda circulam por aí.
Sem o encobrimento, sem aquele pedaço de pano, teria sido evidente para toda a
gente que o que se passou no Calvário foi também o assassinato de um judeu. Deus
era judeu. Não era tanto o facto de os Judeus matarem Deus, mas o de um judeu
derramar o seu sangue pelo pecado do mundo. Teriam os cristãos ao longo dos séculos
instituído pogroms contra os Judeus em nome da Cruz se nela Jesus ostentasse a
marca da circuncisão? Teria um judeu autorizado o massacre de Judeus? Não seria
natural que Jesus estivesse presente em todos os pogroms a dizer: «Por que me
perseguis? Porque o que fazeis ao mais humilde dos meus irmãos, fazei-lo a mim»?
Esse encobrimento, agora com quase vinte séculos, não foi perpetrado por uma seita
dissidente, mas pela linha principal da Cristandade, pela Santa Igreja Católica
Apostólica Romana. Nenhuma outra doutrina foi ensinada mais universalmente, com
menos reservas — mais infalivelmente, em termos católicos — do que a que reza que
«Os Judeus são malditos por matarem Deus», uma acusação ainda não retirada
oficialmente. Numa reviravolta bizarra, os Judeus, donde proveio o Salvador, foram os
únicos culpados pela sua morte. Não foi Jesus que foi recrucificado, mas a raça donde
ele proveio.
No Terceiro e Quarto Concílios de Latrão (1179 e 1215), a Igreja codificou todas as
leis anteriores contra os Judeus. Eles tinham de usar um distintivo da vergonha. Na
Inglaterra era cor de açafrão, e com o alegado formato das tábuas de Moisés. Na
França e na Alemanha era amarelo e redondo. Na Itália o distintivo era um chapéu
vermelho, até que um prelado romano míope tomou um judeu por um cardeal e a cor foi
mudada para o amarelo. Aos Judeus era proibido todo o contacto com cristãos, a
administração estava-lhes vedada e as suas terras eram-lhes confiscadas, não podiam
ser proprietários de lojas e eram arrebanhados para guetos que à noite eram fechados.
Nenhum outro sistema de apartheid foi imposto com tanto rigor. Por se recusarem a
negar a sua fé ancestral e a converterem-se ao Cristianismo, os Judeus foram
enxotados de terra para terra. Um papa deu-lhes um mês para abandonarem as suas
15
casas na Itália, deixando-lhes apenas dois locais de refúgio. Durante as Cruzadas, eles
foram chacinados aos milhares por devoção a Cristo. Um judeu que pusesseo nariz de
fora na Sexta-feira Santa estava virtualmente a cometer um suicídio, isto apesar de o
Homem na Cruz ter um nariz judeu. Assim, ao longo dos séculos foram milhões os que
sofreram e morreram. Uma arte deficiente e uma teologia desastrosa prepararam o
caminho para Hitler e a sua «solução final».
Para começar, na Alemanha Nazi pintavam estrelas nas casas e lojas de judeus; era
o sinal de que podiam ser destruídas e pilhadas. As cidades gabavam-se, tal como
tinham feito nos tempos medievais, de estarem Judenrein, livres da contaminação judia.
Muito tipicamente, nos arredores da aldeia de Oberstdorf havia umas alminhas à borda
da estrada com um crucifixo. Sobre a cabeça de Jesus estava a inscrição INLI («Jesus
da Nazaré, Rei dos Judeus»). Em primeiro plano lia-se um aviso: «Juden sind hier nicht
erschwüncht» — «Os judeus não são benvindos aqui.»
Em 1936, o Bispo Berning de Osnabrüch esteve a falar com o Führer durante mais de
uma hora. Hitler assegurou a Sua Reverência que não havia qualquer diferença
fundamental entre o Nacional Socialismo e a Igreja Católica. Não é verdade,
argumentava ele, que a Igreja tinha considerado os Judeus como parasitas e os tinha
fechado em guetos? «Eu só estou a fazer» gabava-se ele «o que a Igreja fez durante
mil e quinhentos anos, só que com mais eficácia». Sendo ele próprio católico, disse ele
a Berning, «admirava e queria promover a Cristandade».
Parece que nunca lhe ocorreu a ele, Hitler, que Jesus, a quem ele se referiu em Mein
Kampf como «o Grande Fundador deste novo credo» e o flagelo dos Judeus, era ele
próprio judeu; e se de facto nunca lhe ocorreu, por que não? A partir de Setembro de
1941, todos os judeus do Reich com mais de seis anos tinham que usar em público, em
sinal de vergonha, a Estrela de David. Por que é que Hitler não obrigou a que na tanga
de todos os Cristos crucificados em exposição no Reich fosse afixada essa mesma
Estrela de David? Teria ele sido tão veemente a promover a sua qualidade de cristão se
só uma vez que fosse tivesse visto Cristo crucificado exactamente como ele era?
Suponhamos que Jesus aparecia nu em todas as cruzes da Alemanha? Teriam os
bispos alemães e Pio XII mantido o silêncio durante tanto tempo se tivessem o seu
Senhor crucificado sem a tanga?
Apesar da crueldade cristã, que em certa medida preparou o Holocausto, alguns
católicos continuam a dizer que a sua Igreja nunca pecou.
Quinze anos depois de os portões de Auschwitz, Bergen-Belsen, Dachau,
Ravensbruch e Treblinka terem sido misericordiosamente abertos, um papa, João XXIII,
como que para confundir os críticos que dizem que o papado nunca muda, compôs esta
notável oração: «A marca de Caim está-nos estampada na testa. Ao longo dos séculos,
o nosso irmão Abel tem estado banhado em sangue que nós derramámos e tem
chorado as lágrimas que nós provocámos ao esquecer o Vosso amor. Perdoai-nos,
Senhor, pela maldição que nós erradamente atribuímos ao seu nome de Judeus.
Perdoai-nos por Vos crucificarmos pela segunda vez na sua carne. Porque nós não
sabíamos o que fazíamos.»
Foi uma expiação por mais de uma centena de documentos publicados pela Igreja
entre os séculos sexto e vinte. Não há um único decreto conciliar, encíclica papal, Bula
ou directiva pastoral que sugira que o mandamento de Jesus «Ama o próximo como a ti
mesmo» se aplicava aos Judeus. Contra toda esta tradição, João o Bom apontou a
marca de Cain na sua própria testa. Ele aceitou a culpa da Igreja de derramar sangue
judeu ao longo dos séculos, de acusá-los de serem amaldiçoados por Deus. E ainda
mais comovidamente, afirma que a perseguição dos católicos aos judeus resultou na
16
segunda crucificação de Jesus na carne do seu próprio povo. O papa, representante de
uma igreja sagrada e infalível, pediu perdão por estes terríveis pecados e erros. A nossa
única desculpa, disse ele, foi a ignorância.
Antes de se tornar Sumo Pontífice, João já tinha sido delegado apostólico para a
Turquia e Grécia, quando Hitler subiu ao poder. Emitiu certificados de baptismo falsos
para quatro mil judeus para eles poderem afirmar-se como cristãos e assim escaparem
ao Holocausto. Quando a guerra acabou e ele foi nomeado núncio em Paris, foi a um
cinema ver as primeiras imagens dos sobreviventes do campo de morte de Belsen. Saiu
em lágrimas dizendo, «Isto é o Corpo Místico de Cristo». Foi talvez esta traumática
experiência que fez com que ele fosse o primeiro papa a ver Jesus na cruz sem o pano
à volta da cintura.
O Papa João não teve qualquer dificuldade em reconhecer que a Igreja errou. Errou
desastrosamente — e errou ao longo de muitos séculos. Foi um dos raros pontífices
que viram que o único caminho da Igreja era encarar sem medo o próprio passado, por
muito pouco cristão que ele pudesse ter sido. Quase um quarto de século depois da sua
morte, ainda há alguns crentes que insistem que a Igreja deve ter sido sempre aquilo
que é hoje — a despeito das provas irrefutáveis em contrário. Esses, que são milhões,
acham que não é fácil aceitar que a Igreja Cristã, a Igreja de Roma, inspirada por
papas, muitos deles canonizados, tenha sido tão cruel. Nem que pontífices após
pontífices tenham quase invertido o texto das Escrituras que diz «Vale mais um homem
morrer por amor do povo» que passou a ler-se, «Vale mais um povo sofrer por amor de
um homem». Há, tragicamente, um inegável elo entre o fogo, as cruzes, a legislação
papal, os pogroms — e as câmaras de gás e os fornos crematórios dos campos de
morte nazis.
Há outras matérias vitais nas áreas do poder, da verdade e do amor sobre as quais a
Igreja errou desastrosamente século após século. O Concílio Vaticano II convocado
pelo Papa João em 1962 começou a aceitar isto. De uma maneira revolucionária, João,
o Sumo Pontífice, tornou-se o Advogado do Diabo da própria Igreja.
No processo de canonização, o Advogado do Diabo tem um papel central, porque a
santidade de um candidato a santo tem de ser sujeita ao mais intenso escrutínio. É
como se a Igreja deixasse Satanás completamente livre para atirar sobre a memória do
santo toda a sujidade que possa encontrar — para ver se alguma cola. Só então é que
esse homem, essa mulher ou essa criança serão dignos de veneração pública. Claro
que o Advogado do Diabo é, na realidade, o defensor da Igreja.
Quando o Papa João disse que a Igreja precisa de constantes reformas, parecia
sugerir que precisa de um Advogado do Diabo permanente. Como historiador que era,
ele sabia que a Igreja tinha causado muitos danos. Como ser humano afectuoso e
indulgente, sabia que qualquer outra instituição que durasse tanto tempo e tivesse tanto
poder teria provavelmente feito muitíssimo mais mal e muitíssimo menos bem.
Finalmente, ele deixou atrás de si a clara impressão de que o mal feito pela sua Igreja
não deve ser escamoteado, nem a história falsificada.
Primeira Parte
O Poder
«Todo o poder tende a corromper; o poder absoluto corrompe absolutamente»
Lord Acton, em carta ao Bispo Mandell Creighton, 1887
19
1
Do Calvário ao Vaticano
Nesta grande festividade de Pedro e Paulo, o dia vinte e nove de Junho, vieram
todos, novos e velhos, pecadores e santos, de todos os cantos do mundo, para estarem
com o Bispo de Roma, Vigário de Cristo, Sucessor dos Apóstolos, Sumo Pontífice da
Igreja Universal, Patriarca do Ocidente, Primaz da Itália, Arcebispo e Metropolita da
Província de Roma, Chefe de Estado da Cidade do Vaticano e Servidor dos servidores
de Deus, o Papa João Paulo II. Alguns peregrinos vêm vestidos em tons escuros, outros
com vistosos trajos folclóricos das suas terras. Há também turistas entre eles, mas a
maioria são peregrinos. Uma visita a Roma e assistir a uma missa papal são a
realização de uma ambição de uma vida.
Antes do amanhecer, começaram a sair da colmeia que Roma é. Emergiram dos
caros hotéis de luxo da Via Veneto, de tranquilos conventos e pensões baratas.
Na sua curta viagem passaram porvivendas a cair, palácios renascentistas cujas
enormes portas tachonadas dão a impressão de que os seus donos se estão a preparar
para uma nova invasão de Godos e Vândalos. Atravessam piazzas com fontes a
borbulhar, mal identificando as quatrocentas igrejas de Roma, muitas das quais só se
encontram abertas um dia por ano, o dia da sua festividade. Atravessam o Tibre, que
durante séculos serviu à cidade simultaneamente de esgoto e de cemitério. O Tibre
contabilizou provavelmente mais mortes do que qualquer outro rio fora da China; num
só dia morreram lá milhares afogados. Esta manhã corre devagar e está acastanhado
como o hábito dos franciscanos.
Finalmente, os peregrinos chegaram à Via della Conciliazione, de cujo extremo se
desfruta uma das vistas mais impressivas do mundo. À luz trémula do calor de verão, a
cúpula da Basílica de S.Pedro parece flutuar no espaço. Miguel Ângelo, que a
desenhou, exprimiu, mais do que qualquer papa, a força maciça e pertinaz da maior
instituição que o mundo alguma vez conheceu. Ela preservou a velha herança. Deu às
hordas bárbaras uma nova religião e uma lei. Criou a Europa, dando a povos diversos
uma lealdade e um destino que ultrapassam todas as fronteiras. Como disse Lord
Macauley há mais de um século, ao reflectir sobre a Igreja de Roma:
Já era grande e respeitada antes de os saxões porem o pé na Grã-
Bretanha, e de os franceses passarem o Reno, quando a eloquência
grega ainda florescia em Antióquia, quando em Meca ainda se
adoravam os ídolos. E talvez ainda exista com o mesmo vigor
quando um qualquer viajante da Nova Zelândia, no meio de vasta
solidão, tomar posição num arco quebrado da Ponte de Londres
para fazer um esboço das ruínas da Catedral de S. Paulo.
Enquanto entram na Praça de S. Pedro, rodeada pela pavorosa arcada de Bernini, os
fiéis observam a janela do terceiro andar do palácio apostólico de onde o papa, aos
domingos ao meio-dia, abençoa a multidão. Poucos sabem como o palácio é vasto.
Quando um envelhecido Leão XIII queria dar um passeio pelos jardins do Vaticano,
sentava-se numa pequena cadeira no seu gabinete. Depois os criados levavam-no por
20
uma escada de caracol, ao longo de um labirinto de corredores, através de salas e
galerias cheias de alguns dos maiores tesouros do mundo, num percurso de mais de
quilómetro e meio dentro do palácio para chegar até uma carruagem puxada a cavalos.
Quarenta anos depois da morte de Leão XIII o Vaticano foi profanado. As únicas
bombas lançadas sobre a cidade eram de fabrico britânico. Numa noite sem lua, durante
a Segunda Guerra Mundial, um avião alemão lançou quatro bombas capturadas em
Tobruk, para fazer crer que os Aliados tinham atacado o mais sagrado santuário
católico.
Embora o Vaticano tenha apenas o tamanho de um campo de golfe, os peregrinos
ficam esmagados diante da extensão daquilo que os circunda. No centro da praça está o
obelisco de Calígula de 322 toneladas e 40 metros de altura, que originalmente se
encontrava no circo de Nero junto do local onde S.Pedro foi crucificado. Este
monumento fá-los lembrar que estão em solo sagrado.
Subindo os degraus de pedra, chegam ao pórtico. É também enorme e cheio de
história. À direita fica a Porta Santa, agora selada, uma vez que este não é Ano de
Jubileu. Por cima do arco central, está uma representação do Navicella, o frágil barco de
S.Pedro que resistiu às intempéries dos tempos. Este fragmento de mosaico, que
sobreviveu à demolição da primeira Basílica de S.Pedro, foi obra de Giotto, o artista do
século XIII que impressionou o papa reinante por ser capaz de desenhar um círculo
perfeito à mão livre. Em frente da porta central, está colocado um disco porfitírico que
assinala o local onde Carlos Magno, no dia de Natal de 800, depois de subir os degraus
de joelhos, beijando cada um deles, ajoelhou e recebeu de Leão III a coroa do Sacro
Império Romano.
Afastando as pesadas cortinas de couro, os fiéis entram na basílica. Mesmo num dia
cinzento, uma luz dourada escorre das altas janelas. O chão de mármore de várias
cores cobre uma extensão de 24.000 metros quadrados. A nave tem 182 metros de
comprimento e 24 de largura, e no topo, mais altas do que qualquer palácio de Roma,
erguem-se as colunas espiraladas de Bernini.
As colunas coríntias, ornamentadas neste dia das festividades dos Apóstolos de
colgaduras no vermelho do martírio, sustentam uma abóbada amarela de 40 metros de
altura. As pias de água benta são do tamanho de banheiras e os anjos sobre elas têm
1,80 metros de altura. Para a esquerda e direita há estátuas gigantescas e capelas do
tamanho de igrejas. A mais apreciada obra de Miguel Ângelo, a Pietà, que ele esculpiu
quando tinha vinte e cinco anos e que é a única que tem o seu nome, ergue-se por
detrás de um vidro protector. Há túmulos de papas a que os escultores deram anos das
suas vidas. Chateaubriand, o escritor francês que viveu a Revolução, anotou nas suas
Memoires que em Roma há mais túmulos do que cadáveres; e imagina os esqueletos a
mudar de um túmulo de mármore para outro para se manterem frescos, tal como um
doente se mudaria de uma cama para outra mais confortável.
No topo da nave lateral esquerda há um altar sob o qual jaz o corpo do Papa Leão o
Grande. Um dos mais nobres papas, ele foi o primeiro a ser sepultado na Basílica de
S.Pedro no ano de 688. A partir de então instalou-se o costume de construir mais do que
um altar nos locais de oração. Agora, a Basílica de S.Pedro, mais do que qualquer outra
igreja do mundo cristão, está cheia de altares.
No topo da abside encontra-se a gigantesca Cadeira de S.Pedro, de bronze dourado,
sustentada por efígies de quatro Doutores da Igreja.
A decoração cobre uma vulgar cadeirinha, tipo liteira, que data pelo menos do século
II. Este é provavelmente o mais antigo dos tronos. A “Cadeira dentro da Cadeira” foi
vista pela última vez na Festividade dos Apóstolos em 1867. O que se viu foi uma peça
21
de carvalho gasta e lascada com retalhos de madeira de acácia e enfeitada com figuras
de marfim, algumas de cabeça para baixo.
Dando uma volta para a direita, da abside para a nave, os peregrinos chegam à
famosa estátua de bronze de S.Pedro. Nesta altura, na festa dos santos, ela está
paramentada com um manto de brocado dourado e coroada com uma tiara enfeitada de
jóias. A superfície do pé direito estendido está gasta e macia dos beijos de todos os
outros peregrinos que os antecederam. É uma lembrança de tempos bastante recentes
em que o papa nas audiências era obrigado a pôr o pé numa almofada própria para os
visitantes o beijarem.
Em 26 de Setembro de 1967, Paulo VI, já com a morte espelhada no rosto, veio aqui,
qual passarinho condenado, antes da abertura do primeiro Sínodo dos Bispos. Colocou
uma vela acesa no chão e depois, envolto numa nuvem de incenso, inclinou-se para
beijar o pé da estátua. Muitos pontífices devem certamente ter feito o mesmo, vindo orar
na Vigília de Pedro e Paulo no santuário do Príncipe dos Apóstolos.
* * *
Na capela do Abençoado Sacramento, prepara-se a procissão papal. A viagem de
João Paulo foi a mais curta de todas; veio apenas do seu gabinete no terceiro andar do
palácio. Contudo, em muitos aspectos, ele viajou mais nos últimos minutos do que
qualquer outra pessoa. Deixou os assuntos de Estado, os problemas da Cidade do
Vaticano, e assumiu o papel de que mais gosta: o de chefe da Igreja. Por momentos,
pode incluir as preocupações da igreja nas suas orações. Ninguém melhor do que ele
sabe que entre aquela multidão ali reunida e de que ouve murmúrios há muitos
membros do seu rebanho que andam desorientados. Os padres andam em conflito com
os seus bispos, as freiras com as madres superioras; os leigos andam mais do que
nunca activos contra os ensinamentos morais da Igreja. Nenhum papa foi tão adulado e
tão pouco obedecido. Nestes tempos tão sagrados, ele concentra-se no seu papel de
Pastor da Igreja Universal.
Os membrosdo seu séquito multicor — prelados, camareiros, príncipes da igreja,
Guardas Suíços — atarefam-se a compor a procissão pela ordem que o protocolo
estabelece, fazendo os ajustes finais nos seus uniformes. Paulo VI acabou com toda a
agitação de penas, aparato militar, armas desembainhadas. Mas as armas estão lá na
mesma. Diferentemente de qualquer outro papa, à volta do Papa João Paulo andam os
membros vestidos de azul do Ufficio centrale di vigilanza. Eles constituem o corpo de
segurança efectivo da pequena cidade-estado. Não só andam armados como também
têm ordens para atirar a matar no caso de a vida do papa estar em perigo. Os walky-
talkies, sob os casacos, estão ligados aos quartéis-generais da polícia da cidade de
Roma e às repartições da Digos, a brigada anti-terrorista italiana. Na linguagem da
segurança, o papa é irreverentemente referido como “Il Bersaglio“ (“O Alvo”).
Finalmente, ao som de trombetas, o pontífice avança a passos largos pela nave
abençoando a multidão de pescoço estendido. Os fiéis não reparam nos bispos vestidos
de branco, nos cardeais geminados ou nos monsenhores vestidos de púrpura. Só têm
olhos para o papa com o solidéu branco, o homem que chefia uma igreja de quase um
bilião de fiéis, 4000 bispos, 400000 padres e um milhão de freiras.
Embora estejam alegres na basílica, embora ajoelhem e batam palmas e desfaleçam
e mesmo as freiras de mais idade esqueçam pela primeira vez em anos as suas
inibições, todos eles sentem que ele está concentrado no Outro, no Deus que ele
representa na terra e a única entidade a quem tem de prestar contas. O papa não é
nenhum ídolo pop, mas o vigário de Cristo, e, logo abaixo de Cristo, essencial para a
22
salvação. No meio de ondas e mais ondas de adulação, flashes e o coro da Capela
Sistina que mal se ouve a cantar Tu es Petrus, «Tu és Pedro», o papa chega ao altar-
mor. O seu séquito dispersa-se tomando os seus lugares em cadeiras menores. Os
homens da segurança desaparecem nas capelas laterais. O papa está agora só, em
todos os sentidos. Sempre assim foi com os pontífices romanos, mas nenhum esteve
jamais tão só e vulnerável como João Paulo II.
 Nas listas do Vaticano ele é considerado como o 263º pontífice, mas o número não
está correcto. Houve alturas em que ninguém sabia quem era o papa de direito de entre
diversos reclamantes. Além disso, só no ano de 1073 é que o Papa Gregório VI proibiu
os católicos de chamarem papa a alguém para além do Bispo de Roma. Antes disso,
muitos bispos eram carinhosamente chamados de «papa» ou «papá». Mesmo o título
«Bispo de Roma» tem hoje um peso dignitário que nem sempre teve. Um chefe ou
administrador de uma inicialmente pequena comunidade cristã dificilmente se pode
comparar com um bispo moderno em poder e jurisdição. Muitas outras coisas estão
também longe de estar claras.
Por exemplo, quanto tempo é que Pedro viveu em Roma? Há um relato de fins do
século IV segundo o qual ele teria lá vivido durante vinte e cinco anos, mas não há
qualquer fundamento histórico para isto. O que se sabe é que cerca do ano 58, Paulo o
Apóstolo escreveu mais uma das suas cartas, desta vez aos romanos. Nela saudava
famílias inteiras e mencionava vinte e nove pessoas individualmente pelo nome. Mas
não saudava Pedro. Isto seria certamente uma omissão surpreendente se Pedro lá
estivesse a residir e fosse o Bispo de Roma. E mais, Eusébio de Cesareia, reconhecido
como o Pai da História da Igreja, ao escrever sobre o ano de 300, dizia: «Diz-se que
Pedro pregou aos Judeus por todas as terras de Pôncio, Galateia, Bithnya, Capadócia e
que, para o fim dos seus dias, detendo-se em Roma, foi crucificado».
 Hoje, os historiadores dizem que Pedro teria vivido em Roma durante três ou quatro
anos no máximo. Não há qualquer testemunho que indique que ele tivesse chefiado
aquela comunidade. Isso não pode ter sido automático. Ele nem sequer tinha sido bispo
em Jerusalém depois da morte de Jesus. Jaime, irmão do Senhor, é que o foi. Depois há
este facto surpreendente: nas primeiras listas de bispos de Roma o nome de Pedro
nunca apareceu. Por exemplo, Ireneu, Bispo de Lyons de 178 a 200, foi discípulo de
Policarpo, Bispo de Esmirna, que foi por sua vez discípulo de Paulo o Apóstolo. Ele
enumerou todos os bispos de Roma até ao décimo segundo, Eleutério. Segundo Ireneu,
o primeiro bispo de Roma não foi Pedro nem Paulo, mas Lino. A Constituição Apostólica
de 270 também mencionava Lino como o primeiro bispo de Roma, nomeado por
S.Paulo. Depois de Lino foi Clemente, escolhido por Pedro. O mistério adensa-se. Em
todos os seus escritos, Eusébio nem uma só vez fala de Pedro como Bispo de Roma.
Como é que isto se pode explicar? Parece que no espírito dos primeiros
comentadores cristãos os apóstolos constituíam uma classe à parte. Não pertenciam a
nenhuma igreja em particular, nem mesmo quando eles a «plantavam», isto é, quando a
fundavam, como Paulo fez por toda a Ásia Menor. Os apóstolos pertenciam a toda a
Igreja. Ser apóstolo impossibilitava um homem de ser bispo de um só lugar. Também
Pedro, fossem quais fossem as momentosas decisões que tomou em Jerusalém,
Antióquia ou fosse onde fosse, continuava a ser um apóstolo de toda a comunidade. A
Igreja Católica considerou uma questão de fé que os papas fossem os sucessores de
Pedro como Bispo de Roma. Mas Pedro nunca teve esse título; apenas lhe foi atribuído
alguns séculos depois da sua morte. Naturalmente que ele deve ter tido uma enorme
autoridade moral na comunidade judaico-cristã de Roma, mas ao contrário de Paulo,
que era um cidadão romano, deve ter sido considerado estrangeiro. Quase dois mil anos
23
mais tarde, outro estrangeiro, um homem de um país distante, senta-se naquilo a que se
chama a Cadeira de Pedro, enquanto a toada de um motete de Palestrina se eleva na
cúpula.
* * *
Já se passaram quase dez anos desde que Karol Wojtyla de Cracóvia se tornou
pontífice quando o primeiro João Paulo morreu, muito chorado, depois de trinta e três
dias de reinado. Depois da eleição, Albino Luciani apareceu na galeria da Basílica de
S.Pedro e em poucos segundos sorriu mais do que o seu antecessor Paulo VI em
quinze anos, e depois, profeticamente, sem dirigir uma só palavra à multidão,
desapareceu nas sombras do Vaticano.
Diz a anedota, em Roma, que a mais velha, a mais secreta e a mais poderosa das
instituições é a Sagrada Congregação para a Disseminação de Boatos. Acredita-se em
alguma coisa na Cidade Eterna que não seja dito num sussurro? Correu o boato de que
João Paulo I tinha sido envenenado. Coisas deste tipo sempre se disseram durante
séculos quando um pontífice adoecia e morria subitamente. Muitos destes boatos eram
falsos. Mas nem todos.
No dia 27 de Julho de 1304, ao fim de nove meses de reinado, Benedito XI estava em
Perugia quando um jovem disfarçado de irmã da Ordem de S.Petronilla se apresentou a
Sua Santidade com uma salva de prata cheia de figos. «É um presente da Madre
Abadessa,» murmurou a recatada “irmã“. Toda a gente sabia que Benedito tinha uma
paixão pelos figos. Poucos dias depois, era enterrado.
Fosse este ou aquele boato verdadeiro ou não, o facto é que os papas eram sempre
aconselhados a empregar um provador de vinhos e a inspeccionar os figos. Mas no caso
do antecessor de João Paulo II onde está a prova? Uma autópsia teria esclarecido o
assunto. E apesar das negações, provavelmente houve uma autópsia que o fez. Sobre
assuntos destes o Vaticano mantém sempre os lábios bem cerrados.
No conclave que se seguiu à inesperada morte de Luciani em 1978, foi eleito Karol
Wojtyla. Quando foi entronizado parecia mais jovem do que os cinquenta e oito anos que
tinha. Agora parece mais velho do que os sessenta e sete que tem. Os ombros estão
mais arredondados. Está mais magro, tem as veias do pescoço salientes. Os olhos
ficaram mais estreitos traindo a sua origem eslava. Como o cabelo ficou para trás sob o
solidéu, as orelhas tornaram-se proeminentescomo quando era um rapaz.
Muitas coisas contribuíram para o envelhecer. As penosas viagens. O atentado contra
a sua vida em 13 de Maio de 1981, que quase foi bem sucedido, tendo sido necessária
uma transfusão de seis quartilhos de sangue numa operação de cinco horas e meia. Os
papeis que se amontoam todos os dias sobre a sua secretária — «Para livrar o papa de
qualquer maldade» como dizia um seu ajudante. E a Cúria. Um papa e os seus
funcionários sobrevivem, no melhor dos casos, num compromisso nada fácil. A Cúria
tem em João Paulo um pontífice que a princípio nada sabia das suas artimanhas.
Os sussurros — outra vez essa poderosa Congregação — chegam até às suas
instalações. Os poucos prelados liberais que sobreviveram em Roma não gostam dele
por causa daquilo a que eles chamam a sua intransigência.
Alguns conservadores da sua entourage nesta grande festividade dos Apóstolos são
também muito críticos. Aos seus olhos, João Paulo fez uma coisa que é quase uma
heresia: desmitificou o papado. Fotografias nos meios de comunicação revelam um papa
mediático de sombrero, um papa de mãos dadas com jovens a balançar-se ao som de
música rock, um papa na Austrália abraçado por um coala meio confundido. Porquê,
perguntam estes conservadores, por que é que ele não se deixa estar no Vaticano
24
mantendo um perfil de mistério e temor, como o velho Leão XIII, que foi suficientemente
sensato para olhar o mundo através de uma janela — uma janela fechada, ao contrário,
acrescentam eles, daquele cripto-comunista João XXIII que abriu a janela e deixou
entrar um furacão?
O papa está acima desse tipo de conversas. Tem os olhos bem fechados enquanto
reza por todo o seu rebanho, não só por aqueles que estão reunidos em S.Pedro, mas
também por todos os que se encontram espalhados pelo mundo. Está convencido de
que só a sua voz, a voz de Pedro, a voz de Cristo, é suficientemente forte para deter a
precipitação do mundo moderno no lago da morte. Fica aterrado perante a insensível
indiferença em relação aos vindouros. Fica consternado por a virgindade ser quase um
palavrão e a homosexualidade se ter tornado não apenas legal, mas romântica. Teme
que mesmo os padres e as freiras estejam a perder a dedicação aos seus votos.
Enquanto o Evangelho é lido por um diácono, ele sabe que é a Pedra, ele, pelo menos,
tem de se manter firme. Os erros podem ser corrigidos, as tendências invertidas,
bastando para isso que a sua fé não lhe falte.
Agora os seus olhos estão húmidos, a dor orla-lhe a boca. Nestes dias, a sua
expressão é triste mesmo quando, cada vez mais raramente, sorri, como se a tristeza da
sua Polónia natal lhe tivesse inundado a alma. No memento de todas as missas ele
nunca deixa de mencionar os vivos e os mortos da sua pátria.
Como é polaco, nunca esperou ser papa. Nem mesmo quando foi feito cardeal em
1964, nem quando Paulo VI o escolheu em 1976 para o retiro quaresmal da casa papal
ele alimentou esse pensamento. Isso era contra a corrente da história. Há quatro
séculos e meio que o papado era italiano. Durante esse retiro quaresmal, Karol Wojtyla
ouviu o Papa Paulo em confissão e sem dúvida que fez os possíveis por fortalecer a sua
determinação, mas como é que ele podia imaginar que um dia viria a celebrar missa
solene em S. Pedro como Sumo pontífice? Os seus antecedentes: operário fabril,
alpinista, actor amador, resistente espiritual contra o nazismo e, mais tarde, contra o
comunismo, sonhador, poeta nas horas vagas. Um dos seus poemas, “O Operário da
Fábrica de Armamento”, começa assim: «Eu não posso influenciar o destino do mundo».
Os fiéis reunidos à sua frente, pelo contrário, pensam que a sua influência para o bem
do mundo é a maior. A sua integridade ilumina. Eis aqui um homem que não se pode
comprar ou vender, um prelado à maneira de Thomas à Becket que preferiu morrer a
ceder nas exigências da igreja. Da sua figura, quando se dirige para o altar para iniciar a
missa, irradia um sentido de majestade.
João Paulo é o último dos monarcas absolutos. Os católicos em S.Pedro, que agora
ficaram em silêncio, não aceitariam outra coisa. Ele é o oráculo supremo, Senhor da
Igreja, Vigário de Cristo. Para eles, ele possui o dom da infalibilidade, que é pouco
menos do que divino. Conforta-os a ideia de saberem que de todos os religiosos na
Terra — Judeus, Hindus, Protestantes, Budistas — Deus fala para eles uma linguagem
especial através de Sua Santidade. Dele flui a sua vida espiritual; como chefe da Igreja,
ele é o laço que os une a Deus e uns aos outros. Muitos pensam, porém erradamente,
que a sua fé deriva dele e que os bispos dele derivam o seu poder. Não são poucos os
não católicos em S.Pedro para esta missa festiva que também sentem que o Papa João
Paulo II é o melhor baluarte do mundo contra o comunismo ateu de Leste e o muito
espalhado e mais subtil ateísmo de um Ocidente secularizado.
O papa diz as palavras da missa em voz baixa mas clara. Cada gesto está de acordo
com as rubricas do missal, porque ele sabe que se se afastar delas, os padres em toda
a parte vão decidir fazer alterações da sua lavra. Enquanto ele prossegue, os fiéis na
basílica interrogam-se sobre como João Paulo se verá a si mesmo. Em certo sentido,
não é difícil saber. Apesar das suas viagens, das suas intermináveis alocuções, mesmo
25
depois do Vaticano II — talvez por causa do Vaticano II — ele compreende que este
cerimonial em S.Pedro não é a verdade toda sobre a igreja que ele chefia. Quando pára
para lembrar os vivos, o seu muito disperso rebanho, a sua oração é influenciada por
todas aquelas estatísticas desanimadoras empilhadas sobre a sua secretária.
 Os padres são a primeira preocupação do pontífice. Em 1971, uma fuga de
informação levou até à imprensa um estudo encomendado pela Sagrada Congregação
para a Fé. Revelava que entre 1963 e 1969 mais de 8000 padres tinham pedido
dispensa dos seus votos e quase mais outros 3000 não tinham esperado pela
permissão. O estudo estimava que nos cinco anos seguintes 20000 abandonariam. Este
cálculo veio a mostrar-se demasiado optimista.
O pior passava-se nos países em que os papas confiavam para fornecer missionários.
A Holanda, por exemplo, costumava produzir mais de 300 padres por ano. Agora as
ordenações são lá quase tão raras como as montanhas. Na Irlanda, nos fins de 1987,
havia 6000 padres e mais de 1000 ex-padres. Nos Estados Unidos da América, calcula-
se que existam mais de 17000 ex-padres. A média de idades dos que ficaram é
surpreendentemente alta: 54 anos. Também o futuro parece negro. Nos últimos vinte
anos, o número de seminaristas nos Estados Unidos caiu de 50000 para 12000.
O pontífice reza pelos leigos com as suas variadas preocupações. Reza pelos
presentes e por aqueles que, por todo o mundo, começaram a desfilar a sua
desobediência. Antes da sua viagem à América, em Setembro de 1987, deve ter lido a
sondagem da revista Time. Ela revelava que 93% dos católicos defendiam que «é
possível discordar do papa e continuar a ser um bom católico». Mesmo na Irlanda, uma
sondagem da mesma altura mostrava que só um em cada três jovens concordava com
ele sobre a contracepção. Todos os indicadores apontam para uma comunidade mundial
em retirada napoleónica. A igreja continua a ensinar, mas cada vez há menos pessoas a
ouvir.
A missa devia dar ao pontífice uma trégua nas preocupações e na sobrecarga do
governo. Em certo sentido, ela aprofunda essas preocupações. Ele tem que deixar que
Jesus, cujo sacrifício vai comemorar, o alivie desses fardos. À medida que a
consagração se aproxima, talvez o espírito de João Paulo regresse ao passado, à sua
infância em Wadowice quando ajudava no altar e aprendeu os responsos da missa em
latim. Nesses tempos, Catolicismo é que era a palavra do papa. É desanimador para ele
descobrir que, agora que é o pontífice, em muitas matérias que considera cruciais está
em minoria.
Esta a razão por que nesta missa papal ele não vê oscardeais magníficos, quais
flamingos à sua volta, os prelados, como Ratzinger de Munique, de cabelo branco,
Prefeito, desde 1982, da Congregação para a Fé, antigamente chamada de Santa
Inquisição. O papa também não dá pelas manchas vermelhas e purpúreas dos mantos
prelatícios de todos os graus. Não se dá ao trabalho de olhar para as tribunas apinhadas
de embaixadores, personagens reais obscuras e ainda mais obscuros príncipes e
princesas num esplendor de ouro e diamantes.
Ele não vê ninguém; e ninguém vê mais ninguém senão a ele.
«Este é o meu corpo». O papa pronuncia estas palavras com esmagadora devoção,
tão cheio de temor religioso hoje como quando as pronunciou na sua primeira missa há
quarenta anos. «Este é o meu sangue». Agora já não é o Vigário de Cristo mas o próprio
Cristo o centro de convergência da congregação silenciosa.
É assim em todas as missas, quer seja dita na mais humilde igreja de aldeia ou numa
basílica como a de S.Pedro. Jesus Cristo é o Senhor; e o papa representa-o a ele e à
26
sua autoridade doutrinal no mundo de hoje. Não tem a congregação razão em ver o
papa como a pessoa mais livre e mais soberana do mundo?
A verdade é que o pontífice é um prisioneiro.
A primeira consequência do absolutismo é que os que estão mais próximos da fonte
do poder inalam o mesmo ar do monarca. No caso do papa, há homens sem rosto,
burocratas, em gabinetes escuros no Vaticano e imediações que providenciam para que
a visão do papa corresponda à deles próprios. Fornecem-lhe informações
seleccionadas; escamoteiam tudo o que possa contradizer uma causa que eles desejam
promover. Estes são os primeiros carcereiros do papa.
O Concílio Vaticano II, 1962-65, pretendia liberalizar a Igreja Romana. Mal acabou
logo os velhos burocratas tomaram o controle; e continuam no controle desde então,
interpretando os decretos liberais de uma maneira iliberal.
Mesmo o Concílio Vaticano I, convocado por Pio IX em 1869 para o declarar infalível,
recusou discutir os projectos de decretos redigidos pela Cúria. Eles não representavam,
diziam os bispos, a fé da igreja, mas apenas uma escola teológica tendenciosa. Mas, no
fim, os burocratas acabam sempre por vencer. Eles permanecem nos seus lugares
enquanto os homens de espírito mais liberal se dispersam. Os funcionários da Cúria,
muitos dos quais estão presentes nesta missa, sempre detestaram os concílios por
ousarem ameaçar a sua infalibilidade. Como disse recentemente um bispo diocesano
amargurado: «A Cúria é um Concílio da Igreja em sessão permanente».
Apesar de toda a sua força aparente, João Paulo continua a assinar os documentos
preparados pelos prelados do Santo Ofício ou da Secretaria de Estado. Alguém sugere-
lhe que um determinado bispo da América do Norte não é muito ortodoxo, na
interpretação que a Cúria faz desta palavra. Não seria prudente mantê-lo sob vigilância?
Depois há aqueles volumosos dossiers do Santo Ofício sobre teólogos como Küng de
Tübigen ou Currant de Washington. E também sobre clérigos prometedores. Onde é que
este padre ou aquele monsenhor se situam em relação a Cristo, a Maria, à prática
frequente da confissão? Já alguma vez se mostraram flexíveis sobre a contracepção? Já
alguma vez tomaram parte em manifestações anti-nucleares? Revelaram simpatias por
Karl Marx? Muitos clérigos empreendedores podem ser permanentemente retidos nas
suas carreiras por uma simples insinuação. Muito do veneno da Cúria é administrado por
via auricular.
Pode-se dizer que neste aspecto o pontífice não é servido de maneira muito diferente
de qualquer outro líder apanhado na teia da função pública. Só que o próprio papa tem
um exército de “observadores” a vigiá-lo a ele.
Um pontífice, mais do que qualquer outro monarca, está prisioneiro do passado. A
congregação pode ver sinais disto mesmo no vestuário do papa. Na mitra, no pálio, no
Anel do Pescador. Não apenas a basílica em si mesma, as famosas relíquias que
contém; mesmo as peças de vestuário mostram que o pontífice está, ele próprio,
prisioneiro da história. Mas a maioria das grilhetas está no espírito.
O pontífice nunca pode falar sem ter em atenção aquilo que os seus antecessores
disseram sobre o mesmo assunto ou assunto relacionado. Em qualquer encíclica papal,
por cada citação bíblica haverá provavelmente uma dúzia de referências a papas
anteriores. Todos os pontífices conduzem com os olhos fixos no espelho retrovisor. Um
passado há muito morto, muitas vezes chamado de tradição, dita o caminho para o
futuro. Um papa morto é mais poderoso do que mil bispos vivos.
«Pax vobiscum», diz o papa. «A paz esteja convosco». Os membros da congregação
abraçam-se e passam este sinal de paz. Mas quem quer que carregue o fardo da
infalibilidade nem sempre pode ser um homem de paz; carrega também uma espada.
Porque não pode, por suposta compaixão, nem uma única vez, cometer, ou correr o
27
risco de cometer o mais ligeiro erro na doutrina ou na moral. Tem de ter o cuidado de
não contradizer um pontífice de há sete ou dez séculos. Não admira que a sua Cúria
nem sempre consiga fazer a distinção entre inovação e originalidade.
O Papa João Paulo, de olhos reverentemente fechados, recebe o corpo e o sangue
de Cristo. Por toda a basílica surgem os padres de sobrepliz e estola para distribuírem a
comunhão, o corpo de Cristo, aos fiéis. A própria Igreja é chamada de o corpo de Cristo.
Ao receberem a comunhão, os fiéis ficam em contacto com o seu Senhor crucificado e
ressuscitado e com todos os seus irmãos cristãos, vivos e mortos. Aquela pequena
hóstia liga-os sacramentalmente a toda a história da igreja.
Essa história foi boa e má, cheia de feitos heróicos e de crimes ignóbeis. O pontífice
está prisioneiro mesmo desses crimes. Ele sabe que a Igreja foi responsável por
perseguições aos Judeus, pela Inquisição, por chacinar hereges aos milhares, por
reintroduzir a tortura na Europa como parte do processo judicial. Mas tem de ter cuidado.
As doutrinas responsáveis por essas coisas terríveis ainda escoram a sua posição. Os
métodos podem diferir, os objectivos continuam os mesmos. Todo o mundo tem de ser
levado a reconhecer Cristo e a sua Igreja. Governada e guiada pelo papa, a Igreja
Católica tem a plenitude da verdade, da qual as outras religiões podem, quando muito,
aproximar-se.
João Paulo, a rezar enquanto a comunhão é distribuída, não quer que as pessoas
pensem que a compaixão é incompatível com a inflexibilidade em relação à verdade. A
liberdade de ensinar o que está mal, quanto a ele, é um erro. Como é que alguém pode
ter o direito de ensinar como verdadeiro aquilo que a Igreja diz que não é verdade ou é
imoral? Tal como todos os pontífices, ele tem como certo que onde a Igreja é forte o seu
poder deve ser usado para ilegalizar aquilo que ela condena. Pio IX, proclamado infalível
nesta mesma basílica em 1870, era bastante aberto a este respeito. Nos arquivos do
Foreign Office, em Londres, há uma carta classificada como “confidencial”. Era de Odo
Russel, representante do governo britânico no Vaticano. Relatava o que o papa lhe disse
numa audiência: «Aquela liberdade de consciência e tolerância que aqui [em Roma]
condeno, reivindico eu na Inglaterra e noutros países estrangeiros para a Igreja
Católica». Pio IX estava apenas preocupado com um juízo político: suportaria a Igreja
perder ou ganhar por recusar aos outros a liberdade que exige para si própria?
Pio IX, tal como o actual pontífice, estava convencido de que a Igreja conseguiu
permanecer doutrinariamente imutável através dos tempos. Os fiéis em S.Pedro
partilham essa convicção, acreditando que o papado é que é o principal responsável por
esta continuidade quase miraculosa.
A verdade é que a Igreja mudou radicalmente mesmo em áreas vitais como o sexo, o
dinheiro e a salvação.
Tomemos dois dos exemplos mais interessantes.
Todos os pontífices até ao século dezanove, inclusive, condenavam a cobrança de
juros sobre osempréstimos (a usura) em quaisquer circunstâncias. Não importava se os
juros estabelecidos eram altos ou baixos, se o empréstimo era feito a um pobre
camponês ou a um imperador. Séculos depois de as comunidades de camponeses
deixarem de ser a norma, a Igreja continuou a condenar a cobrança de juros e,
surpreendentemente, nunca retirou a sua interdição. Contudo, hoje o Vaticano tem o seu
próprio banco, fundado em 1942 por Pio XII, o qual foi recentemente o centro de terríveis
escândalos financeiros.
Uma segunda prova de mudança radical diz respeito aos ensinamentos da Igreja.
«Não há salvação fora da igreja». Esta doutrina foi inicialmente formulada para excluir
todos os não baptizados, como os Judeus e os não crentes. Mesmo os bebés de pais
28
cristãos que morressem antes de serem baptizados eram tidos como excluídos do Céu.
Hoje João Paulo continua a ensinar que não há salvação fora da Igreja, mas “Igreja” e
“salvação” são interpretadas de uma maneira tão alargada que todas as pessoas de boa
vontade, mesmo os ateus, podem ser salvos. Este truque linguístico evita que os
católicos pensem que houve uma inversão nos ensinamentos tradicionais. Admitir uma
mudança exporia uma parte demasiado grande do passado como um pesadelo. Essa a
razão por que, tal como todos os corpos autoritários, a Igreja Católica se recusa a
admitir que tenha mudado no essencial, mesmo quando isso representa um
aperfeiçoamento.
À parte estes indicadores, basta lembrar que quase todos os documentos do Vaticano
II teriam sido condenados como heréticos pelo Vaticano I. A ortodoxia de uma época
não é a ortodoxia de outra.
A principal desvantagem de uma instituição infalível é que nenhuma afirmação pode
ser retirada, nenhuma doutrina negada, nenhuma decisão moral invertida, mesmo
quando novos argumentos sugerem um exame radical.
 Nada disto preocupa os fiéis em S.Pedro. Eles acreditam que João Paulo é infalível
e, embora não estejam agora a pensar nessa questão, isso influencia o seu amor e
lealdade. Enquanto ele faz as suas orações depois da comunhão, eles vêem-no no altar
com os olhos da fé.
Em frente daquele altar em que só ele diz missa há um espaço oval. É a Confissão ou
o Túmulo dos Mártires. Está iluminado, como todos os dias, por noventa e três
candeeiros de feixe triplo; as paredes e soalhos são cobertos de jaspe, ágata e pórfiro.
Santos como Domingos e Inácio de Loiola, imperadores como Carlos Magno e Frederico
Barbarrossa ajoelharam aqui para honrar Pedro. Porque por baixo dos pés de João
Paulo está sepultado S.Pedro, cujas ossadas consagraram não só esta poderosa
basílica mas também os seus sucessores na Sé de Roma.
Nem uma só pessoa duvida que S.Pedro esteja sepultado nesta igreja que tem o seu
nome. Mas estará de facto?
A Igreja Católica por vezes é dogmática quando estão em causa dúvidas ou pelo
menos reservas. De facto, não há uma resposta simples sobre a questão do lugar onde
Pedro estará sepultado.
Nos primeiros tempos após a morte de Pedro, as suas ossadas foram transferidas por
duas vezes para lugares mais seguros. Quando as coisas serenaram, o corpo foi levado
de volta para o lugar onde Pedro deu testemunho da sua vida. Por cima do túmulo, foi
erigido um pequeno oratório, e, mais tarde, no século IV, foi construída a basílica de
Constantino, que ali ficou durante mil e cem anos.
Poucos dos fiéis em S.Pedro nestas festividades dos Apóstolos sabem que foi há
mais de mil anos que se tomou a decisão de separar as cabeças de Pedro e Paulo dos
respectivos troncos. As cabeças têm estado desde então em S.João de Latrão, que é a
catedral do papa e a igreja-mãe da Cristandade. S.João de Latrão foi também construída
por Constantino junto do palácio de Latrão, que ele outorgou ao Bispo de Roma.
De acordo com as antigas leis de Roma e com os cânones da teologia católica,
conclui-se que Pedro não está realmente sepultado em S.Pedro, mas, juntamente com
Paulo, em S.João de Latrão. O local onde está a cabeça, assim reza a antiga máxima, é
o local da sepultura. Mesmo hoje, a prática pastoral considera a cabeça a parte mais
importante dos restos mortais. No caso de decapitação ou de uma morte com mutilação
é a cabeça que é ungida com a sagrada crisma.
Houve uma ocasião em que a cabeça de Pedro se juntou ao tronco. Em 1241, o
Imperador Frederico II marchou sobre Roma. Muitos cidadãos, desgostosos com o
29
comportamento do papado, preparavam-se para escancarar os portões da cidade para
deixar entrar os invasores. O Papa Gregório IX, pouco antes de morrer, teve a ideia de
trazer em procissão as cabeças dos dois grandes apóstolos de Latrão para S.Pedro. A
ideia resultou. Os cidadãos de Roma, compreendendo que se arriscavam a perder não
só a sua herança mas também a sua principal fonte de rendimento, cerraram fileiras e o
perigo foi afastado.
Em 1370, o Papa Urbano V meteu as cabeças em bustos de prata encrostados com
pedras preciosas. Desta maneira, abriu caminho a outro drama.
Em 1438, um veneziano rico estava às portas da morte. Perdida a esperança com os
médicos, rezou a Pedro e Paulo, prometendo que adornaria os seus relicários com uma
pérola de grande valor se recuperasse a saúde. Recuperou e cumpriu a promessa.
Pouco depois, descobriu-se que faltava uma dúzia de pérolas nos relicários, bem como
dois rubis de quarenta e sete e quarenta e oito quilates, uma safira e dois grandes
diamantes. A pérola do veneziano também fora arrancada, provavelmente durante as
próprias festividades de S.Pedro e S.Paulo, quando os relicários estavam em exposição.
Os culpados foram logo descobertos. Dois primos confessaram terem escondido o
fruto da sua pilhagem em casa de um tio.
Tornaram-se motivo de divertimento em Roma. Como ponto alto de uma festança, na
praça de S.João de Latrão, deceparam a mão direita dos jovens antes de os queimarem.
O tio, simples receptador, foi tratado com mais clemência. Depois de agrilhoado com
tenazes em brasa, foi enforcado.
Em 1799, os soldados de Napoleão roubaram os relicários. Meteram ao bolso as
pedras preciosas, incluindo a pérola, mas deixaram as relíquias. Diz-se que estas foram
encontradas com o lacre original intacto. Nada restou a não ser vértebras, um maxilar
com alguns dentes soltos e um pedaço de crânio. Fizeram-se novos relicários e as
cabeças repousam agora no santuário por sobre o altar papal de Latrão. É ali, em
sentido restrito, que ambos os apóstolos estão enterrados juntos. Uma vez que S.João
de Latrão é também «a Mãe e chefe de toda a igreja da cidade e do mundo», era
certamente ali que o Santo Padre devia ter celebrado a missa das festividades de
S.Pedro e S.Paulo.
Há uma razão primordial para que ele não tenha procedido assim.
O papa diz a missa com o tronco de Pedro sob os seus pés. Setenta metros acima da
sua cabeça, há qualquer coisa muito mais importante do que os restos mortais de Pedro:
as palavras do Senhor. Em letras de um metro e meio de altura, à volta da cúpula, está o
mais famoso de todos os trocadilhos: «Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo
ecclesiam meam, et portae inferi non praevalebunt adversus eam» («Tu és Pedro e
sobre esta Pedra construirei a minha igreja, e os portões do inferno não prevalecerão
sobre ela»). Os eruditos assumem que no aramaico original o trocadilho era perfeito:
Pedro e Pedra são ambos Cepha. É este o texto que constitui o pano de fundo de todo o
pensamento do Papa João Paulo. Quem duvidaria de que ele pega neste texto, com
toda a humildade, para as suas meditações? Este texto é a razão por que os pontífices
agora celebram as festas de S.Pedro e S.Paulo em S.Pedro, de preferência ao local
mais óbvio de S.João de Latrão. Porque os pontífices romanos afirmaram-se sucessores
não de Pedro e Paulo, mas apenas e só de Pedro. O Novo Testamento fala de Pedro
como o apóstolo para os Judeus e de Paulo como o apóstolo para os cristãos. Mas no
espírito do papa, Pedro era o superior de Paulo; Pedro tinhajurisdição sobre Paulo e os
outros discípulos. Esta autoridade foi outorgada a Pedro pelo próprio Senhor naquelas
palavras que se encontram à volta da grande cúpula. Foi esta autoridade suprema que
ele, João Paulo II, herdou. Por que é que os Protestantes não hão-de ser lógicos? —
30
deve Sua Santidade pensar. Jesus, o Filho de Deus, deu a Pedro supremacia sobre a
Igreja; esta supremacia deve continuar na Igreja como um ofício permanente; ele, João
Paulo, é o actual detentor de tal ofício.
Há, porém, uma outra interpretação deste texto com uma linhagem melhor do que
aquela de que a maioria dos católicos se dá conta. Pode chocá-los ouvir dizer que os
grandes Padres da Igreja não viam qualquer relação entre ele e o papa. Nenhum deles
aplica o «Tu és Pedro» a ninguém senão a Pedro. Um após outro todos o analisam:
Cipriano, Orígenes, Cirilo, Hilário, Jerónimo, Ambrósio, Agostinho. E eles não são
propriamente Protestantes. Nenhum deles chama ao Bispo de Roma uma Pedra ou lhe
aplica especificamente a ele o compromisso das Chaves. Isto para os católicos é tão
chocante como se não encontrassem nos Padres qualquer menção ao Espírito Santo ou
à ressurreição dos mortos. O grande trocadilho, o jogo de palavras, foi aplicado apenas
a Pedro.
E as surpresas não acabam aqui. Para os Padres é a fé de Pedro — ou o Senhor em
que Pedro tem fé — que se chama Pedra, e não Pedro. Todos os Concílios da Igreja,
desde Niceia, no século IV, a Constança, no século XV, concordam que o próprio Cristo
é o único fundamento da Igreja, isto é, a Pedra em que a Igreja assenta.
Talvez por isso, nem um só dos Padres fale da transferência de poder de Pedro para
aqueles que lhe sucederam; nenhum deles fala, como fazem os documentos da Igreja
hoje, de uma “herança”. Não há qualquer indício de um ofício Petrino perdurável. Ao
falar de um ofício, a referência é ao episcopado em geral. Todos os bispos são
sucessores de todos os apóstolos.
A análise de um outro texto do Evangelho produz o mesmo resultado. Jesus disse a
Pedro: «Rezei por ti para que a tua fé não te falte; e quando estiveres convertido, crisma
os teus irmãos». Esta afirmação aplica-se apenas e pessoalmente a Pedro. Nunca
ocorreu aos cerca de dezoito Padres da Igreja que comentaram este texto que houvesse
nele um compromisso para com os “sucessores de Pedro”. Pedro, individualmente
considerado, não teve sucessores.
Então, e os compromissos que se diz terem sido feitos via Pedro para com os seus
“sucessores”, os papas? Então os papas não herdam de Pedro a infalibilidade e a
jurisdição sobre todo o mundo?
O primeiro problema da infalibilidade é que o Novo Testamento deixa muito claro que
o próprio Pedro cometeu erros tremendos tanto antes como depois da morte de Cristo.
Quando, por exemplo, Jesus insistiu que tinha de ir até Jerusalém, onde seria
crucificado, Pedro protestou de tal maneira que Jesus lhe disse que ele era o “Satanás“
no seu caminho. Alguns teólogos católicos sugeriram que as palavras «Sai do meu
caminho Satanás» deviam ser acrescentadas ao texto Petrino já inscrito à volta da
cúpula de Miguel Ângelo. Depois da ressurreição de Jesus, Pedro fez outro enorme
disparate. “Heresia” não é uma palavra excessiva para o descrever. O maior jurista
canónico da Igreja de todos os tempos, Graciano, disse em 1150: «Petrus cogebat
Gentes Judaizare et a veritate evangelii recedere», «Pedro obrigou os não-Judeus a
viverem como Judeus e a afastarem-se da verdade do Evangelho».
Quanto à jurisdição em todo o mundo, quando Pedro pregava ao seu rebanho em
Antióquia ou em Roma, alguma vez lhe passou pela cabeça a ideia de que dirigia toda a
Igreja? Tal ideia teve de esperar até a Cristandade ser integrada no Império Romano.
Mesmo nessa altura, o papado ainda levou algum tempo a atingir a estatura que tornou
tal pretensão plausível.
E as dificuldades não se ficam por aqui. Os papas só são considerados infalíveis
quando se dirigem a toda a Igreja. E quando é que eles o fizeram pela primeira vez?
Certamente não durante o primeiro milénio. Neste período todos concordam que só os
31
Concílios Gerais exprimiam o pensamento da Igreja. Então, o poder supremo do papa
esteve suspenso todo esse tempo? Se a Igreja conseguiu funcionar sem ele durante mil
anos, por que é que havia de precisar dele? Por pouca sorte, um dos primeiros, senão
mesmo o primeiro documento papal dirigido à Igreja universal foi a Unam Sanctam, uma
Bula de Bonifácio VIII, em 1302. Era um documento tão forçado que levantou questões
delicadas sobre a infalibilidade no Concílio Vaticano I, em 1870.
Assim, a Igreja dos primeiros tempos não considerava Pedro como Bispo de Roma,
nem pensava, portanto, que cada Bispo de Roma sucedia a Pedro. No entanto, Roma
era tida na mais alta consideração por razões bastante diferentes. Em primeiro lugar, foi
aqui que Pedro e Paulo viveram a sua vida. Depois, Roma era um lugar sagrado porque
aí os fiéis, clérigos e leigos, conservaram os seus corpos e reverenciaram-nos. Esses
corpos foram uma espécie de garantia da ortodoxia através dos tempos.
Passaram-se décadas. O Bispo de Roma tornou-se cada vez mais importante,
especialmente quando a corte imperial foi transferida para Constantinopla, no século IV.
Isto deixou um enorme vazio político, administrativo e emocional. Os Bispos de Roma
estavam, por assim dizer, ali à mão para o preencher. A partir de então, os Bispos de
Roma começaram a separar Pedro de Paulo e aplicaram a si próprios as promessas
feitas a Pedro no Evangelho. O prestígio do Bispo de Roma era agora tal que os eruditos
procuraram nas Escrituras textos que sustentassem o seu papel de líder e patriarca do
Ocidente. Nada mais limpo do que aplicar ao bispo que governa a cidade onde Pedro
morreu textos que nos Evangelhos se referem apenas a Pedro. Os Evangelhos não
criaram o papado; o papado é que, uma vez criado, procura suporte nos Evangelhos.
Este suporte não apareceu facilmente; foi necessária muita perícia para pegar em
afirmações feitas por um pobre Carpinteiro a um igualmente pobre Pescador e aplicá-las
a um pontífice régio que em breve viria a ser chamado de Senhor do Mundo.
Em S.Pedro, nestas festividades, João Paulo não está a pensar em si próprio como
Senhor do Mundo, mas sim como o Pastor Chefe do rebanho. Dá a sua bênção final e a
multidão rompe em aplausos. Pela primeira vez desde que entrou na basílica, o pontífice
permite-se um sorriso. A liturgia sagrada está terminada e ele volta a descer pela nave
em direcção à Capela do Santíssimo Sacramento, distribuindo bênçãos pelo caminho.
Para muitas das pessoas que vão a sair da basílica este foi o dia mais memorável das
suas vidas.
Enquanto a basílica volta ao normal, apetece perguntar: Se Pedro se levantasse do
túmulo sob a cúpula e lhe dissessem que tudo aquilo foi erigido em sua honra, como é
que ele reagiria?
Claro que alguém que regressasse do mundo dos mortos apenas quinze dias depois
da sua morte ficaria completamente aturdido, e Pedro morreu por Cristo há mais de
dezanove séculos. Quem é que pode saber como ele reagiria às maravilhas da moderna
tecnologia: aviões, automóveis, televisão, telefones? Só em S.Pedro há oitenta telefones
— se se marcar o 3712 o telefone tocará na obscuridade do altar-mor. O crescimento e
a organização da Igreja também o espantariam. Uma vaga ligação de uns poucos
pescadores e os seus convertidos, na sua maioria camponeses, tem de ser diferente de
uma igreja de malha bem apertada que se estende pelo mundo inteiro e abrange quase
um bilião.
A única pergunta certa é esta: se Pedro voltasse como peregrino, como é que ele
julgaria, à luz dos Evangelhos, o que se passa no Vaticano?
Jesus nasceu num estábulo. Durante o seu ministério, não tinha onde pousar a
cabeça.
32
Hoje, o seu Vigário habita um palácio com onze mil salas. E depois há ainda
Castelgandolfo, sobranceiro ao Lago Albano, onde os pontífices se resguardam do calor
do verão.O belo Castelgandolfo, ligeiramente maior do que o Vaticano, foi onde João
Paulo, com algum dispêndio, mandou construir uma piscina para seu uso pessoal.
Jesus renunciou aos seus bens. Ele ensinava constantemente: «Vai vender tudo o
que possuis e dá aos pobres, e depois vem comigo». Ele condenava os ricos e os
poderosos. Armazenai para vós tesouros no Céu, dizia ele, onde nem a ferrugem nem a
traça conseguem estragá-los.
O Vigário de Cristo vive rodeado de tesouros, alguns de origem pagã. Qualquer
sugestão no sentido de que o papa devia vender tudo o que tem e dar aos pobres é
recebida com irrisão, como impraticável. O jovem rico dos Evangelhos reagiu da mesma
maneira.
Durante toda a sua vida, Jesus viveu de maneira simples; morreu nu, oferecendo o
seu sacrifício na cruz.
Quando o papa renova esse sacrifício na missa solene pontifical, maior contraste não
se poderia imaginar. Sem qualquer ironia, o Vigário de Cristo está vestido de ouro e das
sedas mais caras. Isto tem sido frequentemente fonte de escândalo. Por exemplo, no
século XIV o grande Petrarca descrevia assim uma missa papal em Avignon, que era
muito menos esplendorosa do que a recente cerimónia em S.Pedro: «Fico espantado
quando recordo os antecessores do papa e vejo estes homens carregados de ouro e
vestidos de púrpura. Parece que estamos entre os reis dos Persas ou dos Partianos,
diante dos quais nos temos de prostrar e venerar. Ó apóstolos e primeiros papas, rudes
velhos definhados, foi para isto que trabalhastes, vós?»
O único título de Jesus foi Pilatos que lho atribuiu por troça: “Rei dos Judeus”.
No anuário pontifício, Pedro vê que o papa tem uma dúzia de títulos ilustres: incluindo
o de chefe de estado. Ele acharia o de Pontifex Maximus o mais surpreendente, porque
no seu tempo era esse o título do Sumo Sacerdote de Roma. Além disso, Jesus era
apenas um leigo.
Os assistentes do papa também têm títulos algo inesperados à luz do Sermão da
Montanha: Excelência, Eminência, Vossa Graça, Meu Senhor, Ilustre, Reverendíssimo,
etc.. Contudo os chapéus cardinalícios, que outrora renderam milhões aos cofres do
papa, são agora distribuídos gratuitamente. Mas suas Eminências continuam a vestir-se
como realezas, mesmo que as suas caudas tenham sido reduzidas recentemente de
alguns metros. As impressões é que contam. Aqueles que vestem púrpura e seda, vivem
em palácios, sentam-se em tronos — não lhes é fácil agir como servos de Deus ou
representar o Pobre de Nazaré perante os pobres e os famintos do mundo. João Paulo
apenas reuniu os seus cardeais por duas vezes. E em ambos os casos foi para discutir o
estado perigoso das finanças do Vaticano.
Pedro, sempre sem tostão, ficaria intrigado ao saber que, de acordo com o cânone
1518 do código de 1917, o seu sucessor é o «administrador e gestor supremo de todos
os bens da Igreja». E também que o Vaticano tem o seu próprio banco, que só admite
como cliente quem, além de sólidas referências, possa fornecer uma coisa que o próprio
Pedro nunca teve: um certificado de baptismo.
O celibato do clero, papa incluído, devia também surpreender Pedro, ao pensar como
Jesus o escolheu a ele sabendo que era casado.
E finalmente Pedro ficaria desconcertado só com o simples número de imagens em
S.Pedro. Ele e o Mestre, como judeus que eram, opunham-se às imagens religiosas.
Deus, cujo simples nome não podia ser pronunciado, também não podia ser
representado. Alguém que reside numa luz inacessível exige as maiores reticências.
33
Mesmo o mais Sagrado dos Sagrados no Templo de Jerusalém não era mais do que
uma sala despida e escura.
Em S.Pedro Jesus está crucificado em todos os altares. A basílica está decorada com
estátuas de papas ajoelhados e inclinados numa vénia. Algumas figuras são muito
pouco edificantes. O Papa Paulo III, por exemplo, jaz enterrado na ábside. O seu
monumento está decorado com belezas reclinadas, uma das quais é a Justiça.
Originalmente nua, ajustaram-lhe, por ordem de Pio IX, uma camisa metálica pintada
para parecer o mármore original. Sua Santidade tinha descoberto que o modelo para a
Justiça fora a irmã de Paulo III, Giulia, a amante do Papa Alexandre VI.
Pedro assistiu à simples cerimónia da Ceia na noite da véspera em que Jesus
morreu. Ele soube que na colina rochosa dos arredores de Jerusalém, Jesus, depois de
ultrajado, açoitado, cuspido, coroado com espinhos, foi despido e crucificado entre dois
ladrões.
Que ligação há, se alguma poderá haver, perguntar-se-ia Pedro, entre esses
acontecimentos e uma missa papal? Será que todo este cerimonial distorceu e banalizou
a mensagem de Jesus? Como e por que tortuosos caminhos é que uma pequena
comunidade perseguida transpôs a aparentemente infinita distância entre o Calvário e o
Vaticano?
34
35
2
A Busca do Poder Absoluto
Os milhões que todos os anos visitam o Vaticano pressentem o poder da Igreja. As
paredes, as estátuas, as gigantescas colunas, aquela cúpula omnipresente, tudo isto
exala poder. Se têm a sorte de ter uma audiência com o Santo Padre, ou simplesmente
recebem a sua bênção da janela do seu gabinete, a maioria dos peregrinos sente uma
força passar dele para si próprios. Ele possui, crêem eles, o dom do Espírito de Deus
num grau elevado. Mesmo um rosário abençoado pelo pontífice tem uma significação
especial; é como um autógrafo invisível. Ele tem um grande poder vindo de Deus e tem
o compromisso de o usar para o bem da humanidade.
O prestígio do papa hoje é enorme. Neste século, os pontífices adquiriram renome
mundial. Os acontecimentos históricos e as comunicações instantâneas contribuíram
para os tornar os “Porta-vozes da religião”. As suas personalidades também tiveram
alguma coisa a ver com o facto. Os antecessores próximos de João Paulo também
foram homens eminentes: Pio XI, Pio XII, João XXIII, Paulo VI, João Paulo I. Tiveram os
seus críticos dentro e fora da Igreja. Pouca gente negaria que o seu objectivo principal
foi seguir Jesus Cristo. O resultado é que João Paulo II é comummente considerado
como o único líder cuja reputação na religião iguala a influência política do presidente
americano e do secretário-geral soviético.
Como não entendem que o passado é imprevisível, muitos católicos estão
convencidos de que a maior parte dos papas seguiu este padrão. Desconhecedores da
história, permitem-se, como diz Acton, «ser governados pelo Passado Desconhecido».
Podem ter ouvido falar do Papa Alexandre VI, o infame Bórgia. Ele foi, sem dúvida, a
excepção que confirma a regra. Além disso, por muito mau papa que fosse, eles têm a
convicção, tal como Joseph de Maistre, o historiador do século XIX, de que «as Bulas
destes monstros foram irrepreensíveis». Fosse qual fosse o seu comportamento moral,
nunca comprometeram a fé da Igreja. Neste contexto, até Judas Iscariote é
reconfortante. Se um dos discípulos mais próximos de Jesus traiu o Senhor, não
devemos ficar surpreendidos se um ou alguns papas abusaram do poder que Deus lhes
conferiu. A traição de Judas levou à salvação do mundo. Será que Deus usa o mau
papa ocasional para provar que na providência divina mesmo Alexandre VI serve de
medianeiro da verdade e do amor de Deus?
Em 1895, o Cardeal Vaughan de Westminster afirmou num sermão: «A vida do
papado é, como a do próprio Cristo, marcada por sofrimento e por tempos tranquilos;
hossanas hoje, a paixão e crucificação amanhã; mas seguida, depois, da ressurreição.
O Vigário de Cristo e a sua Igreja estão necessariamente em conflito com as falsas
máximas do mundo; o sofrimento e as perseguições são consequência inevitável».
Quem é que não perdoará aos seus ouvintes por concluírem que a maioria dos papas
foram uma imagem de Cristo? Mas este lado eternamente luminoso do papado tem de
ser complementado com o lado mais negro. A maioria dos católicos nunca ouve durante
a sua vida, na escola ou na igreja, uma só palavra de censura a qualquer papa.
Contudo, um católico devoto comoDante não teve qualquer escrúpulo em lançar
pontífice após pontífice para as profundezas do Inferno. Se os Judeus nos seus salmos
36
condenam — e até amaldiçoam — Deus, não podem os católicos condenar os papas
quando eles o merecem? A história dos papas está, para utilizar uma expressão do
senhor Gorbachev, cheia de páginas em branco. Nem todos os papas foram santos,
muitos mal cristãos foram. Antes de Pio IX perder os Estados Papais em 1870, os
papas raramente eram amados. Eram muitas vezes odiados e temidos.
A distorção começa logo nas listas dos papas, onde, dentre os primeiros trinta, todos,
excepto um, são descritos como mártires. Provavelmente foram mártires no sentido de
“testemunhas da fé”. Não há provas de que todos tenham morrido por Cristo. Mais
ainda: entre os papas houve um grande número de homens casados, alguns dos quais
trocaram a mulher e os filhos pelo ofício papal. Muitos eram filhos de padres, bispos e
papas; alguns, bastardos; um era viúvo, outro um ex-escravo; vários foram assassinos,
alguns, descrentes; alguns eram eremitas, outros, hereges, sádicos ou sodomitas;
muitos tornaram-se papas comprando o cargo (simonia) e continuaram os seus dias a
vender coisas sagradas para encher os bolsos; pelo menos um era adorador de
Satanás; alguns tinham filhos ilegítimos, outros eram fornicadores e adúlteros em
grande escala; alguns eram espantosamente velhos e outros ainda mais
espantosamente jovens; alguns foram envenenados, outros, estrangulados; e, pior do
que todos, foram aqueles que veneraram um deus granítico. Mas houve igualmente
muitos que foram papas bons, santos e generosos, e mais uns poucos mártires.
É tempo de se deixar de tratar o papado em termos hagiográficos. O silêncio
estudado sobre os pecados do papado é um escândalo e uma forma errada de fé. Pior,
faz com que a presente crise da Igreja se torne insolúvel.
O maior dos pecados do papado, origem da maioria dos outros, foi o abuso do seu
imenso poder. É estranho pensar que a pessoa de que esse poder alegadamente
derivou viveu e morreu sem poder absolutamente nenhum.
“O Primeiro Papa”
Esteve tanto tempo nas masmorras que perdeu a noção do tempo. As paredes e o
chão estavam cobertas de crostas de sangue. O calor e a pestilência eram
insuportáveis. Mordido das pulgas e das ratazanas, velho e magro, estava deitado numa
cama de palha húmida. Era o homem mais feliz de Roma, talvez mesmo do mundo.
Os seus carcereiros chamavam a isto “reclusão solitária”; o prisioneiro sabia que
nunca estivera menos só. No seu coração estava o Mestre que ele servira todos
aqueles anos na sua terra junto das águas azuis de um lago interior. Na escuridão, vivia
à luz deslumbrante de Cristo. Com as grilhetas, era um homem livre.
As recordações inundavam-no. Recordou o chamamento: «Vem, segue-me». Ele
deixou tudo: redes, modo de vida, independência. Deu a sua palavra e nunca voltou
atrás, apesar da ocasional renegação.
Havia realmente coisas que envergonhavam. Quando, por exemplo, o Mestre sugeriu
que tinham de ir a Jerusalém, onde a morte o esperava, Pedro protestou. Jesus caiu
sobre ele: «Sai do meu caminho, Satanás». Aquilo ainda lhe soava nos ouvidos. Pedro,
então, não entendeu. Como é que ele podia entender?
O pior ainda estava para vir. No jardim de Getsâmani, à noite, já tarde, depois de
uma ceia de Páscoa, Jesus, muito só, muito temeroso, pediu-lhe para velar e rezar. O
prisioneiro era então jovem, precisava de dormir mais do que agora, mas aquela
lembrança envergonhava-o. Sentia ainda aquela mão sobre o seu ombro a procurar
mantê-lo acordado e aquela voz suave, magoada mas não ressentida: «Não podias
velar uma hora comigo?» Os servos do Alto Sacerdote vieram com bordões e espadas
para prender Jesus. O prisioneiro pegou numa espada e deu um golpe numa orelha de
37
um servo chamado Malchus. Jesus odiava as espadas. Disse a Pedro que o lugar das
espadas era nas bainhas e fez o melhor que pôde por Malchus, pedindo desculpa o
tempo todo.
Foi então que Pedro e os outros fugiram. Para quê ficar com um homem que
recusava defender-se e tratava os inimigos como trataria um amigo?
Pedro dirigiu-se para o pátio do Alto Sacerdote. Tentou aquecer-se à fogueira mas o
frio que o dominava não estava nos seus membros. Agora, no sufocante calor da cela,
tremia à amarga lembrança de renegar o Mestre diante de uma serva. Nunca ia
esquecer o olhar que Jesus lhe lançou quando foi levado como um cordeiro para a
matança. Nem uma palavra, apenas um olhar. Ele tinha obrigação de ser duro, mas não
aguentou; foi-se embora a chorar como uma criança.
No dia seguinte, assistiu, sem dúvida, de longe, à crucificação. Era então aquele o
fim? Ou iria Deus intervir e salvar Jesus, arrancar os pregos, devolvê-lo aos seus
seguidores incólume e triunfante? Se assim fosse, seria a prova de que ele era o
Messias, o ungido de Deus, que os guiaria à glória. O que é extraordinário é que nada
aconteceu. Não veio nenhum anjo confortá-lo. Morreu, simplesmente.
Pedro viu os soldados levarem o corpo e os dos dois que foram crucificados com ele.
Ficou arrasado. A cruz parecia mostrar que Jesus era, apesar de todo o seu espírito
cativante, um falso messias, enganado como tantos outros. Pedro foi para casa com os
seus amigos galileus. Foi na Galileia, onde Jesus outrora o chamara, junto ao lago, que
ele teve uma experiência de ressurreição. Paulo iria dizer que Pedro foi o primeiro que
viu o Senhor. Por uma inspiração, uma visão não atribuível à carne e ao sangue, ele
entendeu que a cruz não era o fim, mas o princípio; era um escândalo mas também a
salvação. Convenceu os outros discípulos; eles tiveram a mesma experiência. Também
eles viram o Senhor.
Mais tarde, espalharam-se algumas estórias complicadas contando que Jesus fora
enterrado num túmulo não usado, com uma pedra por cima, e como, no dia que viria a
ser chamado de Páscoa, a pedra foi removida revelando um cova vazia. As estórias
contradiziam-se em muitos pontos. Mas expressavam, à maneira dos Judeus, a
experiência dos discípulos: Jesus não foi amaldiçoado na cruz; tornou-se por seu
intermédio o Senhor e Cristo. Afinal ele era de facto o Messias. Ele ressuscitou.
Os discípulos tinham voltado a Jerusalém pregando a sua fé. As suas histórias
falavam de comer e beber com Jesus depois da ressurreição para fazer com que os
outros acreditassem. Pedro adquiriu um prestígio especial. Foi a Pedra sobre a qual o
novo grupo — mais tarde chamado Igreja — foi edificado. A sua fé tinha crismado os
seus irmãos. Foi o pastor que trouxe para o redil o rebanho perdido. Era o pescador
chefe de homens. Foi o primeiro cristão.
Juntos, os discípulos leram outra vez Moisés e os profetas. Estes também deixavam
claro que a cruz era parte do plano de Deus. Os homens devem viver a sua vida à
sombra da cruz que os salvaria tal como outrora tinha elevado Jesus da agonia até à
glória.
O prisioneiro passou todos os seus dias a sorrir na escuridão de Mamertine. Nada lhe
interessava, nem a ele nem aos discípulos, depois de saberem que o Senhor
ressuscitara dos mortos. Ele era o Sofredor Servo de Deus. Que mais é que ele lhes
tinha pregado e mostrado senão que tinha vindo não para ser servido mas para servir,
para dar a vida pelos outros? Isto explica a razão por que ele virou costas à força, por
que ele se riu com a ideia de uma espada a ajudar a promover a sua mensagem. Ele
viera não para ferir e matar mas para ser ferido e, se necessário, morrer para que o
amor e a compaixão de Deus brilhassem por entre as feridas abertas no seu corpo.
38
Por um momento, uma coisa preocupou Pedro: que pessoas podiam ser discípulos
de Jesus? Só judeus? Se os não-judeus também pudessem, teriam eles de se tornar
judeus primeiro? Encontrou a resposta num estranho sonho que o convenceu de que
nada era exigido aos não-judeus convertidos a não ser a fé em Cristo.
Mais tarde recuou. Instou os não-judeus a seguirem as leisda dieta dos judeus. Foi
então que um enérgico recém-convertido mostrou o seu fervor: «Quando Cephas
[Pedro] veio a Antióquia» disse Paulo, «eu contestei-o frontalmente, porque era evidente
que ele não tinha razão. […] Eu disse a Cephas em frente de toda a gente “Tu és judeu
e vives como um não-judeu. Como é que queres obrigar os não-judeus a viver como
judeus?»
Pedro aceitou a correcção. Tinha cometido um erro terrível. Se Paulo o não tivesse
corrigido, a mensagem de que o homem se justifica apenas pela fé teria ficado
arruinada desde o começo. Depois disto, Pedro e Paulo dividiram a missão: Pedro
pregava aos judeus e Paulo, cidadão romano, aos não-judeus.
Depois de organizar a Igreja em muitos lugares, Pedro, muito mais tarde, sentiu-se
atraído pela capital do Império. Quando Jesus nasceu foi registado num censo
ordenado por Augusto. Foi executado pelos Romanos. Como eles eram donos do
mundo, era em Roma, onde, segundo Tácito, todas as vergonhas e todos os vícios do
mundo se congregavam, que Pedro tinha de converter.
Os Judeus estavam há muito estabelecidos em Roma. Eram olhados com
desconfiança por causa da sua recusa em venerarem os deuses do Panteão, como
faziam os imigrantes bem educados,. Isto era traição, mas os Romanos eram
geralmente tolerantes em assuntos de religião. Os Judeus sobreviveram, foram
dispensados de adorar os manes. Com o tempo vieram a conceder-lhes mesmo
estatuto legal.
Pedro tinha uma tarefa difícil em pregar Jesus aos Judeus. Para estes, Pedro era um
herege. Aceitava a Bíblia Judaica, mas não a circuncisão. Venerava Abraão, Moisés e
David, mas não manteve as suas festividades. Venerava mesmo Deus num Sabath
próprio. Os Judeus não aceitavam sobretudo a ideia de um messias crucificado. Jesus
não convenceu ninguém enquanto vivo, morreu como um fora de lei que era, e a sua
chamada ressurreição baseava-se no testemunho de umas poucas mulheres loucas.
Na Roma do tempo de Pedro, o Forum e o Palatino impressionavam mesmo à
distância. O palácio de Augusto brilhava ao sol na sua brancura. Pedro sentia-se
contente por os cristãos não possuírem nada senão algumas sepulturas subterrâneas.
Ele não podia deixar de pôr em contraste os Césares e o seu Mestre. Jesus não tinha
exércitos, nem armas, à parte uma espada ferrugenta que um dos seus seguidores
tinha apanhado no caminho. A sua única autoridade era o amor; era a única autoridade
que legava aos seus discípulos. Todas as formas de coacção e títulos mundanos lhe
eram estranhos. Fugiu a esconder-se nos montes quando a multidão queria fazê-lo rei.
A lei régia era a de Deus e realizava-se pela misericórdia, pela pobreza, pela entrega a
Deus e ao próximo. Mesmo depois da morte, Jesus continuou a sofrer nos seus irmãos.
Ele ajudá-los-ia a carregarem a sua cruz; nunca aprovaria qualquer crueldade que
fizessem. O império de Jesus era o do amor e da paz.
Os cristãos eram considerados pelos Romanos como uma seita judaica. Também
eles eram considerados hostis à sociedade. Eram mesmo acusados de terem o seu
próprio rei. Pedro sabia que Cristo não era nenhum rival de César, nem os cristãos
traidores por o venerarem. A fé era uma coisa distinta da cidadania; fazia deles
melhores cidadãos.
39
O Imperador Nero não concordava. Gostava de perseguir estes rebeldes. Obrigou os
cristãos a fazerem o papel de Actéon. Vestidos com peles de animais, eles eram
despedaçados pelos cães.
No dia 19 de Julho do ano 64, Roma ardeu. As circunstâncias eram suspeitas. Nero
estava a gozar os ares do mar em Anzio; os triumviri nocturnii, soldados vigilantes dos
fogos, estavam de folga. O fogo durou uma semana destruindo dez das catorze regiões
da cidade. Quando Nero regressou, Popeia, a imperatriz, e o actor Alituro sussurraram-
lhe: «Os cristãos». Claro, eram eles os responsáveis.
No circo, construído nos belos prados Quintilianos, os cristãos foram devidamente
punidos. O circo, com o obelisco de Heliópolis no topo, brilhou noite após noite de velas
acesas. Os cristãos, homens, mulheres e crianças, presos em cruzes, arderam bem. De
facto, morreram magnificamente, os primeiros de muitos.
Pouco depois do fogo, Pedro foi preso. Era com a sua própria morte que ele agora
contava, sem medo. O seu desejo era ir para junto de Deus, tal como Jesus.
E o seu desejo cumpriu-se. Um dia levaram-no para o ar livre, que quase o sufocou,
e para o sol, que cegava. Entregaram-lhe uma cruz e disseram-lhe que começasse a
andar. A notícia espalhou-se e logo Lino apareceu em cena. O Grande Pescador ia para
junto de Jesus. Discretamente, à distância, eles viram como ele estava magro e fraco
depois daquela longa prisão. Mas estava feliz, também repararam nisso.
Quando chegaram ao lado norte do circo, Pedro pediu para ser crucificado de cabeça
para baixo por respeito ao seu Mestre. Os soldados não levantaram objecções. O último
desejo de um criminoso devia, se possível, ser respeitado. A morte veio depressa; o
sangue afluiu-lhe à cabeça. Passou da inconsciência à glória.
Nessa noite, os seus seguidores reclamaram o corpo e enterraram-no junto do muro
onde as vítimas do circo eram geralmente sepultadas. O terreno era junto do primeiro
marco miliário na Via Cornélia. Trinta anos depois, Anacleto viria a construir sobre ele
uma capelinha onde podiam rezar três ou quatro ao mesmo tempo.
O escritor Tertuliano disse: «Orientem fidem primus Nero cruentavit […]» («Nero foi o
primeiro a manchar de sangue a fé nascente. Pedro, como Cristo previu, foi atado por
outro, quando foi preso à cruz; foi então que Paulo conseguiu, no seu sentido mais
elevado, a liberdade de Roma. […] Que feliz é esta igreja cujos ensinamentos os
Apóstolos regaram com o seu sangue»).
Não passará muito tempo e os sucessores de Pedro deixarão de ser os servos para
passarem a ser os donos do mundo. Vestir-se-ão de púrpura, como Nero, e chamar-se-
ão de Pontifex Maximus. Irão referir-se ao Pescador como “o primeiro papa” e não
apelarão para a autoridade do amor, mas para o poder nele investido para agirem como
Nero. Em oposição a Jesus, os cristãos vão fazer aos outros o que lhes fizeram a eles,
e pior ainda. A religião que se orgulhava de ter triunfado sobre as perseguições pelo
sofrimento, irá tornar-se a fé mais perseguidora que o mundo alguma vez conheceu.
Irão perseguir até a raça de que Pedro — e também Jesus — eram oriundos. Irão
ordenar, em nome de Cristo, que todos aqueles que discordem sejam torturados e
algumas vezes crucificados sobre a fogueira. Farão uma aliança entre o trono e o altar;
insistirão em que o trono é o guardião do altar e o garante da fé. A sua ideia será a de o
trono (o Estado) impor a religião cristã a todos os seus súbditos. Não os perturbará o
facto de que Pedro lutou contra tal aliança e morreu por causa dela.
Durante três séculos, após a morte do apóstolo no Monte do Vaticano, a Igreja,
apesar da perseguição, cresceu em força até chegar o dia em que se deixou tentar em
partilhar a sorte de César.
40
A grande tentação
Era o amanhecer, os dedos rosados do sol começavam a abraçar as colinas. Antes
de o sol estar visível, houve um silêncio longo e profundo apenas quebrado pela música
palpitante da cotovia e o ladrar de um cão algures no deserto da Campânia.
Precisamente quando o sol se erguia acima do horizonte, ouviu-se um novo som: os
passos de um exército em marcha. Levantou-se uma nuvem de poeira na grande
Estrada do Norte. No meio da poeira e da neblina tomaram forma filas sobre filas de
homens armados. No escudo e no estandarte o exército tinha um símbolo na diagonal
que representava Christos, Cristo.
O comandante-em-chefe apareceu à vista a cavalgar. Montado em magnífico corcel,
Constantino tinha acabado de tomar sozinho o poder do Império. Ele não pensava ter
muitas possibilidades. O seu rival, Maxêncio, tinha os trunfos todos. As suas tropas
eram mais numerosas e estavam mais frescas. Bastava manter-se dentro das muralhas
de Roma paraficar inexpugnável. Mas mesmo assim, Constantino continuou a sua
marcha; não tinha outra saída. Tinha de combater até ao fim.
No dia anterior, tivera uma estranha experiência. Ninguém podia ser mais devoto do
Deus-Sol do que ele; também venerava frequentemente Apolo. Então, estava ele de
joelhos, virado para o sol, venerando aquela divindade incandescente quando — seria
uma visão? Uma ilusão devida a tonturas? Um sonho? — viu uns raios negros a saltar
do sol na diagonal e ouviu na sua cabeça um nome: Christos. A mãe, Helena, era cristã;
andava sempre com Christos na boca, mas Constantino nem nunca tinha pensado nele.
Nunca, até então. Uma voz vinda de outro mundo parecia estar a dizer: «Por este sinal
vencerás». Estava a agarrar-se a ilusões, sem dúvida, mas deu ordens aos seus oficiais
para que substituíssem a Águia Imperial pelo símbolo de Cristo. Diziam que aquele
Cristo, pensou ele, tinha ressuscitado dos mortos. Quando se defrontasse com
Maxêncio, ele próprio precisaria provavelmente de um truque desses.
Durante a marcha, os seus batedores informaram-no de que Maxêncio tinha saído da
cidade e se dirigia para Saxa Rubra, nove milhas a norte de Roma. Sabia agora que
afinal tinha uma possibilidade. Naquele ponto a estrada tornava-se um desfiladeiro entre
duas colinas. Traçou planos para cortar a retirada a Maxêncio pela retaguarda. Nessa
noite rezou com fervor dirigindo-se ao sol e pronunciando o nome da sua nova
divindade.
Na manhã seguinte, 27 de Outubro de 312, esperou pelo nascer do sol para ter a
certeza de que Jesus estava com ele, e ordenou um ataque. Cercado, o inimigo ficou
descontrolado na Ponte Milviana. Maxêncio tentou escapar mergulhando no Tibre, mas
a armadura arrastou-o para o fundo e, tal como muitos dos seus soldados, morreu
afogado. Constantino entrou triunfalmente em Roma, como o novo imperador, com mais
uma divindade a protegê-lo.
Pouco tempo depois já ele tratava com o novo papa, Silvestre, que sucedeu ao mais
cauteloso Miltíades como Bispo de Roma. Silvestre, tal como muitos prelados depois
dele, não via nada de estranho num guerreiro convertido à fé num Cristo crucificado por
via da chacina dos seus inimigos.
Assim começou a aliança entre César e Papa, entre o Trono e o Altar. Com o tempo
isto viria a tornar-se parte da ortodoxia católica.
O Imperador Constantino nunca renunciou ao título de Pontifex Maximus, chefe do
culto pagão oficial. Quando, no ano 315, a sua vitória se consolidou, atribuiu-a à
«inspiração da divindade» não especificada. Nas suas moedas continuava a aparecer a
41
imagem do Deus-Sol. Não aboliu as Vestais nem o Altar da Vitória no Senado. Jamais
fez do Cristianismo a religião oficial.
Nascido em 274 de uma ligação de Constâncio com uma mera concubina, Helena,
ele nunca teria sido elegível para honras imperiais. Conseguiu a consagração pela
espada. Casado por duas vezes, assassinou Crispo, seu filho da primeira mulher, em
326. Mandou matar a segunda mulher por afogamento no banho; matou o sobrinho de
onze anos e a seguir o cunhado depois de ter jurado garantir-lhe segurança. Não
perseguiu os cristãos, apenas familiares e amigos.
Longe de ser o modelo de príncipe cristão, nunca deixou de ser um político
intransigente e, segundo Jacob Burckhardt, com «uma terrível e fria ambição de poder».
Patrocinou o Cristianismo porque se mostrara útil ao dar-lhe a vitória numa batalha
decisiva. A Igreja curvou-se-lhe, sem grande susceptibilidade em relação aos seus
enredos matrimoniais, porque ele era útil à sua causa.
Pouco depois disto, Constantino fez com Licínio, o seu rival do Oriente, um acordo,
conhecido como o Édito de Milão.
Já há muito tempo que consideramos que não se deve negar a
ninguém a liberdade de culto. Pelo contrário, o pensamento e o
desejo de cada um deve ser garantido, permitindo-lhe tratar das
coisas do espírito de acordo com as suas opções. Esta a razão por
que demos ordens no sentido de que a cada um seja permitido ter
as suas próprias crenças e fazer as suas devoções conforme queira.
Isto era uma expressão exemplar dos direitos religiosos de todas as pessoas sem
distinção. A tolerância que isto revelava permitiu aos cristãos saírem das catacumbas
para a plenitude dos direitos de cidadania. O que é trágico é que este princípio nunca foi
aceite pela Igreja Católica. A verdade, insistia ela, nunca pode ser objecto de
compromisso. Daí que, sempre que teve o controle, ela negou aos outros a liberdade de
religião. Quando a Paz de Westfália em 1648 estabeleceu que «Os cidadãos cuja
religião seja diferente da do seu soberano devem ter direitos iguais aos outros cidadãos»
isto foi condenado por Inocêncio X. Outras declarações de liberdade religiosa
semelhantes foram anatemizadas século após século pela Igreja Católica como não
cristãs, perniciosas, insensatas, e em nada diferentes do ateísmo.
É irónico que nenhum documento da história da Igreja, nem mesmo do Concílio
Vaticano II, seja tão tolerante, generoso e sensato como o Édito de Milão, elaborado por
dois guerreiros sanguinários.
No ano de 380 aconteceu ao Cristianismo uma coisa que teria espantado Jesus e
Pedro: tornou-se a religião oficial do Império Romano. Nas palavras de Acton, a Igreja
tornou-se «a muleta dourada do absolutismo». Com o novo prestígio da Igreja vieram
também perigos sempre presentes.
No princípio, o estado entrou nos domínios da Igreja tentando moldar a fé aos seus
requisitos da lei e da ordem. A partir de então, a Igreja, que começou por ser um
movimento de massas e de libertação espiritual, adoptou um padrão conservador que se
manteve até hoje. Muito frequentemente, os prelados alinharam com os ricos contra os
pobres; fizeram escolhas à direita e não à esquerda. Temiam instintivamente mais o
comunismo do que o fascismo.
Com o tempo, a Igreja começou a inverter as posições invadindo os direitos dos
príncipes. Os papas nomeavam e destituíam até os imperadores exigindo que estes
impusessem o Cristianismo aos seus súbditos sob a ameaça da tortura e da morte.
42
O resultado final foi a Cristandade. Em muitos aspectos esta foi a maior força
civilizadora jamais vista no mundo. Os custos para a mensagem do Evangelho foram
terríveis.
Tudo isto foi no futuro. Nos primeiros tempos depois de Constantino, a Igreja, já
respeitável, contentou-se em tirar partido da Pax Romana: uma língua comum, um
sistema jurídico e estradas directas para levar a mensagem de Jesus a todo o Império.
A Igreja já não tinha de temer perseguições. Os Judeus e os “descrentes“ é que
estavam agora ameaçados. Agora, eles é que seriam torturados, queimados e
crucificados em nome de Jesus, o Judeu Crucificado.
Os primeiros pontífices
Segundo o historiador germânico Gregorovius, «Até ao reinado de Leão I, no século
V, a Cadeira de Pedro nunca fora ocupada por um simples bispo de importância
histórica». Houve razões para isto. Nos primeiros tempos, a comunidade cristã estava
empenhada na sobrevivência num meio hostil. Eram detestados pelos Judeus e olhados
com suspeita pelos Romanos por não venerarem as divindades locais. E os cristãos
também não se alistavam no exército, levantando assim dúvidas sobre a sua
fidedignidade como cidadãos. Apesar disto, o Cristianismo cresceu, especialmente entre
os escravos e as classes mais pobres. Estes responderam com ardor ao Sermão da
Montanha e à pregação de Jesus, que foi crucificado como um escravo e ressuscitado
dos mortos como precursor da Ressurreição Final.
Foi quando a Igreja emergiu da sombra, quando as perseguições de Nero e
Diocleciano já se tinham tornado más recordações que as coisas começaram a piorar.
Já havia sinais disso mesmo antes da conversão de Constantino.
Por exemplo, depois da morte de Marcelino, em 304, não houve bispo de Roma
durante quatro anos por causa de uma disputa dentro da comunidade cristã sobre se os
apóstatas que regressassem deviam ou não fazer penitência. Embora os tempos fossemdifíceis para a fé e as heresias estivessem a crescer, a escolha de um novo bispo (papa)
não era de primordial importância.
Quando a Igreja se tornou respeitável, depois do Imperador Constantino, é que as
querelas viciosas rebentaram. A comunidade recebeu terras e muitos privilégios. Para o
diaconato e sacerdócio perfilou-se o tipo errado de candidatos. Mamona entrou em
conflito directo com Deus na Igreja.
Com a morte de um papa revelavam-se muitas azedas rivalidades. Por exemplo,
quando Libério morreu, em 366, duas facções elegeram cada uma o seu sucessor.
Ursino era um papa, Dâmaso, outro. Depois de muita luta nas ruas, os seguidores de
Ursino trancaram-se no interior da Basílica de Santa Maria Maior, conhecida como
Nossa Senhora da Neve, acabada de construir pouco tempo antes. Alguns apoiantes de
Dâmaso subiram ao telhado, fizeram nele um buraco e bombardearam os ocupantes
com telhas e pedras. Entretanto outros atacavam a porta principal. Quando esta cedeu,
seguiu-se uma luta sangrenta que durou três dias. No fim, 137 corpos foram trazidos
para fora, todos eles de seguidores de Ursino.
O representante do imperador mandou Ursino para o exílio, mas o crime de Santa
Maria Maior ficou como um borrão indelével no caderno de Dâmaso. Como
compensação, Dâmaso acentuou a sua autoridade espiritual como “sucessor de
S.Pedro“, um direito, como já foi assinalado, não reconhecido pelos Pais da Igreja. «Só
depois de Dâmaso, em 382,» escreve Henry Chadwick, «é que este texto Petrino [«Tu
43
és Pedro»] se começou a tornar importante como fonte de fundamentação teológica e
evangélica em que se baseava o direito à dignidade de primaz».
Por essa altura, o Bispo de Roma era um grande proprietário de terras e um líder civil.
O paradoxo é que os papas só se tornaram papas quando, a juntar ao seu papel
religioso, começaram a tomar outros cargos completamente seculares. «O resultado
desta associação,» diz Jeffrey Richards no seu livro The Popes and the Papacy in the
Early Middle Ages, «foi um papado cujo poder aumentou para além dos seus sonhos
mais extravagantes».
Dâmaso ilustra bem este facto. Chegou ao poder à custa de muito sangue. Tornou-se
por esse meio um homem muito rico e poderoso. Quando pediu ao prefeito de Roma,
um pagão com muitos títulos sacerdotais, que se convertesse, este respondeu-lhe:«De
boa vontade, se o senhor me fizer Bispo de Roma». O escritor dessa época Aniano
Marcelino sugeriu que devia haver uma concorrência muito viva para um cargo tão
lucrativo. «Porque uma vez obtido esse cargo, um homem goza em paz um destino
assegurado pela generosidade das matronas; pode viajar em carruagem, vestido com
magníficos mantos; pode oferecer banquetes cujo luxo ultrapassa o da mesa do
imperador».
O secretário de Dâmaso, o ascético S.Jerónimo, descreveu o tipo de clérigos que
rodeavam Dâmaso; tinham mais o aspecto de noivos, disse ele. E o papa, que chegara
ao poder com a ajuda da guarda, precisava constantemente da protecção desta contra
os seguidores de Ursino.
Episódios desagradáveis como este não foram assim tão raros. Noutras ocasiões
houve dois ou até três candidatos rivais para o bispado. Às vezes o lugar ficava vago
durante meses e anos, porque os Romanos não se entendiam. Uma vez dois rivais
foram derrubados por um terceiro que dera ao exarca em Ravena, o representante do
imperador, cem libras em ouro pelo seu apoio.
A tradição da eleição do Bispo de Roma pelo povo da cidade remontava aos tempos
apostólicos. Isto levou muitas vezes à confusão. No século XI puseram ordem nas
coisas tornando-se os cardeais, representantes do clero local, os únicos eleitores. Os
leigos nunca mais recuperaram o seu direito a uma palavra na escolha do seu bispo.
Mas nem mesmo os conclaves de cardeais resolveram o problema, tanto assim que na
Idade Média e posteriormente houve muitas vezes mais do que um “papa”. Mas nestes
primeiros tempos a situação foi algumas vezes crónica.
Gregorovius salientou que nos séculos VI e VII a maior parte dos papas reinou
apenas dois ou três anos. Será que eles eram escolhidos quando já estavam perto da
morte, ou a sua morte era apressada por facções rivais? Ele não sabia. De acordo com
Richards, a maioria dos papas foi escolhida segundo o critério da recompensa por
serviços prestados, de modo que quase todos eram de idade e doentes. O Papa Sisino,
por exemplo, foi consagrado em 15 de Janeiro de 708. Estava tão diminuído pela artrite
que nem sequer conseguia levar a comida à boca para se alimentar. Morreu vinte dias
depois. Escreve Richards: «Com esta parada de enfermidades e incapacidades é de
admirar que o papado tenha conseguido alguma coisa».
Assim, mesmo as eleições que envolviam corrupção, suborno e derramamento de
sangue resultavam muito frequentemente na entrega do cargo papal a homens velhos e
doentes. Richards relata o seguinte: «O fogo e os condimentos desses tempos chegam
até nós nos documentos desse período que sobreviveram. […] Esta é que é a carne
vermelha crua da história do papado, e não as doses dissecadas e pré-embaladas
servidas à moda da história papal».
Apesar de toda esta chicana e corrupção, não passou muito tempo sem que aquele
período fosse olhado como cândido, quase como a Idade de Ouro do Papado.
44
Um documento assombroso
Estêvão III tornou-se pontífice no ano 752 depois de o seu antecessor, Estêvão II ter
reinado apenas quatro dias, o reinado mais curto de que há registo. O novo pontífice
tinha sido educado praticamente na corte papal. Sabia que o papa não era um líder
meramente religioso, mas, como vassalo leal do imperador, também governador civil
com extensos territórios sob a sua jurisdição.
A secularização da Igreja iniciada por Constantino estava no bom caminho. Ele tinha
visto o potencial da hierarquia como classe governante. Estavam tão bem organizados
como o seu próprio funcionalismo civil, que foram lentamente substituindo nos tribunais
e na diplomacia. Quando, no ano 330, o imperador levou a sua entourage para
Constantinopla, local da antiga cidade grega de Bizâncio, os bispos de Roma envolviam-
se cada vez mais nos assuntos civis. Dois papas em particular contam-se entre os
maiores homens de sempre. Leão o Grande (440-61) num acto de grande coragem
salvou Roma de Átila o Huno. Gregório o Grande (590-604) foi efectivamente o líder
civil, bem como o Patriarca, do Ocidente. Com este duplo papel lançado sobre eles,
houve um inevitável crescimento da burocracia. Trabalharam heroicamente, mas na
Roma cristã nunca mais se viu a simplicidade cristã.
Quando os Lombardos, uma tribo bárbara do Báltico, se estabeleceram na Itália
depois do ano 568, o papado deixou de ter paz. Os recém-chegados tomaram a maior
parte do norte. Gradualmente convertidos, os Lombardos nunca tiveram a confiança da
Santa Sé. Quando os laços que ligavam os papas e os imperadores, seus vassalos,
abrandaram, os pontífices tiveram de forjar uma nova aliança militar, para conservar
Roma e os territórios vizinhos. Teria sido provavelmente melhor se as tivessem
restituído, mas para os grandes proprietários isso sempre foi impensável.
Após um ano de pontificado, Estêvão III viajou para o norte, no inverno, para se
avistar com Pepino, Rei dos Francos. Nunca um papa tinha procurado auxílio junto de
um soberano ocidental; e este viria a ser o primeiro de muitos pedidos de auxílio militar.
Vestido de negro, o cabelo coberto de cinzas, o papa ajoelhou aos pés do rei
implorando-lhe que usasse os seus exércitos para salvar os interesses de Pedro e Paulo
e da comunidade de Roma. Aí, na Abadia de S.Dinis, sagrou Pepino e seu filho Carlos
Magno como “patrícios dos Romanos“.
É muito provável que neste encontro Estêvão tivesse mostrado ao seu anfitrião real
um documento muito antigo. Cheio de pó e a desfazer-se, tinha sido preservado durante
séculos nos arquivos papais. Datado de 15 de Março de 315, chamava-se “A Doação de
Constantino”. Era uma escrituraou um presente do primeiro imperador ao Papa
Silvestre.
A Doação conta a comevedora estória de como Constantino contraiu a lepra por todo
o corpo. Os sacerdotes pagãos erigiram uma fonte no Capitólio e tentaram persuadi-lo a
enchê-la de sangue de crianças. Enquanto o sangue estivesse quente, Constantino
deveria banhar-se nele para ficar curado. Arrebanharam muitas crianças acompanhadas
das mães em lágrimas. O imperador, comovido com as suas lágrimas, mandou-as para
casa carregadas de presentes. Nessa noite ele teve um sonho. Pedro e Paulo disseram-
lhe que contactasse o Papa Silvestre, então escondido no Monte Soracte. O papa
mostrar-lhe-ia o verdadeiro “lago da piedade”. Uma vez recuperada a saúde, teria de
restaurar as igrejas cristãs em todo o mundo, deixar de rezar aos ídolos e venerar o
verdadeiro Deus. Constantino fez como lhe disseram. «Quando eu estava no fundo da
45
fonte,» disse ele, «vi uma mão vinda do Céu a tocar-me». Voltou do seu baptismo
curado. Silvestre pregou-lhe a Trindade e repetiu as palavras de Jesus para Pedro: «Tu
és Pedro […] e eu vou entregar-te as Chaves do Reino». Convencido de que se tinha
curado pelo poder do Apóstolo, Constantino, em nome do Senado e de todo o povo de
Roma, ofereceu um presente ao Filho do Vigário de Deus e a todos os seus sucessores:
Considerando que o nosso poder imperial é terreno, decretámos que
ele venerará e honrará a sua muito santa Igreja Romana e que a
sagrada Sé do Abençoado Pedro será gloriosamente exaltada
mesmo acima do nosso Império e trono terreno. […] Ele dirigirá as
quatro principais Sés, Antióquia, Alexandria, Constantinopla e
Jerusalém, como todas as igrejas de Deus em todo o mundo…
Finalmente, vede, transferimos para Silvestre, papa universal, a
propriedade do nosso palácio assim como de todas as províncias e
palácios e distritos da cidade de Roma e Itália e das regiões de
ocidente.
Constantino também deu uma explicação até então desconhecida sobre a razão por
que se mudara para o oriente. Desejava que Roma, onde a religião cristã foi fundada
pelo Imperador do Céu (Cristo), não tivesse rival na terra. A Roma pagã abdicara em
favor da Roma cristã.
O Rei Pepino ficou impressionado. O documento provava que o papa era o sucessor
de Pedro e também de Constantino. O imperador tinha mesmo agido como vassalo de
Silvestre, inspirando muitos reis e imperadores a imitarem a sua humildade nas
coroações papais nos séculos seguintes.
Quando Pepino desbaratou os Lombardos, devolveu ao papa todas as terras que
eram suas por direito devido à Doação.
Foi um desenvolvimento surpreendente dos Evangelhos. Jesus só possuía as roupas
que trazia no corpo. Os seus principais discípulos agora não só tinham enormes
territórios a que se tornaram excessivamente apegados, como também precisavam de
alianças militares para os manter.
A Doação continuou a ter influência. Por exemplo, o único papa inglês, Adriano IV,
recorreu a ela quando deu a Irlanda a Henrique II da Inglaterra. Adriano fora
anteriormente Nicholas Breakspear, filho de um padre.
Quando Henrique iniciou a longa e trágica ocupação da Irlanda em 1171, o
episcopado irlandês, reunido em Cashel, reconheceu-o e aos seus sucessores como
legítimos reis da Irlanda. Isto foi depois confirmado pelo novo papa, Alexandre III, não
sem antes ter insistido em que teria de receber uma quantia anual por cada membro do
seu pessoal. Este era o preço do papado por entregar estas muito católicas e célticas
terras ao normando inglês.
O que torna isto mais difícil de suportar é que a Doação foi uma falsificação.
A Doação foi uma invenção, provavelmente maquinada por um padre de Latrão pouco
antes da visita de Estêvão III ao Rei Pepino. Tal era o estado da erudição nesse tempo.
Todos se deixaram enganar por uma coisa que hoje não enganaria um miúdo da escola.
Só quando um assessor papal, Lorenzo Valla, o analisou linha por linha em 1440 é que
ficou provado que era uma fraude.
Valla mostrou que o papa naquela alegada data da Doação não era Silvestre mas
Miltíades. O texto refere “Constantinopla”, enquanto a cidade de Constantino no Oriente
ainda conservava o nome original de Bizâncio. A Doação não estava escrita em latim
clássico mas numa forma abastardada posterior. Também se dão explicações sobre, por
46
exemplo, as insígnias de Constantino, que não teriam sido necessárias no século IV,
mas que o eram no século VIII. De inúmeras e irrefutáveis maneiras, Valla desfez
completamente o documento. Fê-lo com apreensão porque sabia que muitos prelados
romanos iriam vingar-se.
Como eu ataquei não os mortos, mas os vivos, não meramente um
qualquer legislador, mas o mais alto legislador, nomeadamente, o
Sumo Pontífice, contra cuja excomunhão nenhum príncipe pode
proteger. […] O papa não tem o direito de me intimar por defender a
verdade. […] Quando tantos suportam a morte em defesa de uma
pátria terrena, não havia eu de correr perigo por amor da minha
pátria celeste?
Só em 1517 é que o livro de Valla foi publicado. Foi no crítico ano em que Lutero
atacou as indulgências. Uma cópia chegou às mãos de Lutero, que viu pela primeira vez
que muitas das suas crenças sobre o papado se baseavam em falsidades como a da
Doação.
Embora todos os eruditos se tivessem rendido aos argumentos de Valla, Roma não
os aceitou; continuou a afirmar durante séculos a autenticidade da Doação. E foi pena,
na medida em que a verdade sobre ela era muito mais incrível do que a série de
mentiras que ela continha.
A estória da lepra de Constantino e da sua subsequente cura baptismal foi uma
invenção piedosa do século V. A lenda ficou perpetuada no baptistério de S.João de
Latrão em Roma. Uma inscrição relata a maneira como o imperador lá foi baptizado pelo
Papa Silvestre.
Os factos são estes: Constantino foi um militar num tempo em que para a Igreja o
derramamento de sangue era inaceitável. Talvez seja esta a razão por que ele adiou o
baptismo para uma altura em que já estava à beira da morte e não tinha já forças para
pecar ou matar mais alguém. Não muito tempo antes, a sua mãe, Helena, morrera com
mais de oitenta anos. Só então é que o imperador se juntou aos catecúmenos, não na
sede da Igreja, mas na distante Helenópolis, no Oriente. Foi aí baptizado não pelo papa,
nem sequer por um bispo ou padre, mas por um bispo ariano herege chamado Eusébio.
Morreu no último dia do período do Pentecostes no ano de 337. Isto lança algumas
sombras sobre muitos dos mais significativos acontecimentos da história dos primeiros
tempos da Igreja.
Quando chamou aos bispos seus queridos irmãos e se intitulou ele próprio “Bispo dos
Bispos”, nome de que os papas se apropriaram mais tarde, Constantino não era cristão
nem sequer catacúmeno. Contudo, ninguém se lhe podia comparar em estatura e
autoridade. Mesmo o Bispo de Roma — que não havia de se chamar “o papa” ainda
durante muitos séculos — era, em comparação, uma pessoa sem importância. Em
termos civis, era vassalo do imperador; em termos espirituais, era, comparado com
Constantino, um bispo de segunda categoria, com um título honorífico superior à maioria
dos outros bispos porque detinha a Sé Apostólica onde Pedro e Paulo tinham trabalhado
e estavam sepultados. Como Burckhardt acentua na sua obra The Age of Constantine, o
título de bispo ecuménico do imperador «não era uma simples maneira de dizer; na
realidade, a Igreja não tinha qualquer outro centro de poder». Não era o papa, mas sim
ele, tal como, mais tarde, Carlos Magno, que era o chefe da Igreja, a sua fonte de
unidade, perante quem o Bispo de Roma se tinha de prostrar e jurar a sua lealdade.
47
Todos os bispos concordavam em que ele era o «oráculo inspirado, o apóstolo da
sabedoria da Igreja».
Até ao fim da sua vida, Constantino construiu magníficas igrejas na Palestina e
noutros locais e ao mesmo tempo construía templos pagãos igualmente magníficos em
Constantinopla. Isto foi claramente entendidocomo a primeira afirmação da “Questão
Romana”. O imperador foi considerado pessoa sagrada, Pontifex Maximus, outro título
que o papa havia de assumir mais tarde. Daí que o imperador, e só ele, tivesse
autoridade para convocar assembleias religiosas como o Concílio de Arles no ano de
314. Como diz um bispo seu contemporâneo: «A Igreja fazia parte do Estado. A Igreja
nasceu dentro do Império e não o Império dentro da Igreja». Era, portanto, Constantino,
e não o Bispo de Roma, quem marcava a data e o local dos sínodos da Igreja e até a
maneira como os votos eram distribuídos. Sem a sua aprovação não podiam ser
transformados em lei; ele era o único legislador do Império.
Outro paradoxo da história é que foi Constantino, um pagão, quem inventou a ideia de
um concílio de todas as comunidades cristãs. Só desta maneira, dizia-lhe o seu génio, é
que a fé da Igreja seria formulada de maneira incontestável e para sempre. Nenhum
bispo desse tempo teria pedido ao Bispo de Roma para decidir sobre espinhosas
questões de crença.
Depois de derrotar Licínio no Oriente em 321, Constantino convocou o Primeiro
Concílio Geral da Igreja, que se realizou em 325 na Bitínia, num lugar chamado Niceia,
que significa “Vitória”. Foi talvez a mais importante assembleia cristã da história. O
Arianismo, uma heresia que subordinava o Filho ao Pai, tinha-se espalhado por todo o
mundo. A controvérsia não foi simplesmente amarga, foi sangrenta. Ter os cristãos a
guerrearem-se uns aos outros não era do interesse do imperador; eles deviam ser a
força estabilizadora do Império. Ficou desanimado quando descobriu que, depois de os
libertar das perseguições, estavam a despedaçar-se uns aos outros em nome da
Santíssima Trindade.
Em Niceia o Pai Fundador dos Concílios Ecuménicos reuniu 300 bispos, tendo
providenciado transporte gratuito. Todos eles, à excepção de uma dúzia, eram do
Oriente. Silvestre, o Bispo de Roma, não assistiu; enviou dois presbíteros. Silvestre não
teve, sem sombra de dúvida, qualquer papel na convocação do Concílio, nem na sua
direcção. Este foi completamente controlado por um imperador pagão que o realizou no
grande átrio do seu palácio. Segundo o historiador Eusébio, ele era alto e magro, cheio
de graça e majestade. Para fazer sentir a sua presença abriu os trabalhos «rígido no seu
manto de púrpura, ouro e pedras preciosas».
Cedo ficou claro que a maioria dos bispos era a favor da posição ariana. Constantino
não tinha quaisquer preferências teológicas conhecidas, mas ergueu-se do seu trono
dourado para pôr fim à discussão. Provavelmente queria apenas mostrar quem
mandava. Propôs aquilo que veio a chamar-se «o ponto de vista ortodoxo» do facto de o
Filho de Deus ser «de uma única substância» com o Pai. Todos os bispos dissidentes
cederam, à excepção de dois que Constantino imediatamente destituiu mandando-os
fazer as malas. Depois, escreveu para Alexandria, onde os Arianos ainda tinham apoio:
«Aquilo que satisfez trezentos bispos não foi senão a vontade de Deus».
O resultado não foi aquele que ele esperava. A “heresia” ariana continuou por
gerações. E o mesmo se passou com a completa imersão do Estado nos assuntos da
Igreja. A política eclesiástica substituiu as prioridades do Evangelho. A religião não era
importante, o que era sumamente importante era a Igreja. O resultado, é Burckhardt
quem o diz, foi uma «Igreja a desintegrar-se rapidamente na vitória».
O preço da “conversão” de Constantino ao Cristianismo foi a perda da inocência. O
cínico uso que fez de Cristo, com que toda a gente condescendeu, incluindo o Bispo de
48
Roma, significou uma profunda falsificação da mensagem do Evangelho e a introdução
de valores a ela estranhos. A partir de então, o Catolicismo floresceu em detrimento do
Cristianismo e de Jesus, que não pretendia qualquer papel no mundo do poder e da
política e que preferiu ser crucificado a impor as suas opiniões a quem quer que fosse.
* * *
Na altura em que Estêvão III se tornou papa, a Igreja já se tinha completamente
convertido no Império Romano. A partir da Doação, é muito claro que o Bispo de Roma
se parecia com Constantino: vivia como ele, vestia-se como ele, habitava os seus
palácios, governava as suas terras, tinha exactamente o mesmo aspecto imperial.
Também o papa queria ser senhor da Igreja e do Estado.
Apenas setecentos anos após a morte de Pedro, os papas tinham-se tornado
obcecados pelo poder e pelos bens. O pontífice passeava-se pomposamente pela terra,
figura da mundanidade e da espiritualidade. Queria, literalmente, o melhor dos dois
mundos, mas alguns imperadores controlaram a sua ambição.
O Sacro Império Romano
Carlos Magno tinha cinquenta e oito anos, estatura enorme para aquele tempo,
cabeça redonda e cabelo branco, nariz comprido e olhos grandes e vivos. Inteligente e
capaz de conversar em latim, fundador de universidades, nunca conseguiu dominar a
leitura, nem nunca foi capaz, apesar de ter os melhores tutores, de escrever o nome.
Nos cinquenta e três anos que se seguiram a Estêvão III, crescera a necessidade de
auxílio militar por parte do papado. Os laços que ligavam Roma e Constantinopla, devido
à distância e à diferença de pontos de vista, estavam já quase completamente
quebrados. Carlos Magno, rei dos Francos, era homem para aproveitar a brecha para
entrar.
No ano 782 tinha feito prisioneiros quatro mil e quinhentos saxões, mandando-os
decapitar nas margens do Rio Aller. Era perfeitamente capaz de tratar dos Lombardos,
que continuavam a ameaçar o papado.
O novo defensor da Igreja não era mais virtuoso do que Constantino. Tinha-se
divorciado da primeira mulher e teve seis filhos da segunda. Depois de dispensar os
serviços desta, teve duas filhas da terceira e ainda mais uma filha de uma amante. Sem
filhos da quarta mulher, quando ela morreu mantinha quatro amantes — doze foi a sua
conta ao longo da vida — e teve pelo menos um filho de cada. Einhard, o seu biógrafo
franco que forneceu estes pormenores, insiste que ele sempre foi um pai dedicado.
Alcuin, um inglês, o monge mais erudito da época, já há muito que tinha pressionado
Carlos Magno a aceitar a coroa do Ocidente. Havia apenas três grandes homens no
mundo, disse ele ao seu mestre, sendo dois deles o papa e o imperador de
Constantinopla. «O terceiro é a dignidade real que por disposição de Nosso Senhor
Jesus Cristo vos é conferida como governador do povo cristão; e esta é mais excelente
do que as outras dignidades do poder, mais forte em sabedoria, mais sublime em
categoria».
O papa reinante, Leão III, estava ansioso pela vinda de Carlos Magno para Roma.
Precisava de protecção contra os intrusos; também queria ter o seu nome limpo ao mais
alto nível de insistentes acusações de adultério. Pouco antes de Carlos Magno chegar,
Leão foi atacado por uma turba hostil. Rasgaram-lhe os olhos e cortaram-lhe a língua. O
resultado foi que a coroação de 800 não teve nada do esplendor e do aparato da de
49
Napoleão quando em 1804 este se coroou como “Imperador dos Franceses“ em Notre
Dame de Paris.
Carlos Magno estava ajoelhado em frente do túmulo de Pedro quando Leão, a tactear
á procura da cabeça onde devia colocar a coroa balbuciou que Carlos Magno era
Imperador e Augusto e ajoelhou a venerá-lo. Segundo Einhard, o seu mestre ficou
vermelho de raiva. Mais tarde Einhard ouviu Carlos Magno dizer «que não teria ido à
igreja naquele dia mesmo que se tratasse de uma festa solene [o Natal] se tivesse
adivinhado os planos do pontífice». Ele queria as honras, claro, mas não à custa de ter
de as receber de um vassalo. Tendo tido a maçada de vir a Roma para desculpar um
miserável súbdito, não queria aparecer como objecto da sua bênção.
Carlos Magno intuiu aquilo que os historiadores haviam de ver muito claramente. Com
um golpe de mestre, Leão III estava a afirmar um poder que, nos seus sucessores, iria
triunfar sobre os grandes soberanos temporais da terra.
Carlos Magno não tardoua agir como governador supremo da Igreja, legislando,
escolhendo de entre os nobres os bispos, arcebispos e abades. Tentou fazer com que
os monges deixassem de fornicar e, pior, de praticar a sodomia. Também punia com a
morte qualquer saxão que, fingindo ser cristão, se escusasse a ser baptizado. Carlos
Magno cumpriu de todas as maneiras os desejos de Aluin. Agiu como chefe da
Comunidade Cristã. Havia uma lógica nisto, na medida em que o antecessor de Leão,
Adriano I, já lhe tinha dado, como recompensa por ele ter aumentado os Estados do
Papado, o considerável privilégio de escolher o pontífice Romano.
Acontece que o futuro da Europa foi escrito naquele momento de surpreendente
ambiguidade em que um papa, criado por Carlos Magno, o coroou como imperador.
Qual deles era o maior? De momento, não havia dúvidas acerca disso: Carlos Magno.
Mas nos anos que se seguiriam, por este coup de théâtre, Leão tinha assegurado ao
papado uma suada oportunidade de supremacia.
Foi assim que a Basílica de S.Pedro viu o começo do Sacro Império Romano que,
como até uma criança sabe, não foi nem sacro, nem romano, nem império. Havia de vir
a durar mil anos, até que, em 1806, Napoleão destronou um monarca de Habsburgo e o
dissolveu. Tinham passado então mil e quinhentos anos durante os quais o papado, não
contente em confiar apenas no poder de Deus, se tinha apoiado nos príncipes para se
proteger contra os portões do inferno.
Mas os ataques mais ferozes contra a Igreja não vieram de fora; vieram de dentro —
vieram de facto do próprio papado.
50
51
3
A Pornocracia Papal
A vinte e cinco quilómetros de Roma, no cimo dos Montes Albanos, moravam no
século X os famosos Conti, os Condes Alberico de Túscolo. Estes senhores da guerra
tomaram completo controle das eleições papais. Desta única família saíram sete papas,
três seguidos, e todos eles, quase sem excepção, ajudaram a dar forma à Roma
Deplorabilis (“Roma da Vergonha”).
A História desmente o mito popular de que Bórgia foi a maçã podre do papado. Não
muito tempo depois de Carlos Magno, e durante bem mais de século e meio, toda a
fornada foi podre. Eram discípulos mais de Belial, o Príncipe das Trevas, do que de
Cristo. Muitos eram libertinos, assassinos, adúlteros, amantes da guerra, tiranos,
simoníacos, prontos a vender tudo o que era sagrado. Quase todos eles estavam mais
envolvidos com o dinheiro e a intriga do que com a religião.
Com incessantes manobras políticas e uma obsessão pelas questões temporais, por
meio do abuso do poder e com uma espantosa perversidade, os papas, supostamente o
núcleo da unidade, corromperam toda a Cristandade. Foi o papado, e não a heresia,
que finalmente abriu brechas na Igreja.
Há realmente um mistério em tudo isto: como é que a Igreja do Ocidente, apesar dos
papas, se conseguiu manter unida durante tanto tempo?
Para começar, busquemos a ajuda de um exame a uma qualquer lista dos papas a
partir do ano 880. Nos cento e cinquenta anos seguintes houve trinta e cinco pontífices
que reinaram em média quatro anos cada. Já anteriormente se verificara o mesmo tipo
de transmissões de poder; isto explica-se pelo facto de os papas serem escolhidos por
serem já velhos e doentes. Mas nos séculos VIII e IX muitos papas andavam na casa
dos vinte anos, e vários eram adolescentes. Alguns reinaram vinte dias, um mês, ou três
meses. Seis deles foram destronados, e alguns outros assassinados. É de facto
impossível saber ao certo quantos papas e antipapas (falsos) houve neste período,
porque nessa altura não havia ainda um método de eleição fixo nem um número certo
de pretendentes.
Quando um papa desaparecia subitamente, não se sabia se lhe teriam cortado o
pescoço e atirado ao Tibre; se teria sido estrangulado na prisão; se teria passado a
noite num bordel; se lhe teriam cortado as orelhas e o nariz, como em 930 fizeram a
Estêvão VIII, que, compreensivelmente, nunca mais mostrou a cara em público; se teria
fugido, como Benedito V em 964, que, depois de desonrar uma jovem, partiu
imediatamente para Constantinopla com todo o tesouro da Basílica de S.Pedro, para
apenas voltar quando os fundos se esgotaram e provocar ainda mais estragos em
Roma. Gerbert, o piedoso historiador da Igreja, chamou a Benedito «o mais iníquo de
todos os monstros da impiedade», mas o seu juízo foi prematuro. Este pontífice foi por
fim assassinado por um marido ciumento. O seu corpo, com centenas de punhaladas,
foi arrastado pelas ruas antes de ser lançado para um esgoto.
Estes pontífices constituem, sem dúvida, o mais desprezível grupo de líderes,
religiosos ou leigos, da História. Eles eram, com toda a evidência, selvagens. A antiga
Roma não se lhes comparava em podridão.
52
Estêvão VII era completamente louco. Desenterrou um seu antecessor corso, o Papa
Formoso (891-6), mais de nove meses após a sua morte. Naquilo que veio a ser
conhecido como o Sínodo Cadavérico, vestiu o fétido cadáver com todas as vestes
pontifícias, colocou-o no trono em Latrão e fez-lhe pessoalmente um interrogatório.
Formoso era acusado de se ter tornado papa por meios ilegais; era bispo em outro lugar
e portanto inelegível para Roma. Segundo o Papa Estêvão, isto tornava todos os seus
actos inválidos, especialmente as suas ordenações. Um diácono fala-barato, ainda
adolescente, respondeu em nome de Formoso. Depois de considerado culpado, o
cadáver foi condenado como antipapa, despido de todas as roupas excepto uma camisa
de cilício colada à carne engelhada e, sem os dois dedos com que tinha dado as suas
falsas bênçãos, foi lançado ao Tibre. Alguns admiradores de Formoso recuperaram o
corpo, qual carcassa de carne, ainda inteiro graças à camisa de cilício, e fizeram-lhe um
funeral discreto. Mais tarde foi trazido de novo para o seu túmulo na Basílica de
S.Pedro. O próprio Estêvão foi estrangulado passado pouco tempo.
Os papas mutilaram e foram mutilados, mataram e foram mortos. As suas vidas não
se assemelhavam em nada aos Evangelhos. Tinham mais em comum com os
modernos meninos ricos transformados em hooligans e rufiões que infestam os cafés de
praia e clubes nocturnos do que com os pontífices tal como o mundo os vê hoje. Uns
ficaram a dever a sua nomeação a pais ambiciosos, outros à espada, outros ainda à
influência de belas amantes bem nascidas, naquilo que ficou conhecido como “O
Reinado das Prostitutas“.
Entre as cortesãs, salientou-se Marózia da família Teofilato. Segundo o Bispo
Liutprand de Cremona, seu contemporâneo, ela fora bem treinada pela mãe, Teodora,
que teve uma segunda filha, também chamada Teodora, do Papa João X (914-29).
Aqueles que dizem que as mulheres nunca tiveram qualquer influência na maneira
como a Igreja é governada nunca conheceram estas duas mulheres incrivelmente
determinadas. Em menos de uma década, elas criaram — e, quando isso lhes conveio,
destruíram — nada menos do que oito papas. No seu Decline and Fall, Gibbon sugere
que foram estes “papas-fêmeas“ que condensaram a política do sexo que deu origem à
lenda, ou sátira, da Papisa Joana. Durante vários séculos, até à Reforma, acreditou-se
na existência deste pontífice feminino. Para os ingleses é uma consolação saberem que
a única papisa foi uma bela rapariga anglo-saxónica. Reza a estória que, vestida a rigor
com as vestes papais, ela deu à luz um filho quando viajava do Coliseu para a Igreja de
S.Clemente e, coitada, morreu ali mesmo. Esta lenda gerou outras lendas. Em S.João
de Latrão havia uma cadeira de mármore cor de sangue com um buraco no assento.
Todos os papas recém-eleitos se sentavam nela para receberem a afirmação de
obediência dos seus clérigos. Mas corria o boato de que depois da papisa Joana todos
os papas eram obrigados a sentar-se nesta cadeira e a submeter-se a uma espécie de
exame ginecológico para evitar que uma segunda mulher ascendesse ao trono papal. O
exame — feito por cardeais-mulheres? — era acompanhado por orações em latim. De
facto, há um completoritual escrito que aparece em muitos manuscritos medievais com
toda a seriedade. Uma outra interpretação mais prosaica desta cadeira era que ela era
na verdade uma cadeira-sanita, símbolo visível do facto de o papa ter sido promovido
da esterqueira, como um pedinte, e colocado por Deus entre os príncipes.
Parece não haver qualquer obstáculo teológico ao desempenho do cargo de papa por
uma mulher, mesmo, como diz João Paulo, estando as mulheres proibidas pela lei
divina de serem padres. Muitos arcebispos e bispos não tinham ordens. Por exemplo,
Adriano V aparece nas listas de pontífices, embora tenha reinado apenas seis semanas,
de 11 de Julho a 18 de Agosto de 1276. Não era bispo, nem sequer padre, mas foi um
papa legítimo.
53
A Bela Prostituta
Marózia, a principal fonte da lenda da Papisa Joana, esteve primeiro intimamente
envolvida com o papado na pessoa de Sérgio III (904-11). A barrar o caminho deste
para o trono, estivera Leão V, que após um mês de reinado foi preso por um usurpador,
o Cardeal Cristóvão. Sérgio procedeu a uma limpeza assassinando ambos.
Sérgio exumou uma vez mais o Papa Formoso, já morto então há dez anos e fê-lo
condenar outra vez. Como tinha sido ordenado por Formoso, Sérgio devia realmente
ter-se considerado ilegítimo a si próprio, mas as argumentações teológicas eram
estranhas à sua natureza. E ainda não satisfeito, mandou que decapitassem o cadáver
e também lhe arrancou mais três dedos antes de o lançar ao Tibre. Quando o corpo
sem cabeça ficou preso na rede de um pescador, o cadáver foi mais uma vez
milagrosamente salvo, sendo pela segunda vez restituído à Basílica de S.Pedro.
Marózia tinha quinze anos quando se tornou amante de Sérgio, que tinha quarenta e
cinco. Dele, ela teve um filho a cuja carreira se devotou. Sérgio viria a morrer cinco anos
mais tarde, depois de um pontificado de sete anos carregado de sangue, intrigas e
paixão.
Marózia nunca iria esquecer o seu amor da juventude. A relação íntima com o papa
tinha-lhe dado um desígnio e uma satisfação que nem os seus três casamentos e
inúmeras ligações amorosas posteriores conseguiram apagar. A primeira vez que o
Papa Sérgio a seduziu foi no palácio de Latrão. Os seus caminhos tinham-se cruzado
porque ela passara ali grande parte da juventude, dado que o pai era senador em
Roma. Mas depois chegou a altura em que Sérgio se apercebeu de que aquela que
outrora fora uma criança espantosa se tinha tornado uma mulher de uma beleza de
cortar a respiração. Pela parte de Marózia, não era tanto o prazer que procurava nos
braços papais, mas antes o êxtase do poder. A mãe, Teodora, já tinha feito e desfeito
dois papas quando, em contravenção da lei canónica, pegou na mão do seu amante
favorito e o levou do bispado de Bolonha ao arcebispado de Ravena e por fim à Cadeira
de Pedro, como João X. Liutprand, Bispo de Cremona, escreveu: «Teodora, prostituta
como era, temendo ter poucas oportunidades de partilhar a cama com o seu amado,
obrigou-o a abandonar o bispado e tomar para si — oh, crime monstruoso - o papado de
Roma». Isto aconteceu em Março de 914 quando Marózia tinha vinte e dois anos. Não
se importou muito com isso; o filho dela e de Sérgio tinha apenas seis anos, muito novo
ainda para o papado, mesmo nesses tempos ímpios.
Foi neste ponto que os Albericos da Toscânia, oriundos do norte, entraram em cena.
O Papa João sugeriu a Teodora, sua companheira de cama, que um casamento entre
Marózia e Alberico poderia vir a ser benéfico para todas as partes. Marózia sabia
reconhecer uma estrela em ascensão, e dessa união nasceu Alberico Júnior. Alberico
Sénior, provavelmente induzido pela mulher, tentou prematuramente tomar o controle
de Roma e foi morto. O Papa João obrigou a jovem viúva a ver o cadáver mutilado. Isto
foi um erro. Uma mulher que dormira com o Papa Sérgio sabia tudo sobre a vingança.
Quando Teodora morreu, em 928, Marózia mandou prender o pontífice e depois deu
ordens para que fosse morto por asfixia. O seu primeiro filho tinha agora dezassete
anos. Em breve, muito em breve, teria já a experiência suficiente para o papado. Uma
vida totalmente sensual e imoral tinha-o preparado para isso. Os dois papas seguintes
tiveram reinados curtos, tendo ambos desaparecido em circunstâncias misteriosas.
Então, com vinte anos, o filho de Marózia e do Papa Sérgio tornou-se o Papa João XI.
Mas Marózia tinha ainda outras ambições. Morto o seu segundo marido, Gui, casou
com o meio irmão deste, o Rei Hugo da Provença. Hugo já era casado, mas foi fácil
54
despachar a mulher. Para Marózia foi uma sorte o filho ser o papa, pois este conseguiu
dispensar o feliz casal de todos os impedimentos, tais como o incesto. O que é que
podia impedir o seu novo marido de se tornar imperador e ela própria imperatriz? Isto
era uma coisa que Sérgio teria desejado. João XI oficiou o casamento de sua mãe em
Roma na primavera de 932.
Depois tudo se desfez por causa do segundo filho de Marózia, o ciumento Alberico
Júnior, de dezoito anos, que tomou o poder em Roma para se tornar o novo fazedor de
papas. Hugo da Provença abandonou a mulher e fugiu em desgraça. Alberico pôs João
XI, seu meio irmão e filho de uma papa, sob prisão permanente em Latrão — morreu aí
quatro anos mais tarde — e, o mais cruel golpe de todos, mandou prender a própria
mãe.
Passado o seu apogeu, Marózia conservou a sua distinção quando pela primeira vez
pisou o Mausoléu de Hadrian, popularmente conhecido como o Castel Sant’Ângelo. Iria
ficar naquele terrível lugar junto ao Tibre, durante mais de cinquenta anos, sem um
único dia de redução.
Já tinha passado dos sessenta quando soube, na prisão, que Alberico tinha morrido
aos quarenta e o filho, seu neto, chamado Octaviano, se tinha introduzido na Igreja
como papa. Chamou-se João XII, tendo sido o primeiro pontífice a mudar de nome. Isto
passou-se no inverno de 955. Ela virou as costas ao assunto e mergulhou no seu sonho
de passadas glórias com o seu amante Sérgio.
A juventude do novo papa pode explicar em parte o seu comportamento muito pouco
religioso, uma vez que tinha apenas dezasseis anos quando assumiu o pesado cargo.
Mosteiros inteiros passavam os dias a rezar pela sua morte.
Mesmo para um papa desse período, ele era tão mau que os cidadãos queriam
vingança. Inventou pecados desconhecidos desde o princípio do mundo, diziam eles,
incluindo o de dormir com a mãe. Tinha um harém no palácio de Latrão. Jogava com as
ofertas dos peregrinos. Mantinha uma coudelaria de dois mil cavalos que alimentava
com almôndegas e figos passados por vinho. Recompensava as companheiras das
suas noites de amor com cálices de ouro da Basílica de S.Pedro. Não fez nada pelo
negócio turístico mais lucrativo da época, nomeadamente, as peregrinações. As
mulheres em particular eram avisadas de que não deviam entrar em S.João de Latrão
se prezavam a sua honra; o papa andava sempre em busca de uma presa. Chegou até
a brindar ao Diabo em frente do altar-mor da igreja-mãe da Cristandade.
O Papa João provocou tal ira que, temendo pela sua vida, saqueou a Basílica e fugiu
para o Tivoli.
Quando soube disto, Otão da Saxónia, de cinquenta anos — coroado imperador em
S.Pedro em 961 — ordenou ao jovem que regressasse imediatamente. Não convinha
aos seus planos ter um pontífice ausente; era mau para os negócios do império.
Foi convocado um sínodo para pôr as coisas em ordem. Estiveram presentes
dezasseis cardeais, todos os numerosos bispos italianos e muitos outros que foram
recrutados na Alemanha. O Bispo de Cremona deixou um registo preciso das
acusações feitas ao papa. Tinha dito missa sem comungar. Tinha ordenado um diácono
num estábulo. Tinha levado dinheiro pelas ordenações. Tinha tido relações sexuais com
uma quantidade de damas, incluindo a velha paixão de seu pai e a sua própria sobrinha.
Tinha cegado o seu próprio director espiritual. Tinha castrado um cardeal, causando-lhe
a morte. Todas estas acusações foramconfirmadas sob juramento.
Depois Otão escreveu a João uma carta que deve figurar entre as grandes
curiosidades de todos os tempos.
55
Toda a gente, clérigos e leigos, acusa Vossa Santidade de
homicídio, perjúrio, sacrilégio, incesto com parentes, incluindo duas
de vossas irmãs, e de terdes, como um pagão, invocado Júpiter,
Vénus e outros demónios.
João respondeu ditando uma carta dirigida aos bispos e destituída de gosto e de
gramática. Avisava-os de que se o depusessem os excomungaria a todos, impedindo-os
assim de ordenar e celebrar missa. Depois montou num cavalo e foi caçar.
Quando Otão por fim se cansou de esperar e voltou à Saxónia, a família de João
reuniu um exército para lhe assegurar um regresso seguro a casa. Em Roma, retomou
as suas funções Petrinas. Não satisfeito com uma coisa tão suave como a excomunhão,
mutilou ou executou todos aqueles que tinham contribuído para o seu exílio.
Papa nenhum foi para Deus numa situação tão embaraçosa. Uma noite, um marido
ciumento, um dos muitos, apanhou Sua Santidade com a mulher in flagrante delicto e
deu-lhe os últimos sacramentos com uma martelada na cabeça. Tinha ele vinte e quatro
anos. Os Romanos, conhecidos pelo seu espírito selvagem, disseram que aquilo foi o
clímax da sua carreira. Pelo menos teve a sorte de morrer na cama, mesmo sendo a de
outrem.
O Cardeal Belarmino no seu livro sobre o papado De Romano Pontifice, no século
XVII, havia de dizer: «O papa é o juiz supremo para decidir as questões da fé e da
moral». Este grande defensor do papado escreveu no mesmo livro: «Se o papa errasse
impondo os pecados e proibindo as virtudes, a Igreja teria mesmo assim de considerar
os pecados bons e as virtudes como vícios, senão pecaria contra a consciência». Não
admira que os papas adolescentes fizessem tanta coisa impunemente. Contudo, mesmo
Belarmino, que sabia tudo acerca dos Bórgias, teve de admitir que João XII «era a
escória». Fuerit fieri omnium deterrimus.
Com um monstro fora do caminho, os Romanos escolheram Benedito V para o
substituir. Otão, sentindo-se enganado, ficou furioso. «Ninguém pode ser papa sem o
consentimento do imperador» declarou ele. «Sempre assim foi». A sua escolha recaiu
em Leão VIII.
O Cardeal Barónio, no seu Ecclesistical Annals do século XVI, a que Acton chamou
«a maior história da Igreja jamais escrita», sustentou que Benedito era o verdadeiro
papa e Leão o antipapa. É difícil discutir isto. Contudo, Benedito prostrou-se aos pés de
Otão e declarou-se um impostor. Para o provar, tirou as suas insígnias e confessou, de
joelhos, perante Leão que ele, Leão, era o sucessor legítimo de S.Pedro.
Não é muito claro se a afirmação genuína de um papa de que ele próprio não é
legítimo é um exercício de infalibilidade, embora deva transmitir uma mensagem para
toda a Igreja sobre a fé e a moral.
Quando Leão e Benedito morreram, Otão colocou no trono João XIII. Não foi uma
escolha sensata. Os romanos mandaram-no imediatamente fazer as malas. Otão trouxe-
o de volta para apenas chegar à conclusão de que o instinto local estava correcto. O
novo papa cometeu actos de uma crueldade incrível. Segundo Liutprand, nas suas
crónicas, ele arrancava os olhos aos inimigos e passou metade da população à espada.
Pouco depois de João XIII, veio Benedito VII, outro que viria a morrer em pleno acto
de adultério às mãos de um marido furioso.
O Cardeal Barónio ficou compreensivelmente embaraçado com os acontecimentos
que relatou com notável honestidade. Chamou aos pontífices deste período “invasores
da Santa Sé, mais apóstatas do que apóstolos” (non apostolicos sed apostaticos).
Confessa que treme ao ter de escrever sobre eles. Na Cadeira de S.Pedro sentaram-se
não homens mas monstros com a forma de homens. «Messalinas presunçosas cheias
56
de luxúria e astúcia em todas as formas da maldade governaram Roma e prostituíram a
Cadeira de S.Pedro para seus lacaios e amantes.
À luz dos decretos do Concílio Vaticano I, em 1870, as suas conclusões são
surpreendentes.
A principal lição destes tempos é que a Igreja pode viver muito bem
sem os papas. O que é vital para a sobrevivência não é o papa mas
Jesus Cristo. Ele é que é o chefe da Igreja, não o papa.
Alguns séculos mais tarde, Barónio teria sido estigmatizado como herege. Agora a fé
católica define-se assim: o papa é o chefe da Igreja na terra, o Vigário de Cristo, a Pedra
sobre a qual a Igreja está edificada, o laço da unidade, o que preserva a fé e a moral.
Mas o longo período em revista revela um retrato inteiramente diferente. Não só Barónio
mas também o povo de Roma teriam rido de tamanha patetice. Para eles era evidente
que as Portas do Inferno tinham prevalecido. Se isto não era a vitória do Príncipe das
Trevas, o que é que o era, então? A única questão que os intrigava não era «Como é
que o papa pode salvar a Igreja?», mas «Como é que o papa pode salvar a própria
alma?»
Durante todos estes tempos tempestuosos e outros que se seguiram, Marózia
continuou na sua cela da prisão. Aquela que outrora fora a criatura mais arrebatadora do
seu tempo, estava reduzida a um monte de ossos engelhado e viscoso envolto em
trapos. Agora já nos noventa e cinco anos, a recordação de ter dormido com um papa e
de lhe ter dado um filho que ela por sua vez fez papa também, deve ter-lhe dado forças
para sobreviver. Abandonada, nunca, porém, foi completamente esquecida na alta roda
do poder.
Na primavera de 986, o Papa Gregório V, com vinte e três anos, e seu primo, o
Imperador Otão III, com quinze, decidiram que a pobre velha já tinha definhado na prisão
tempo suficiente. O papa mandou um bispo submisso exorcizá-la dos seus demónios e
levantar-lhe a sentença de excomunhão. Foi absolvida dos seus pecados. Depois foi
executada.
O Papa-Menino
Quase cinquenta anos mais tarde, em 1032, o Papa João XIX da Casa de Túscolo
morreu. O Conde Alberico III pagou uma fortuna para manter o cargo na família. Quem
melhor para preencher a vaga do que o seu próprio filho Teofilato? Raoul Glaber, um
monge de Cluny, conta que, na altura da sua eleição, em Outubro de 1032, Sua
Santidade Benedito IX tinha onze anos de idade. Segundo Monsenhor Louis Duchesne,
Benedito era «apenas um garoto que em pouco tempo se havia de tornar diligentemente
agressivo».
Era um espectáculo singular: um miúdo que ainda nem adolescente era, que nem
tinha ainda mudado de voz, era o principal legislador e governante da Igreja Católica,
chamado a usar a tiara, a celebrar missa solene em S.Pedro, a conceder benefícios
eclesiásticos, a nomear bispos e a excomungar hereges. As proezas de Sua Santidade
com as damas provam que o papa-menino atingiu a puberdade muito cedo. Aos catorze
anos, diz um cronista, já tinha superado em devassidão e extravagância todos os que o
precederam.
57
S.Pedro Damião, um fino juiz do pecado, exclamou: «Esse miserável regalou-se com
imoralidades do princípio ao fim da sua vida». Outro observador escreveu: «Um demónio
do inferno disfarçado de padre ocupou a Cadeira de Pedro».
Teve muitas vezes de sair de Roma à pressa. A primeira vez, nas festividades de
S.Pedro e S.Paulo em 1033, um eclipse do sol que deu ao interior da Basílica um tom
fantasmagórico de açafrão foi o pretexto para o expulsar. Quando regressou, alguns
nobres tentaram derrubá-lo durante a missa. Falharam. Quando Benedito foi de novo
varrido de Roma, o exército do Imperador Conrado empurrou-o de novo para lá. Em
1046, tendo sido uma vez mais expulso por saque, assassínio e opressão, voltou para o
seu Túscolo natal. Na sua ausência, os Romanos escolheram outro pontífice, Silvestre
III, um homem dos Montes Sabinos. Decidiram que era de longe melhor violar a lei
canónica e ofender a divindade do que suportar Benedito IX. Depois de cinquenta dias
felizes, o papa-menino foi reposto pela família, que persuadiu Silvestre a ir-se embora.
Por fim, Benedito quis resignar. Tinha debaixo de olho a sua bela prima,filha de
Girard de Saxo. Girard deu o seu consentimento na condição de que o papa abdicasse.
Num surpreendente ataque de escrúpulos, Benedito decidiu verificar se esse era um dos
seus direitos. Consultou o seu padrinho, João Graciano, Arcipreste de S.João ad Portam
Latinam. Graciano era um homem notável; completamente analfabeto, vivia em
castidade, como um lírio entre espinhos. Graciano assegurou-lhe que tinha o direito de
resignar. E mais, já tinha um sucessor alinhado. E bateu no peito.
Feliz por resignar, Benedito exigiu um prémio de despedida de uma a duas mil libras
(peso). Depois de uma difícil negociação fixou-se na totalidade da Caixa das Esmolas de
Pedro na Inglaterra. Nenhuma colecta feita pelos católicos ingleses foi alguma vez tão
bem empregue.
Por entre manifestações de júbilo, Benedito, depois de se dispensar da obrigação de
celibato, abdicou no Primeiro de Maio de 1045. «Devotado ao prazer,» havia de escrever
o Papa Victor II, «preferiu viver mais como Epicuro do que como bispo… Saiu da cidade
e mudou-se para um dos seus castelos no campo».
João Graciano, agora Gregório VI, foi alvo de severas críticas. Muitos papas houve
que compraram o papado; nenhum, senão ele, jamais o tinha comprado de volta.
Gregório argumentava que tinha feito um favor à Igreja. E Benedito salientava que não
tinha sido pago para sair; tinha simplesmente recuperado a despesa original feita pelo
pai.
Gregório poderia ter conseguido os seus intentos se Benedito, agora o civil Teofilato
de Túscolo não tivesse sido rejeitado pela sua amada dama. Estava determinado a
voltar. Com Silvestre ainda no activo, havia agora três reclamantes ao trono: Silvestre
em S.Pedro, Gregório em Latrão e Benedito à espera do momento propício nos Montes
Albanos.
Entretanto em Roma os cofres estavam vazios; toda a gente, desde os papas ao mais
insignificante porteiro, era simoníaca; todos os clérigos tinham pelo menos uma amante;
e as igrejas estavam a cair.
Neste momento crítico, entra em cena Henrique da Alemanha. Era conhecido por
duas coisas: detestava a simonia e queria ser imperador mais do que qualquer outra
coisa no mundo. A força venceu onde a exortação moral tinha falhado.
Em Sutria, no caminho para Roma, convocou um sínodo. Sob a sua direcção,
Silvestre foi julgado como impostor; foi reduzido à condição de leigo e condenado a
passar o resto dos seus dias num mosteiro muito rigoroso, se havia algum assim.
Benedito tinha resignado e, segundo Henrique, destruíra ele mesmo qualquer
possibilidade de regresso. Quanto a Gregório VI, Henrique agradeceu-lhe o ter livrado a
58
Igreja de uma peste mas não devia ter usado da simonia para o fazer. Isto era motivo
para resignação.
Literalmente confrontado com o poder temporal, Gregório declarou: «Eu, Gregório,
bispo, Servo dos servos de Deus, por causa da simonia que, por astúcia do demónio,
entrou na minha eleição, decidi que devo ser deposto do bispado de Roma».
Presente na sua queda estava o seu jovem capelão, o monge Hildebrando, o futuro
Gregório VII. Viu o servo a bater no amo e nunca mais havia de o esquecer ou perdoar.
Henrique escolheu Clemente II para novo pontífice. No dia da sua nomeação, coroou
Henrique como imperador, após o que Henrique, antecipando Napoleão, colocou na
própria cabeça o diadema que os Romanos usavam para coroar os seus patrícios. Com
este gesto, Henrique mostrou que era ele o chefe da Cristandade; o Bispo de Roma era
apenas o seu capelão particular.
Levou o velho papa com ele para a Alemanha para evitar que se tornasse incómodo.
Em breve Gregório morreu no exílio e, quando Clemente também foi para junto do
Criador, Benedito atirou-se ao trono papal onde ficou mais oito meses.
Henrique andava demasiado atarefado para tratar dele, mas mandou que o Conde
Bonifácio de Túscolo obrigasse Teofilato a cumprir as leis de uma vez por todas. O novo
papa, Dâmaso II, depressa deu o último suspiro — envenenado, dizia-se, por Benedito.
Provavelmente foi apenas o clima.
Com a sua morte, Benedito tinha mais uma vez o caminho livre, mas decidiu desistir.
Retirou-se para o mosteiro de Grotta Ferrata onde, segundo se dizia com alguma
ambiguidade, a sua vida foi um exemplo para o resto da comunidade.
Neste momento negro do papado, parecia que Deus se apiedara da Igreja. Mandou
dois pontífices considerados por muitos historiadores católicos como os maiores que a
Igreja alguma vez produziu: Gregório VII e Inocêncio III.
59
4
O Apogeu do Papado
Foi o único papa que se canonizou a si próprio, mas é mais lembrado como um
homem obcecado por uma única recordação que o perseguiu durante quase quarenta
anos até que veio a morrer como o pontífice mais venerado da história.
A recordação que praticamente transtornou a cabeça de Hildebrando, o Papa
Gregório VII, foi a do seu homónimo Gregório VI a ser deposto e humilhado em 1046. O
pecador que isto fez foi o Imperador Henrique III, que pôs uma marioneta no trono em
sua substituição.
Foi isto que o atormentou enquanto jovem, quando acompanhou Gregório VI no exílio
na Alemanha; e também quando entrou para os beneditinos de Cluny e ascendeu
gradualmente a prior. E ainda lhe doía quando, chamado a Roma, foi conselheiro
durante mais de dezoito anos de quatro papas e por fim o seu chanceler. Esta amarga
recordação veio sobretudo à tona quando na Basílica de Latrão apinhada para o funeral
de Alexandre II, em 1073, a congregação exclamou espontaneamente: «Hildebrando é o
papa. S.Pedro escolheu-o». Em circunstâncias normais Hildebrando teria rejeitado
aquela maneira tão grosseira de escolher um pontífice. Tinha convencido um papa
anterior a deixar a escolha exclusivamente ao Colégio dos Cardeais. Mas naquela altura
aceitou «a vontade de S.Pedro».
O novo papa, homem de muito pequena estatura, homuncio, não perdeu tempo e
mandou sem demora uma mensagem ao jovem Imperador Henrique IV solicitando o seu
reconhecimento.
Nada em toda a sua vida foi feito tão a contragosto como apresentar uma petição a
um inferior ímpio; ele, Hildebrando, que era o maior homem da terra. Porquê fazê-lo se
era contra os seus princípios? Porque não queria que se levantasse qualquer dúvida
subsequente sobre a sua legitimidade. Mas não estava longe o dia do ajuste de contas,
o dia em que o cordeiro se transformaria em leão.
Os conselheiros de Henrique avisaram-no de que Hildebrando era perigoso. Como
era um asceta tratava os outros como se tratava a si próprio — abominavelmente. O
inexperiente imperador não lhes deu ouvidos. Não é verdade que o pai tinha deposto um
papa e nomeado sucessivamente os três seguintes? Como é que ele podia perceber
que estava ali um pontífice cujos braços iriam crescer cada vez mais e que caminhava
sobre andas? Gregório VII foi o último papa cuja eleição teve de ser confirmada pelo
imperador e cuja consagração se realizou na presença de legados imperiais.
Depois de obter a aprovação que desprezava, Gregório estava decidido a fazer vergar
os príncipes de uma vez por todas. Para ele, todos eram corruptos. Tinham direito a
menos respeito do que o mais mesquinho exorcista, que pelo menos expulsava os
demónios e não lhes oferecia hospitalidade principesca. Os monarcas apenas desejam
dominar, dizia este orgulhoso pontífice. Seria necessária uma magnanimidade obscena
da parte de Deus para salvar um só que fosse das chamas eternas. Tudo o que eles
fazem radica no orgulho e contudo o que é que eles têm para oferecer? Um rei
moribundo vai ter com o mais humilde padre de aldeia para se confessar. Quando é que
mesmo uma mulher leiga vai ter com o imperador para lhe pedir o perdão de Deus?
Onde é que está o imperador que pode garantir a salvação ou fazer o Corpo e o Sangue
de Cristo com um simples movimento dos lábios? Qualquer desmiolado percebe que os
60
padres são superiores aos reis. Então, a que distância acima de todos eles é que está o
papa, sucessor de Pedro? Não era seu dever reduziros príncipes ao seu real tamanho
para lhes dar uma lição de humildade?
Aquela recordação inapagável fez com que este homem de vontade inflexível
desprezasse toda a autoridade civil. E um dia, estava decidido a isso, iria vingar-se.
Gregório VII e a sua escola de falsificadores
Desde os seus tempos de rapaz na Toscânia, Hildebrando, que era filho de um
carpinteiro de aldeia, sempre teve uma devoção apaixonada por S.Pedro. Como
Príncipe dos Apóstolos, o poder de Pedro não tinha limites. Era o Pastor-chefe, podia
unir e desunir no céu e na terra. Quando Hildebrando se tornou papa, elaborou um
Dictatus, ou lista, de vinte e sete teses que esquematizavam os seus poderes como
vigário de Pedro. Entre elas estavam as seguintes:
O papa não pode ser julgado por ninguém na terra.
A Igreja Romana nunca errou, nem pode errar até ao fim dos
tempos.
Só o papa pode depor os bispos.
Só ele tem direito às insígnias imperiais.
Pode destronar imperadores e reis e dispensar os seus súbditos dos
juramentos de fidelidade.
Todos os príncipes são obrigados a beijar-lhe os pés.
Os seus legados, mesmo não sendo padres, têm precedência sobre
todos os bispos.
Um papa eleito legitimamente é, sem dúvida, um santo assim
tornado pelos méritos de Pedro.
Esta santidade, afirmava ele tê-la experimentado de maneira esmagadora na sua
eleição. Esta foi, aliás, uma ideia que os seus sucessores deixaram cair como se fosse
carvão a arder. Tais afirmações eram muito estranhas, na medida em que Hildebrando
tinha conhecido o papa-menino Benedito IX.
É difícil saber se ele tinha consciência de que a maior parte das suas teses eram
baseadas em documentos falsificados. O menos que se pode dizer é que a sua
ingenuidade era alarmante, especialmente se tivermos em conta aquilo que o Novo
Testamento diz sobre os erros de S.Pedro. Estas falsificações faziam crer que as suas
pretensões em relação ao poder absoluto eram baseadas em antigos registos
zelosamente guardados nos arquivos de Roma. Durante sete séculos, os Gregos
chamaram a Roma a pátria das falsificações. Sempre que tentavam falar com Roma, os
papas apresentavam documentos falsos, e até alguns acrescentos a documentos
conciliares que os Gregos, naturalmente, nunca tinham visto.
Gregório foi mais longe do que a Doação de Constantino. Ele tinha toda uma escola
de falsificadores mesmo debaixo do seu nariz a produzir documentos atrás de
documentos, com o aval do selo papal, para alimentar todas as suas necessidades.
Os líderes da escola eram Anselmo de Lucca, sobrinho do pontífice anterior, o
Cardeal Deusdedit e, depois deles, o Cardeal Gregório de Pavia. Se o Papa Gregório (e
mais tarde Urbano II) precisavam de qualquer justificação para uma acção contra um
príncipe ou um bispo, logo estes prelados produziam, literalmente, o documento
apropriado. Não era necessário procurar; era tudo feito ali mesmo.
61
Muitos documentos mais antigos eram retocados para ficarem a dizer o contrário
daquilo que originalmente diziam. Alguns destes documentos mais antigos eram, eles
próprios, falsificações. A escola de Hildebrando tratava todos os papeis, forjados ou
genuínos, com uma desonestidade totalmente imparcial. O 1984 de Orwell foi
antecipado de nove séculos, não num qualquer estado ímpio, às ordens do Big Brother,
mas no coração do Catolicismo Romano e a favor do papa.
Este método expedito de inventar a história foi extraordinariamente bem sucedido,
especialmente quando as falsificações eram imediatamente inseridas na lei canónica.
Por meio de inúmeras mudanças subtis eles fizeram com que o Catolicismo parecesse
imutável. Mudaram o “hoje” para “sempre foi e será”, o que mesmo agora,
contrariamente às descobertas da História, é a marca peculiar do Catolicismo.
Assim se cumpriu a serena e mais longa de todas as revoluções, toda ela feita no
papel. Isto não teria sido possível numa época de literacia universal, de imprensa, de
fotocópias, de datação por carbono; foi possível sem o mínimo sobressalto numa época
de raros manuscritos, de erudição nula, e quando até alguns imperadores não sabiam
ler nem escrever.
Gregório não ficou isento de uma fraude própria.
A mais influente de todas as falsificações foram os Decretais Pseudo-Isidorianos, de
origem francesa, de que Roma se apossou avidamente e que Gregório, que «não podia
errar», tomou como autênticos. Consistiam de 115 documentos alegadamente escritos
pelos primeiros bispos de Roma, a começar por Clemente (88-97). Outros 125
documentos tinham acrescentos falsificados que aumentavam o poder e o prestígio do
papado. Segundo o falsificador, os primeiros papas proibiram todo o comércio com uma
pessoa excomungada.
Em 1078, Gregório, sabendo que não havia precedentes para isso, estendeu este
princípio aos imperadores e aos reis. Se um papa excomungava um imperador e os
seus súbditos ficavam proibidos de tratar com ele, para que servia esse imperador?
Apenas lhe restava ser destronado, o que Gregório gostava muito de fazer. Mesmo os
papistas mais ardentes acharam que era difícil perdoar tal coisa. Gregório confundia
deliberadamente dois códigos de leis, o canónico e o civil, e fazia de um princípio
espiritual de excomunhão uma arma política. Nas suas mãos esta arma foi devastadora.
Depôs o imperador grego, bem como Baleslaus, o rei polaco, proibindo a Polónia de
voltar a intitular-se reino. Semeou a intranquilidade civil em país após país; houve
rebeliões e guerras civis.
Avançando por momentos no tempo, os documentos forjados em Roma nesta altura
foram sistematizados nos meados dos anos 1100 em Bolonha por Graciano, um monge
beneditino. O seu Decretum, ou Código de Lei Canónica, facilmente se pode considerar
como tendo sido o livro mais influente alguma vez escrito por um católico. Estava
salpicado de três séculos de falsificações e conclusões delas retiradas com os seus
próprios acrescentos fictícios. Das 324 citações que ele faz dos papas dos primeiros
quatro séculos só onze são genuínas.
Entre os seus acrescentos pessoais havia uma série de cânones que tratavam todas
as pessoas excomungadas como hereges. Isto era alarmante tendo em vista a maneira
como os hereges eram tratados. Urbano II já tinha decretado nos fins do século XI que
eles deviam ser torturados e mortos.
Graciano inventou de forma notável uma maneira de aumentar o poder papal. O papa,
declarou ele com a aprovação de Roma, é superior a todas as leis e a sua fonte sem
restrições. Portanto tem de estar em pé de igualdade com o filho de Deus. Esta
62
apoteose tornou-se a inspiração da Cúria, que agia em nome do papa. Todo o plumitivo
era, em certo sentido, um deus.
Avançando ainda mais, para o século XIII, o Decretum foi a fonte de Tomás de Aquino
para as citações dos Padres e dos papas quando escreveu o seu magistral Summa
Theologica, a segunda mais famosa obra de um católico. Tomás de Aquino, que pouco
ou nada sabia de grego, foi induzido em erro por Graciano, especialmente no que diz
respeito ao papado. Claro que Aquino teve uma enorme influência na Igreja,
especialmente durante o Concílio Vaticano I, quando a infalibilidade papal foi definida.
Uma pequena ironia: no seu Summa, Aquino diz que os hereges deviam ser
executados com os mesmos fundamentos dos falsários. Os hereges não falsificam
dinheiro, mas uma coisa muito mais preciosa: a fé. Não perguntava quais eram os
castigos apropriados para os criminosos que forjaram os documentos que induziram em
erro a Igreja, ele próprio incluído, geração atrás de geração.
As falsificações de Gregório tinham a vantagem de ser simultaneamente originais e
sacrossantas, novas e contudo antigas. Não era sensato da parte de um príncipe opor-
se ao papa quando anteriores pontífices como Inocêncio I e Gregório o Grande tinham
deposto um imperador e um rei. Não que eles tivessem feito tal coisa, embora Gregório
VII tivesse um documento a prová-lo. Os próprios falsários acreditavam de todo o
coraçãoque Gregório tinha o poder de depor monarcas, e se com um toque de caneta
aqui e ali eles podiam ajudar um mundo ímpio a acreditar o mesmo, onde é que estava o
mal?
A História tornou-se um ramo menor da Teologia e assim ficou desde então. Afinal,
mesmo a História não pode contradizer a verdade infalível. Daí que nos anos de
formação do Cristianismo Católico Romano toda a discussão fosse abafada pelas
“citações“ que eram imediatamente fabricadas. O desenvolvimento não veio
espontaneamente, foi antes metido à força em padrões preestabelecidos. A tradicional
sujeição dos papas aos Concílios Gerais em matérias de fé e de moral foi invertida.
Opiniões controversas e por vezes absurdas tornaram-se dogmas; opiniões parciais
eram consagradas como ensinamentos católicos intemporais e irreversíveis.
Fabricar a História não é uma pequena coisa.
Mal foi eleito, Gregório VII começou a reformar tudo. Primeiro, para assegurar que a
Igreja nunca fosse despojada dos seus bens, tentou eliminar a “fornicação“ universal,
isto é, o casamento do clero. A lei do celibato do clero tinha sido praticamente
esquecida, mas não por Gregório. Se os padres não emendassem o seu comportamento
seriam suspensos e os leigos não poderiam aceitar o seu ministério. Era como se os
padres deixassem de ser padres. Perguntava um crítico: «Será que o papa diria que um
homem que peca deixa de ser homem?»
O resultado desta legislação foi, de acordo com Ray C. Petry, «fazer das inocentes
mulheres dos pequenos clérigos desnorteados e zangados potenciais prostitutas aos
milhares». Diz Lecky: «Quando Hildebrando separou as mulheres dos padres e as
deixou arruinadas, inconsoláveis e desesperadas, muitas delas recorreram ao suicídio
para acabar com a sua agonia». O clero germânico queria saber onde é que Gregório,
depois de suspender os homens do sacerdócio, iria buscar os anjos para os substituir».
Um grupo de bispos italianos reuniu-se em concílio em Pavia em 1076 e excomungou o
papa por separar maridos e mulheres e por preferir a licenciosidade entre os padres ao
casamento respeitável.
Se Gregório tivesse concretizado a sua ameaça de suspender os padres
incontinentes, teria praticamente varrido o Catolicismo do mapa. Feliz ou infelizmente, a
sua campanha não obteve sucesso duradouro. O celibato podia ele impor, mas não a
63
castidade. Contudo, por via do celibato, conseguiu garantir o perpétuo sistema de
apartheid no Catolicismo entre os clérigos que têm direitos e os leigos, homens e
mulheres, que os não têm. Curiosamente, foram mais leigos do que padres os que se
separaram das mulheres, talvez por se deixarem impressionar mais pelos ideais ascetas
de Gregório. Os padres, depois de uma acalmia, continuaram a seguir a ideia de que o
que faziam na cama só a eles dizia respeito.
A seguir, Gregório voltou-se para a simonia, a compra e venda de coisas sagradas.
Para os cardeais a excomunhão para estes casos parecia excessiva, pois eles sabiam
que tudo, a começar pelo próprio papado, tinha muito naturalmente o seu preço.
Contra uma prática velha de séculos, Gregório excomungava qualquer membro do
clero que recebesse uma remuneração de um leigo, fosse ele duque ou príncipe. Isto
fazia parte da sua busca de poder absoluto. Ninguém da Igreja podia dever lealdade a
ninguém a não ser a ele próprio, Gregório. Contrariando uma tradição de mil anos,
obrigou todos os bispos a um voto pessoal de lealdade ao papa. A partir de então, eles
eram bispos por «concessão da Sé Apostólica». De um só golpe, os bispos diocesanos,
sucessores dos apóstolos, perderam a independência que nem o Vaticano II conseguiu
restaurar. A partir de Gregório VII, e apesar dos desmentidos, o papa é realmente o
bispo de todas as dioceses. Qualquer membro do clero que entre em conflito com o
papa sobre qualquer assunto pode ser demitido com a mesma facilidade com que foi
nomeado. Se isto não é ser o bispo de facto, será difícil saber o que é que o é
realmente.
O grande confronto
Gregório andara mais de trinta anos à espera de uma oportunidade para desafiar o
imperador. Finalmente, acusou Henrique IV de simonia e de interferir nos assuntos da
Igreja. Henrique ficou genuinamente espantado. Imiscuíra-se de facto, mas não fez nada
mais do que os imperadores desde Constantino sempre tinham feito. Não é verdade que
lhe tinham pedido o seu consentimento para a eleição de Gregório, e ele a tinha
concedido? O que é que levava este papa a pensar que lhe podia dar ordens?
Melindrado, Henrique convocou um concílio em Worms e declarou nula a eleição. Não
tinha sido previamente consultado, na sua qualidade de imperador.
Gregório respondeu com um anátema sobre Henrique seguido de uma carta circular.
Em nome de Deus omnipotente, proíbo Henrique de governar os
reinos de Itália e Alemanha. Dispenso todos os seus súbditos de
todos os votos que façam ou tenham feito, e excomungo todos
aqueles que o sirvam como rei.
Isto foi a bomba papal daquele tempo. Os imperadores tinham destituído muitos
papas: Gregório tinha testemunhado um desses sacrilégios. Nunca antes um papa
ousara depor um imperador. Qual seria o resultado disto?
Havia bons presságios. A mãe de Henrique, a Imperatriz Agnes, pôs-se ao lado do
papa, assim como a prima, a temível Matilde, Condessa da Toscânia. Para desgosto de
Henrique, aquele louco de Roma estava a obter bons resultados mesmo na Alemanha.
Os príncipes começaram a denunciar a sua fidelidade. Para consolidar a sua vantagem,
Gregório apoiou Rudolfo, Duque da Suábia e vassalo de Henrique, como primeiro
sucessor ao trono.
64
Henrique, agora com vinte e um anos, compreendeu que estava encostado à parede.
Aproximava-se o aniversário da sua excomunhão, altura em que perderia o reino
oficialmente e para sempre, a menos que fizesse a paz com o papa.
Com uma pequena comitiva, atravessou a Borgonha e passou um natal familiar
agradável, mas apreensivo, em Besançon. Depois, a meio do Inverno de 1077,
atravessou os Alpes. Com ele, seguiam a mulher e o filho bebé, Conrado. Os guias
camponeses tiveram de escavar uma passagem na neve e puxar a rainha num trenó de
pele de boi. Caíram por ravinas e perderam a maior parte dos cavalos. Uma vez em
Itália, reuniram-se ao enorme exército Lombardo que esperava que ele viesse pôr o
papa no seu lugar. Mas ele desiludiu-os.
Gregório estava protegido dos Lombardos dentro das paredes triplas da fortaleza de
Matilde, em Canossa. Esta fortaleza erguia-se no cume de uma colina escarpada,
matizada de vermelho, nos contrafortes dos Apeninos. Trinta quilómetros para noroeste
ficava Parma, invisível no meio das brumas daquele inverno particularmente rigoroso.
Em Canossa Henrique apelou à paz.
Através de intermediários Gregório impôs as regras. Henrique devia enviar a coroa e
demais adereços reais para Sua Santidade se desfazer deles. Devia confessar
publicamente que era indigno de ser imperador depois do seu vergonhoso
comportamento em Worms e finalmente devia prometer cumprir a penitência que lhe
fosse imposta pelo papa, fosse ela qual fosse.
Depois de manifestar o seu acordo, Henrique subiu a branca encosta até à fortaleza,
temeroso e só. Passada a primeira portada, detiveram-no no cercado seguinte. Muito
acima dele apareceu o papa com todos os adereços pontifícios para saborear a sua
humilhação.
Com um vento de leste a assobiar à sua volta, Henrique foi despojado das suas
insígnias reais e obrigado a despir-se. Atiraram-lhe uma túnica de lã tão grosseira como
uma camisa de cilício.
Veste isso. Gregório, com a sua própria camisa de cilício bem chegada às costas
fustigadas e escondida pelas roupas, apenas gesticulou, não se dignando a falar para
alguém que não estava em comunhão com Deus e com a Igreja.
Henrique, a bater o dente, a pele roxa do frio, obedeceu. Em cabelo e descalço,
estava de pé, enterrado na neve até aos tornozelos, envolto no pano de cilício de
mendicância e penitência. Tinha numa dasmãos um vasculho e na outra uma tesoura
de tosquiar, símbolos da sua vontade em ser chicoteado e ciliciado.
E o imperador do Sacro Império Romano, herdeiro de Carlos Magno, ali esteve três
dias e três noites, em jejum do nascer do sol até muito depois das estrelas começarem a
brilhar, num espectáculo tão deplorável que os parentes nas ameias choravam
sonoramente, incapazes de continuar a olhar. Hora após hora, Henrique com os cabelos
e sobrancelhas hirtos do gelo, rezou a Deus e ao papa por misericórdia com
estremecidos suspiros.
Mais tarde, naquele mesmo ano, Gregório fez um relato das suas próprias acções
numa carta aos príncipes germânicos:
As pessoas que intercederam por Henrique murmuraram sobre a
grande crueldade do Papa. Algumas ousaram mesmo dizer que tal
comportamento era mais próprio da bárbara crueldade de um tirano
do que da justa severidade de um juiz eclesiástico.
65
O que endureceu Gregório foi a distante lembrança do que o pai de Henrique fizera
ao seu antecessor. Como dizem os italianos, a vingança serve-se fria.
 Só quando a sua anfitriã Matilde ao quarto dia alegou que o primo morreria se
continuasse por mais tempo na neve é que o papa se compadeceu.
Henrique foi arrastado para dentro, um monte de carne gelada, para se apresentar
esfarrapado perante o pontífice de tiara na cabeça. Esbelto e bem parecido, aquele
dominava o feio anão moreno da Toscânia com o seu grande nariz e olhar fixo e frio.
Henrique teve de jurar que se submetia ao julgamento do papa em data e local a
anunciar. Entretanto, não podia exercer a sua soberania até que o papa se
pronunciasse. Como Maquiavel observou na sua História de Florença, «Henrique foi o
primeiro príncipe que teve a honra de sentir a estocada cortante das armas espirituais».
Mas Henrique também tinha o seu orgulho. Só pediu ao papa que mandasse levantar
a condenação.
Regressado à pátria, iniciou um campanha contra Rudolfo, o que fez com que
Gregório lhe impusesse de novo a condenação. Numa batalha à distância, Henrique
convocou um concílio para depor o papa. O Bispo Berno de Osnabrüch escondeu-se
debaixo dos panos do altar da Catedral de Brixen até que terminassem os trabalhos
contra Gregório e depois reapareceu como que por magia. Henrique escolheu Guibert
de Ravena para ser o papa Clemente III. Com este procedimento, Gregório profetizou
que Henrique morreria nesse ano. Ao invés disso, depois de duas estrondosas vitórias,
Henrique marchou sobre Roma e pôs Clemente no trono.
Gregório, velho, cansado e abandonado pelos seus cardeais, fugiu para Salerno, no
Reino de Nápoles. Tinha sido papa durante doze anos. Era um típico verão napolitano,
mas ele nunca tinha sentido tanto frio desde que estivera nas ameias de Canossa.
Arrogante até ao fim, deu a sua absolvição à raça humana «excepto ao chamado rei
Henrique», a quem, para que não ficassem dúvidas, excomungou pela quarta vez. Nem
mesmo um pontífice com poderes divinos podia redimi-lo.
Contrariando factos que são conhecidos, murmurou: «Amei a justiça e odiei a
iniquidade e por isso morro no exílio». Esta falta de lógica não escapou a um assessor
episcopal. «Como no exílio, se todo o mundo é vosso?»
Gregório morreu em 25 de Maio de 1085.
Gregório é tido em grande consideração pelos católicos. O seu prestígio reside no seu
ascetismo, nas suas invectivas contra a simonia e a fornicação dos padres, na sua
tentativa de fazer recuar a maré de séculos de imoralidade papal, na sua capacidade de,
por força de uma única ideia, destronar monarcas. É também o expoente clássico do
Catolicismo Romano, que praticamente criou. Nunca teve uma dúvida ou uma opinião;
tinha sempre a certeza de tudo.
Contudo, deixando de parte as falsificações que sustentaram as suas duvidosas
pretensões, mesmo os seus admiradores têm de admitir que antes dele o trono e o altar
eram aliados. Os papas e os príncipes nunca deixaram de medir forças e por vezes
lutaram como tigres. Primeiro, um usurpava as terras do outro, depois invertiam-se os
papeis. Mas, como representantes sagrados de Deus, nunca eles duvidaram de que, em
certo sentido profundo e sagrado, estavam ligados.
Gregório começou a estilhaçar essa frágil harmonia. Vira um imperador destronar um
papa e havia de destronar um imperador desse por onde desse.
Se tivesse posto um imperador no seu lugar, teria ficado acima de qualquer crítica.
Mas fez muito mais do que isso. Ao introduzir uma doutrina perniciosa e herética, pôs-se
no lugar do imperador. Em nome do Homem Pobre de Nazaré, que renunciou a todos os
reinos, reclamava-se não só de Bispo dos bispos, mas também de rei dos reis.
66
Parodiando os Evangelhos: o diabo levou-o ao cimo de uma alta montanha e mostrou-
lhe todos os reinos do mundo e Gregório VII exclamou: São todos meus.
Como escreveu Henry Charles Lea, o mais objectivo dos historiadores, na sua obra
The Inquisition in the Middle Ages: «Devotou a sua vida à realização deste ideal [a
supremacia papal] com um zelo ardente e um propósito inabalável que não recuou
perante obstáculo nenhum, e a ele estava pronto a sacrificar não só os homens que se
lhe atravessassem no caminho, mas também os princípios imutáveis da verdade e da
justiça».
Desta maneira, Gregório deitou à terra as sementes que, depois de florescerem
trouxeram não só o fim da Cristandade, mas também a Reforma. O Bispo de Trier
apercebeu-se do perigo. Acusou Gregório de destruir a unidade da Igreja. O Bispo de
Verdun disse que o papa estava errado na sua incrível arrogância. A nossa crença é
pertença da nossa Igreja, o coração, do nosso país. O papa, disse ele, não deve roubar
a fidelidade do coração. E isto foi precisamente o que Gregório fez. Quis tudo; não
deixou nada para os imperadores e para os príncipes. Ao minar o patriotismo, o papado,
tal como ele o moldou, minou a autoridade dos governantes seculares; estes sentiam-se
ameaçados pelo Altar. Na Reforma, em Inglaterra e em toda a parte, os governantes
viram-se obrigados a banir o Catolicismo das suas terras para se sentirem seguros.
Outro legado de Gregório VII foi a imposição do Romanismo na Igreja. Depois dele,
um Catolicismo genuíno, um Catolicismo enraizado e enriquecido por cada localidade e
por cada cultura já não era possível. Todas as igrejas tinham de seguir a norma romana,
por muito estranha que ela fosse para as suas origens e experiência. O latim, o celibato,
a teologia escolástica, tudo isto foi imposto a tal ponto que a unanimidade foi substituída
pela uniformidade baseada em Roma.
As mudanças operadas por Gregório reflectiram-se na linguagem. Antes dele, o título
tradicional do papa era o de “Vigário de S.Pedro”. Depois ele, era o de “Vigário de
Cristo”. Só “Vigário de Cristo” podia justificar as suas pretensões absolutistas, que os
seus sucessores herdaram, não de Pedro nem de Cristo, mas, de facto, dele mesmo.
Ele estabeleceu uma tendência. Nos cem anos que a ele se seguiram, os papas
excomungaram nada menos do que oito imperadores, depondo vários deles, e sempre
perturbando a comunidade cristã. Os historiadores registaram setenta e cinco batalhas
sangrentas directamente relacionadas com a contenda de Gregório com o imperador.
Um resultado final paradoxal das reformas do ascético Gregório: as suas pretensões
absolutistas abriram o caminho para papas como o licencioso Alexandre Bórgia. Mesmo
quando havia um Satanás no trono papal, quem é que se atrevia a questionar o Vigário
de Cristo?
Gregório VII teve de esperar cinco séculos para que fosse canonizado oficialmente
por outro papa que não ele próprio. Esse papa, Pio V, também tinha uma propensão
para depor monarcas com resultados igualmente desastrosos.
Mas, de todos os louvores póstumos que recebeu aquele que Gregório teria guardado
como mais precioso seria certamente o que lhe foi dado, não por outro pontífice, mas
pelo maior inimigo da Igreja do século XIX. «Se eu não fosse eu próprio, gostaria de ser
GregórioVII». Quem assim falou foi Napoleão após a batalha de Austerlitz.
Se Napoleão escolheu Gregório em vez de Inocêncio foi provavelmente em resultado
de moeda ao ar.
67
Inocêncio III, o senhor do mundo
Foi o mais extraordinário encontro entre dois homens desde que Jesus esteve
perante Pilato no Pretório. Aquele que envergava mantos reais no trono de púrpura era o
mais poderoso homem do mundo; o outro, o que tinha vinte e sete anos e estava
ajoelhado a seus pés de vestes esfarrapadas e remendadas como um mendigo tinha
apostado em afirmar-se o mais pobre dos pobres.
Foi no verão de 1209. O Papa Inocêncio III tinha finalmente concordado em receber
aquele pobre homem enxovalhado que tinha fama de santo. Aquele esquelético
requerente tinha cabelo escuro e sobrancelhas regulares, dentes brancos, orelhas
pequenas mas salientes. A barba era rara e esparsa. Os olhos negros e a piscar
cintilavam, a voz era forte e musical e dele irradiava uma alegria peculiar. Era um poeta,
diziam alguns. Falava do Irmão Sol e do Irmão Vento. A Lua, a Água, a Terra e até a
Morte eram suas irmãs. Dizia-se que pregava aos pássaros e aos animais selvagens e
que estes o escutavam. O seu grande amor era a Pobreza, a que ele chamava a Dama
mais rica e mais generosa do mundo.
Inocêncio não se lembrava, mas já uma vez se tinha cruzado com este estranho
homenzinho. Francisco conseguiu chegar ao Palácio de Latrão. O seu objectivo era ir
direito ao topo para conseguir a aprovação para a irmandade religiosa que pretendia
fundar. Cruzou-se por acaso com Inocêncio num corredor. Francisco viera de S.Pedro
onde tinha trocado as suas roupas com um mendigo cujos trapos estavam ainda mais
mal cheirosos e andrajosos do que os dele. O pontífice fungou e expulsou-o.
Só Ugolino, cardeal de Óstia, o conseguiu convencer a conceder uma audiência a
Francisco. Ugolino, o futuro Gregório IX, também não compreendia Francisco, mas
pensava que ele tinha alguma coisa a oferecer à Igreja. Nunca havia de o compreender,
nem mesmo quando o canonizou com reservas, em 1228.
A entrevista com Inocêncio III foi curta. O papa não concordava nem discordava de
Francisco e do seu amor pela pobreza. Tinha coisas mais importantes na cabeça. Como,
por exemplo, governar o mundo.
O Cardeal Lothaire tinha sido eleito por unanimidade em 8 de Janeiro de 1198.
Inocêncio, tal como o papa-menino Benedito IX, pertencia à família dos Albericos de
Túscolo, uma família que havia de vir a gabar-se de ter tido treze papas, três anti-papas
e quarenta cardeais.
Aos trinta e oito anos, Inocêncio era o mais jovem membro do Sacro Colégio. Era
baixo, entroncado, bem parecido, eloquente, de olhos cinzentos duros e queixo firme.
Tinha estudado nas melhores universidades de Paris e Bolonha. De temperamento
impetuoso, com grandeza estampada em todo ele, nasceu para governar a qualquer
preço.
Depois da sua sagração em S.Pedro, Inocêncio foi coroado numa tribuna cá fora. O
Cardeal Arcediago tirou-lhe a mitra e substituiu-a pelo principesco Regnum.
Originalmente feito de penas de pavão brancas, era agora um diadema com jóias,
encimado por um carbúnculo.
«Toma esta tiara», entoou o Arcediago num ritual que teria surpreendido S.Pedro, «e
fica a saber que tu és o Pai de príncipes e reis, Governador do Mundo, o Vigário na
Terra do nosso Salvador Jesus Cristo, cuja honra e glória perdurarão por toda a
eternidade».
O pontífice, discípulo de Gregório VII, nunca duvidou que aquela blasfémia lhe era
devida.
68
Ele era a reencarnação de Constantino. A famosa mofa de Thomas Hobbes em
Leviathan parece justificada: «O Papado não passa de um fantasma do falecido Império
Romano, coroado e sentado sobre o túmulo deste». Com as suas vestes a brilhar de
ouro e jóias, Inocêncio montou um cavalo branco coberto de vermelho e reuniu-se à
cavalgada pela cidade engalanada ao longo da Via Papae, que serpenteava sob os
velhos arcos imperiais.
Na Torre de Estêvão Petri, um velho rabino, com os ombros envoltos no códice do
Pentateuco, avançou para lhe prestar homenagem. «Nós reconhecemos a Lei»,
declarou Inocêncio formalmente, «mas condenamos os princípios do Judaísmo; porque
a Lei já foi cumprida por meio de Cristo, que o cego povo de Judá ainda espera como
seu Messias».
O rabino, de olhos no chão, agradeceu ao pontífice as suas amáveis palavras e
retirou-se, não fossem ainda mandar açoitá-lo.
O cortejo prosseguiu atravessando o Fórum. Roma, tal como Inocêncio a herdou, não
era mais do que um vasto campo por cultivar rodeado pela muralha Aureliana cheia de
brechas e coberta de musgo.
O pontífice decidiu mandar limpar o local e construir ali, para a família, uma torre,
Torre de’ Conti, que dominasse toda a cidade. Passando por montes de entulho de
templos, balneários e aquedutos destruídos, Inocêncio contornou o Coliseu e dirigiu-se
para Latrão.
Aí recebeu o voto de fidelidade do Senado Romano, prelados e príncipes beijaram-lhe
os pés e depois de distribuir dádivas pelos pobres e menos pobres convidou os nobres
para um banquete.
O pontífice ficou isolado, como é próprio das divindades. O serviço era do mais caro.
O príncipe mais velho presente serviu-lhe o primeiro prato antes de tomar o seu lugar à
mesa com os cardeais.
Inocêncio não comeu muito; a sua saúde nunca foi muito boa. Compensava um corpo
frágil com a mais férrea vontade que um pontífice alguma vez teve. Já estava a planear
tornar o seu título mais querido, o de “Governador do Mundo”, uma realidade.
O papado estava praticamente impotente quando da sua posse. O seu primeiro
objectivo, tal como o de muitos papas antes e depois dele, era restaurar os seus
domínios temporais. Pouco tempo depois já ele tinha feito de Roma um estado clerical.
Um crítico do Senado queixava-se deste modo: «Ele depenou Roma como um falcão
depena uma galinha». Passados dois anos era ele, e não o imperador, o senhor de
Roma e da Itália. Mas nem tudo correu como ele queria.
Em princípios de Maio de 1203, durante um curto levantamento dos cidadãos
romanos, teve de fugir para Palestrina. No ano seguinte andava demasiado doente para
ouvir as estórias sobre a maneira como os cavaleiros da Quarta Cruzada tinham
cometido o mais bárbaro dos crimes medievais: o saque de Constantinopla. Na grande
catedral de Santa Sofia violaram túmulos de imperadores, roubaram relíquias, violaram e
mataram mulheres, incluindo freiras. A cidade mais prestigiada do mundo foi arrasada
por soldados católicos que pareciam pensar que os cismáticos não tinham direitos neste
mundo nem no próximo.
Isto, que foi o primeiro grande exemplo de vandalismo civil dentro da Cristandade,
nunca foi esquecido pelos gregos. E Inocêncio não ajudou nada ao nomear um
veneziano para Patriarca Latino de Bisâncio.
Dois anos mais tarde, Inocêncio fez a paz com a cidade de Roma e voltou para
retomar o seu cargo. O exílio apenas tinha feito aumentar o seu ardor pela dominação.
Os primeiros papas não desgostavam de ser chamados de “Vigário de S.Pedro”. Ele
69
rejeitou o título. «Nós somos os sucessores de Pedro, mas não os seus vigários, nem os
de qualquer homem ou apóstolo. Nós somos o Vigário de Jesus Cristo perante quem
todos os joelhos se hão-de dobrar». Mesmo — melhor, especialmente — os joelhos de
reis e imperadores.
A Igreja, dizia ele, é a alma e o Império apenas o corpo do mundo. A Igreja é o sol e o
Império uma lua morta que reflecte a luz da grande Orbe, a Igreja de Cristo.
Os ensinamentos de Inocêncio sobre a sociedade contradiziam a Bíblia. Para ele, o
poder dos príncipes é uma forma de usurpação; só o poder do clero provém de Deus.
Isto era maniqueísmo aplicado às relações entre a Igreja e o Estado. A Igreja, espiritual,
era boa; o Estado, material, era essencialmente obra do Demónio. Este puro
absolutismo político minava a autoridade dos reis. Tomadas seriamente, as suas teorias
conduziriam à anarquia.
Inocêncio não pensava assim, claro, porque se sentiacapaz de dirigir a Igreja e o
Estado. Era este o seu objectivo expresso. Mas com que pretexto poderia ele governar a
sociedade secular? A resposta era esta: o Pecado. Onde quer que houvesse pecado, o
papa era omnipotente. E onde é que, na Igreja e no Estado, não havia pecado?
Convinha-lhe pintar os soberanos nas cores mais negras. Isto dava-lhe o direito, quanto
a ele, de legislar para todo o mundo.
Precisava de instrumentos maleáveis. Escolheu Otão IV para imperador porque ele
prometeu fazer tudo o que o papa mandasse. Otão foi o primeiro “Rei dos Romanos” a
ser chamado de “eleito pela graça de Deus e do papa“.
Passado um ano Otão revoltou-se alegando, com razão, que a sua promessa não
tinha base legal. Inocêncio excomungou-o e escolheu outro. E havia também de coroar
Pedro de Aragão e o Rei de Inglaterra. Nem mesmo Gregório VII tinha conseguido
dominar o rei de Inglaterra. Guilherme, o Conquistador, recusou ser seu feudo dizendo:
«Eu devo o meu reino a Deus e à minha espada». João, que foi coroado quando Ricardo
Coração de Leão morreu em 1199, era de calibre diferente.
João Lackland, que tinha apenas um metro e sessenta de altura, era, segundo as
palavras de um cronista, “um rei trapaceiro”. Mimado em criança, cresceu desregrado,
rabugento e imprevisível. Tinha os olhos enviesados como um oriental e uma pele
sempre pálida num rosto de raposa. Só em matéria de higiene é que não dava motivo a
críticas; era conhecido por tomar oito banhos por ano.
O seu desequilíbrio ficou patente na coroação. Contrariando o protocolo, recusou os
sacramentos. Em momentos solenes, dizia gracejos obscenos.
O seu desprezo pela Igreja já era evidente dez anos antes quando casou com a prima
Isabel de Gloucester sem a devida dispensa. Uma ano após se ter tornado rei,
apaixonou-se pela jovem e bela, e já noiva, Isabel de Angoulême. Depois de arquivado o
seu próprio decreto de nulidade, casou com a sua segunda Isabel e fez dela a sua
rainha. Quando Inocêncio mostrou o seu desagrado, João compensou-o enviando um
milhar de homens para as Cruzadas e construindo uma abadia cisterciense com dinheiro
roubado. Inocêncio consentiu tacitamente a segunda união.
O papa acabou por entrar em conflito com João, não por causa do casamento, mas
por motivos de dinheiro. O rei andava a interferir com as liberdades da Igreja — uma
maneira de dizer que ele andava a cobrar impostos ao clero para pagar as suas guerras
com a França.
Quando João nomeou o seu próprio candidato para a sé de Canterbury o papa achou
que já era demais e nomeou Stephen Laughton, que João se recusou a reconhecer.
Inocêncio deu-lhe três meses para mudar de ideias, caso contrário iria sentir toda a força
da lei canónica. Longe de ceder, João expulsou do reino os monges de Canterbury.
70
Todos, à excepção de um bispo, se puseram ao lado de Inocêncio e partiram para o
exílio. Assim começara um conflito de sete anos entre o rei e o papa.
Inocêncio mostrou até onde podia ir o seu espírito implacável, interditando toda a
Inglaterra. Foi uma punição de uma severidade incrível. Já a aplicara à França, que
interditara por oito meses pouco depois da sua eleição.
João jurou «pelos dentes de Deus» que se algum bispo divulgasse esta punição em
Inglaterra mandaria ao papa todos os clérigos com os olhos arrancados e os narizes
cortados. Quando a interdição foi publicada, no Domingo de Ramos de 1208, a primeira
reacção de João foi confiscar os bens da Igreja com a ajuda da cobiça dos barões. Ele
próprio, vítima intencional do castigo, divertiu-se imenso. Lançou impostos sobre o clero,
não enviando nada para Roma. O seu divertimento favorito era correr as paróquias à
noite e tirar da cama dos párocos as esposas canonicamente ilegais — as focariae
(companheiras). Se estes cavalheiros tonsurados quisessem as mulheres de volta
tinham de pagar um alto resgate. Isto não era muito diferente das estropelias do oficial
de diligências do arcediago, o mais odiado dos funcionários. Quando este desencantava
a amante de um padre — e a sua média de sucesso era extremamente alta — cobrava-
lhe uma “renda de pecado“ de duas libras por ano.
O sofrimento atingiu a maior parte da Inglaterra. E as vítimas foram crianças e
adultos. A religião, distracção e refrigério do povo, foi ilegalizada. As igrejas, únicos
pontos de encontro, foram fechadas e trancadas contra tudo excepto os morcegos nas
torres e os falcões que faziam ninho nos cumes das catedrais. Esta censura silenciou o
mais encantador dos sons de toda a Inglaterra: o dos sinos. Não mais se ouviu na
cidade e nos campos o dobre de finados ou o repicar do Gabriel de Angelus, nem a
música com sabor a bronze, mas subtil, dos campanários, que afogava os gritos das
gaivotas e dos corvos e que, segundo a crença popular, esvaziava a pressão do ar das
tempestades.
Os moribundos eram ungidos, os penitentes absolvidos e os recém-nascidos
baptizados. Quanto ao resto, a Inglaterra tornou-se um estado pagão.
Com oito mil catedrais e igrejas paroquiais fechadas, milhares de padres e clérigos
menores ficaram desempregados. Não se realizavam serviços religiosos no Natal nem
na Páscoa, não se diziam missas, nem mesmo nos conventos e mosteiros, não se dava
a comunhão, não se celebravam casamentos, não havia sermões, nem se ensinava a
doutrina; não se realizavam procissões nem peregrinações a santuários como o de Ely,
Walsingham ou Canterbury. Os mortos eram envoltos nas suas mortalhas e enterrados
como cães.
Passou o verão, veio o inverno e voltou o verão sem uma única celebração cristã.
Esta longa Sexta-feira Santa imposta pelo papa na sua misericórdia viria a durar, na
Inglaterra, seis anos, três meses e catorze dias.
À interdição seguiu-se a excomunhão do rei, em Outubro de 1209. Três anos depois,
o papa depôs João e sugeriu a Filipe de França que se preparasse para o expulsar e
tomar o trono da Inglaterra. Quem obedecesse ao papa tinha garantidas as mesmas
indulgências dos Cruzados.
A Inglaterra ansiava ver-se livre de um tirano que dormia com a mulher de qualquer
homem quando muito bem lhe apetecia. Arrancava um a um os dentes dos judeus ricos
que não lhe apareciam com o dinheiro. Fazia reféns e, quando houve um levantamento
no País de Gales, mandou enforcar vinte e oito jovens, filhos de chefes galeses no
Castelo de Nottingham no verão de 1212.
Enquanto Filipe reunia as suas tropas junto da foz do Sena, João jogou a sua cartada
mais forte: pediu a Roma que lhe enviasse um legado para fazer a paz.
71
Satisfeitíssimo, o papa enviou o Cardeal Pandulf. No dia 13 de Maio de 1213, perante
uma assembleia de barões e povo, em Dover, João capitulou. Prometeu a restituição
integral dos fundos e das terras da Igreja.
Dois dias mais tarde, assinou de bom grado um segundo documento em que
entregava a própria Inglaterra «a Deus e ao Nosso Senhor Papa Inocêncio e aos seus
sucessores católicos». E selou o documento, não com o habitual selo de cera, mas com
um selo de ouro. João prometia que, daí em diante, ele e os seus sucessores deteriam
os seus domínios como vassalos do papa e pagariam uma renda anual de mil marcos
pelo privilégio.
Esta vitória deu a Inocêncio um enorme prazer, mas foi mais um exemplo de excesso
papal. A suserania papal sobre a Inglaterra terminou efectivamente em 1333, ano em
que Eduardo III se recusou a pagar ao papa qualquer renda. Quando o papa Urbano V
impassivelmente pediu o pagamento de trinta e três anos de dívidas atrasadas, Eduardo,
depois de consultar os seus assessores concluiu que a doação da Inglaterra feita por
João à Santa Sé ia contra o seu juramento da coroação e, portanto, era inválida. Os
papas não concordaram e esta questão viria a contribuir directamente para a secessão
da Inglaterra da fé católica no reinado de Isabel I. Para esta não era importante ser
chamado de feudo do papa ou pensar que a Inglaterra esteve apenas arrendada a um
potentado estrangeiro.
Filipe de França ficoufurioso com Inocêncio III. Tinha despejado sessenta mil libras
no Canal, mas não se atreveu a pôr pé em solo inglês, e agora papal.
Embora João fosse absolvido da excomunhão, a interdição manteve-se até Junho de
1214, altura em que ele pagou o resto do dinheiro. Só então é que as portas da igreja se
abriram, se cantou o Te Deum, e os sinos voltaram a tocar. E por gentil permissão do
Papa Inocêncio III, Cristo pôde de novo entrar em Inglaterra.
Entretanto, o ódio dos barões a João atingiu um tal ponto que eles elaboraram a
Magna Carta, que garantia os direitos da Igreja e do povo, especialmente os dos barões,
e obrigaram João a apor-lhe o selo real. Nos termos da Carta, o rei, tal como todos os
homens livres, estava sujeito às leis; e o corpo da lei não podia ser secreto, tinha de ser
conhecido.
João, agora piamente católico, informou naturalmente Sua Santidade. Inocêncio,
quando soube, exclamou: «Por S.Pedro, nós não podemos deixar passar tal insulto sem
punição». O documento, muitas vezes considerado como a fundação das liberdades
inglesas, foi formalmente condenado pelo papa como «contrário à lei moral». O rei,
explicava ele, não era, de modo nenhum, súbdito dos barões e do povo. Só o era de
Deus e do papa. Consequentemente, os barões que tinham erradamente retirado
prerrogativas a um vassalo do papa tinham de ser punidos. Numa Bula, Inocêncio, «na
plenitude do seu poder e autoridade ilimitados, os quais lhe foram cometidos por Deus
para sujeitar e destruir reinos, para plantar e extirpar», anulou a Carta; dispensou o rei
de a cumprir. Excomungaria «quem quer que continuasse a manter tais pretensões
traidoras e iníquas». Tem de se concluir que todos os ingleses continuam
excomungados.
Stephen Langton, Arcebispo de Canterbury, recusou-se a publicar a sentença. O
poder do papa não era ilimitado, dizia ele. «A lei natural vincula príncipes e bispos
igualmente: não há que fugir disto. Está acima do próprio papa». Langton foi suspenso.
Para Inocêncio, que já dominara reis, os bispos foram uma pêra doce. Intitulou-se
“Bispo Universal”, título repudiado por muitos dos primeiros pontífices. Com Inocêncio, a
Igreja alcançou o ideal de Gregório; tornou-se uma diocese única. Inocêncio promulgou
mais leis do que cinquenta dos papas que o precederam; ele próprio não estava sujeito
72
a qualquer lei. Até hoje, foram publicadas seis mil das suas cartas. O seu alcance é
extraordinário. Depõe e substitui bispos e abades. Impõe penas para um vasto leque de
ofensas. Por exemplo, um homem de nome Roberto foi capturado pelos Sarracenos,
junto com a mulher e a filha. O chefe sarraceno promulgou uma ordem segundo a qual,
devido à fome, os prisioneiros com filhos deviam matá-los e comê-los. «Este malvado»,
escreveu Inocêncio, «impelido pela agonia da fome, matou e comeu a própria filha. E
quando, em outra ocasião, saiu outra ordem, matou a própria mulher; mas quando a sua
carne foi cozinhada e lhe foi servida não conseguiu comê-la». Parte da sua penitência foi
que nunca mais comeria carne. Nem nunca mais poderia voltar a casar.
Inocêncio completou o seu domínio sobre a Igreja no Quarto Concilio de Latrão em
1215. Uma assembleia massiva de mil e quinhentos prelados escutou educadamente os
seus decretos e aprovou-os sem uma pergunta ou uma palavra de debate. Uma das leis
que eles aprovaram foi que todos os católicos tinham de confessar os seus pecados ao
padre local e comungar pelo menos uma vez por ano. Desta maneira, os leigos ficaram
sujeitos aos clérigos, os clérigos aos bispos e os bispos ao papa.
Os únicos dissidentes eram os hereges. A segunda parte deste livro tratará da glória
maior do reinado de Inocêncio, nomeadamente, o esmagamento dos Albigenses no Sul
de França. Centenas de milhar deles foram mortos pelo fogo ou à espada por sua
ordem. Na qualidade de único depositário da verdade, Inocêncio sentiu-se no direito de
erradicar as heresias por quaisquer meios à sua disposição. Foi ele que deu um novo
impulso à Inquisição e injectou no Catolicismo um tipo especial de intolerância que iria
durar séculos.
Inocêncio III, estadista de génio, pontífice de «uma espantosa força de vontade»,
governou o mundo com uma majestosa tranquilidade por um período de perto de vinte
anos. Durante a maior parte do tempo cercou a Cristandade de terror. Coroou e depôs
soberanos, interditou nações, criou praticamente os Estados Papais em toda a Itália
central, do Mediterrâneo ao Adriático. Não perdeu uma única batalha.
Perseguindo os seus objectivos, fez derramar mais sangue do que qualquer outro
pontífice. Desvirtuou profundamente os Evangelhos, a Igreja, o papado e até a distinção
entre o bem e o mal. A prodigiosa perversão que operou em tudo isto revela-se
claramente numa simples afirmação de cortar a respiração: «Todo o clero tem de
obedecer ao Papa, mesmo que ele ordene o que é mau; porque o papa não pode ser
julgado por ninguém».
Estava em Perugia quando o seu fim chegou, em Julho de 1216. Tinha-lhe chegado a
notícia de que os Franceses tinham ousado uma vez mais assaltar o seu reino de
Inglaterra. Como que para se retirar com sangue, fez uma comunicação final contra Luís
e Filipe Augusto: «Espada, espada, salta da tua bainha. Espada, espada, afia-te e
extermina».
Ao morrer, deve ter voltado o olhar pisco, por sobre o vasto manto da Planície da
Úmbria, para a pequena cidade sonolenta de Assis, aninhada na encosta de uma colina.
Talvez uma distante lembrança o tenha feito estremecer. Aquele dia em que um pedinte
de olhar brilhante veio ter com ele para lhe pedir o reconhecimento de uma irmandade
que queria fundar. E ele concedeu-lho ou não? Posto na grande balança das coisas, isto
não pode ter sido importante.
O pedinte que ele expulsou do Palácio de Latrão, que não era uma ameaça para
ninguém e que teria preferido morrer a privar alguém da consolação da religião, iria em
breve sofrer no corpo as feridas do Cristo crucificado. Dele disse Dante no Paradiso:
«Nacque al mondo un Sole» («Nasceu um Sol para o mundo»).
73
Inocêncio III, o verdadeiro “Augusto do papado”, já só é conhecido dos historiadores.
Mas não há ninguém que não tenha ouvido falar, com alegria e afeição, de Francisco de
Assis.
* * *
Os sucessores de Inocêncio continuaram as suas pretensões absolutistas, e vieram
mesmo a aumentá-las. Gregório IX (1227-41), que canonizou o Pobre Homenzinho de
Assis, declarou solenemente que o papa é o dono e senhor do universo, das coisas bem
como das pessoas. Inocêncio IV (1243-54) decidiu que a Doação de Constantino estava
mal apelidada. Constantino não deu poder secular aos papas; eles já tinham o poder
secular supremo vindo de Cristo.
Só faltava o papa a quem Dante chamou a Besta Negra, Bonifácio VIII, para selar o
absolutismo papal.
74
75
5
O Poder em Declínio
 Benedito Gaetani foi coroado papa, com o nome de Bonifácio VIII, em 1294.
Jacopone da Todi, o poeta que escreveu o famoso hino Stabat Mater, observou que
nenhum nome lhe podia assentar tão mal. A sua não era nada uma “boa cara“.
Alto e corpulento, tinha, aos oitenta anos, o olhar mais frio jamais visto num homem.
Llanduff, um cardeal da Cúria, disse dele esta coisa notável: «Ele é todo língua e olhos
e o resto está tudo podre». Uma vez recusou-se a confirmar a nomeação de um bispo
metropolitano simplesmente porque não gostou da sua cara e disse-lhe isso mesmo.
Até um cardeal com uma deficiência, por exemplo, com artrite numa perna ou uma
corcunda, podia ser ridicularizado sem misericórdia. Dizia missa com ardor e lágrimas
nos olhos como se estivesse no Calvário e estivesse a ver Jesus crucificado. Acabada a
missa, era capaz de atirar com as cinzas da penitência para a cara de qualquer
arcebispo que lhe desagradasse. Segundo F. M. Powick, «Era admirado por muitos,
temido por todos e amado por ninguém».
Bonifácio era calvo e tinha as orelhas espetadas num rosto oval inflamado da
arrogância própriade alguém que sabe que não tem igual na terra. «O coração do
pontífice romano», decretou ele, «é o repositório e fonte de toda a lei. Esta a razão por
que a submissão cega à sua autoridade é essencial para a salvação». No Jubileu de
1300, encontraram-no sentado no trono com a coroa de Constantino na cabeça, uma
espada na mão e a repetir impiedosamente: «Eu sou o pontífice, eu sou o imperador».
As suas vestes eram das mais dispendiosas, vindas de Inglaterra e do Oriente, e
andava coberto de peles e pedras preciosas. Quando falava, cuspia as palavras pelo
espaço onde lhe faltavam dois dentes no maxilar superior. O seu antecessor, Celestino
V, dizia sobre ele: «Saltaste para o trono como uma raposa, vais reinar como um leão e
morrerás como um cão».
Poucos papas fizeram enriquecer tanto os familiares como Bonifácio. Um diplomata
espanhol dizia: «Este papa só se preocupa com três coisas: uma vida longa, uma vida
rica e uma família bem dotada à sua volta». Conhecido como “O Pecador Magnânimo”,
Magnanimus Peccator, não perdeu tempo e logo fez de três sobrinhos cardeais,
outorgando-lhes vastas terras e bens. Nas palavras de Dante, ele fez do sepulcro de
Pedro um esgoto.
Era um libertino, que uma vez teve como amantes uma mulher casada e a filha desta.
Num daqueles comentários de improviso por que era conhecido disse: «Fazer sexo é
como esfregar as mãos». Depois, quando envelheceu, o seu único passatempo era,
além de fazer dinheiro, fazer inimigos. O médico espanhol que lhe salvou a vida tornou-
se o segundo homem mais odiado de Roma.
Apesar de toda a sua aparente autoconfiança, Bonifácio teve uma preocupação que o
acompanhou até ao fim da vida. Muitos prelados desconfiavam que ele tinha
astuciosamente induzido o seu antecessor a resignar. Trata-se de uma das mais
estranhas estórias da história da Igreja Católica e que começou no ano de 1292 com a
morte do Papa Nicolau IV.
O conclave, que se realizou em Perugia, não chegou a acordo quanto a um sucessor.
Os onze eleitores estavam divididos entre os Colonnas e os Orsinis de tal maneira que
a discussão se prolongou sem resultado por semanas e meses. Benedito Gaetani
76
manteve-se à parte, talvez na esperança de, numa solução de compromisso, vir ele a
ser escolhido. Depois de dois anos de impasse, Gaetani fingiu ter recebido uma “carta
inflamada” de um velho eremita. Pedro de Morone, que vivia escondido numa gruta nos
Abruzzi, tinha fama de santo. Na pretensa carta exigia que os cardeais dessem um
papa à órfã Igreja. Em vez de Gaetani, o Deão propôs, com sucesso, o próprio Pedro de
Morone.
No verão de 1294 partiu de Perugia uma comitiva papal. Após uma viagem de 240
quilómetros e uma escalada de trezentos metros, encontraram o novo papa. Magro,
esfarrapado, sujo, espreitava por entre as grades da sua cela improvisada como um
macaco desnorteado. O odor de santidade não era agradável. A comitiva papal,
encabeçada pelo Cardeal Pedro Colonna, ajoelhou com as palavras «Vossa
Santidade». Quando percebeu que aquilo não era uma piada e que não estava a
sonhar, Pedro de Morone aceitou. Tomou o nome de Celestino V.
O novo pontífice não concordava com a vida licenciosa de Roma e assim insistiu em
estabelecer-se em Nápoles. Gaetani, para conquistar a sua confiança construiu-lhe uma
cela de madeira numa das enormes salas do Castello Nuovo, o castelo de cinco torres
sobranceiro ao mar. Aí, nas palavras de um seu contemporâneo, Sua Santidade
esperava esconder-se como um camponês nas moitas. Este era o seu ambiente e
aqueles príncipes mundanos eram-lhe completamente estranhos. Não conseguia
entender as frases em latim erudito que eles usavam. Esvaziou os estábulos e quando
tinha de viajar, fazia-o de burro, como Jesus.
A Igreja tinha mudado tanto desde os primeiros tempos que o próprio Jesus não
caberia nela. Os cardeais depressa compreenderam o seu erro. Celestino estava a
desfazer-se dos bens da Igreja dando-os a pessoas indignas, como os pobres e os
monges empobrecidos com quem sempre andara associado. Não tinha jeito para a
simonia. Iria levar a Igreja à bancarrota em três tempos. Ele nem frequentava os
banquetes, preferindo mordiscar uma côdea de pão e beberricar água em retiro.
Alguém tinha de fazer qualquer coisa, e quem melhor para essa tarefa do que
Benedito Gaetani? Este abriu um orifício na parede da cela do papa e introduziu nele
um tubo para por ele se poder falar. A meio da noite, sussurrava através do tubo:
«Celestino, Celestino, resigna do teu cargo. É um fardo grande demais para ti». Depois
de muitas noites a ouvir a voz do Espírito Santo, o simplório monge abdicou. Apenas
quinze dias após a sua coroação convocara os cardeais e pedira-lhes, sem grande
esperança de sucesso, que mandassem as amantes para conventos e vivessem em
pobreza como Jesus. Trocou os mantos papais pelo seu grosseiro hábito de eremita,
resignou e partiu.
Gaetani, jurista de formação, tinha engendrado este final bem sucedido; e agora,
sendo a antítese de Celestino, reclamava o trono por direito. Subiu ao poder em
Dezembro de 1294 e regressou imediatamente a Roma. Mas, temendo que Celestino
pudesse reaparecer acompanhado de espirituais fanáticos como Jacopone da Todi,
tomou a precaução de o fechar no castelo de Fumone; o velho eremita aí morreu,
poucos meses mais tarde, de fome e abandono.
A família Colonna veio a saber a maneira como Gaetani tinha forçado Celestino a
resignar e usou este conhecimento para questionar a sua legitimidade. Bonifácio VIII,
apesar de todo o seu poder, nunca se sentiu seguro no trono papal.
Os Colonnas eram descendentes dos Condes de Túscolo. Além de usurpar o trono, o
seu trono, eles acusavam ainda Bonifácio de se apossar das suas terras à volta de
Roma e de as doar a membros da sua família. Quando os Colonnas armaram uma
emboscada a uma escolta papal que carregava ouro, Bonifácio tratou-os como turcos,
77
pregando uma cruzada, com indulgências, contra eles. Quando por precaução eles
sairam furtivamente de Roma, acusou-os de conspirarem com os franceses para o
destituírem. Em retaliação, mandou os exércitos para destruir as suas cidadelas nas
colinas à volta de Roma, matando os camponeses nas suas terras ou vendendo-os
como escravos. Em breve, só as muralhas rochosas de Palestrina podiam arcar com o
santuário dos Colonnas.
Os dois cardeais Colonna não tinham outro remédio: tiveram de pedir misericórdia.
Dirigiram-se apressadamente para Rieti, onde o papa estava instalado, e prostraram-se
a seus pés com cordas à volta do pescoço e envergando mantos negros de penitência.
Bonifácio, com um olhar mais brilhante do que a tiara, poupou-lhes a vida mas tirou-
lhes uma coisa que eles prezavam ainda mais: a honra. Expulsou-os do Sacro Colégio e
quebrou os seus selos com um martelo. Depois viajou para Anagni, a sua cidade
favorita, situada sobre o vasto vale do Sacco, sessenta e cinco quilómetros a oriente de
Roma. Aí, no cume inferior do Monte San Giorgio, nascera e fora criado.
Dirigiu-se à janela da sala superior do palácio papal, donde desfrutava uma vista
arrebatadora da vegetação primaveril. Palestrina, um dos sete pilares da Igreja
Romana, empoleirava-se na encosta de uma colina, rodeada de oliveiras e loureiros.
Horácio escreveu uma das suas mais belas Carmina em louvor de Palestrina, e foi aí
que, no século III, o menino-mártir, Agapito, foi assassinado por amor de Cristo.
Depois de murmurar uma oração, o pontífice ergueu e deixou cair o braço qual
divindade vingadora. Logo uma bandeira foi arreada nas muralhas do palácio, sinal para
as forças do papa começarem a atacar Palestrina.
Nada foi poupado. Houve relatos que falavam em seis mil mortos, embora muitos dos
habitantes tivessem fugido para as regiões circunvizinhas. Os palácios, incluindo a casa
de Júlio César, antiguidades e belos mosaicos, um templo circular da Virgem Maria no
cimo de uma escadaria de mármore com cem degraus, tudo teve o mesmo fim. Sóa
catedral foi poupada. O resto foi tudo destruído de maneira tão cruel como a antiga
Cartago. O solo foi lavrado e espalharam sal nos sulcos para a desolação ser completa.
Ali iria nascer outra cidade, prometeu Bonifácio, uma Civitas Papalis, uma cidade que
soubesse ser leal a Sua Santidade.
Por este acto monstruoso na primavera de 1299, Dante enterrou Bonifácio VIII no
Oitavo Círculo do Inferno, de cabeça para baixo, nas fendas da rocha.
Três anos mais tarde, num dia frio de meados de Novembro do ano de 1302,
Bonifácio estava de volta a Anagni. A sua disposição era de tal maneira abominável que
nem a vista de uma Palestrina arrasada lhe aliviou o espírito. A que ponto estava a
Cristandade a chegar quando ele não podia confiar no seu filho mais velho? A sua
disputa com Filipe o Belo de França continuara a arrastar-se. O rei estava furioso com o
pontífice por não o ter feito imperador como prometera. Por vingança tinha lançado
impostos sobre o clero para financiar as suas campanhas militares.
Bonifácio tinha retaliado seis anos antes com a sua Bula Clericis Laicos. Pegou nela
e voltou a lê-la. Ainda ficava maravilhado com a sua intransigência. Gregório VII não
podia ter feito melhor. «Os leigos sempre foram hostis ao clero». Tão verdadeiro,
suspirou ele, no seu habitual tom sibilino. Filipe era um perfeito exemplo daquele
princípio. Bonifácio tinha emitido excomunhões contra qualquer clérigo que pagasse um
tostão que fosse a um leigo, fosse ele rei ou imperador. De facto ele decretou que se
um monarca cobiçoso deitasse a mão a uma simples peça da baixela da Igreja seria
imediatamente excluído de Jesus Cristo, e se não se arrependesse perderia o seu reino.
Filipe ficou curado da sua loucura? De modo nenhum. Proibira a exportação de ouro
e prata; o ladrão andava a embolsar todos os lucros da Igreja; e o pior de tudo é que
78
prendeu um bispo. A tremer de raiva, Bonifácio pegou na pena. Uma nova Bula. Esta
seria dirigida à Igreja universal. Depois dele, muitos católicos, incluindo alguns papas,
desejariam que ele nunca a tivesse escrito.
A Bula “Unam Sanctam” e o fragor das espadas
O pontífice estava sentado à secretária, absorto, e o único som que se ouvia era o da
pena a arranhar o papel. As suas primeiras palavras iriam correr mundo: Unam
Sanctam. «Só há uma única Santa Igreja Católica e Apostólica fora da qual não há
salvação ou remissão de pecados».
O melhor era fazer as suas alegações alto e bom som e de maneira clara. Ele, o
papa, com Cristo e Pedro, era o único chefe da Igreja. Esta Igreja é a Arca da Salvação;
alguém que esteja fora dela está condenado a afogar-se para sempre, especialmente os
cristãos gregos que se recusam a admitir que o papa é o Pastor de todo o rebanho.
Veio-lhe à ideia uma imagem menos pastoral. O olhar iluminou-se-lhe: as Duas
Espadas. «Os apóstolos disseram a Jesus, "Estão aqui duas espadas". O Senhor não
responde "É demais", mas sim, "Chegam!"» A exegese medieval raramente passou
deste nível.
Agora a pena corria.
Aquele que nega que Pedro tem o poder da espada temporal está a
interpretar erradamente as palavras do Senhor, «Embainha a tua
espada». Ambas as espadas, a espiritual e a material, estão em
poder da Igreja. A espiritual é manejada pela Igreja; a material para
a Igreja. Uma pela mão do padre; a outra pela mão dos reis e
cavaleiros segundo a vontade e consentimento tácito do padre. Uma
espada tem de estar sob a outra; a material sob a espiritual, tal como
a autoridade temporal em geral está sob a espiritual.
Bonifácio fez uma pausa para olhar as ruínas de Palestrina. Que melhor prova da
ordem correcta das coisas numa comunidade espiritual? «O poder espiritual», continuou
ele, «tem de estabelecer o poder terreno e julgar se é bom ou não. Como disse
Jeremias, "Vede, hoje pus-vos acima das nações e dos reinos"». Esperava que desta
vez Filipe e todos os monarcas prestassem atenção às suas palavras.
Um toque autoritário final para que as suas palavras não fossem mal interpretadas:
«Nós declaramos, anunciamos e definimos que é absolutamente necessário para a
salvação de todas as criaturas ser súbdito do Pontífice Romano».
Para acentuar a sua autoridade, a Bula ia assinada do seu palácio de Latrão, no
oitavo do seu pontificado. Chamando o secretário, um bispo, entregou-lhe a Unam
Sanctam para copiar e distribuir por toda a Igreja.
Em França a reacção não foi favorável. Um assessor do rei comentou: «A espada do
Papa é feita apenas de palavras; a do meu Mestre é de aço».
Filipe espalhou o boato de que Bonifácio tinha obrigado o seu antecessor a resignar,
o tinha depois prendido e assassinado. Bonifácio é um tirano, declarou ele, um herege,
uma presa de todos os vícios».
O rei sabia que só as palavras não chegavam. Tinha de agir vigorosamente e com
rapidez antes de ser excomungado. Convocou o seu chanceler, Guilherme de Nogaret.
Em conjunto maquinaram uma trama ousada. Um esquadrão de homens armados seria
79
treinado com o objectivo de apanhar o papa e trazê-lo de volta a França. Aí seria
submetido a julgamento por um Concílio Geral que, sem dúvida, o deporia.
Nogaret fez uma vénia a sua Majestade e semanas depois a expedição estava pronta
a partir.
Em Roma Bonifácio exultava. A Unam Sanctam tinha-lhe dado mais prazer do que a
destruição de Palestrina, mais ainda do que ter visto dois milhões de peregrinos a
dirigirem-se para Roma em rebanho para lhe encher os cofres durante o Ano Santo dois
anos antes. Era como se Deus lhe tivesse autenticado a Bula fazendo com que Filipe
tivesse sido derrotado no campo de batalha pelas forças flamengas em Courtrai.
Agora toda a Igreja sabia que as coisas de Deus são de Deus; e as coisas de César
são… bem, também elas são de Deus. Evidentemente. Mesmo que alguns papas não
tivessem tido estômago para o dizer. Afinal, todas as coisas são de Deus, porque foi ele
que as criou, e o papa representa Deus. O papa, como Primeiro Pastor, tem o dever de
alimentar todo o rebanho, incluindo as maiores ovelhas de todas: reis e imperadores.
Saboreou de novo a sua frase favorita da Unam Sanctam: Ninguém pode ser salvo
se não obedecer ao pontífice romano. Agora nem mesmo Filipe se atreveria a opor-se-
lhe.
Não era Filipe mas a família Colonna que o preocupava. Depois de ter despromovido
os seus cardeais, eles não lhe tinham mostrado qualquer gratidão por ter poupado as
suas vidas, antes fugiram da cidade. Não fazia ideia onde eles se encontrariam, mas
estavam com certeza a tramar alguma coisa algures. Arrependia-se de não os ter logo
executado.
Passou-se um ano. Bonifácio estava uma vez mais no seu retiro favorito em Anagni.
Estava a dar os últimos retoques numa Bula que excomungava Filipe e o expulsava do
trono. Sim, ia despedi-lo como a um moço de estrebaria. A esplêndida sensação que
isto lhe provocava só era estragada por uma estória singular vinda de Florença. Algum
tempo antes, ele tinha doado àquela cidade um leão adulto. Os florentinos mantiveram-
no acorrentado num cortile no coração da cidade. Um dia, um burro descobriu o
caminho para o pátio e — mal podia acreditar — escoicinhou o rei dos animais até à
morte. Os florentinos diziam que aquilo pressagiava os últimos dias de Bonifácio VIII.
Donde viria uma calamidade daquelas? Ele não tinha o mínimo conhecimento de que
Nogaret tinha reunido forças com Sciarra Colonna, sobrinho e irmão dos ex-cardeais.
Sciarra, jovem voluntarioso e sanguinário, estivera em Rieti, também vestido de negro
de penitência, quando os seus parentes foram depostos, lançando a vergonha sobre
todo o clã Colonna. Sciarra nunca iria esquecer o ter-se ajoelhado aos pés daquele
monstro e ouvido a sentença de excomunhão. Com esta, o papa baniu-o da irmandade
dos cristãos e obrigou-o a um exílio perpétuo. Isto era praticamente uma sentença de
morte, e ele tinha passado quatro anos nas galés até que um parente o resgatou. Esta
aliança com os franceses daria aSciarra a possibilidade de ajustar todas as suas contas
— de um só golpe.
Num sábado, dia 7 de Outubro, os portões de Anagni foram traiçoeiramente abertos
de madrugada pelo capitão da guarda do papa. Para as estreitas ruas entraram
seiscentos cavaleiros e mil montadas. Esta cidade de escuras vielas escarpadas vibrava
sob o som de patas dos cavalos e do bater de pés. Mesmo isto foi rapidamente abafado
pelo clangor dos sinos de alarme. Os invasores depressa retiraram as barreiras
erguidas à pressa e saquearam os palácios dos cardeais fieis ao papa.
O palácio do papa estava bem fortificado no topo de uma colina e defendido pelos
Gaetanis. De lá, o papa mandou às seis da manhã, um mensageiro a pedir uma trégua.
80
Secretamente pediu aos cidadãos mais importantes que viessem em seu auxílio.
Prometeu-lhes imensas riquezas em troca da sua aliança nesta hora de necessidade.
Eles recusaram.
Esteve sentado na sala do trono durante horas a pensar, a rezar, e a dar de novo
uma vista de olhos à Unam Sanctam, espantado pelo facto de um príncipe temporal ter
ousado erguer a espada contra o Ungido de Deus, o Senhor do Mundo. À hora de
vésperas, foram-lhe entregues as condições da trégua. Tinha de readmitir os cardeais
Colonna no Sacro Colégio, resignar e render-se incondicionalmente a Sciarra Colonna.
Para Bonifácio VIII, orgulhoso membro dos Gaetanis, isto significava luta até à morte.
Os invasores começaram a destruir pelo fogo os portões principais da catedral para
conseguirem entrar no palácio que ficava para além dela. Os clérigos nas suas
compridas alvas brancas fugiam como gaivotas. Quando entraram, os homens de
Sciarra saquearam a catedral e mataram toda a gente que lá se encontrava. Avançaram
depois para o palácio, rebentando janelas e arrombando portas. Os guardas da
segurança do papa, em inferioridade, renderam-se e ofereceram-se para lhes mostrar o
desenho do edifício. Aos gritos, desvairadamente, as tropas, comandadas por Sciarra,
abriram caminho até à grande escadaria que dava acesso aos aposentos privados do
papa.
Sciarra não se preocupara em contar quantos tinha matado nas últimas horas.
Lembrava-se de se ter atirado a um arcebispo, mas o resto era tudo muito vago. Tinha o
peitoral salpicado de sangue e a cheirar a ferrugem; a espada e o punhal estavam
vermelhos até ao punho. Quando empurrou a porta da enorme câmara de audiências de
altos tectos, ele e os seus homens foram engolidos por um tremendo silêncio.
O velho papa, de oitenta e seis anos, estava majestosamente sentado no trono, só,
salvo um cardeal auxiliar encolhido num canto. Estava imóvel, envergando todas as
vestes e símbolos pontifícios: a tiara, que simbolizava que ele era o Senhor do Mundo;
nos dedos, além da grande safira oval a brilhar, tinha o Anel do Pescador. A mais
elevada fonte do seu poder tinha-a na mão, uma cruz de ouro.
Sciarra ficou tão aterrado que a princípio nem conseguiu mexer-se. Quando se dirigiu
lentamente para Bonifácio, de espada desembainhada, o pontífice beijou altivamente a
cruz. Este gesto, o sonoro estalar dos lábios, teria feito parar um católico devoto, mas
não Sciarra Colonna. Deu uma bofetada na cara manchada e marcada das veias do
Vigário de Cristo que ecoou na câmara das audiências e que fez com que os seus
próprios homens recuassem e se benzessem. Aquilo era um sacrilégio. E se Deus,
como vingança, os fulminasse? A praguejar para manter a coragem, Sciarra gritou que
aquele homem não era o papa, mas um impostor, filho de Satanás. «Resigna» ordenou
ele.
Bonifácio beijou de novo a cruz. «Antes morrer», murmurou.
Orgulhoso demais para implorar misericórdia àquele patife excomungado, baixou a
cabeça. Depois, naquele seu tom irritante, «Ec le col, ec le cape» («Aqui tens o meu
pescoço; aqui tens a minha cabeça»).
Nascera em Anagni; não se importava de ali morrer. Este pontífice que afirmava que
a espada temporal estava ao seu serviço tinha agora essa mesma espada sobre o seu
pescoço esquelético. Em ponto algum da história da Igreja há momento mais simbólico.
Isto era a prova de que a aliança da Igreja e do Estado tinha atingido o ponto de rotura.
Mesmo o sanguinário Sciarra hesitou. Seria ele capaz de cortar a Cabeça da Igreja?
Tendo feito uma jura de vendetta, não tinha outro caminho. Num êxtase de alegria
sádica, ergueu a espada e apontou cuidadosamente.
81
Foi então que Nogaret entrou de rompante a gritar que o rei de França queria o
pontífice de volta a Lyons para enfrentar a deposição perante um concílio ecuménico.
Sciarra, com o rosto cheio de sombras purpúreas, embainhou a espada. Para parcial
compensação, começou a despir Bonifácio da sua dignidade. Derrubou-lhe a tiara,
deixando à mostra uma careca oval, depois divertiu-se a arrancar-lhe, por vezes com o
punhal, as caras vestes papais, peça por peça. Os seus homens, aliviados por não
terem tido de participar na morte de um papa, saquearam as salas. Ficaram espantados
como é que até um papa durante uma vida longa feita de cobiça podia ter acumulado
tais tesouros.
Bonifácio, de pé, como uma estátua, aparentemente esquecido da humilhação,
continuava a repetir em tom irritado a lamentação de Job, «Dominus dedit, Dominus
abstulit» («O Senhor deu, o Senhor tirou»). E por fim ficou ali de pé naquela câmara
vazia praticamente nu. O corpo, amarelo, enrugado e supliciado, estava cheio de
piolhos. Quando os medievais descreviam os tormentos do inferno, não era o fogo mas
os piolhos o que eles mais temiam. O cronista disse friamente: «O pontífice teve uma
má noite».
O alívio chegou inesperadamente. Muitos dos homens de Sciarra eram mercenários
e já tinham ido embora com os seus despojos. O povo da cidade estava com receio que
Anagni viesse a ser interdita; nunca mais haveria missa. Podia mesmo vir a ser
destruída como Palestrina. Três dias mais tarde, armaram-se e obrigaram o inimigo a
retirar e libertaram o papa da sua masmorra.
Ele estava mudado. Ao contrário do que fora o seu hábito de uma vida, falava entre
soluços e lágrimas que lhe corriam pelas faces marcadas de negro. Tinha ressuscitado
ao terceiro dia tal como Cristo, seu Mestre. «Obrigado» gemia ele repetidamente.
«Obrigado». A senilidade apossara-se provavelmente dele; por orgulho ou por receio de
ser envenenado, tinha recusado todo o alimento na prisão. A fome e a sede, as noites
de solidão no escuro, com ratazanas a correrem sobre ele, a proximidade da morte,
tudo isto o tinha desarticulado. Levado de volta para Roma sob escolta, ficou fechado
no seu quarto em Latrão durante trinta e cinco dias. Segundo rumores que corriam,
provavelmente fantasiosos, batia repetidamente com a cabeça na parede e mordia
incessantemente o braço, como um cão de volta de um osso. E aí, na solidão e
totalmente desprezado — «Morieris ut canis» foi a profecia de Celestino — morreu.
No dia do funeral houve uma tremenda tempestade e ele foi enterrado com o mínimo
cerimonial no imenso túmulo que ele próprio tinha preparado na velha Basílica de
S.Pedro.
Há uma curiosa nota de rodapé na história da Besta Negra de Dante, um pontífice
ímpio que afirmava que tinha tantas possibilidades de sobreviver à morte como um
frango assado.
Quando, para acabar a construção da nova Basílica de S.Pedro, em 1605, o seu
túmulo teve de ser mudado, fendeu e abriu-se. Para consternação geral, o corpo do
pontífice, passados três séculos, estava incorrupto. Só o nariz e os lábios estavam
ligeiramente mordidos. Mediram-no: um metro e setenta; ainda tinha no dedo o anel
oval de safira; parecia em paz.
Bonifácio tinha dado forma final à heresia do poder papal. Também noutros aspectos
ele não era um bom adorno para uma Igreja que ao menos foi poupada, por cortesia de
Nogaret, à última das indignidades: ter de o venerar como S.Bonifácio, papa e mártir.
O exílio babilónico
82
Os problemas do papado não terminaram com Bonifácio VIII. Filipe de França, ainda
não satisfeito de ver o seugrande inimigo dar a alma ao Criador, estava determinado a
dessacralizar a sua memória. Benedito IX, que sucedeu a Bonifácio, tentou apaziguar
sua Majestade absolvendo-o de toda a culpa de sacrilégio perpetrado contra o seu
antecessor. Quando Benedito morreu, um ano depois, uma maquinação escandalosa no
conclave levou à eleição de Bertrand de Grot, Arcebispo de Bordéus, como Clemente V.
Filipe via finalmente satisfeitos os seus desejos: um papa francês, que ele podia moldar
à sua vontade.
Clemente fez imediatamente saber aos seus auxiliares atónitos que eles o iriam
acompanhar para além dos Alpes. Anagni já fora revés bastante, mas isto era a
humilhação final do papado: deixar o lugar do antigo império e os túmulos de S.Pedro e
S.Paulo. Clemente temia, nas suas palavras, «desgostar o nosso querido filho, o Rei de
França». Em breve se estabelecia dentro dos domínios do rei, sob o seu olhar vigilante,
em Avignon, uma pequena cidade da Provença, na margem oriental do Ródano. Com
Filipe a ameaçar julgar Bonifácio postumamente por ser uma fraude e um herege, o
papa cedeu a sua Majestade em toda a linha. Filipe foi louvado pelo seu zelo religioso
contra Bonifácio, e Celestino V, que Bonifácio enganara levando-o a resignar, foi
canonizado com o nome de S.Pedro de Morone.
O prestígio do papado sofreu um golpe quase fatal, e uma sucessão de pontífices
cobiçosos e sensuais levaram o ofício de Pedro ao nível mais baixo desde o Reinado
das Meretrizes.
O paraíso papal da Provença
Os papas de Avignon não foram uniformemente nem bons nem maus. Um bom
representante foi Clemente VI, eleito no ano de 1342. Homem sem malícia nem
princípios morais, teve o mérito de ser um bom pagão.
O seu nome civil era Pierre Roger de Beaufort, monge beneditino, Arcebispo de
Rouen, chanceler de sua Majestade o Rei de França. O rei deu-lhe a protecção de que
sua Santidade precisava se quisesse viver comme il faut. O facto é que Clemente não
gostava da Itália nem dos italianos.
Tinham passado quarenta e cinco anos desde que Clemente V tinha feito aquela
inspirada troca: o Tibre pelo Ródano; os pântanos de Roma cheios de malária, cólera e
tifo, onde parecia que todos se queriam matar uns aos outros, pela perfumada
Provença.
Antes do seu tempo, vários papas — Celestino V, por exemplo — nunca tinham visto
Roma; o próprio Clemente VI nunca tinha posto os pés na Itália. Nem os seus
antecessores próximos, João XXII e Benedito XII. Clemente estava determinado a
manter esta bela tradição francesa. Isto explica a enorme despesa que fez no seu novo
palácio no Rocher de Doms, junto do Ródano.
Ao contrário de Benedito XII, que era um desmancha-prazeres, Clemente sabia como
gastar. «Antes de mim ninguém fazia ideia de como ser papa» brincava ele muitas
vezes. «Se o rei da Inglaterra quiser fazer do seu burro bispo, é só pedir». Uma vez, um
burro entrou no consistório com um cartaz pendurado ao pescoço: «Por favor, faça-me
também bispo». Clemente não levou a mal, como aconteceu também quando recebeu
uma carta em pleno consistório. A carta dizia: «Do Diabo para o seu irmão Clemente».
Ele e os seus “diabinhos”, os cardeais, desataram às gargalhadas.
83
O único objectivo de Clemente era fazer os seus súbditos felizes. Conseguia isto
esbanjando com o mais cobiçoso dos peticionários mais do que aquilo que ele se
atreveria a pedir. Alguns cardeais tinham entre quatrocentos e quinhentos dos maiores
rendimentos. Isto significava que podiam ter os rapazinhos mais formosos, se tivessem
essa inclinação, ou as mais belas damas de companhia. Em Avignon toda a gente vivia
bem: músicos, artesãos, banqueiros, ourives, astrólogos, carteiristas e as
espectaculares prostitutas. Poucos se queixavam por Baco e Vénus serem mais
venerados em Avignon do que Jesus Cristo.
Um dos que realmente se queixaram foi Petrarca, o grande académico e Poeta
Laureado do Império. Uma coisa que o deixou irritado foi o facto de Benedito XII ter
desejado a sua irmã. Recusou mesmo um chapéu de cardeal como parte do negócio.
Mas Benedito, mesmo assim, conseguiu tê-la; subornou o irmão do poeta, Gerardo.
Depois de ter estado em Avignon, Petrarca descreveu — anonimamente, porque não
queria ir para a fogueira — a corte papal como «a vergonha da humanidade, uma
sarjeta de vícios, um esgoto onde se junta toda a porcaria do mundo. Lá, Deus é
desprezado, só o dinheiro é que é venerado, e as leis de Deus e dos homens são
espezinhadas. Tudo lá exala mentira: o ar, a terra, as casas e sobretudo os quartos de
dormir».
O Papa Clemente sofria de uma “enfermidade” diagnosticada oficialmente como um
problema de rins, mas que tinha sido contraído no seu quarto de dormir. Ele não fora
prudente nas suas aventuras amorosas, toda a gente o sabia, mas isso fazia parte da
sua liberalidade. Nunca foi capaz de negar os seus favores, mesmo na cama. “Sessões
de indulgência plena”, assim eram chamadas. Mas ultimamente tinha já legitimado
todos os filhos.
Uma grande parte do seu palácio foi entregue à Inquisição. A câmara de tortura era
ampla, sólida e aberta no topo, com paredes irregulares, nas quais ecoavam os gritos
estridentes dos prisioneiros no meio do silêncio. Para encorajar os frades, Clemente
trepou uma ou duas vezes a escada em caracol de La Salle de Torture até à masmorra
por cima daquela, onde havia um buraco no meio do soalho. De gosto delicado como
era, não gostava de ver os corpos estropiados a serem lançados pelo buraco e a caírem
na câmara de tortura, mas, raciocinava ele, a heresia tinha de ser eliminada de qualquer
maneira.
Froissart, o diarista francês, viria a chamar ao palácio de Avignon «o edifício mais
belo e mais forte do mundo». Sete torres erguiam-se para o céu e, em frente, espessas
paredes brancas com balestreiros belamente guarnecidos de mísulas reflectiam o sol.
Do cume, Clemente podia olhar em baixo o Ródano correndo sob a grande ponte de
Saint-Bénézet. Esta ponte, com o seus dezanove arcos, levou doze anos a construir e
alguns dos arcos assentam na ilha no meio do rio. Os jovens costumavam dançar e
cantar debaixo dela e fazer amor sobre a relva. «Sou le pont d’Ávignon on y dance tout
en rond».
Sua Santidade admirava a beleza de todas as coisas. Em primeiro lugar, a da mulher,
essa puríssima arquitectura de carne, mas também a dos edifícios de pedra. As suas
tapeçarias vinham de Espanha e da Flandres, os tecidos de ouro, de Damasco, na Síria,
as sedas, da Toscânia, os tecidos de lã, de Carcassonne. A baixela de ouro e prata que
pesava à volta de duzentos quilos, era-lhe muito querida. Ele queria desesperadamente
ganhar as guerras italianas e reconquistar a Terra Santa para Cristo, mas não se isso
significasse ter de vender a sua baixela. Ficaria muito mais barato mandar os seus trinta
capelães rezar por milagres.
Desconfiava que fora Petrarca que escrevera aquele malévolo poema sobre como
em Avignon os cavalos tinham ferraduras de ouro. O pontífice sabia que uma tal calúnia
84
não afectava a sua reputação. Só os freios é que eram de ouro. Ele era o papa; tinha de
pôr um certo ar. Os cardeais em particular apreciavam muito esta sua generosidade.
Não era com tostões que se podia construir as suas grandes habitações do outro lado
do Ródano, em Villeneuve, ou mantê-las com o necessário corpo de cento e cinquenta
serviçais.
O refúgio favorito de Clemente era um pequeno quarto na torre, com um cama de
casal, com a fragrância do perfume da Condessa de Turenne. No tempo de Clemente V,
aqueles que procuravam as bênçãos do pontífice deixavam as suas petições no seio
sedoso da bela Perigord, filha do Conde de Foix. Mas Clemente VI achava que a sua
condessa não tinha comparação. De todos os colos em que a sua nobre cabeça
repousara, o de Cecília era de longe o mais doce.
Apesar de ter feito da Cúria a máquina financeira mais eficiente da história, andava
sempre com dificuldades de dinheiro. A compra da cidade inteira em 1348 tinha-lhe
custadooitenta mil florins. Considerava este negócio o melhor investimento alguma vez
feito por um papa, mas alguns andavam a dizer que a Igreja nunca mais se recomporia
daquela sua imprevidência.
Em 1350, o distrito de Avignon estava muito movimentado com os peregrinos a
caminho de Roma. Chegavam aos milhares, vestidos com os tradicionais mantos de
viajante ou trajos nacionais. Uns vinham a cavalo, outros em carroças a abarrotar com
os seus haveres; a maioria vinha a pé, de cajado na mão. Clemente apreciava o
simplismo da sua piedade. Levavam semanas a chegar a Roma, para o Jubileu,
trilhando sombrios desfiladeiros alpinos cobertos de neves eternas antes de chegarem
às encostas revestidas de ciprestes e vinhas da Itália e iniciarem a longa jornada para
sul. Muitos nunca lá chegavam; morriam de velhice ou de doença, eram assaltados ou
assassinados. Os mais afortunados depunham as suas dádivas no túmulo de S.Pedro
para os clérigos as apanharem como feno e as mandarem ao sucessor de Pedro em
Avignon.
Bonifácio VIII decretara um Jubileu em cada século. Para Clemente isto parecia
mesquinho. Reduziu o prazo para cinquenta anos. Os resultados surpreenderam-no a
ele próprio, mas a maioria dos peregrinos queria agradecer a Deus o ter escapado à
Peste Negra. Em três anos, a Peste dizimou um terço da Cristandade, incluindo Roma.
Avignon perdera mais de metade da população. Quando a doença começou a atacar,
como não notasse qualquer movimento no interior do mosteiro Carmelita, uma alma
corajosa forçou a entrada e encontrou todos os 166 monges mortos. Num único dia, o
balanço das vítimas na cidade foi de 1312. As pessoas contaminadas morriam
geralmente em quarenta e oito horas. Algumas cidades ficaram vazias. O gado nos
prados e colinas morria por falta de assistência. Os barcos no mar, com a tripulação
toda morta, despedaçavam-se contra as rochas. Muitos culpavam os Judeus,
queimando, enforcando e afogando milhares deles num piedoso esforço para se verem
livres da peste. Em Avignon, Clemente protegera os Judeus. Portanto não lhe agradava
nada ouvir dizer que não foram os Judeus, mas sim a vida dissoluta do papa que
provocou aquela calamidade. Se ele tivesse descoberto o autor desta afirmação tê-lo-ia
mandado torturar e queimar como àqueles monges e frades, chamados “espirituais”,
que insistiam, contra toda a evidência, que Jesus tinha vivido na pobreza e não como as
«prostitutas da Nova Babilónia», como Avignon era conhecida.
Havia muitas pessoas em Roma que desejavam que o pontífice regressasse à sua
diocese. A Rainha Bridget da Suécia era uma delas, e a jovem Catarina de Siena era
outra. As duas, que mais tarde viriam a ser canonizadas, passavam os dias a rezar e a
85
escrever longas cartas a Clemente. Apelavam a que pusesse fim àquele escândalo e
regressasse a casa.
Bridget, com quase cinquenta anos, era famosa pelas suas visões e sonhos. Por
vezes, quando contava os mais perturbadores de entre eles, os cidadãos cercavam-lhe
a casa na Piazza Farnese, em Roma, gritando que a Principessa, como lhe chamavam,
devia ser queimada como bruxa.
Jesus falara com ela pela primeira vez quando ela era ainda uma criança. Nunca
mais esqueceu aquela visão do seu amado estendido sobre as tábuas, como uma ave
de rapina pregada na porta de um celeiro. Na sua noite de núpcias, só pediu ao esposo
Ulf uma coisa: que o casamento deles fosse virginal. E assim foi durante dois anos.
Depois, teve oito filhos em rápida sucessão.
Houve um sonho que abalou mesmo esta austera dama. Apareceu-lhe S.Lourenço, o
diácono. «Este Bispo» disse ele, sem querer mencionar o nome do papa, «permite aos
padres a fornicação. Dá os bens da Igreja aos ricos». O santo desapareceu para dar
lugar a um alto cavaleiro em brilhante armadura. Bridget aproximou-se dele, tirou-lhe o
elmo, mas não foi uma forma humana que ela viu. Apenas uma carcassa mal cheirosa
de ossos ocos e vermes a contorcerem-se. Isto, ela sabia, era o papa cheio de pústulas,
moribundo e já mostrando sinais de decomposição. Se se lhe pudesse tirar a cabeça e
olhar-lhe a alma era isto o que se veria. Aquela massa fedorenta tinha orelhas na testa
para escutar a adulação; olhos na parte de trás da cabeça para ver só a podridão; e no
coração abrigava um enorme verme.
Nem mesmo Bridget podia prever que a nobre cabeça de Clemente, acariciada pelas
mais encantadoras damas da Provença, seria um dia usada como bola pelos
Huguenotes ou que o seu crânio acabaria como taça na mesa do Marquês de Courton.
Em 3 de Dezembro de 1352, um vento quente e húmido, fora de época, vindo de
África, atingiu Roma. O calor era insuportável, estava a gerar-se uma trovoada. A
escuridão ameaçadora foi subitamente rasgada por relâmpagos; nesse mesmo
momento, houve um estalido muito vivo e um estranho toque metálico de sinos. Bridget
sentiu que o raio tinha caído perto. Saindo de casa no meio da escuridão de breu e da
chuva torrencial, dirigiu-se instintivamente para a Basílica de S.Pedro. A basílica tinha
sido atingida e os sinos tinham derretido. No mercado, toda a gente começou a festejar.
«Morreu. Sim, o papa morreu e está enterrado bem fundo no Inferno».
Três dias depois, os sinos de Avignon dobravam a anunciar oficialmente que o Bispo
de Roma, Clemente VI, de feliz memória, já não vivia. Durante nove dias seguidos,
naquela enorme capela, agora a gelar, cinquenta padres disseram missa pelo repouso
da sua alma.
Os misericordiosos diziam: Não chega. Os desapiedados diziam: Nunca será demais.
86
87
6
A Descida do Papado aos Infernos
Em muitas gerações de católicos se disse: «O papado atingiu agora o seu nível mais
baixo». Disse-o Dante de Bonifácio VIII. Disse-o Petrarca do Exílio Babilónico no período
de Avignon. Ambos os eminentes poetas estavam enganados. Os dias mais negros
ainda estavam para vir.
A podridão instalou-se quando Catarina de Siena foi a Avignon para pressionar o
pontífice reinante, Gregório XI, a voltar para Roma. Era o ano de 1377. Sete papas
franceses seguidos tinham tornado o seu cantinho da Provença a maravilha do mundo.
As mulheres da corte papal, despeitadas, não tiveram piedade de Catarina, aquela
freira pálida e rude da Toscânia que parecia ter encantado sua Santidade. Talvez ele
tivesse ficado impressionado com o seu êxtase na comunhão. Se ela se tornasse muito
influente, elas teriam de fechar os seus salons, onde jovens deslumbrantes, filhos de
duques e príncipes, vinham à procura de cargos eclesiásticos. Na capela revezavam-se
para lhe picarem e beliscarem o corpo insensível para ver se o seu transe era genuíno
ou não. Uma malvada furou-lhe um pé com uma agulha comprida de tal maneira que
Catarina ficou impossibilitada de andar durante dias.
No fim ela ganhou. Gregório voltou para Roma, sem seis dos seus cardeais que não
conseguiam deixar as suas casas apetecíveis, as suas mulheres provençais e os seus
vinhos da Borgonha. Um ultimato dos Romanos, segundo o qual se ele não voltasse
eles elegeriam outro papa, pode também tê-lo influenciado. Em 278 anos, desde 1100,
os papas só tinham passado oitenta e dois em Roma. Estes papas nómadas tinham
passado uns longos 196 anos noutras partes. Não era um bom recorde; e o exemplo
não se ficou pela Igreja.
A Cidade Eterna depressa acabou com Gregório. Depois é que a verdadeira tragédia
de Avignon se revelou.
Um papa, dois papas
Depois da morte de Gregório, o conclave, reunido para nomear o sucessor, estava
dividido em duas facções, franceses e italianos. Durante o exílio, sete papas de Avignon
tinham feito 134 cardeais, todos eles franceses, à excepção de vinte e dois. Os
franceses estavam naturalmente determinados a manter o papado para si próprios.
Como Latrão tinha ardido, o conclave reuniu no Vaticano.
Lá fora, uma multidão de, segundo se dizia, trinta mil pessoas gritava-lhes que
escolhessem finalmente um italiano. A escolha era muito limitada. Havia apenas quatro
cardeais italianos e nenhumdeles papabile. Para lograr o seu intento, a multidão encheu
de lenha a sala que ficava por cima do local da reunião e por baixo passaram toda a
noite a bater nas tábuas do soalho com lanças e alabardas. E como se isto não
bastasse, tocaram o sino do Capitólio, a que se juntaram os sinos da Basílica de
S.Pedro. De manhã a multidão perdeu completamente a paciência e arrombou a porta
do conclave.
88
Dos dezasseis cardeais presentes, todos esfomeados e sem dormir, treze votaram num
estranho, Bartolomeu Prignano, o Arcebispo de Bari, entroncado, de pequena estatura e
rosto amarelado. Não era romano. Um napolitano foi o melhor que eles puderam
arranjar. Na dúvida de que aquilo fosse suficiente, vestiram, contra sua vontade, um
romano octogenário, o Cardeal Tebaldeschi, com as vestes papais e mostraram-no. Um
mensageiro partiu apressadamente para Pisa, onde a eleição de Tebaldeschi foi
celebrada com fogo de artifício. Entretanto, os franceses fugiram a sete pés. Durante
dois dias ninguém se preocupou em dar a notícia a Prignano nem a prestar-lhe as
costumadas homenagens. Quando finalmente soube, tomou posse com o nome de
Urbano IV.
O Arcebispo de Bari, de família humilde, fora durante quinze anos um funcionário da
Cúria muito meticuloso, mas pacífico e obediente. Os nobres cardeais franceses tinham
a certeza de que ele continuaria a fazer o que lhe mandassem e que levaria a corte de
volta a Avignon. Enganaram-se grave e redondamente sobre o seu homem.
Urbano IV veio a revelar-se um dos pontífices mais rancorosos e de temperamento
mais vil. O seu médico revelou que ele mal tocava na comida, mas não podia passar
sem o álcool. Segundo o Cardeal da Bretanha, no banquete da coroação, ele bebeu oito
vezes mais do que qualquer dos outros membros do Sacro Colégio — embora alguns
tenham dito que isto não era humanamente possível. A bebida, a religião e a vingança
— todos em excesso — provaram ser uma potente mistura.
Nascido e criado nas vielas malcheirosas de Nápoles, não tinha estômago para os
fracos e pretensiosos cardeais franceses. Contava-se que lhes pregava sermões como
Jeremias com dores de barriga. Queria corrigi-los a qualquer preço. Na sua voz aguda
de eunuco, falava-lhes abertamente do Cardeal Orsini como sendo sotus (“pateta”). Uma
vez, de rosto vermelho de raiva, só não bateu no Cardeal de Limoges porque Robert de
Geneva lhe segurou o braço. «Que fazeis, Santo Padre?» Quando estava para
excomungar outro membro de Sacro Colégio por simonia e Geneva interveio de novo,
Urbano ladrou como um cão: «Eu posso fazer tudo, absolutamente tudo o que quero».
Um grande número de cardeais considerava que aquelas fúrias eram sintoma de
loucura. Consultaram um jurista respeitado: Haveria algumas circunstâncias em que os
cardeais pudessem substituir-se a um papa incapacitado? Urbano soube disto e provou
que ainda estava no seu juízo perfeito.
Primeiro, excomungou um velho inimigo, o Rei Carlos de Nápoles, que acusou de
estar por detrás daquela “rebelião”. O rei reagiu bloqueando Sua Santidade na sua
fortaleza de Nocera, perto de Pompeia. Urbano subia às muralhas quatro vezes por dia,
e serenamente, com a campainha, o livro e a vela, excomungou todo o exército que o
atacava. Parecia ignorar as setas que caíam à sua volta.
Resgatado pelos Genoveses, mandou prender os cinco cardeais rebeldes. Foi visto
depois em Génova, possivelmente entorpecido pelo álcool, a passear de um lado para o
outro no jardim e a recitar o breviário a plenos pulmões. Numa câmara próxima, estavam
os rebeldes a ser torturados. Os seus gritos não perturbavam de modo nenhum a sua
paz com Deus.
Amarrado, o velho Cardeal de Veneza estava a ser levantado e baixado numa
roldana. Com a cabeça comprimida contra o tecto, conseguia ver o papa através das
grades da janela, e de cada vez resmungava em agonia: «Santo Padre, Cristo morreu
pelos nossos pecados». Depois era descido até ao chão. Os prisioneiros nunca mais
foram vistos.
Alguns cardeais franceses escapuliram-se separadamente e reuniram-se de novo em
Anagni, onde prepararam uma Declaratio contra Prignano. Ele não era papa. Apenas o
89
tinham elegido, afirmavam eles, com medo da multidão. Escolheram outro pontífice:
Robert de Geneva, primo do rei de França, que se chamou Clemente VII. Urbano contra-
atacou nomeando vinte e seis novos cardeais que lhe deviam fidelidade.
Já tinha havido dois papas em numerosas outras ocasiões, mas a presente crise era
única. Estes dois papas tinham sido eleitos por mais ou menos o mesmo grupo de
cardeais. Assim, quando estes afirmavam que a sua escolha de Urbano não tinha sido
genuína, faziam-no com autoridade, mesmo que estivessem a mentir.
Na Inglaterra, Wycliff lançou o primeiro sarcasmo: «Eu sempre soube que o papa
tinha os cascos fendidos. Agora tem também a cabeça».
A Cristandade foi obrigada a tomar partido. Se Urbano tinha sido de facto escolhido
sob coacção, a eleição era inválida. Mas se eles estavam assim tão amedrontados por
que é que não tinham escolhido um romano — por exemplo, o velho Tebaldeschi — e
não se tinham retirado logo para Anagni para registar uma queixa oficial? A escolha de
um saudável Napolitano e uma demora de três meses eram suspeitas. Como Catarina
de Siena sensatamente lembrou, se eles já tinham um falso papa em Tebaldeschi, para
que é que precisavam de outro? Dava a impressão de que os franceses se queriam
descartar de alguém com quem não era possível uma relação.
Seguiu-se o caos. Um papa ausente já era uma coisa bastante penosa; agora a
própria Sede da Unidade estava a tornar-se fonte de desunião. Pelo decreto de eleição
de 1059, um papa não canonicamente eleito pontífice romano era chamado de “o
Destruidor da Cristandade”. Isto provou-se ser o caso. Se os cristãos não conseguiam
identificar o verdadeiro papa, para que servia o papado? O rei da Inglaterra apoiou
Urbano, o rei de França, Clemente. Nas universidades não havia consenso.
O coxo e vesgo Clemente VII, como era de prever, voltou com os seus seguidores
franceses para Avignon, onde a sua conduta foi tão má que não se tornou em nada
diferente de um genuíno papa de Avignon. Já provara ser matéria prima papal quando,
em 1377, agira como legado do papa em Cesena, no Adriático. Os locais protestaram
contra os mercenários que violaram as suas mulheres, e mataram alguns dos culpados.
Depois de conferenciar com os responsáveis da cidade, convenceu-os a deporem as
armas. Em seguida enviou para lá uma força mista de Ingleses e Bretões para chacinar
todos os oito mil habitantes, incluindo as crianças.
Dois papas, três papas
Em Outubro de 1389, Urbano, o papa que ninguém queria, realizou a única boa acção
da sua vida: morreu. Os catorze cardeais que restavam em Roma escolheram para o
substituir Bonifácio IX, um assassino e provavelmente o maior simoníaco da história.
Vendeu todos os benefícios eclesiásticos a quem deu mais, daí resultando que a
Alemanha e a França enxameavam de padres italianos, muitas vezes soldados
reformados, que não sabiam uma palavra da língua. Os irmãos de Bonifácio, os
sobrinhos e sobretudo a mãe foram quem mais beneficiou desta sua liberalidade. Dizia-
se que ninguém jamais fizera tanto dinheiro com as canonizações. Nunca assinava
qualquer documento sem logo estender a mão a exigir: «Um ducado». A única coisa por
que ele não cobrou dinheiro foi a excomunhão de Clemente de Avignon. Clemente
retribuiu-lhe o cumprimento.
E assim continuaram as coisas. Quando morria um papa ou um antipapa, em vez de
porem um fim à situação, os respectivos grupos de cardeais escolhiam um sucessor. O
que são os cardeais sem um papa próprio?
90
Por esta altura, a Cristandade começava a ficar farta. Quem é que, afinal, quer
comprar um bispado ou uma abadia a um pontífice que se revela um impostor? E se
uma indulgência muito cara ou a autenticação de umas relíquias como o prepúcio do
Salvador ou o seu umbigo não valessem opergaminho em que estavam escritos? Havia
mesmo confusão no céu. Bridget da Suécia viria a ter um recorde de três canonizações
para se ficar com a absoluta certeza de que era mesmo santa.
O cisma também era mau para o negócio. Os banqueiros coração-de-pedra rezavam
fervorosamente para que aquilo acabasse. Toda a vida do Império estava desintegrada.
Quem diabo é que iria coroar o próximo imperador?
Das universidades veio a sugestão de que, uma vez que a unidade da Igreja era
prioridade maior do que o papado, e que Cristo, e não o pontífice romano, é que era o
Chefe supremo da Igreja, era melhor retirar o apoio a ambos os papas. Os historiadores
convidaram o imperador a depô-los com o sólido fundamento de que já muitos
imperadores tinham feito isso antes e que a sua intervenção seria universalmente
aplaudida. Contudo, a partir do papa-menino, no século XI, o papado tornara-se mais
poderoso do que qualquer imperador. E agora, apesar de toda aquela confusão, um dos
papas era autêntico. E se o imperador destituísse o papa errado? Não seria o mesmo
que retirar a Bíblia da Igreja e substituí-la pelo Corão? O mesmo dilema se poria a um
Concílio. Se se reunisse um Concílio para depor ambos os pretendentes, uma das
deposições seria inválida, mas qual delas? Um outro problema era que os juristas desse
tempo afirmavam que só um papa — o genuíno — podia convocar um Concílio.
O estado catastrófico da Igreja significava que tinha de se fazer qualquer coisa, a
despeito da névoa canónica.
Em 1409 foi convocado um Concílio na maravilhosa cidade muralhada de Pisa, cuja
torre, tal como a própria Igreja, já estava inclinada.
Foi na Duomo, revestida de mármore preto e branco, sob o majestoso retrato de
Cristo de Cimabue, que se reuniram os padres mitrados. Declararam solenemente que
os papas em conflito, Gregório XII de Roma, e Benedito XIII de Avignon, eram ambos
hereges e cismáticos. Foi uma medida inteligente: os papas que caíam em heresia
depunham-se, em certo sentido, a si próprios.
Em meados de Junho escolheram como substituto o Cardeal Filargi de Milão, um
piedoso Franciscano septuagenário e desdentado, de família desconhecida e votado à
pobreza. Tinha três defeitos difíceis de esconder. Embora magro e de pequena estatura,
passava metade do dia à mesa; mantinha um palácio com quatrocentos serviçais, todos
mulheres e todos vestidos de libré; distribuía benefícios eclesiásticos de maneira tão
liberal que até os cardeais ficavam admirados.
Filargi aceitou o nome de Alexandre V. Ao som dos sinos, vestido a rigor, desde as
sapatas vermelhas à tiara, Filargi percorreu as ruas de Pisa, montado num cavalo
branco.
Os prelados saudaram-no aliviados. Passados trinta confusos anos, o Grande Cisma
terminava.
Só que Gregório e Benedito não concordaram, e assim o mundo acordou um dia
espantado com a notícia que lhe chegava: ontem tínhamos só dois papas, agora temos
três.
Dizia um galhofeiro que a tiara tripla devia ser dividida, uma vez que a Igreja agora
tinha três cabeças para pô-la. Tornou-se muito popular uma nova versão do Credo:
«Creio em três Santas Igrejas Católicas». Os fiéis já tinham suportado gerações de
papas ausentes, com períodos de dois a três anos em que não havia papa nenhum por
os cardeais não se entenderem. O cenário actual era o pior de todos.
91
A única certeza saída de Pisa devia ter sido a de que o homem que eles escolheram
não era papa; depois seguiu-se um espectáculo nunca visto: três papas infalíveis, todos
a reclamarem a suprema autoridade sobre a Igreja, todos a excomungarem solenemente
os outros dois, todos a ameaçarem convocar um Concílio próprio em três lugares
diferentes.
Os dramatis personae deste teatro do absurdo eram os seguintes:
(1) Angelo Corrario, Gregório XII, veneziano, com perto de noventa anos e muitos
“sobrinhos”, descendente em linha recta do intratável Urbano VI. Fora escolhido
pela jurisdição romana porque, como o Cardeal de Florença confessou, «É velho
e frágil demais para ser corrupto». Outro erro fatal. O primeiro acto papal do
velho homem foi empenhar a tiara por seis mil florins para pagar as suas dívidas
de jogo. Foi para Rimini e daí vendeu em Roma tudo o que era móvel e algumas
coisas que o não eram, como a própria Roma, por exemplo, ao rei de Nápoles.
(2) Piedro da Luna, um espanhol histérico, que representava a ressuscitada jurisdição
de Avignon. Era o que menos contava. Deixado cair pelo rei de França e por
todos menos três dos seus cardeais, em breve voltou para a sua Espanha natal,
onde insistia que era o verdadeiro papa e praticamente excomungou toda a
Igreja.
(3) Baldassare Cossa, João XXIII. Alexandre V morrera passados apenas dez meses
e era Cossa, um pontífice melífluo, encantador e cruel, quem representava a
jurisdição de Pisa. Constava que nunca se confessara nem comungara. E nem
acreditava na imortalidade da alma nem na ressurreição dos mortos. Alguns
duvidavam que ele acreditasse em Deus.
Era conhecido como antigo pirata, envenenador de papas (pobre Filargi),
assassino em série, fornicador em série, com queda para as freiras, adúltero
num grau desconhecido fora da ficção, simoníaco por excelência, chantagista,
proxeneta, mestre em estratagemas sujos.
Quando da sua eleição para o papado em Bolonha, Cossa era diácono.
Ordenado padre num dia, no outro foi coroado papa.
Este charlatão foi reconhecido pela maioria dos católicos como senhor e
soberano que mantinha a Igreja unida pela sua fé de pedra. Quando um outro
Papa João XXIII foi eleito em 1958, várias catedrais católicas tiveram de retirar à
pressa o nome do João XXIII do século XV das suas listas de pontífices.
Um concílio muito embaraçoso
A maré de sorte de Cossa virou quando Segismundo, imperador eleito, o persuadiu a
convocar um Concílio «para reduzir o número de papas, de acordo com o Evangelho».
O local seria a cidade muralhada de Constança no sul da Alemanha, na fronteira com a
Suíça. Em apenas meses a sua população iria aumentar de seis mil para sessenta mil e
depois duplicar.
Quando o clero se reunia em grande número era sempre prudente escolher uma
cidade perto da água — lago ou rio — para se desfazerem dos corpos. O Lago
Constança recebeu mais de quinhentos durante os trabalhos do Concílio; também o
Reno escondeu muitos segredos. Outro requisito era que o local do encontro fosse
suficientemente grande para acomodar o vasto número de prostitutas que achavam que
o clero requeria os seus serviços mais urgentemente do que os militares e pagava
92
preços mais interessantes. Durante o Concílio foram calculadas em mais de mil e
duzentas as prostitutas em Constança a trabalharem vinte e quarto horas por dia.
No Dia de Todos os Santos de 1414, João XXIII, um flibusteiro de quarenta e oito
anos, cheio de gota, enfeitado de ouro, celebrou missa e pregou na abertura formal do
Concílio Geral. Foi uma reunião maciça, que incluiu trezentos bispos, trezentos teólogos
de topo e os cardeais de todas as três jurisdições.
Huss, reitor da Universidade de Praga, a quem Segismundo tinha garantido
segurança, foi imediatamente preso por ordem de Cossa. Era uma lição para todos,
especialmente para o Papa Benedito (a quem chamavam Benefictus, - “Falso”) e para o
Papa Gregório (que apelidavam de Errorius, - “Erro”).
João XXIII tinha corrido um risco ao atravessar os Alpes para entrar em terras
imperiais, mas tinha votos suficientes no bolso para se sentir seguro. Havia então, como
mais tarde, mais bispos italianos do que de todas as outras nacionalidades juntas. O que
o derrotou foi a decisão do Concílio de se votar não individualmente, mas por nações. A
sua maioria foi imediatamente varrida e ele viu que havia três para um contra ele. A
seguir, às primeiras horas da manhã do dia de Natal, chegou Segismundo, que o
mandou resignar.
Cossa viu a acusação, um enorme catálogo dos seus delitos redigidos com perversa
eficácia. As patroas de todas as casas deprostitutas da Cristandade devem ter
testemunhado contra ele. Quando soube das crescentes exigências, especialmente dos
ingleses, para que o queimassem para acabar com aquilo, concordou em resignar,
desde que os outros dois papas fizessem o mesmo. Depois, disfarçado de criado, saiu
de Constança à noite. Sem papa nenhum, não poderia haver Concílio nenhum, deve ele
ter raciocinado. Entre a mão cheia de cardeais que se lhe juntaram no seu esconderijo a
trinta milhas de distância, em Schaffhausen, estava Oddo Colonna. Os guardas
imperiais trouxeram-no de volta para enfrentar a música.
O Concílio tinha entretanto assumido plena autoridade. Nas quarta e quinta sessões
fez uma declaração de fé unânime, que nunca mais abandonou a Igreja até hoje.
O Sagrado Concílio de Constança […] declara, primeiro, que está
legalmente reunido no Espírito Santo, que constitui um Concílio
Geral que representa a Igreja Católica, e que, portanto, recebeu a
sua autoridade de Cristo; e que todos os homens de todas as
categorias e condições, incluindo o próprio papa, estão obrigados a
obedecer-lhe nas questões de fé, na extinção do cisma e na
reforma da chefia e dos membros da Igreja de Deus.
Eneias Sílvio, que um dia viria a ser o Papa Pio II, escreveu: «Poucos duvidarão de
que um Concílio está acima de um papa». Por que havia alguém de duvidar? A antiga
doutrina da Igreja era que um Concílio Geral era soberano na fé e na disciplina. Com
base nesta doutrina, mais do que um papa foi condenado em Concílios por heresia,
como se verá na Parte 2 deste livro.
Foram momentosas as consequências do Concílio de Constança. Se o papa está
obrigado a obedecer à Igreja nas questões de fé, não pode por si só, e sem o
consentimento da Igreja, ser infalível. De facto, quando fala independentemente do
Concílio, o papa pode bem errar na fé. Esta doutrina foi esbatida por papas medievais
como Gregório VII e Inocêncio III, por meios duvidosos.
O Concílio de Constança, depois de afirmar a sua autoridade sobre o papa,
procedeu à aplicação prática dessa autoridade depondo, em primeiro lugar, Benedito,
que já estava em fuga para Peñiscola.
93
A seguir foi João XXIII. Este recusou firmemente a resignação. Os padres do
Concílio concordavam que ele era o papa legítimo, mas a Igreja era mais importante do
que o papado. As acusações contra ele foram reduzidas de cinquenta e quatro para
cinco. Como, caracteristicamente, Gibbon observou em Decline and Fall: «As
acusações mais escandalosas foram suprimidas; o Vigário de Cristo era acusado de
pirataria, assassínio, violação, sodomia e incesto». Toda a gente sabia que, desde que
se tornara Vigário de Cristo, o único ofício que ele exercia era na cama. É muito
significativo o facto de João XXIII ter sido absolvido de heresia, provavelmente por
nunca ter mostrado interesse bastante pela religião para ser classificado como
heterodoxo. Até então, a única acusação suficientemente grave para depor um papa
era a de heresia. Cossa foi deposto simplesmente porque não se comportava como um
papa se deve comportar.
Em 29 de Maio de 1415, os selos oficiais de João XXIII foram solenemente
esmagados a martelo. Mas um ex-papa, tal como um ex-presidente, tem direito à
consideração. Apesar da sua enorme promiscuidade, apenas lhe aplicaram uma
sentença de três anos de prisão.
Huss, corajoso, casto, incorruptível, severamente contrário à simonia e à
concubinagem do clero, teve um destino mais sombrio. Sem direito a defesa, julgado
por uma acusação forjada, interrogado por Dominicanos que não tinham lido os seus
livros, nem sequer em tradução, foi condenado à morte. Com um alto chapéu decorado
com três diabos dançantes, ladeado pelos espadachins do Conde Palatine, foi levado
da prisão num belo dia de verão de 1415. Praticamente toda a cidade seguiu o cortejo,
que passou pelo cemitério onde os livros de Huss estavam a ser queimados num
brilhante prado verde. Rezou pelos seus perseguidores quando o fogo foi ateado. Por
três vezes o ouviram dizer «Cristo, tu que és o filho de Deus vivo, tem misericórdia de
mim» antes de o vento lhe ter soprado as chamas para o rosto. Os lábios ainda se
moviam quando, sem um gemido, expirou. Para evitar que viesse a ser venerado como
mártir, as suas cinzas foram atiradas para o Reno. Era evidentemente maior pecado
dizer, como Huss e o Novo Testamento, que depois da bênção a Eucaristia se devia
ainda chamar de “pão” do que ser um papa cobiçoso, assassino e incestuoso que
enganou a Igreja em tudo.
Finalmente, Gregório XII, agora com noventa anos e muito abatido, convocou o
Concílio, que tinha estado em funções durante meses, e depois resignou. Completadas
estas formalidades, todos os três papas estavam arrumados. A Cristandade podia
respirar outra vez.
Segismundo, ele próprio um libertino, queria reformar rapidamente a Igreja, antes
que um novo pontífice fosse eleito, raciocinando que jamais se poderia confiar num
papa para reformar a Igreja. Durante séculos, argumentava ele, o papado não esteve à
altura de tal tarefa. Nesta altura, os clérigos castos eram tão poucos que aqueles que
não tinham mulher nenhuma eram acusados de vícios ainda piores.
Infelizmente Segismundo não foi apoiado pelo rei de França, nem por Henrique V de
Inglaterra, acabado de sair vitorioso em Agincourt.
O Cardeal Oddo Colonna, que jurara fidelidade a João XXIII quando este fugira para
Schaffhausen, foi escolhido sem demora, e chamou-se de Martinho V. Com cinquenta
e cinco anos, era um eclesiástico de nascimento e criação, sendo filho de um dos
cardeais de Urbano VI, Agapito Colonna. A Igreja tinha de novo um só papa. Agora já
não havia qualquer esperança de reforma, embora se pensasse muito em disciplinar o
clero.
Dois dias depois da eleição, Colonna, que era diácono, foi ordenado padre. Era o dia
13 de Novembro de 1417. No dia seguinte foi sagrado bispo. Uma semana depois,
94
após ser coroado papa, foi para o altar para o beija-pé antes do desfile a cavalo, em
procissão, pela cidade. Segismundo e Frederico de Brandenburgo cavalgavam a seu
lado, um à sua esquerda e o outro à sua direita.
Tal como João XXIII, o único objectivo de Martinho era sair de Constança
rapidamente. Não tinha qualquer desejo de reformar a Cúria ou o papado. De facto,
quando Cossa foi libertado da sua confortável prisão em Heidelberga e foi para
Florença, Martinho reintegrou este assassino e violador confesso, fazendo-o bispo de
Frascati e Cardeal de Túscolo.
A ansiedade de Martinho por um rápida saída era compreensível. O maior Concílio a
que o Ocidente tinha assistido tinha decretado que os Concílios Gerais derivavam a
sua autoridade directamente de Cristo. Toda a gente, o papa incluído, está sujeito a ele
em questões de fé, resolução de cismas e reforma da Igreja. O que o deixava numa
posição delicada é que isto fora aprovado por unanimidade. Ele próprio tinha-o votado
favoravelmente como cardeal. Mas a História mostra que o papado quase
invariavelmente transforma um homem logo que ele toma o poder. Ele queria voltar
para Roma onde afirmaria a sua superioridade sobre o Concílio. Por outras palavras,
queria negar o próprio fundamento da sua eleição. Porque se o papa é o chefe
supremo da Igreja, João XXIII é que era o papa, não ele.
Esta tensão não viria a ser resolvida nos 450 anos seguintes. E só aconteceu
quando o Concílio Vaticano I afirmou que a crença na supremacia e infalibilidade papal
era necessária para a salvação. Foi elevado o preço desta resolução. O Vaticano I
contradizia tudo o que estava implícito nos primeiros Concílios da Igreja e o que fora
explicitamente afirmado em Constança. Por exemplo, de acordo com o Vaticano I,
quando um papa fala ex cathedra, as suas definições «são irreformáveis por si próprias
e não por consentimento da Igreja». O Concílio de Constança declarou que o próprio
papa «está obrigado a obedecer-lhe [ao Concílio] em matérias de fé». Esta a razão por
que Thomas More,o leigo mais bem informado do seu tempo, escreveu a Thomas
Cromwell em 1534 dizendo que enquanto que ele cria que a supremacia de Roma foi
instituída por Deus, «contudo nunca pensei que o Papa estivesse acima do Concílio
Geral».
E se o dogma do absolutismo papal do Vaticano I estivesse em vigor antes do
Concílio de Constança? Nesse caso, o Concílio não se teria sentido competente para
depor um papa e a Igreja poderia ter sido vítima da praga de uma trindade durante
séculos. Só negando pura e simplesmente aquilo que viria a tornar-se o dogma central
do Catolicismo Romano é que o Concílio Geral de Constança pôde salvar a Igreja.
Prenúncios de tempestade
Não que o Concílio de Constança tenha realmente salvo a Igreja. O Concílio
terminou sem que fosse aprovada uma única reforma importante. Semanas depois de
voltar para Roma, Martinho já tinha dado a sua bênção ao sistema curial, que antes de
mais, tinha feito ajoelhar a Igreja.
A Cristandade estava em estado de desespero. No século X, apesar de todos os
papas adolescentes, adúlteros e assassinos, o papado era um fenómeno localizado. O
chefe de uma família romana poderosa punha o seu querido filho adolescente no trono;
o rapaz provocava distúrbios durante alguns meses ou anos agitados e era emboscado
pelos membros de uma família rival cuja hora tinha chegado.
95
Mas a partir do século XI, Gregório tinha aposto o seu selo no papado, cuja estatura
e prestígio cresceram; conseguiu controlar toda a Igreja, desde o mais simples pároco
de aldeia até ao mais poderoso arcebispo. O resultado foi a mais terrível corrupção que
o Cristianismo jamais vira ou que provavelmente virá a ver.
E isto começou de cima. O papado era leiloado em conclave e entregue a quem
mais desse, independentemente do mérito do candidato. Um historiador do século XIX,
T. A. Trollope, no seu livro The Papal Conclaves (1876) avaliava as coisas assim:
«Poucas ou nenhumas eleições papais foram mais do que simoníacas. […] A invenção
do Sacro Colégio foi, afinal, talvez a mais fértil fonte de corrupção da Igreja». Muitos
cardeais iam para Roma para o conclave acompanhados dos seus banqueiros.
Levavam os seus valores, especialmente as suas baixelas de prata; se eram eleitos
papas, a multidão romana saqueava os seus palácios, e até levava portas e janelas.
Os cardeais raramente eram escolhidos por serviços prestados à Igreja. Deviam a
sua posição à trapaça e à intriga. No tempo do Renascimento quase todos tinham as
“suas companheiras”. Uma vez escolhido de entre tais homens, o novo papa, com
dinheiro fresco para sacar, não perdia tempo e começava logo a promover os familiares
— filhos, sobrinhos, sobrinhos bisnetos — sem o mínimo pejo, segundo o princípio
italiano “Bisogna far per la famiglia” (“Temos que fazer pela família”). O tempo era um
factor essencial uma vez que o papado não é hereditário e o papa podia dispor apenas
de alguns meses ou anos para estabelecer uma dinastia. Daí que tantos pontífices,
logo que punham a tiara, olhassem à volta à procura de meios para encher os bolsos.
Um bom exemplo disto foi, no século XIII, Clemente IV, que era viúvo. Vendeu milhares
de italianos do sul a Carlos de Anjou a troco de um tributo anual de oitocentas onças de
ouro. De acordo com os termos do contrato, se o duque se atrasasse no pagamento
seria excomungado. Se o atraso se mantivesse, todos os seus territórios seriam
interditos. Para um papa, privar distritos inteiros de missa e sacramentos simplesmente
por os príncipes não honrarem os seus débitos, não constituía pecado.
Os cardeais tinham enormes palácios com inúmeros serviçais. Um assessor papal
conta que nunca ia falar com um cardeal que não o encontrasse a contar as suas
moedas de ouro.
A Cúria era composta por homens que tinham comprado o cargo e queriam
desesperadamente recuperar a despesa feita. Todos os cargos em todos os
departamentos tinham o seu preço. Estes cortesãos exerciam o poder do dia a dia com
tremendas sanções à sua disposição. Podiam excomungar qualquer pessoa. Os bispos
e os arcebispos tremiam perante eles.
Era a Cúria que estabelecia a tarifa da simonia. Para cada benefício de sé, abadia e
paróquia, para cada indulgência, havia uma determinada tarifa. O pálio, uma faixa de lã
de cinco centímetros de largura, com cruzes bordadas em seda preta, era paga por
todos os bispos. Estes modestos enfeites de lã produziram ao longo dos anos centenas
de milhões de florins para os cofres papais, de tal maneira que o Concílio de Basle em
1432 havia de lhe chamar «a maquinação mais usurária inventada pelo papado». No
século XVI, na Alemanha, dioceses inteiras foram dadas em arrendamento aos
banqueiros, como os Fuggers, e a sociedades que vendiam os benefícios a retalho ao
licitante que mais oferecesse.
As dispensas eram outra fonte de rendimento papal. Aprovaram-se leis
extremamente severas ou mesmo impossíveis para que a Cúria pudesse enriquecer
com a venda das dispensas. Exigia-se o pagamento das dispensas de jejum durante a
Quaresma, como também para autorizar um monge doente ou velho a ficar na cama
em vez de se levantar de noite para o seu ofício divino. O casamento, em particular,
96
era uma rica fonte de rendimento. Alegava-se haver laços de consanguinidade entre
casais que nunca tinham imaginado serem parentes. As dispensas de consanguinidade
para casar montavam a um milhão de florins de ouro por ano.
Presumia-se durante o Renascimento que os clérigos do topo da hierarquia tinham
as mais lindas mulheres, e havia dioceses inteiras onde a concubinagem do clero se
passava perfeitamente às claras. O clero romano, ali mesmo debaixo do nariz da Cúria,
era o pior de todos. Nada disto é de admirar. Compravam-se e vendiam-se ofícios e
benefícios como qualquer outra mercadoria. O clero não tinha qualquer prática de
autodisciplina. Eles queriam simplesmente uma sinecura e uma vida ociosa. Muitos não
sabiam ler nem escrever; estavam no altar a murmurar idiotices ininteligíveis porque
nem conseguiam papaguear o latim. O pior insulto que se podia dirigir a um leigo nesta
altura era chamar-lhe padre.
Depois do Concílio de Constança, levantaram-se protestos por toda a parte. O
próprio Martinho V admitia que muitos estabelecimentos religiosos eram antros de
vício. Os bispos, as universidade e os mosteiros clamavam por um Concílio para
reformar os abusos. A Cúria, superada e vencida em Constança, persuadiu o papa de
que um Concílio não seria vantajoso para ele.
Contudo, em Constança, tinha-se tomado um compromisso solene de que haveria
um Concílio dentro de dez anos, e depois em intervalos regulares. Apesar dos esforços
da Cúria para o inviabilizar, realizou-se um Concílio em Basle em 1432. Os bispos
mostraram que as suas intenções eram sérias.
A partir de agora, todas as nomeações eclesiásticas serão feitas de
acordo com os cânones da Igreja; toda a simonia cessará. A partir
de agora, todos os padres, da mais alta ou mais baixa categoria,
deixarão as suas concubinas, e quem quer que, a partir de dois
meses após este decreto, não cumpra as suas exigências será
privado do seu ofício, mesmo que seja o Bispo de Roma. A partir de
agora, a administração eclesiástica de cada país deixará de
depender do capricho do papa. […] Acabará o abuso, por parte do
papa, do banimento e do anátema. […] A partir de agora, a Cúria
Romana, isto é, os papas, não exigirão nem receberão quaisquer
taxas pelos ofícios eclesiásticos. A partir de agora, um papa deve
pensar não nos tesouros deste mundo, mas tão só nos do mundo
vindouro.
Isto não era brincadeira. Brincadeira nenhuma. O papa em exercício, Eugénio IV,
convocou o seu próprio Concílio em Florença. Rotulou o Concílio de Basle de «uma
turba de pedintes, simples criaturas ordinárias, a escória do clero, apóstatas, rebeldes
blasfemos, sacrílegos, cadastrados, homens que, sem excepção, apenas merecem ser
acossados de volta para o diabo de onde vieram».
O papado desperdiçouesta oportunidade; e não viria a haver outra. O mesmo
século que viu Eugénio IV reprovar os melhores esforços de Basle para uma reforma,
acabaria com o papa que, acima de todos, tinha vindo do diabo: Alexandre Bórgia.
A tempestade em formação
No século XV não houve uma única voz que se levantasse em defesa do papado.
Com homens como Francesco de la Rovere no trono não é difícil perceber porquê.
97
Francesco tornou-se Sisto IV em 1471. Teve vários filhos, a que chamavam, de
acordo com o costume da época, “os sobrinhos do papa”. Sisto deu o chapéu
cardinalício a três sobrinhos e a seis outros parentes. Entre os beneficiários estava
Juliano de Rovere, o futuro Júlio II.
O favorito de Sisto era Pietro Riario, que o historiador Theodor Griesinger acreditava
ser filho dele e da própria irmã. O novo papa tinha certamente uma grande amizade
pelo rapaz. Fê-lo Bispo de Treviso, Cardeal Arcebispo de Sevilha, Patriarca de
Constantinopla, Arcebispo de Valência e Arcebispo de Florença. Até então Pietro fora
franciscano. Todos os anos queimava o hábito para matar os parasitas. Quando se
tornou cardeal, mudou. Tornou-se um perdulário em grande escala, mantendo
mulheres a quem fornecia bacios de ouro. Os cronistas da época queixavam-se da vil
utilização dada aos tesouros da Igreja. Riario viria a morrer ainda novo, completamente
consumido.
Sisto IV construiu a capela que tem o seu nome, e onde todos os papas são agora
eleitos. A capela já viu pompa e ignomínia. Os cardeais já lá fizeram piqueniques, já lá
acamparam, já lá dormiram e até muitas vezes andaram à pancada. Debaixo da
abóbada, guardou Napoleão os seus cavalos. A capela Sistina não é mais do que um
ornamento num Vaticano que rapidamente ganhou esplendor na arte e na arquitectura,
enquanto no seu interior grassava a corrupção.
Sisto foi o primeiro papa a licenciar os bordéis de Roma; rendiam-lhe trinta mil
ducados por ano. Também ganhou consideravelmente com um imposto lançado sobre
os padres que mantinham amantes. Outra fonte de rendimento era garantir privilégios
aos ricos «para que eles pudessem consolar certas matronas na ausência dos
maridos».
Foi no campo das indulgências que Sisto mostrou um toque de génio. Foi o primeiro
pontífice a decidir que elas podiam ser aplicadas aos mortos. Até ele ficou admirado
com a sua popularidade. Estava ali uma fonte inesgotável de rendimento em que nem
mesmo os mais cobiçosos dos seus antecessores tinham sonhado. As suas
implicações eram de cortar a respiração: o papa, criatura de carne e osso, tinha poder
sobre o mundo dos mortos. As almas a penar pelos seus pecados podiam ser
resgatadas pela sua palavra, desde que os seus parentes piedosos esvaziassem os
bolsos. E quem é que o não faria se tivesse um pouco de bondade cristã? Viúvos e
viúvas, pais que choravam os filhos, gastavam tudo na tentativa de tirar os seus entes
queridos do Purgatório, que era pintado com cores cada vez mais lúgubres.
Rezar pelos mortos era uma coisa, pagar por eles era outra. As pessoas simples
eram levadas a pensar que o papa, ou aqueles que vinham à aldeia vender o perdão
do papa, garantiam que os seus mortos iriam para o céu nas asas das indulgências. O
potencial para o abuso era considerável. A venda de relíquias do século X já tinha sido
um mal bastante. De facto, o maior negócio de exportação de Roma durante muito
tempo tinha sido o dos cadáveres, inteiros ou em partes. Eram vendidos aos peregrinos
por grandes quantias. T. H. Dyer escreveu: «Um dedo do pé ou da mão de um mártir
podia ser um regalo para um homem de poucas posses, mas os príncipes e os bispos
podiam comprar um esqueleto inteiro». Com as catacumbas como uma espécie de El
Dourado, muitos pontífices doavam os ossos de mártires às cidades para as bajularem.
O talento de Sisto consistia no seguinte: não se desfazia de nada, a não ser de bens
incorpóreos. Os ossos dos mártires, tal como o petróleo, não eram um produto
renovável, mas as indulgências eram ilimitadas e o seu preço podia ser adaptado a
todas as bolsas. Nada era exigido ao doador ou ao doado, nem amor, nem compaixão,
oração ou arrependimento — apenas dinheiro. Nunca houve prática mais anti-religiosa
98
do que esta. O papa enriquecia na mesma medida em que os pobres iam sendo
ludibriados.
O Purgatório não tinha qualquer justificação, nem nas Escrituras nem na lógica. O
seu fundamento era apenas a ganância papal. Um escritor inglês, Simon Fish, em A
Supplicacyion for the Beggars, escrito em 1529, viria a denunciar tudo isto
irrefutavelmente.
Não há em toda a Sagrada Escritura uma só palavra sobre isto, e
além disso, se o papa, com o seu perdão, pode, em troca de
dinheiro, libertar de lá uma alma, pode libertá-la também sem
dinheiro: se ele pode libertar uma, também pode libertar um milhar
delas, pode libertá-las a todas; e assim destruir o purgatório: e
então, se ele as mantém lá presas, em sofrimento até que alguém
lhe dê dinheiro, não passa de um tirano cruel, sem qualquer espécie
de espírito caritativo.
Em 1478 Sisto publicou uma Bula que ainda causou mais danos à Igreja. Sancionou
a Inquisição em Castela. E esta alastrou, literalmente, como fogo. Em 1482, só na
Andaluzia, foram queimados dois mil hereges.
Dizia-se de Sisto que ele «se afundou em crime e em sangue até à mitra»,
mergulhando a Itália em guerras infindáveis. Quando morreu, em tempos relativamente
pacíficos para o papado, alguém com espírito disse que este senhor da guerra tinha
sido «assassinado pela paz». Era tido como tendo «incarnado a maior concentração de
maldade humana». Nas palavras do Bispo Creighton, «ele enfraqueceu o carácter
moral da Europa».
Na morte, foi o seu meticuloso capelão alemão João Burchard que o lavou. Os
compartimentos tinham sido saqueados de tal maneira que o capelão não tinha nada
com que secar o cadáver. Despiu-lhe a camisa e utilizou-a para isso. Por fim, vestiu-o
com uma batina e um par de chinelos emprestados.
Oito anos mais tarde, em 1492, Burchard estava a ganhar coragem para
desempenhar idêntica tarefa com o sucessor de Sisto, o velho sexagenário Inocêncio
VIII. Magro e anémico, o pontífice estava na cama apoiado em almofadas. Dos cantos
da boca escorria-lhe leite, o seu único sustento há várias semanas. Olhando para trás,
ele sentia que tinha coisas de que se podia orgulhar.
Tinha casado o seu filho favorito no seio dos grandes Medicis de Florença, trazendo
assim aquela família para a linha de sucessão do papado com resultados desastrosos.
Inocêncio também publicou um édito contra os judeus de Espanha. Aqueles que se
recusavam a abraçar o Cristianismo eram expulsos da Península. Houve então uma
onda de emigração que só teve paralelo nos anos trinta na Alemanha nazi. Cem mil
fugiram, outros tantos ficaram fingindo terem-se convertido. «Isto», diz o The Catholic
Dictionary com intencional ironia, «garantiu o emprego à Inquisição por muitos
séculos». Na sua ficha ficaram uma ou duas nódoas. Por exemplo, não tinha feito nada
para pôr a cidade em ordem. O seu vigário foi ter com ele e disse-lhe: «Temos
realmente de fazer com que os padres deixem de manter mulheres, Vossa Santidade».
A resposta de Inocêncio ficou assim registada: «É uma perda de tempo. Isso está tão
espalhado entre os padres, mesmo na Cúria, que dificilmente se encontrará um que
não tenha uma concubina». Quando isto constou alguém disse: «Sua Santidade
levanta-se da cama das prostitutas para trancar e destrancar as portas do Purgatório e
do Céu».
99
Na sala contígua, enquanto a sua vida chegava ao fim, o seu médico examinava três
formosos jovens. Estava a dizer-lhes que podiam prestar um grande serviço ao Vigário
de Cristo. O sangue do papa estava velho e gasto; se eles lhe dessem algum do seu
ele poderia continuar a inspirar a Igreja. Burchard deu uma achega oferecendo um
ducado a cada.
O médico era judeu. Inocêncio acreditava que a própria maldade dos Judeus lhes
dava acesso a uma sabedoriaoculta que faltava aos médicos cristãos.
O médico informou Burchard que estava pronto para começar. Fez uma vénia e
dirigiu-se para o quarto do papa e, de mãos a tremer, sangrou o pontífice.
Trouxeram o primeiro jovem e, por transfusão directa, o sangue passou daquele
para o papa. Isto não era uma prática científica rigorosa. O quarto tresandava; o
sangue jorrava para as roupas da cama e para as carpetes no chão. O jovem foi levado
para fora meio inconsciente. Chamaram o segundo jovem e depois o terceiro. Em
breve todos os três estavam mortos na antecâmara. Burchard abriu-lhes as mãos
pegajosas e tirou-lhes o dinheiro de volta.
O sacrifício dos jovens foi em vão. Inocêncio confessou os seus pecados e, com o
espírito em paz, morreu com um trocadilho nos lábios: «Vou para Vós, Senhor, na
minha Inocência». No seu túmulo, disse alguém, estavam enterradas «a imundície, a
gula, a avareza e a preguiça».
Mais uma vez, parecia que o papado já não podia descer mais baixo. Depois veio o
Bórgia.
O núcleo da tempestade
Era voz corrente que Rodrigo Bórgia, que era catalão, tinha cometido o seu primeiro
assassínio quando tinha doze anos. Cravava constantemente a bainha da espada na
barriga dos outros rapazes. Quando jovem, as suas inclinações amorosas não eram
segredo. O seu azar foi ter um tio papa, Calisto III.
Em 1456 Calisto fez Rodrigo, então com vinte e cinco anos, Arcebispo de Valência,
a principal diocese de Espanha. Rodrigo já era famoso por ter relações simultâneas
com uma viúva e com as suas duas belas filhas, uma das quais foi a sua sempre
amada Vanozza Catanei. Chamado a Roma para se tornar cardeal aos vinte e seis
anos e Vice-Chanceler da Igreja um ano mais tarde, não suportou a ideia de ficar longe
da sua amante, e instalou-a com todo o estilo naquela que era a mais elegante das
cidades, Veneza.
Quando o tio morreu, o novo papa, Pio II, não foi assim tão tolerante para com ele.
Chegou-lhe aos ouvidos uma orgia borgiana em Siena, da qual foram excluídos os
maridos, os pais, os irmãos e outros familiares masculinos para que a sensualidade
pudesse ter rédea livre. «Achais bem», perguntou-lhe Pio II diplomaticamente, uma vez
que ele próprio tinha feito dois filhos, «não terdes nada na cabeça todo o dia senão
pensamentos de prazer voluptuoso?»
Quando Rodrigo se tornou papa, tomou o nome de Alexandre VI, parecendo não se
preocupar muito com o facto de Alexandre V ter sido excluído das listas como o
antipapa de Pisa. Depois da eleição, Bórgia rapidamente entrou na depravação. Não foi
deposto nem sequer posto em causa. O sistema não o permitia.
Lutero tinha nove anos quando Bórgia subiu ao poder. Em Roma tudo estava à
venda, desde os benefícios e indulgências aos chapéus de cardeal e até o próprio
papado. Segundo João Burchard, que desempenhava a função de Mestre de
100
Cerimónias do conclave, Bórgia conseguiu os votos do Sacro Colégio após uma
dispendiosa campanha. É elucidativo ver, através dos diários de Burchard, como o
Espírito Santo se desempenha da tarefa da escolha do sucessor de S.Pedro.
O dinheiro jorrava em Roma vindo de toda a Europa e era canalizado para o
conclave pelos banqueiros. Bórgia tinha uma oposição dura. O Cardeal da la Rovere
tinha 200.000 ducados do rei de França e mais cem mil da República de Génova. Só
cinco votos não foram comprados. Como era Vice-Chanceler, Bórgia era o mais rico
dos cardeais. Pôde oferecer vivendas, cidades e abadias. Deu quatro mulas
carregadas de prata ao seu grande rival, o Cardeal Sforza, para o convencer a desistir.
Praticamente sem um tostão, viu com desgosto que ainda lhe faltava um voto.
O Cardeal Gerardo de Veneza assegurou-lho, embora sem qualquer culpa. Há fortes
razões para pensar que estava senil. Tinha noventa e seis anos e o mais notável é que
não procurou subornar.
Depois de elegerem Bórgia, os cardeais agradeceram ao Espírito Santo a escolha
de um sucessor para S.Pedro. Mas Giovani de Medici disse depois ao Cardeal CibÒ:
«Estamos agora nas garras do lobo mais selvagem que o mundo jamais viu. Se não
fugimos ele vai sem dúvida devorar-nos». O Cardeal de la Rovere, o futuro Júlio II,
pegou na ideia e fugiu, para regressar só dez anos depois quando o Faraó, o papa
Bórgia, morreu.
Por enquanto “o lobo” estava bem vivo. Num frenesim de alegria, exclamou: «Eu sou
o papa, o Pontífice, o Vigário de Cristo».
Nos aposentos de Bórgia do Palácio Apostólico há um retrato de corpo inteiro de
Alexandre VI, de Pinturicchio. Mostra-o envolto numa capa de brocado enfeitada de
jóias; só a cabeça e as mãos estão à mostra. É um homem alto, de testa estreita, faces
e queixo gordos e nariz grande e carnudo. O pescoço é monstruoso, os lábios
sensuais, os olhos penetrantes. Tem as mãos, de dedos intumescidos e cheios de
anéis, postas em oração.
Este homem, a quem Gibbon chamou «o Tibério da Roma Cristã», era perverso,
mesmo para um papa do Renascimento. O seu olho para as mulheres bonitas era,
dizia-se, infalível, mesmo quando já era velho. Conhecidos, teve dez filhos ilegítimos,
quatro dos quais, incluindo os famosos César e Lucrécia, de Vanozza. Quando ela
murchou, o papa, já com cinquenta anos, arranjou outra amante.
Júlia Farnese tinha quinze anos e casara recentemente com Orsino Orsini. Este era
um bom marido: cego de um olho, sabia quando havia de piscar o outro. Esta a razão
por que Júlia ficou conhecida em toda a Itália como “a Prostituta do Papa” e “a Noiva
de Cristo”. De uma beleza deslumbrante, ela era, nas palavras de um diplomata, «o
coração e os olhos» do pontífice, sem quem ele não podia viver. Com as suas ligações
papais, ela não teve dificuldade em conseguir um chapéu vermelho para o irmão, o
futuro Paulo III, ganhando deste modo o título de “O Cardeal de Saias”.
De Júlia o papa teve uma filha chamada Laura. Genericamente um homem honesto,
ele seguiu o exemplo de Inocêncio VIII e reconheceu abertamente os filhos naquilo que
ficou a chamar-se a Idade de Ouro dos Bastardos. Pio II tinha dito mesmo que Roma
era a única cidade do mundo governada por bastardos. Mas Bórgia tentou deixar claro
que Laura era uma Orsini; por outras palavras, que o marido de Júlia era o pai da filha
de Júlia. Isto era difícil de acreditar. E mais, como Lorenzo Pucci, embaixador no
Vaticano, escreveu ao seu mestre em Florença: «A parecença da criança com o papa é
tal que ela tem de ser dele».
O filho de Júlia chamado João, conhecido como Infans Romanus, a misteriosa
Criança Romana, também era dele. Alexandre deve ter repetido até mesmo ao fim a
101
oração de Santo Agostinho: «Senhor, fazei-me casto, mas ainda não», porque a La
Bella Giulia deu-lhe ainda um último filho, o seu homónimo Rodrigo, como presente de
despedida quando ele morreu.
A vida no Vaticano naquela época nunca foi monótona nem completamente
evangélica. Havia estórias credíveis de orgias de vinho e sexo. Constava que
Alexandre tinha tido relações incestuosas com a filha, a bela Lucrécia. Se isto é
verdade, não é certo, era um recorde mesmo para um papa da Renascença ter tido
relações sexuais com três gerações de mulheres: com a filha e com a mãe e a avó
desta.
César, o filho, foi o modelo de Maquiavel para o seu cruel Príncipe. O próprio pai
temia-o. Sobre ele Lord Acton escreveu o seguinte: «Como não tinha qualquer
preferência pelo bem ou pelo mal, avaliava com espírito igual e desapaixonado se era
melhor poupar um homem ou cortar-lhe a cabeça». O político florentino Francesco
Guicciardini, que se tornou lugar-tenente dos exércitos papais, confiou ao seu diário
secreto I Ricordi, que César nasceu para que «haja no mundo um homem bastante vil
para cumprir os desígnios do pai, Alexandre VI». Num estilo impressivamente
espanhol, César uma vez matou cinco touros com uma lança na Praça de S.Pedro e
depois, de um só golpe de espada decapitou um sexto. Não pensava duas vezes antes
de roubar uma mulher ao marido, violá-la e depois atirá-la ao Tibre.No princípio do seu reinado, o papa, num gesto nostálgico, deu a César a sua velha
diocese de Valência. O filho era então um formoso adolescente de dezassete anos, de
nariz direito, olhos negros taciturnos e cabelo escuro matizado de vermelho. Um ano
depois, no consistório em que Alexandre promoveu Ippolito d’Este, o irmão de quinze
anos da sua amante, César tornou-se cardeal.
Isto foi uma trapaça, porque os cardeais têm que ser homens nascidos em cama
legal. Alexandre resolveu o problema de maneira brilhante. Em 20 de Setembro de
1493 assinou duas Bulas, ambas afiançadas pelas testemunhas mais fidedignas da
sua corte. A primeira provava que César era filho de Vanozza e do marido. Na
segunda, publicada secretamente, o papa reconhecia César como seu filho.
Nesses tempos havia uma média de catorze assassínios por dia em Roma. Quando
o culpado era apanhado, Alexandre não tinha escrúpulos em deixá-lo em liberdade,
considerando que, como ele dizia com aquele seu sorriso cativante, «O Senhor exige
não a morte do pecador mas sim que ele pague e continue a viver».
Um dos seus hábitos menos cativantes era nomear cardeais a troco de uma choruda
taxa, e depois mandá-los envenenar para aumentar o negócio. O seu veneno preferido
era a cantarella, uma mistura composta na sua maior parte por arsénico branco. A
Igreja, decretou ele, podia herdar os bens móveis e imóveis do cardeal. E ele, claro,
como Vigário de Cristo, era a Igreja.
Um dos poucos que protestaram abertamente contra o escândalo da corte papal foi
o Prior Dominicano de S.Marcos em Florença. Savonarola, o maior pregador do seu
tempo, foi declarado canonizável por um pontífice posterior, Benedito XIV. Mas esta
não era a opinião de Alexandre. Tentou calar o frade prometendo-lhe um chapéu
cardinalício de graça. Quando viu, para seu espanto, que isto falhou, não teve outra
alternativa senão mandar que ele fosse julgado, enforcado e queimado — embora,
como foi dito, não houvesse da parte do papa qualquer rancor.
Passaram-se três turbulentos anos antes de se dar um dos acontecimentos mais
grotescos da história do Vaticano, na noite do último dia de Outubro de 1501. Burchard,
ajudante pessoal de quatro pontífices sucessivos, descreveu-o no seu estilo pedante,
nos diários que só por acaso apareceram à luz do dia.
102
César convidou a irmã favorita, Lucrécia, e o papa, o outro único homem presente,
para uma festa chamada “O Torneio das Prostitutas”. Cinquenta das mais belas de
Roma dançaram vestidas de roupas que gradualmente se iam tornando cada vez mais
escassas para depois começarem a saracotear nuas à volta da mesa do papa. Elas
deviam ter ouvido falar no boato que corria em Roma de que o papa preferia uma orgia
a uma missa solene. Num final frenético as prostitutas caíram de joelhos,
engalfinhando-se a lutar pelas castanhas que os Bórgias lhes atiravam como se faz
com os porcos.
Mas o papa também teve o seu lado bom. Era um patrono das artes. Patrocinou um
jovem monge sem tostão de nome Copérnico. Alexandre tinha olho para o negócio e foi
de facto um dos poucos pontífices da época que equilibraram as contas. Não era
hipócrita e nunca fingiu ser um cristão sincero, muito menos santo. Contudo, tal como a
maioria dos pontífices, era um devoto fervoroso da Virgem Maria. Fez reviver o antigo
costume de tocar o sino do Angelus três vezes por dia. Encomendou um quadro de
uma soberba Madonna com o rosto de Júlia Farnese para aprofundar o seu amor.
Também não era pessoa para esquecer os serviços das antigas amantes. Daí que,
quando Vanozza morreu, poucos anos depois dele, com setenta e seis anos, ela
tivesse sido tratada como viúva do papa. Foi enterrada com pompa ainda maior do que
o próprio Bórgia na Igreja de Santa Maria del Popolo na presença de toda a corte papal
«quase como se fosse um cardeal».
Deve dizer-se também em abono do papa que ele era um pai orgulhoso e afectuoso.
Baptizou os filhos e deu-lhes a melhor educação que a simonia podia pagar. Celebrou
no Vaticano os seus casamentos com as mulheres das melhores famílias da época,
mas afinal Inocêncio VIII não tinha feito o mesmo? Quando casou Lucrécia na Salla
Reale, esta ia acompanhada pela neta do Papa Inocêncio e no cortejo seguiam “A
Prostituta do Papa“ e mais 150 emocionadas damas romanas. Para Lucrécia, por
ocasião do seu terceiro casamento, ele até adiou o início da Quaresma para que o
povo de Ferrara, para onde ela ia, pudesse celebrar os esponsais com carne e danças.
A afeição paternal do papa nunca foi tão clara como quando chorou a morte do filho,
o Duque de Gandia, assassinado, muito provavelmente pelo seu outro filho, o
impiedoso César. Quando Gandia foi retirado do Tibre e depositado aos pés do papa,
os cínicos disseram: «Finalmente! Um pescador de homens!» Deve ter provocado
lágrimas nos olhos do consistório quando lhes disse que teria dado sete tiaras para ter
o filho de volta. E eles choraram ainda mais quando, durante os poucos dias de luto,
ele proclamou o fim do nepotismo e ameaçou reformar a Cúria. Todas as concubinas
do clero, decretou ele, seriam despedidas dentro de dez dias; mesmo os cardeais
teriam de começar a ser frugais e castos. Júlia deve-lhe ter estragado as suas
melhores intenções, porque lhe deu um filho no ano seguinte.
Os historiadores já têm sugerido que a sua afeição por César estava deslocada. Ele
sabia que César trazia sempre veneno consigo para o caso de precisar dele para um
inimigo. E, depois de todo o trabalho que teve para fazer César cardeal, este quis
renunciar ao chapéu vermelho. Alexandre arriscou provocar a ira do Sacro Colégio
autorizando-o a sair do grupo dos “Purpurados“, como Corro lhes chamava. Estava em
jogo a salvação da alma de César, alegava o papa. Nessa altura o rosto do filho estava
coberto de manchas negras e borbulhas muito vivas, sinais de sífilis secundária. Suas
Eminências talvez ficassem aliviadas com a sua partida, mas, como sensatamente
observou um ajudante, se fosse permitido aos cardeais resignar por motivos tão triviais,
não restaria nenhum. Quando a sífilis se agravou, César começou a usar uma máscara
de seda negra em público.
103
Tendo-se descartado do chapéu vermelho quando tinha vinte e dois anos, ficou livre
para casar e para realizar a sua maior ambição: arrebatar a Gandia o lugar de
comandante-chefe dos exércitos papais. O pai devia saber que ele, mesmo só com
uma simples faca na mão, não era de confiança.
Uma vez, César fez em pedaços um jovem espanhol chamado Perroto, camareiro
favorito de Alexandre, por ele ter tido relações com a irmã. Não foi o pecado, mas a
insensatez do acto que ele condenou. Era vital para os interesses da família, e
especialmente para os de César, que se pusesse fim ao primeiro casamento de
Lucrécia com Giovanni Sforza para permitir que ela casasse dentro da família real
Napolitana. Os fundamentos da anulação eram a não consumação. A comissão
testemunhou a sua virgindade e, implicitamente, acusou o marido de impotência. Roma
riu à gargalhada quando a notícia se soube. Lucrécia era conhecida como «a maior
prostituta de Roma de todos os tempos». O marido, Sforza, recusou-se a cooperar com
a comissão, salientando que tinha havido consumação em grande abundância. Jurou
que «a tinha conhecido carnalmente em inúmeras ocasiões». Seu tio, Ludovico de
Milão, sugeriu-lhe secamente que demonstrasse a sua capacidade perante
testemunhas.
Este não foi o único divórcio autorizado por Alexandre quando pretendia anular um
casamento. Não que isso ajudasse o novo marido de Lucrécia. Em 1500, depois de ter
servido os seus intentos, César mandou-o estrangular.
Perroto foi uma primeira vítima. Aos olhos de César, ele era culpado de
comprometer a reputação da irmã num momento delicado, e tinha de ser despachado.
O papa, a piscar os olhos remelosos, tentou proteger o seu camareiro debaixo do
seu manto, gritando em espanhol: «Não, César, por amor de Deus, não». César
avançou como punhal e o sangue saltou para a cara do papa. Depois o corpo levou o
tratamento habitual; foi atirado ao Tibre. Durante dias o pontífice continuou a ouvir os
gritos do jovem, a sentir o cheiro do sangue que lhe ensopou a sotaina até ao peito
vacilante, a sentir os estremeções de Perroto a cada nova estocada até ao estretor final
da morte.
A morte do próprio Alexandre, pressagiada por uma coruja que lhe entrou pela
janela em pleno dia e morreu aos seus pés, foi feita à sua medida. Muito
provavelmente, César envenenou-se a si e ao pai por engano. A cantarella no vinho
destinava-se a alguns cardeais ricos que era preciso eliminar.
César recuperou. Viria a morrer corajosamente três anos mais tarde no campo de
batalha em Viana, Espanha, enfrentando sozinho um exército. Quando despiram o
corpo, viram que tinha setenta e três golpes. O papa, de setenta e três anos, sucumbiu
ao veneno. Burchard nos seus diários e embaixadores nos seus despachos registaram
em pormenor os acontecimentos.
O arsénico branco criou-lhe uma bola de fogo na barriga. Esteve na cama durante
horas, de olhos vermelhos, pele amarela, incapaz de engolir. A princípio, tinha o rosto
cor de amora e os lábios intumescidos. A pele, pintalgada como a do tigre, começou a
descascar. A gordura da barriga liquefez-se. O estômago e os intestinos começaram a
sangrar.
Os médicos tentaram os eméticos e a venissecção, mas em vão. Depois de receber
os últimos sacramentos, este homem, que, segundo Guicciardini, não tinha religião,
deu o último suspiro na Torre Bórgia, num compartimento decorado por Pinturicchio.
César, ainda de cama e destroçado pelo desaparecimento do seu papa-pai e
patrono mandou selar os aposentos papais para que fossem os seu próprios homens, e
não os lacaios dos cobiçosos cardeais, a saqueá-los.
104
O corpo foi deposto numa essa entre dois círios acesos. Estava negro e começava a
entrar em decomposição. Burchard recorda a boca a espumar como uma chaleira ao
lume. A língua ficou tão grande que lhe enchia toda a boca e a mantinha toda aberta. O
corpo estava deformado e começava a inchar como uma rã, até que ficou tão largo
como comprido. Giustiniani, o embaixador veneziano, escreveu num despacho que o
corpo de Bórgia era «o cadáver mais feio, mais monstruoso mais horrível jamais visto,
sem qualquer forma ou aspecto humano».
Os capangas de César foram arrancar os anéis dos dedos do cadáver, tirar os
castiçais, os enfeites, as vestes, o ouro, a prata e até as carpetes do chão. Neste
cenário, o capelão continuou calmamente a lavar o corpo.
Quando o compartimento ficou vazio, o corpo começava a explodir, e de cada orifício
saíam vapores sulfurosos. Seis carregadores e dois carpinteiros, a apertar o nariz,
tentaram levar a brincar uma experiência horrível. O seu maior problema era conseguir
pôr aquele monte de carne mal cheiroso no caixão. Evitando tocar numa tal fonte de
contágio, ataram uma corda à volta daquele sagrado pé, tantas vezes beijado por
príncipes, prelados e mulheres bonitas, e arrastaram-no da essa. O corpo silvou
quando bateu no chão frio. Tiraram-lhe a mitra e ergueram-no com cordas apenas o
suficiente para o deixar cair com um chape dentro do caixão.
Agora, segundo Burchard, «já não havia círios, nem luzes, nem padres, nem
ninguém para velar o pontífice morto». Com a misericórdia de Deus, carregaram sobre
o corpo para o abater, mas ele continuava a sair. Foi necessária toda a força de
Burchard para o abater de forma a caber no caixão. Por fim, como não havia mais
nada, cobriu o Servo dos servos de Deus com um bocado de carpete velha.
Os carregadores do palácio tiveram de lutar com os clérigos da basílica que não
queriam deixar entrar o cadáver para o enterro. Ao funeral apenas assistiram quatro
prelados. O caixão esteve na cripta de S.Pedro por muito pouco tempo. O Papa Júlio
afirmou mais tarde que era uma blasfémia rezar por uma alma danada. Portanto,
qualquer missa pelo descanso da alma de Alexandre seria um sacrilégio.
Em 1610, o corpo foi expulso da basílica e agora repousa na Igreja Espanhola na
Via de Monserrato à espera, em ansiedade, do Julgamento Final.
105
106
107
7
A Inevitável Reforma
Pouco depois do Bórgia, ascendeu ao trono papal um dos homens mais notáveis da
história, Júlio II. Franciscano de Génova, alto, elegante e sifilítico, usou do suborno, em
montantes de centenas de ducados, para alcançar o papado. Depois decretou que a
partir de então quem subornasse o conclave seria deposto. Homem atlético, trazia
sempre com ele uma bengala com que batia em quem o molestasse. Para este homem
tempestuoso a religião nem chegava a ser um hobby. A sua alimentação quaresmal
consistia em camarão, atum, lampreia da Flandres e o melhor caviar.
É sobretudo lembrado como patrono das artes. Um dia levou um jovem escultor de
trinta e um anos até à Capela Sistina. O jovem era magro, de ombros largos, estatura
mediana e nariz partido, prémio por ter brigado com um rapaz maior do que ele quando
era aprendiz.
O Papa Júlio apontou para o tecto com a bengala. «É aquilo. Quero que me pintes
aquilo».
Miguel Ângelo olhou e reprimiu um gemido. O tecto tinha dezoito metros de altura e
era côncavo. Como é que ele, como é que alguém seria capaz de resolver as
perspectivas? Além disso, não era pintor. Até então só tinha pintado umas telas e não
ficara muito orgulhoso delas. Preferia trabalhar a pedra. A pedra dura. Não, ia recusar.
Sem aviso prévio, voltou para a terra natal, Florença, onde tinha sido criado no ar puro
dos campos de Arezzo e assimilou o seu ofício de escultor ao leite da ama.
Dois anos depois, em 1508, Júlio obrigou-o a voltar para Roma sem escopro nem
martelo. Assim começou a pintura que levaria este jovem do anonimato aos píncaros
da grandeza. Rebelde, como sempre, escreveu no seu primeiro recibo: «Eu, Miguel
Ângelo Buonarotti, escultor, recebi 500 ducados por conta… da pintura da abóbada da
Capela Sistina».
Júlio viria a impressioná-lo mais do que uma vez na sua cólera por encontrar um
homem tão violento como ele próprio. Uma vez, Miguel Ângelo foi obrigado a
apresentar-se-lhe com um cabresto em sinal de submissão.
Em quatro anos iria cobrir 500 metros quadrados de tecto com 300 figuras.
Confidenciou as suas memórias desses anos num poema. De estar tanto tempo
deitado de costas desenvolveu uma papeira que se derramava à volta como um balde
donde os animais bebem. Ficou com as costas arqueadas como as de um remador. A
barba virava-se para o céu de modo que o queixo e a barriga praticamente se fundiam
num só. O pincel deixava-lhe cair constantemente um mosaico de tinta sobre o rosto.
Isto não é coisa que se pinte, gemia ele, e eu que nem sequer pintor sou.
No Dia de Todos os Santos de 1512 este não-pintor abriu as portas da capela. Lá
em cima, no alto, naquela superfície impossível, estava mais do que uma obra de arte.
Estava uma enciclopédia de humanidade. Os temas do Velho Testamento retratavam a
jornada do homem do nascimento até à morte. Ao cantar a missa no altar, o exultante
Júlio fazia-o com o conhecimento de que mandara fazer a maior obra de arte que o
mundo jamais vira.
Por intermédio de Miguel Ângelo, o papa começou a criar um novo Vaticano que se
tem mantido como uma maravilha até hoje. Mas a mesma preocupação não teve ele
em relação à fé cristã. Esta é uma das ironias do Vaticano: exteriormente, em termos
de cultura, arte e arquitectura, a Igreja nunca estivera em melhor forma; Bramante,
depois Miguel Ângelo e Rafael. Interiormente apenas havia corrupção.
A principal e constante paixão de Júlio não era a arte mas a guerra. Como estratego
militar poucos o igualavam. Com sessenta anos na altura da eleição, usava uma barba
branca impressiva que metia dentro do elmo. Violando a lei canónica, envergou a
armadura, montou o seu cavalo de batalha e cavalgou para norte para lutar por Deus e
pelos Estados Papais. Também aí foi bemsucedido. Queria-os realmente para a Igreja
e não para a sua família como a maioria dos papas do seu tempo. Viria a estabelecer
territórios que iriam durar, sem praticamente qualquer alteração, até serem assimilados
numa nova Itália nos fins do século XIX.
De vez em quando presidia ao serviço religioso em S.Pedro. Mas houve problemas.
Como grande mulherengo que era, gerou três filhas quando ainda era cardeal. Daí que
na Sexta-Feira Santa de 1508 o seu Mestre de Cerimónias tenha anunciado que Sua
Santidade não podia permitir que lhe beijassem o pé, «quia totus erat ex morbo gallico
ulcerosus» («estava completamente crivado de sífilis».
Isto não o impedia de montar o seu cavalo. Não há cena mais representativa do
Renascimento do que a de Júlio II, de armadura completa, a deslizar sobre os fossos
gelados para passar as muralhas fendidas de Mirandola, então em mãos francesas, e
reclamá-las para Cristo. Nesse terrível inverno o Rio Pó estava gelado. O pontífice pôs
um manto branco por cima da armadura, e cobriu a cabeça com uma pele de ovelha,
de tal maneira que parecia um urso ao gritar: «Vamos ver quem é que tem as bolas
maiores, se o rei de França se o papa». E o italiano deixou bem claro que não se
tratava de bolas de canhão.
Quando Miguel Ângelo esculpiu uma estátua sua, Júlio examinou-a com uma
expressão intrigada. «O que é aquilo que tenho debaixo do braço?» «Um livro,
Santidade» «O que é que eu sei de livros?» trovejou o papa. «Põe-me lá antes uma
espada.»
A preferência de Sua Santidade pela espada em vez da Bíblia, pela sela em vez da
Cadeira de S.Pedro, teve os seus efeitos em Roma. Miguel Ângelo, que conhecia a
Cidade Eterna como ninguém, deixou num poema as suas impressões sobre os papas
que conheceu:
Dos cálices elmos e espadas fizeram,
Aos baldes, do Senhor o sangue negoceiam,
Cruz e espinhos em lâminas envenenadas transformaram
E até ao próprio Cristo tiram a resignação.
Júlio ficou tão zangado com Luís XII de França por este não o ter apoiado nas suas
campanhas militares que escreveu uma Bula em que lhe retirava o reino, que ficaria
para o piedoso Henrique VIII de Inglaterra, cujo autor preferido era S.Tomás de Aquino,
desde que se mostrasse um bom católico ajudando-o nas suas guerras.
 
 Balls no original, que em linguagem informal tem também o significado de testículos. (N. T.)
 No original:
Of chalices they make helmet and sword
And sell by the bucket the blood of the Lord.
His cross, his thorns are blades in poison dipped
And even Christ himself is of all patience stripped. (N. T.)
109
Júlio morreu antes de a Bula ser publicada. Só por isso é que a França não se
tornou Protestante, como a Inglaterra, durante a Reforma, que se aproximava
inelutavelmente.
A corte de Leão X
Após a morte de Júlio, o Cardeal Farnese saiu precipitadamente do conclave para a
Praça de S.Pedro a gritar: «Bolas! Bolas!» Esta referência aos Palli do brasão dos
Médicis foi logo aproveitada pela multidão espantada.
Giovanni de Médicis tinha apenas trinta e oito anos. Ser filho do famoso Lorenzo o
Magnífico e de uma Orsini não era desvantagem nenhuma. Tinha sido educado no luxo
do seu palácio ancestral na Via Larga de Florença e de outros cenários opulentos. Aos
sete anos foi feito abade para a sua primeira comunhão. Aos oito, o rei de França queria
que ele fosse feito Arcebispo de Aix-en-Provence; felizmente houve alguém que
investigou e descobriu no momento preciso que já havia um Arcebispo dessa sé que
ninguém via há anos. Em compensação, o rei deu ao rapaz um priorato perto de
Chartres e fê-lo cónego de todas as catedrais da Toscânia. Aos onze anos Giovanni
recebeu a histórica abadia de Monte Cassino. Aos treze tornou-se o cardeal mais jovem
de sempre, embora não conseguisse o feito de Benedito IX, feito papa aos onze anos.
Mesmo o liberal Inocêncio VIII parece ter tido escrúpulos em elevar um adolescente ao
Sacro Colégio; insistia em três anos probatórios que dessem ao rapaz todas as
oportunidades de dominar a teologia e a lei canónica.
Na altura da eleição para o papado, o lívido Giovanni era gordo, míope, de olhos
arregalados e, por razões que então não se percebiam muito bem, casto. Isto é, não
tinha amantes, nem “sobrinhos” (bastardos). A razão era que ele era provavelmente um
ousado homossexual. Guicciardini dizia que o novo papa se devotava demasiado às
coisas da carne «especialmente àqueles prazeres que, por questões de decência, não
podem ser mencionados».
Quando o conclave começou ele estava doente e teve de ser para lá transportado
de maca. Uma tal entrada reforçou as suas expectativas. Os eleitores pensavam muito
bem dele por outra razão: era conhecido por sofrer de úlceras crónicas nas costas. A
cirurgia produziria certamente uma nova eleição. Apesar de tudo isto, Giovanni, que
tomou o nome de Leão X, tinha um temperamento exaltado. As suas primeiras palavras
como papa foram dirigidas ao seu primo ilegítimo Júlio de Medicis: «Agora é que vou
realmente gozar». Ansioso por experimentar a tiara, tirou o chapéu vermelho e
entregou-o a Júlio. «Isto é para ti, primo». Júlio usou-o bem. Viria a ser um dos mais
desastrosos de todos os papas, Clemente VII.
Leão foi coroado num pavilhão provisório em frente de S.Pedro. Da famosa igreja só
ficara a fachada, o resto fora deitado abaixo para ser substituído. A concha vazia da
velha Basílica de S.Pedro viria a aparecer retrospectivamente como presságio dos
negros tempos que se avizinhavam. A basílica de Constantino esteve de pé quase mil
e duzentos anos até que Júlio II meteu na cabeça a ideia de a deitar abaixo para
construir outra. Os cardeais tentaram dissuadi-lo. O custo seria demasiado elevado; ir-
se-iam perder belos mosaicos e relíquias insubstituíveis que ligavam todas as épocas à
Igreja das catacumbas. Enquanto a nova basílica estivesse em construção, iria haver
uma enorme rotura na fé e devoção do mundo cristão. Júlio não quis ouvir. Pela
basílica que ele planeara, a maior do mundo, estava disposto a qualquer sacrifício. Sob
Leão, a nova Basílica de S.Pedro iria custar a unidade da Cristandade.
110
Em vez de desistir de tudo para seguir Cristo, Leão apossava-se de tudo em nome
de Cristo para si próprio. Jogador e grande perdulário, dizia-se que só obedecia a
Jesus numa coisa: não pensava no dia de amanhã. Foi o único tipo de papa com que
os romanos se sentiam descansados. Dava-lhes dinheiro, em vez de o esbanjar, como
Júlio, em guerras dispendiosas.
Foi um tempo de generoso divertimento. Um certo Cardeal Cornaro oferecia jantares
de sessenta e cinco pratos, consistindo cada prato de três ementas. Os jantares de
Leão rivalizavam com estes. Do menu faziam parte carnes doces, como língua de
pavão. Dos pudins saíam rouxinóis a voar; rapazinhos nus saltavam dos doces. O seu
principal animador, um frade dominicano anão, Frei Mariano, divertia-o comendo
quarenta ovos ou vinte frangos de uma assentada. Durante o Carnaval, passavam dias
inteiros a divertir-se com touradas seguidas de banquetes que terminavam com bailes
de máscaras em que Leão entretinha os seus cardeais e suas damas.
Leão tinha 683 cortesãos na sua folha de pagamentos. Também empregava muitos
bobos, uma orquestra, um teatro permanente, especializado em peças de Rabelais, e
vários animais selvagens. O seu favorito era um elefante branco, presente do Rei
Manuel de Portugal.
Em 12 de Março de 1514 realizou-se um cortejo que atravessou Roma em direcção
à ponte de Sant’ Ângelo onde Leão se encontrava numa tribuna recebendo as
saudações. Depois de um exótico desfile de aves de capoeira indianas, cavalos persas,
uma pantera e dois leopardos, vinha Hanno, o elefante branco com um castelo de prata
sobre o lombo. De acordo com a rigorosa etiqueta da corte, o elefante, dobrando o
joelho saudou por três vezes um pontífice deliciado. Para um grande final, deram-lhe
um balde com água para ele aspergir a multidão.
Este elefante,alojado no Belvedere, tornou-se uma celebridade e produziu uma
literatura completa. Escreveram-se centenas de poemas em sua honra. Ainda existem
muitas xilogravuras dele. Rafael pintou-o na cúpula inferior do Vaticano, mas a pintura
viria a perder-se em obras de renovação. Na Biblioteca do Vaticano há um diário
secreto dos muitos compromissos do elefante, que acabou com uma morte mais
chorada do que a de muitos papas: «Lundi XVI Juin, 1516, mourut l’éléphant».
Contrariamente ao que diz a lei canónica, Leão caçou durante semanas em
Magliana, o seu espectacular retiro, quase tão belo como Castelgandolfo. Magliana
ficava a oito quilómetros de Roma, na estrada para Porto. Montava invariavelmente
sentado de lado por causa do seu “achaque”, o cheiro que os cortesãos fingiam não
sentir.
Tal como tantos outros papas da Renascença, Leão foi um entusiástico construtor e
patrono das artes. Dele disse o historiador contemporâneo Sarpi: «Teria sido um papa
perfeito se a estas realizações [artísticas] tivesse acrescentado um mínimo
conhecimento de religião».
Nenhum dos interesses de Leão saiu barato, e ele teve de contrair empréstimos de
somas fabulosas junto dos banqueiros a um juro de 40 por cento. Os bordéis
simplesmente não davam dinheiro suficiente, muito embora houvesse sete mil
prostitutas registadas numa população de menos de cinquenta mil. A sífilis era
frequente — «um tipo de doença» dizia o sifilítico Benvenuto Celini com genuína
compaixão, «muito comum entre os padres».
Para reforçar o seu rendimento, Leão inventou os ofícios à volta do palácio. Estes
postos trouxeram poder e prestígio e mostraram ser muito populares. Sisto IV tinha só
650 ofícios para venda; Leão tinha 2150. E leiloou-os. A maior procura era de chapéus
cardinalícios, que davam em média trinta mil ducados. Suas Eminências recuperavam
o dinheiro com vendas corruptas por sua conta.
111
Apesar da surpreendente liberalidade de Leão, muitos cardeais mais novos
acusavam-no de não cumprir as promessas que fizera no conclave. Alfonso Petrucci de
Siena, que aos vinte e sete anos era um homem de uma profunda impiedade e de um
ateísmo inabalável, andava particularmente indignado. Com mais quatro membros do
Sacro Colégio, decidiu assassinar o papa. O seu plano era atacar Sua Santidade no
seu ponto mais fraco e tinha o mérito da originalidade. Subornou um médico florentino,
Battista de Vercelli, para tratar o papa das hemorróidas e durante operação introduzir-
lhe-ia veneno directamente pelo recto. Era uma variante para os figos.
Leão recusou por duas vezes a oferta de Battista e por fim os seus serviços secretos
interceptaram uma carta deste para Petrucci. Ambos os conspiradores foram
encarcerados, o cardeal no Marocco, a mais baixa e pior das masmorras do Castel
Sant’Angelo.
Sob tortura, o médico confessou. Foi enforcado em público e esquartejado por um
cirurgião muito menos hábil do que ele próprio.
Leão perdoou a quatro dos cardeais rebeldes, mas as compensações foram
enormes. O caso de Pertucciu, o líder, foi tratado no recato do Marocco. Sua Santidade
não podia permitir que um cristão tocasse sequer com um dedo num antigo príncipe da
Igreja e, assim, empregou um mouro como carrasco. O mouro pôs uma corda com nó
corredio, apropriadamente de seda carmesim, à volta do pescoço de Petrucci e
estrangulou-o lentamente.
O maior perigo para Leão vinha de um quadrante que a sua demasiada miopia não o
deixava reconhecer. Não vinha da corte papal, nem de Roma, mas da distante
Alemanha.
Lutero e o escândalo das Indulgências
A Alemanha, mais do que qualquer outro país, já vacilava de tantas ofensas papais.
Sofria de pesados impostos; o pagamento de um ano de rendimento de um benefício;
dízimas impostas sobre os benefícios por Cruzadas contra os Turcos que nunca se
realizaram. Por meio da terrível arma que era a excomunhão, o clero acumulou uma
imensa riqueza. Muitos homens tornaram-se padres para adquirir imunidade nos
tribunais civis. A Chancelaria Romana publicou um livro com os montantes exactos a
ser pagos por variadas absolvições. Um diácono culpado de assassínio podia ser
absolvido por vinte coroas. Um bispo ou abade que tivesse assassinado um inimigo
podia ser absolvido por trezentas livres. O pior dos crimes tinha o seu preço. Estes
“malfeitores ungidos”, como eram conhecidos na Alemanha, estavam fora da jurisdição
civil. Ao contrário, traziam para dentro da rede eclesiástica, para julgamento, todas as
formas de litígio, incluindo, testamentos, legitimação e usura. Qualquer magistrado civil
que tentasse impedi-lo era excomungado, o que significava que perdia todos os direitos
de cidadão e de homem. Os bens da Igreja, como pertenciam a Deus, eram
inalienáveis. A Igreja tinha uma imensa riqueza em todos os países, mas na Alemanha
calculava-se que metade estava nas mãos do clero. Estavam isentos de todos os
impostos e obrigações, tais como as de defesa nacional.
A faísca que incendiou estas terras secas foi inflamada pelo Príncipe Alberto de
Hohenzollern. Aos vinte anos já detinha as ricas sés de Magdburgo e Halerstadt, mas a
sua ambição era a de se tornar Arcebispo de Mainz e Primaz de Toda a Alemanha.
Para isso estava pronto a pagar. Acontecia que o Papa Leão estava com falta de
fundos para a nova Basílica de S.Pedro e disposto a negociar. Daria a Alberto a sé de
Mainz e, contrariando a lei canónica, deixá-lo-ia ainda, manter as suas duas outras
112
dioceses, por dez mil ducados. Isto a acrescentar à taxa do pálio, neste caso vinte mil
ducados.
Como Alberto não tinha esse dinheiro para entrega imediata, Leão ignorou a
condenação da usura pela Igreja. Arranjou maneira de Alberto conseguir um
empréstimo do necessário junto dos Fuggers a um juro exorbitante. Como é que
Alberto ia pagar a dívida? Leão também tinha pensado nisso. Pegando nos exemplos
de Sisto IV e Júlio II, dotou-o de uma lucrativa indulgência que ele podia apregoar
durante oito anos, muito embora, antes da sua eleição ele tivesse feito a promessa
solene de que revogaria todas essas indulgências. Do lucro assim conseguido metade
iria para os banqueiros e a outra metade para o Vigário de Cristo, para a Basílica de
S.Pedro.
O frade escolhido para pregar a indulgência na Alemanha foi o Dominicano Tetzel.
Especulador astuto, de voz forte, foi bem pago pelos seus serviços. O seu salário, fora
as despesas, era vinte vezes o de um professor universitário. Como representante do
papa, Tetzel fazia sempre uma entrada solene numa cidade, rodeado por dignitários
civis e religiosos. Era precedido de um acólito que transportava uma cruz com as
armas papais. A Bula de Indulgência era levada em cima de uma almofada de veludo
guarnecida a ouro. Com a cruz implantada no meio da praça do mercado, iniciava-se o
negócio. À venda estavam salvo-condutos para o Paraíso. Um agente dos Fuggers
estava ali a jeito para colocar os proventos num cofre forte.
Tetzel era prodigioso a descrever o sofrimento das almas no Purgatório. Como elas
se contorciam nas chamas, clamando incessantemente aos parentes na terra: «Tende
piedade de nós! Tende piedade de nós!» Doze dinheiros permitiam a um filho libertar o
pai da agonia. O refrão mais popular de Tetzel era:
Se no cofre cai moedinha
Do Purgatório salta alminha. *
Um dos associados de Tetzel prometia uma indulgência tão poderosa que era capaz
de redimir o pecado de alguém que, nem é bom pensar, tivesse violado a Virgem
Maria.
É provável que Tetzel tivesse continuado imperturbevelmente a sua tarefa não for a
a acção de um pobre monge agostiniano de trinta e quatro anos. De origem
camponesa, de olhar mortiço e rosto franco e amigável, Martinho Lutero parecia firme
como uma árvore enraizada na terra. A sua paixão era a Bíblia, e não encontrava lá
justificação para estes abusos papais. Ficava furioso ao ver os ministros do papa a
vender indulgências ao desbarato, chegando mesmo a usá-las como fichas de jogo em
estalagense tabernas. Estes abusos já aconteciam há muito tempo. Em 1491
Inocêncio VIII tinha outorgado a Indulgência Butterbrief por vinte anos. Por um
vinteavos de um florim renano os alemães adquiriam anualmente o privilégio de comer
alimentos lácteos nos dias de jejum. Isto significava que eles podiam deliciar-se com os
seus pratos favoritos e ao mesmo tempo recolher os méritos do jejum. O produto da
indulgência foi para a construção de uma ponte sobre o Rio Elbe em Torgau. No ano
de 1509 Júlio II renovou a indulgência por mais vinte anos. O que mais encolerizava
Lutero era o ludíbrio das pessoas simples que eram levadas a crer que podiam
comprar a sua entrada no Céu.
 
* No original:
As soon as the coin in the coffers rings
A soul from the Purgatory springs. (N. T.)
113
Durante as festividades de Todos os Santos de 1517 Lutero pegou num martelo e
pregou as suas Noventa e Cinco Teses sobre Indulgências na grande porta da igreja
do castelo de Alberto em Wittenberg. Lá dentro havia relíquias, entre as quais um
caracol do cabelo da Virgem que concedia 2 milhões de anos de indulgências. Uma
das teses de Lutero dizia: «A riqueza do papa excede em muito a de todos os outros
homens. Por que é que ele não constrói a Basílica de S.Pedro com o seu dinheiro em
vez de usar o dinheiro dos pobres cristãos?»
Segundo este monge rebelde, as Chaves do Reino estavam a abrir todos os cofres
de tesouros da Cristandade; a avareza papal estava a transformar o próprio Cristo num
cúmplice de ladrões cujo único objectivo era roubar os pobres. Não admira que Lutero
ameaçasse rebentar o tambor de Tetzel.
Durante muito tempo o papado tinha traído os vulgares cristãos devotos das
cidades, vilas e aldeias. Papa após papa tinham virado as costas a Cristo. O papado
não só errava como era, ele próprio, o maior erro, porque a verdade não está
primariamente no dizer, mas no ser e no fazer. A sua traição ao povo está ainda
incorporada nos tijolos e mármores de S.Pedro. O preço daquela basílica foi a
desintegração da Igreja que dura há quatro séculos; e que durará ainda muitos mais.
O irreformável papado
Martinho Lutero não foi o primeiro a querer ajudar e a sair chamuscado. De facto, os
críticos mais severos do papado sempre foram não inimigos, mas amigos, incluindo
muitos santos — e alguns papas! O seu testemunho data de há muito.
Uma das conversas mais intrigantes alguma vez registadas em Roma foi a travada
entre o papa inglês Adriano IV (1154-9) e o seu franco compatriota John de Salisbury,
mais tarde Bispo de Chartres. «O que é que o povo pensa realmente do Papa e da
Igreja?» sussurrou o papa. E John respondeu corajosamente: «O povo anda a dizer
que a Igreja se comporta mais como madrasta do que como mãe; que há nela uma
veia fatal para a avareza e os escribas e fariseus põem penosos fardos sobre os
ombros dos homens, acumulando bens preciosos no mais alto grau. E que o próprio
Santo Padre» acrescentou «é opressivo e pouco menos que insuportável».
O Papa Inocêncio IV (1243-54), devido a uma disputa com o imperador Frederico II,
foi obrigado a deixar Roma. Fez saber que queria exilar-se em Inglaterra. Os pares do
reino recusaram recebê-lo. Disseram que a verde e perfumada Inglaterra não podia
suportar o cheiro pestilento da corte papal. Em alternativa, Inocêncio levou a Cúria para
Lyons. Quando Frederico II morreu, Inocêncio pôde voltar para Roma. O Cardeal Hugo,
em nome do papa, escreveu ao povo de Lyons uma carta de gratidão. O documento,
datado de 1250, é um dos mais vergonhosos da história papal.
Durante a nossa estadia na vossa cidade, nós [a Cúria Romana]
prestámo-vos uma assistência muito caritativa. Quando chegámos
encontrámos apenas três ou quatro irmãs do amor e quando
partimos deixámo-vos, por assim dizer, um bordel que se estende da
porta ocidental à oriental.
No mesmo século, S.Boaventura, Cardeal e Geral da Ordem dos Franciscanos,
comparou Roma à prostituta do Apocalipse, antecipando assim Lutero em três séculos.
Esta prostituta, dizia ele, embriagava reis e nações com o vinho da devassidão. Em
Roma, afirmava não ter encontrado senão luxúria e simonia, mesmo nos escalões mais
114
elevados da Igreja. Roma corrompe os prelados, estes corrompem os padres e os
padres corrompem as pessoas.
Dante, católico devoto, não só atormentou papa após papa, como tratou com a
mesma firmeza a Cúria. Os cardeais, segundo um devoto monge de Duhram, outrora
«resplandecentes como prostitutas» jazem nus no Quarto Círculo do Inferno. Grupos
destes, até aqui prelados indolentes, são obrigados a empurrar eternamente grandes
pedras, que representam as riquezas, contra outras pedras empurradas por outros
homens avarentos.
O poeta inglês William Langland escreveu:
País onde cardeais penetram,
Onde eles mais estão e se demoram,
O mais odioso de certo será,
A devassidão aí reinará. *
O Bispo Álvaro Pelayo, assessor em Avinhão, sugeriu que a Santa Sé infectou toda
a Igreja com o veneno da avareza. «Se o papa se comporta assim, diz o povo, por que
é que nós não havemos de fazer o mesmo?» Num dia perfeitamente normal, o mestre
de Pelayo, João XXII, excomungou um patriarca, cinco arcebispos, trinta bispos e
quarenta e seis abades. O seu único crime: atrasaram-se no pagamento dos impostos
ao papa.
Maquiavel, amigo de Petrarca, escreveu: «Os italianos têm uma grande dívida para
com a Igreja Romana e seu clero. Com o seu exemplo perdemos toda a verdadeira
religião e tornámo-nos totalmente descrentes. É de regra, quanto mais próxima da
Cúria Romana está uma nação, menos religiosa ela é».
Catarina de Siena disse a Gregório XI que não precisava de visitar a corte papal
para lhe sentir o cheiro. «O mau cheiro da Cúria, Santidade, há muito que chegou à
minha cidade».
No século XV, Santo Antonino, Arcebispo de Florença, criticou a sua cidade por
vender obrigações com lucro; isto é usura. Quando os seus críticos diziam «A Igreja
Romana autorizou-o», Antonino respondia «Os membros da Cúria têm concubinas. Isto
prova que a concubinagem é legal?» A simples vulgaridade do argumento é
surpreendente.
Uma das razões por que havia mais prostitutas em Roma do que em qualquer outra
capital era o grande número de celibatários que lá havia. Os conventos eram muitas
vezes bordéis. As mulheres por vezes levavam consigo para a comunhão um punhal
como protecção contra o confessor. Os cronistas falam de como os clérigos passavam
os dias nas tabernas e as noites nos doces braços das amantes. «O mais santo dos
eremitas tem a sua prostituta». Como Santa Bridget disse ao Papa Gregório: «Os
clérigos têm pouco de padres e muito de proxenetas do diabo». Os melhores coros
romanos cantavam na missa músicas tão lascivas que uma comissão de cardeais
discutiu se toda a música não devia ser proibida na igreja.
Erasmo, o erudito do século XVI, um dos maiores espíritos do seu tempo, ou mesmo
de todos os tempos, dizia que a tirania de Roma era pior do que a dos turcos. Escreveu
um quadro teatral em que o Papa Júlio tenta com grandes fanfarronadas passar por
S.Pedro nas portas do Céu. Pedro semicerrou os olhos não conseguindo reconhecer
naquele guerreiro barbudo um sucessor seu. Júlio tirou o elmo e pôs a tiara. Pedro
 
* No original:
The country is the curseder that cardinals come in,
And where they lie and linger most, lechery there reigneth. (N. T.)
115
ficou ainda mais desconfiado. Por fim, já exasperado, Júlio põe-lhe as suas chaves à
frente do nariz. Depois de as examinar, o apóstolo abana lentamente a cabeça.
«Desculpa, mas essas não servem em parte nenhuma deste reino».
O Papa holandês Adriano VI confessou à Dieta de Nuremberga em 1522 que todos
os males da Igreja vinham da Cúria Romana. «Durante muitos anos passaram-se
coisas abomináveis na Cadeira de S.Pedro, abusos em matérias espirituais,
transgressões aos Mandamentos, de tal maneira que tudo aqui foi infamemente
pervertido».O Cardeal Jesuíta Belarmino tardou em confessar: «Durante alguns anos, antes de
Lutero e Calvino, quase não havia na Igreja religião nenhuma». O papado, dizia ele,
quase tinha eliminado o Cristianismo.
Em 1518, cantando a sua “A Canção do Louco”, Lutero escreveu à nobreza alemã
queixando-se da avareza papal. Descrevia a Santa Sé como «mais corrupta do que
qualquer Babilónia ou Sodoma. É triste e terrível ver o Chefe da Cristandade, que se
gaba de ser o Vigário de Cristo e sucessor de S.Pedro, a viver com uma pompa
mundana que nenhum rei ou imperador pode igualar; de tal maneira que naquele que
se intitula de muito santo e espiritual há mais mundanismo do que no próprio mundo».
Dois anos mais tarde, Lutero foi excomungado pelo Papa Leão. Lutero apelou para
um Concílio Geral. Durante vinte e cinco críticos anos os papas e a Cúria recusaram o
apelo para o único fórum capaz de resolver as graves questões da Igreja.
Por essa altura as coisas estavam tão mal que Contarini disse ao Papa Paulo III
(1539-49) que toda a corte papal era herege; era contrária à essência do Evangelho. A
lei de Cristo traz a liberdade; o papado, disse Contarini francamente, apenas traz a
servidão e o capricho. «Escravidão maior do que esta, Santidade, não podia ser
imposta aos fiéis de Cristo».
Paulo III, o Cardeal de Saias, cuja única afirmação de eminência foram os
irresistíveis encantos da irmã Giulia, não estava talhado para ser um reformador.
O Concílio de Paulo — havia de durar vinte anos — começou em Trento em
Dezembro de 1545. Edmund Campion, o virtuoso jesuíta que foi martirizado em
Londres em 1580, disse orgulhosamente sobre Trento: «Meu Deus! Que variedade de
nações! Que lote de bispos de todo o mundo!» A verdade é que em Trento 187 bispos,
bastante mais do que metade, eram italianos. Dificilmente se pôde considerar um
reunião “católica”. De qualquer maneira, chegou tarde demais para desfazer os danos
que o papado já tinha causado. Os padres ficaram espantados ao ouvirem-se
descritos, numa sessão aberta, como uma tribo indigna, lobos e não cordeiros, autores
da corrupção na Itália e em toda a parte.
Como é que Roma, que estava longe de ser a campeã do Evangelho, se tornou, na
frase de Contarini, a encarnação da heresia?
Foi o poder que esteve na base disso. Como que a confirmar a famosa frase de
Acton, o poder absoluto corrompeu não só os detentores de ofícios, mas também o
próprio ofício papal. Esta a razão por que homens como o Bórgia, longe de estarem
deslocados na Cadeira de Pedro, tão bem nela assentaram.
A Reforma não veio quando a Igreja se deteriorou ainda mais, mas quando
apareceu a verdadeira santidade. Os Reformadores salvaram o papado, que se tinha
afundado demais para se salvar a si próprio ou à Igreja. Jacob Burkhardt disse: «A
salvação moral do papado deve-se aos seus inimigos mortais». Mas o preço foi
elevado. Trento consagrou a teologia medieval, assegurando assim que o Catolicismo
viesse a ser curto de vistas e retrógrado nos séculos seguintes. Foi o principio de uma
116
Guerra Fria religiosa. O padre Paulo Sarpi escreveu o seguinte sobre Trento: «Este
Concílio, desejado e concretizado por homens piedosos para reunificar a Igreja, que
ameaçava rotura, confirmou o contrário, o cisma, e endureceu atitudes tornando os
desacordos insolúveis».
Trento, em sua opinião, foi responsável pela maior «deformação na ordem
eclesiástica jamais vista, com a consequência de que a Cristandade agora é odiada».
Depois de Trento, o enorme poder de Roma foi confirmado e os bispos perderam a sua
independência, de tal modo que não houve mais concílio nenhum durante mais de
trezentos anos. Só então foi convocado um concílio para exprimir formal e finalmente o
absolutismo papal. A Igreja Romana, separada dos Protestantes no Ocidente, era a
partir de agora menos uma igreja católica do que uma seita temerosa virada para
dentro de si própria e dominados pelo papa.
O curioso é que Lutero não tinha a intenção de deixar a Igreja. Só que compreendeu
que uma Cristandade dividida era melhor do que uma só que o papa governava na
negação do Evangelho. É muito melhor ser governado pela Bíblia aberta do que por um
papado corrupto e aparentemente irreformável. Os cristãos do Ocidente ainda debatem
a sensatez do julgamento de Lutero. A sua análise não diferia muito da de Dante. O
que estava mal na Igreja era o libido dominandi do papado, o seu apetite insaciável
pelo poder.
Leão X foi suficientemente obtuso para excomungar Lutero, mesmo dizendo este
que «Queimar hereges é contra a vontade do Espírito Santo». Alguns dos papas
seguintes não foram mais perceptivos.
A tempestade há muito em formação eclodiu finalmente. O relâmpago rasgou o céu,
atroou o trovão — e eles continuaram tranquilos como sempre.
Calvino iniciou a Reforma em Genebra em 1541. Lenta e implacavelmente ela
alastrou pela França, Holanda e Escócia. E continuava a não haver sinal de
reconhecimento no Vaticano de que a sua influência se desvanecia.
No ano de 1555 apareceu um novo pontífice. Lutero já morrera há quase uma
década, a Cristandade estava praticamente a explodir e uma Igreja dividida já não
estava disposta a escutar os delírios de um papa incapaz. E os príncipes muito menos.
O novo pontífice era mais cego e mais surdo do que qualquer dos seus
antecessores, mas não mudo. Tentou espantar a tempestade e comportou-se como se
fosse Gregório VII ressuscitado.
117
8
O Crepúsculo do Poder Absoluto
Dele diziam os romanos que se a mãe tivesse previsto a sua carreira o teria
estrangulado à nascença. O homem em questão era João Pedro Carafa, a encarnação
da ira de Deus, que se tornou Paulo IV (1555-9).
Alto, magro e calvo, eleito aos setenta e nove anos quando estava atormentado com
o reumatismo, Paulo IV ainda tinha um andar enérgico. Os seus gestos, súbitos e
impetuosos, atiravam muitas vezes os seus assessores para o chão. O embaixador
florentino descrevia-o como um homem de ferro que provocava faíscas nas próprias
pedras sobre que caminhava. A cabeça maciça tinha a forma do Vesúvio, a cuja sombra
ele tinha nascido. Também ele tinha inesperadas erupções que vomitavam destruição e
morte. A barba desgrenhada e as sobrancelhas ásperas davam-lhe um ar selvagem; os
olhos encovados, vermelhos e manchados brilhavam como lava incandescente. A voz
rouca, quase sempre acompanhada de catarro, trovejava exigindo obediência cega e
imediata.
Até o historiador papal, Pastor, achou difícil dizer qualquer coisa de bom acerca de
Paulo IV. Sulista desbocado, era «tão arrebatado» observou Pastor, «que utilizava
expressões que pareceriam incríveis se não fossem confirmadas por testemunhas
acima de qualquer suspeita».
Completamente católico nas suas imprecações, era capaz de espancar um cardeal
como se este fosse um lacaio. Fazia esperar os embaixadores quatro a sete horas,
como se isto conviesse à imagem do sucessor de Pedro. Nunca os recebia sem lhes
gritar aos ouvidos que era superior a todos os príncipes. Como Vigário de Cristo, dizia
ele, era capaz, com um só dedo, de mudar todos os soberanos da terra.
No ano de 1557 Paulo publicou a Bula Cum ex Apostolatus officio. Considerou-se
Pontifex Maximus, o representante de Deus na Terra. E como tal, tinha poder ilimitado
para depor todos os monarcas, entregar todos os países à invasão estrangeira, privar
todas as pessoas dos seus bens sem processo legal. Qualquer pessoa que oferecesse
ajuda a um deposto — nem que fosse por simples e elementar bondade humana - seria
excomungado.
Uma nova Rainha para a Inglaterra
No princípio de 1559 o embaixador inglês Edward Carne apareceu diante deste papa
vulcânico e informou Sua Santidade de que Isabel Tudor, filha de Henrique VIII e Ana
Bolena, tinha sucedido a Maria no trono de Inglaterra.
Paulo detestava as mulheres com inflexível ferocidade teológica e nunca admitia um
único exemplar da espécie nas proximidades. Discordava violentamentede Platão, que
dizia que as mulheres eram iguais aos homens. Tomás de Aquino tinha razão: as
mulheres são homens inacabados. As suas almas não foram suficientemente potentes
para moldar a figura masculina ou o superior intelecto masculino. Apesar de tudo isto,
mostrou algum interesse em relação a Maria quando soube da maneira como ela tinha
118
tratado os restos mortais de Henrique, seu pai. Desenterrou o seu corpo herege e
queimou-o. Alguns anos depois queimou vivos também mais de duzentos protestantes.
Com Isabel era diferente. Não sabia essa mulher arrogante, perguntou o pontífice a
Carne, que a Inglaterra era, desde o Rei João, um feudo da Santa Sé? E que os filhos
ilegítimos não podem herdar? Não tinha ela lido a sua última Bula? Era puro
atrevimento da sua parte pretender governar a Inglaterra, quando esta lhe pertencia a
ele. Não, não podia deixar passar isto impunemente. Ela era uma usurpadora, uma
bastarda, uma herege. Se ela renunciasse às suas ridículas pretensões e viesse
imediatamente ter com ele em penitência, iria ver o que podia fazer por ela. Senão…
Dois meses depois Isabel cortava relações diplomáticas com Roma.
Este arrogante chauvinista do Vaticano não compreendeu a mulher de vinte e cinco
anos com que estava a lidar. Apesar dos seus defeitos, ela tinha um coração de
carvalho inglês.
Isabel nascera numa magnífica cama francesa em Greenwich Palace. Assim que
soube que era uma menina, Henrique deixou Greenwich com um ataque de cólera que
durou três dias, a gritar que Ana Bolena, a sua segunda mulher, era tão estúpida como
a primeira, e por aquilo tinha ele arriscado a excomunhão pelo papa e a perda do seu
reino. Ana ficou então a saber que estava condenada. Tinha apenas trinta anos quando
foi acusada e considerada culpada de ter amantes e de conspirar para matar as suas
rivais. Foi executada com uma pesada espada francesa, deixando Isabel, de três anos,
completamente só. A menina tinha os grandes olhos assombrados da mãe e o fino nariz
Plantageneta do pai. Vivia de expedientes, é verdade. Mas tinha que ser. Quando
cresceu, foi declarada, sucessivamente, legítima e ilegítima, herdeira do trono e, depois
da morte do pai, esteve a um passo da execução.
Os historiadores divergem sobre se Isabel, quando da sua subida ao trono, estaria já
empenhada em reintroduzir o Protestantismo em Inglaterra. Quando Maria, sua meia
irmã e a primeira mulher a governar a Inglaterra, se tornou rainha, Isabel mandou
imediatamente celebrar missa na sua casa considerando que «uma vida valia bem uma
missa». Os insultos gratuitos de Paulo IV selaram o destino dos católicos ingleses. Se
ele pensava que era o superior na Inglaterra, ela tornar-se-ia a superiora da Igreja. Este
jogo de deposições podia ser jogado por dois, especialmente nos tempos conturbados
da Reforma. A acreditar na História, houve mais soberanos que depuseram papas do
que o contrário.
Excedendo-se e interpretando uma vez mais erradamente os acontecimentos, um
papa iria ver mais um país retirar a sua aliança com a Santa Sé.
Paulo não conseguiu evitá-lo. A heresia cegava-o para todos os factos e para as
consequências. Era uma praga. Numa praga queimam-se as roupas e até as casas.
Numa praga da alma o papa não tinha alternativa senão queimar o corpo onde a alma
reside. Dessa maneira, os outros não eram contaminados. Isto explica a razão por que
ele, apesar de se eximir a numerosas funções, nunca perdeu uma única reunião das
Quintas-feiras do Santo Ofício. Mesmo quando já estava a morrer chamou os
inquisidores ao seu quarto. Preparados para tratar da heresia, os inquisidores agora
condenavam à morte fornicadores, sodomitas, actores, bobos, leigos que não cumpriam
o jejum da Quaresma, e até um escultor que tinha esculpido um crucifixo considerado
indigno de Cristo.
Quando Paulo morreu no verão de 1559, os romanos deitaram fogo à prisão da
Inquisição na Via Ripetta e destruíram-na. Uma turba apeou e destruiu a sua estátua no
Capitólio, e os judeus, que ele perseguira mais do que qualquer outro pontífice,
puseram-lhe um chapéu amarelo sobre a cabeça decepada. O rapazio cuspiu-lhe em
119
cima e andou aos pontapés à cabeça e depois arrastou-a pelas ruas para finalmente a
atirar ao Tibre. Só ficaram com pena de não lhe poderem rasgar o corpo, membro a
membro, com as próprias mãos. Depois de sondarem a opinião pública, as autoridades
enterraram o corpo bem fundo em S.Pedro no meio da noite de 19 de Agosto e
montaram-lhe uma guarda.
Paulo IV nunca duvidara de que, em circunstâncias semelhantes, Jesus, um leal
judeu, morto por heresia, teria feito exactamente o mesmo que ele. Ele não era amado.
Alguém que em breve lhe sucedeu também não o seria mais.
O último soberano a ser deposto
Paulo IV sabia o que estava a fazer quando escolheu um Dominicano
excessivamente escrupuloso, Michele Ghislieri, para seu Grande Inquisidor. Depois da
sua eleição em 1566 com o nome de Pio V, Michele Ghislieri continuou a viver uma vida
monástica numa cela no Vaticano. Comia pouco e ameaçou o cozinheiro de
excomunhão se lhe pusesse ingredientes proibidos na sopa nos dias de abstinência. O
seu principal propósito era transformar Roma num mosteiro. Só falava com Deus e só
Deus ele ouvia.
De aspecto, Pio era um pacote de pele amarela e ossos vacilantes. Calvo e com uma
longa barba branca, a testa cor de cera era alta e estreita sobre um nariz adunco. Os
olhos eram minúsculos e os lábios curvos como uma cimitarra.
O seu primeiro acto como pontífice foi expulsar todas as prostitutas de Roma. O
número de mulheres perdidas na sua diocese envergonhava-o. O Senado Romano
resistiu porque, diziam eles, a licenciosidade sempre floresceu onde havia o celibato. Se
as prostitutas se fossem embora, não só as rendas das casas cairiam, mas também
nenhuma mulher decente estaria a salvo do clero.
Pio proibiu os residentes de Roma de entrarem nas tabernas. Esteve à beira de fazer
do adultério um pecado capital. Será que ele não sabe absolutamente nada da história
papal? — queixava-se um membro da Cúria. A seguir, Pio elaborou aquilo que a
comunidade inglesa apelidou de a Última Bula; aboliu as touradas em toda a
Cristandade. A bula foi publicada em toda a parte, excepto na Península Ibérica, o que
de certa forma diminuiu o seu impacto. A hierarquia espanhola desculpou-se com o
fundamento de que não queria criar má reputação à Igreja.
Pio depressa voltou a sua atenção para a Inglaterra. Na sombra, encorajou a
desobediência civil a Isabel. Contribuiu com doze mil coroas para um levantamento no
norte. Estava disposto, dizia ele, a ir pessoalmente, se necessário, ajudar «e empenhar
nesse serviço todos os bens da Sé Apostólica». O levantamento falhou. Foi nessa altura
que Pio cometeu um estúpido erro fatal.
Na primeira semana da Quaresma de 1570, num tribunal de inquérito em Roma,
Isabel foi declarada culpada de infidelidade em dezasseis pontos. O veredicto do próprio
papa foi incorporado na Bula Regnan in Excelsis de 25 de Fevereiro. Descrevia Isabel
como serva do vício e pretensa Rainha de Inglaterra. «Esta mesma mulher, tendo
conseguido o reino e escandalosamente usurpado para si própria o lugar de Chefe
Supremo da Igreja de Toda a Inglaterra» tinha de ser castigada.
Esta última tentativa de um papa derrubar um soberano foi a mais radical e
devastadora de todas.
Nós declaramos que a sobredita Isabel é herege e instigadora de
hereges e Nós declaramos que ela e os seus apoiantes incorreram
120
na pena de excomunhão. […] Declaramos que ela fica privada das
suas pretensões ao sobredito reino e de toda a autoridade,
dignidade e privilégios. Declaramos também que os nobres, súbditos
e povo do sobredito reino e todos os outros que lhe juraram
vassalagem ficam para sempre dispensados de qualquer voto de
fidelidade e obediência. Consequentemente, Nós absolvemo-los e
retiramos à mesma Isabel a sua pretensão ao reino. […] E Nós
ordenamose proibimos os seus nobres, súbditos e povo de lhe
obedecer. […] Nós condenaremos aqueles que façam o contrário a
uma igual pena de excomunhão.
O papa que escreveu isto viria a morrer na cama dois anos depois. Outros iriam
pagar na forca os seus erros.
Durante doze anos, antes da Regnans in Excelsis, os católicos ingleses, sob Isabel,
tinham sido sujeitos a multas por não assistirem a Igreja Anglicana. Nem um só foi
executado. O efeito da Bula foi o de transformar os católicos ingleses em traidores.
Entre 1577 e 1603, foram executados 120 padres e sessenta leigos que os acolheram.
Estes homens e mulheres corajosos tiveram de esperar mais 25 anos do que Pio V pela
canonização.
Muito depois do seu pontificado os católicos encontravam-se divididos entre a
lealdade à Igreja e ao seu país. Foi o papa que decidiu «na plenitude do meu poder
apostólico» que uma dupla lealdade era impossível. Fez uma coisa perigosa quando
tentou minar o patriotismo dos ingleses.
A arma forjada por Gregório VII, que tanta satisfação lhe deu em Canossa, foi afiada
na perfeição por Inocêncio IV. E agora reclamava as suas derradeiras vítimas.
Gregório tinha feito da excomunhão uma arma política para derrubar imperadores e
reis. Esse erro foi o responsável pelo ódio e ilegalização de que os católicos foram alvo
em país após país.
Uma vez que a sua religião é uma religião de fé e não de raça, os cristãos deviam ser
cidadãos do mundo. Pertencem ao Cristo que afirmava sofrer em todos os que sofrem.
Um cristão, onde quer que esteja, devia ser um sinal desse amor católico universal. Mas
Roma, pela sua tendência para o absolutismo, pela sua ambição de poder, transformou
o Catolicismo em Romanismo. Os papas hereges e de heróico ascetismo pessoal
exigiam aos católicos não uma obediência meramente espiritual, mas também política.
Em resultado disto, parecia que os católicos deviam, e às vezes deviam mesmo,
lealdade política a um poder estrangeiro mascarado de vigário de Cristo. Longe de
serem um povo universal, eram vistos como menos do que patriotas.
Na Inglaterra, Roma dispensou os católicos da obrigação de tentarem derrubar
Isabel. No entanto foram avisados de que, se a Inglaterra fosse atacada, teriam de
ajudar o invasor a depor a rainha. A partir de então, e durante séculos, os católicos
passaram a não ser bem ingleses.
Como escreveu Travelyan na sua A Shortened History of England «Enquanto a Igreja
Romana não deixasse de usar em todo o mundo os métodos da Inquisição, do
Massacre de S.Bartolomeu, da deposição e assassínio de Príncipes, os Estados sobre
que ela lançou a sua formidável excomunhão não podiam garantir a tolerância aos seus
missionários».
No século XVI a Cristandade desintegrou-se. O Protestantismo era um facto
consumado. A Reforma tomou de tal maneira conta da Europa que alguns países, antes
solidamente católicos, como a Inglaterra, ficaram sob o domínio de monarcas “hereges“.
Mesmo em França o Protestantismo foi uma força sujeita às mais cruéis perseguições.
121
A Igreja Católica fechou-se em si mesma no período que ficou conhecido como
Contra-Reforma. Esta era tão sectária como o Luteranismo e o Calvinismo que se lhe
opunham. As polémicas perturbavam-lhe todo o pensamento. A originalidade era um
anátema. Era a hora de cerrar fileiras. A sobrevivência era o melhor que se podia
esperar; e o papa era o maior sobrevivente da História.
A Revolução Francesa em 1789 abalou ainda mais a paz de espírito da Igreja. Lá
fora havia um novo espírito, o espírito da «liberdade sem restrições». A Revolução
parecia determinada a destruir não só as velhas monarquias absolutas, os anciens
régimes, mas também a decência moral e religiosa. Isto, aos olhos dos papas, era
trabalho do Demónio. Para uma instituição que representava acima de tudo a ordem,
isto era a anarquia. Era inevitável que a Igreja Católica se refugiasse ainda mais em si
mesma e se alimentasse da sua velha herança. Como é que se podia esperar que ela
se acomodasse à “liberdade“ à moda do ateísmo?
Nos anos seguintes Napoleão desferiu mais um grande golpe no papado. Humilhou
dois papas sucessivamente. Pio VI foi deposto e obrigado a exilar-se em Valência, onde
morreu no último ano do século XVIII. No seu obituário, no registo local, lê-se: «Nome:
Cidadão João Braschi. Profissão: pontífice». Também Pio VII, depois de uma
concordata falhada em 1801, foi exilado e obrigado a oficiar na coroação de Napoleão
em Notre Dame. Naquele momento solene, Napoleão pôs o papa no seu lugar
coroando-se a si próprio e a Josefina; depois procedeu à anexação dos Estados Papais.
Mas, deve ter pensado Pio IX (1846/78), não tinham aquelas preciosas terras sido
devolvidas a Deus, seu dono por direito, pelo Congresso de Viena (1814/15)? O mesmo
aconteceria outra vez a seu tempo. Ou seria o Rei Victor Emmanuel mais poderoso do
que Napoleão. Era uma mera questão de paciência.
Pio IX, um homem de força moral, não conseguiu ver aquilo que saltava à vista.
O papado: o fim ou um novo princípio?
O velhinho de cabelos brancos e cara vermelha redonda foi acordado pelo som do
canhão. As janelas bateram e a sua cama de ferro balançou ligeiramente sobre o chão
de mármore. As persianas ainda estavam subidas, mas como aquela manhã de fins de
Setembro estava escura, não conseguiu ver as horas no relógio. A respirar
pesadamente e a estremecer, o velho soergueu-se com esforço na almofada. O
lumbago tornava-lhe cada movimento um tormento; as ancas, principalmente, faziam
doer. Uma vez sentado, fez o sinal da cruz.
Nesse momento, a porta abriu-se. Uma figura magra, de roupão, com uma lanterna
acesa na mão, fez uma vénia antes de entrar e ajoelhou. O homem na cama gemeu:
«Che ora?» «Cinco e pouco, Santidade». «Então, Leonardo, aquilo começou». O
Cardeal Antonelli, há muito o Secretário de Estado de Pio IX, baixou a cabeça. «E
Kanzler?» perguntou o pontífice. «O general está a cumprir as Vossas ordens,
Santidade. Vai organizar uma resistência simbólica para mostrar que o inimigo não é
bem-vindo. Mas… » Os dedos compridos e ossudos de Antonelli borboletearam para
indicar que a cidade estava condenada a cair muito em breve.
Depois de se vestir com a ajuda de um criado, Pio dirigiu-se, de muletas para a sua
pequena capela para celebrar missa. A sua fervorosa intenção nunca esteve em dúvida.
Que Deus preservasse a Cidade Eterna daqueles vândalos piemonteses que se tinham
aliado a Satanás.
O assobiar e o explodir das bombas eram perfeitamente audíveis enquanto o papa se
entregava às suas devoções. As bombas estavam a cair a pouco mais de um
122
quilómetro. Era claramente um ataque em duas frentes. Quando estava a dar graças a
Deus, vieram informá-lo de que a principal força sob o comando do General Cadorna
estava concentrada na Porta Pia. Vinte dos defensores tinham sido mortos e cinquenta,
feridos. «Requiscant in pace» murmurou o Papa, persignando-se. Estes jovens em vão
arrancados à vida nos seus melhores anos eram as últimas vítimas das ambições
temporais do papado.
Pio pediu a Antonelli que arranjasse um encontro dos corpos diplomáticos o mais
depressa possível. Os embaixadores reuniram-se a meio da manhã numa sala de
audiências à vista do Castel Sant’Angelo. O papa, apontou sem dizer nada. Eles
olharam para o sítio onde uma bandeira branca esvoaçava sobre o castelo. Rendição.
Estava-se em 1870. Exactamente três séculos depois de Regans in Excelsis, o papa
era destituído do seu trono por um monarca terreno. As grandes instituições são vítimas
de grandes ironias. Mas durante todos os mil e quinhentos anos de poder temporal do
papado nenhum momento foi mais pungente do que este.
Contudo, isto era de prever; de facto, pelo menos há duas décadas que era
inevitável. Mas Pio IX estava convencido de que o futuro seria sempre como o passado.
Já era papa há vinte e quatro anos. Metternich, o chanceler austríaco, que dominava
a Europa há quarenta anos, fez sobreele um juízo rápido que não está longe da
verdade: «Coração quente, cabeça fraca e carecendo totalmente de bom senso».
Começou em 1846 com a reputação de liberal. Na sua casa ancestral, dizia-se, até
os gatos eram nacionalistas. Mal chegou ao trono concedeu logo a amnistia aos presos
políticos. Por toda a Península todos os tipos de pessoas sentiam que talvez finalmente
o Todo Poderoso tivesse piedade deles. Teria Ele feito um milagre e enviado um papa
liberal, um papa que levasse todas as oito regiões separadas da Itália à unidade por que
todos ansiavam? Meu Deus, por favor, alguém observou, o pontífice não vai desiludir o
gato da família. Os italianos há muito que se queixavam de que Deus não tinha sido
bom para a sua bela terra aconchegada ao mar: montanhas inultrapassáveis a norte,
dois vulcões a sul e, o mais ameaçador de todos, um papa no meio.
Depois de dois anos de reinado de Pio, o cargo apossou-se do homem. Um
levantamento republicano em Roma obrigou-o a fugir, de sotaina e óculos escuros, para
Gaeta no Reino de Nápoles. Foi nessa altura que ele se converteu à causa
reaccionária. Em dois anos de exílio, arrependeu-se de todas as suas simpatias de
esquerda para se tornar o mais duro dos da linha dura. O seu único conselheiro nesses
anos decisivos foi Antonelli, filho de um bandido napolitano, e conhecido pelas suas
aventuras amorosas. Este prelado, que era de antes quebrar que torcer, matar que
perdoar, viria a morrer carregado de riquezas cuja origem, até hoje, ninguém sabe.
Quando, alguns anos depois da sua primeira experiência amarga, pediram a Pio para
chefiar uma federação da Itália, ele recusou liminarmente. Opunha-se a todas as formas
de liberdade e mudança constitucional. O seu objectivo único era segurar os estados
que governava como monarca absoluto, sem a interferência de ninguém.
Estes estados, que os papas tinham entesourado, como o dogma da Trindade,
tinham nesta altura o dobro do tamanho da Terra Santa com uma população de quase
três milhões. Desde que a Igreja começou a adquiri-los depois de Constantino sair para
Bizâncio, o seu efeito final foi sempre o de corromper e estropiar a sua missão
espiritual. No século XIV Giovanni de’Mussi escrevera: «Desde o tempo de Silvestre as
consequências do poder temporal foram inúmeras guerras… Como é que é possível
que nunca tenha havido um papa bom para remediar estes males e que tenha havido
tantas guerras por causa destes bens efémeros?»
123
Ninguém tinha lutado tão ferozmente por eles como Júlio II. Estavam mais ou menos
intactos quando Clemente VII, desorientado pelo saque de Roma em 1527, se
encontrou com o embaixador veneziano, Contarini, que em breve viria a ser cardeal.
Contarini tentou consolar o papa.
Vossa Santidade não deve pensar que o bem estar da Igreja de
Cristo reside neste pequeno Estado da Igreja: pelo contrário, a Igreja
já existia antes de possuir o Estado, e melhor assim. A Igreja é a
comunidade dos cristãos; o Estado Temporal é como qualquer outra
província da Itália, e portanto Vossa Santidade deve procurar acima
de tudo promover o bem estar da verdadeira Igreja, o qual consiste
na paz da Cristandade.
Por volta de 1870 só a Rússia csarista era governada de maneira mais perversa do
que os Estados Papais. Nestes não havia liberdade de pensamento nem de expressão,
nem eleições. Os livros e jornais eram censurados. Os Judeus eram fechados em
guetos. A justiça era um leão cego e esfomeado. Era claramente um estado policial sob
a bandeira papal, com espiões, inquisidores, represálias, polícia secreta, e as
execuções por crimes menores eram um lugar-comum. Uma pequena oligarquia clerical
muito fechada, corrupta, lasciva, governava, em nome de Sua Santidade, com mão de
ferro.
A situação só se tinha deteriorado desde que Lord Macauley visitara a Itália em 1838.
Este tentou então imaginar como seria a Inglaterra se todos os membros do parlamento,
ministros, juizes, embaixadores, comandantes-em-chefe e lordes do Almirantado
fossem bispos ou padres. Pior ainda, bispos e padres celibatários. Para conseguir uma
promoção, os homens mais lascivos eram obrigados a tornarem-se clérigos e tomar
votos de celibato. O resultado foi, segundo Macauley nas suas Cartas, que «a
corrupção infecta todos os serviços públicos… Os Estados do Papa são, suponho, os
mais mal governados em todo o mundo civilizado; e a imbecilidade da polícia, a
venalidade dos funcionários públicos, a desolação do país mostram-se forçosamente ao
viajante mais descuidado.
Mais ou menos trinta anos depois, os Estados Papais estavam maduros para a
rebelião.
Pio recebeu muitas propostas no sentido de salvar a Itália e o papado. Diziam-lhe
respeitosamente que Herodes é que era o rei da Judeia e não Jesus; e que no
Evangelho não havia qualquer menção ao “poder temporal”. Pelo contrário, Jesus disse
firmemente: «O meu reino não é deste mundo». Apesar da Doação de Constantino, os
papas nunca foram senhores de nenhuma cidade fora de Roma até o Rei dos
Lombardos lhes doar Sutria em 728. Pediam ao papa que se lembrasse de que na
Renascença, quando estava no seu apogeu, o papado era tão pouco edificante que
perdeu as alianças de metade da Cristandade. Davam-lhe a garantia de plena
independência como chefe da Igreja. De facto a sua chefia em matéria de moral e
religião seria mais brilhante do que nunca.
O papa fez ouvidos de mercador a todos estes apelos. A civilização moderna era
obra do Demónio, dizia ele, e recusava parlamentar com o Príncipe das Trevas.
O movimento unificador reunia agora forças no Piemonte sob a liderança do Rei
Victor Emmanuel II. Cavour, o seu arquitecto, proclamava o ideal de uma Igreja livre
num estado livre. Tal como Moisés, ele não iria entrar na Terra Prometida, mas mesmo
no leito da morte exclamou para o padre enviado para lhe dar a Extrema Unção:
124
«Padre, Padre! Uma Igreja livre num estado livre!» Pio IX pôs sobre este testamento de
fé o selo da heresia.
Em 1862 recebeu uma petição assinada por doze mil padres. Imploravam a Sua
Santidade que lesse os sinais dos tempos. Roma tinha de ser a capital de uma nova
Itália. Não quereria ele «pronunciar uma palavra de paz»? A reacção de Pio foi
disciplinar aqueles rebeldes, todos eles.
Mesmo no fatídico ano de 1870, quando as tropas francesas, que o tinham defendido
durante tanto tempo, se retiraram para combater os prussianos, deixando-o com um
exército de Gilbert e Sullivan, Pio manteve-se firme. Como ele disse ao corpo
diplomático na manhã de 20 de Setembro, não se sentia capaz de se desfazer de uma
herança de seis quilómetros quadrados que eram vitais para a sua autonomia espiritual.
Assim, quando os canhões de Cadorna romperam a muralha Aureliana na Porta Pia,
os emplumados Bersaglieri, parte de um forte exército de sessenta mil homens,
inundaram a cidade. Arriaram a bandeira amarela papal em todos os edifícios e
hastearam a tricolor. A multidão nas ruas entrou em delírio. Para eles o papa era mais
um tirano civil do que o chefe da Igreja. Este era o dia da libertação. Um plebiscito
mostrou que só um em cada mil era a favor do papa e contra o rei.
Cadorna tinha recebido instruções rigorosas para não bombardear o Vaticano. Pio foi
deixado em paz. Mas quando Victor Emmanuel lhe pediu uma audiência, Sua Santidade
recusou. A única palavra que ele tinha para dizer ao rei era excomunhão, uma arma
espiritual mais uma vez incorrectamente utilizada. E renovou a punição numa espécie
de base bienal de modo que o rei foi excomungado quatro vezes antes de morrer em
1878, quando lhe foi permitido fazer as pazes com Deus, que não com o seu
representante na Terra. Pio também proibiu os católicos de se envolverem nos
processos democráticos da nova Itália, quer como eleitores quer como candidatos.
Nos oito anos restantes após a invasão, o pontífice manteve-se no Vaticano,
intitulando-se, algo dramaticamente, “O Prisioneiro do Vaticano”. Por toda a parte,
especialmentena Irlanda e na Alemanha, circulavam gravuras benzidas que mostravam
Pio deitado numa enxerga numa masmorra fétida. As contribuições para a Caixa das
Esmolas de Pedro, a dádiva dos pobres, em resultado disto, aumentaram em flecha. A
sua prisão era bastante confortável, em nada semelhante à de Pedro na Mamertine.
Para falar verdade, ele tinha mais espaço vital do que tiveram todos os judeus de Roma
durante séculos. Possuía um esplêndido jardim e inúmeras salas onde descansar ou
jogar o bilhar com o Cardeal Antonelli. Um poeta jacobino disse mais prosaicamente do
que Pio: «O papa está prisioneiro dele mesmo».
Pela Lei das Garantias de 1870, o Rei da Itália propunha um muito generoso acordo.
A todas as ofertas, mesmo as financeiras, Pio respondia «Non possumus», (Não
podemos), como se tivesse sido convidado para comer carne de vaca em Sexta-feira
Santa. E continuou mesmo até ao fim, tal como o Vaticano fazia há séculos, a
transformar questões políticas em assuntos chave da religião. Embora afirmasse servir
um Mestre que nada possuía de seu, insistia que não podia servir senão como
monarca. Pio VII tinha dito o mesmo a Napoleão quando este se apossou do território
papal. «Nós exigimos a restauração dos nossos estados, porque eles não são herança
pessoal nossa, mas a herança de S.Pedro, que os recebeu de Cristo». Era necessária
uma certa audácia para acreditar que Pedro — um pescador da Galileia que
provavelmente nunca teve nada de seu a não ser um velho barco de madeira — tivesse
recebido de Cristo uma tão grande fatia da Itália Central, sem a qual não podia pregar o
Evangelho de Jesus crucificado. Mas Pio IX não recuou em tal crença, o que explica a
razão por que o papado teve de ser arrastado à força e a estrebuchar para o Novo
Testamento.
125
Os não-católicos ficaram deliciados com o facto de o papado ter sido finalmente
reduzido à dimensão de qualquer coisa com o tamanho do Novo Testamento. Os mais
desavisados profetizaram a sua extinção. Subvalorizaram a função e o homem.
A teologia não era o forte de Pio. O seu secretário particular, Monsenhor Talbot,
confessou numa carta a W. G. Ward: «Como o Papa não é grande teólogo, estou
convencido de que quando escreve [as suas encíclicas] é inspirado por Deus». A total
ignorância não era obstáculo à infalibilidade, dizia ele, porque Deus pode indicar o
caminho certo mesmo pela boca de um burro falante. Talbot, sem querer, tinha atingido
as alturas de Voltaire.
O que lhe faltava em intelecto, colmatava Pio com astúcia animal. Ele já se preparara
para um futuro que, de outra maneira, seria negro, com uma jogada que o audacioso
Gregório VII teria aplaudido.
Dois meses antes da invasão de Roma, Pio tinha presidido à sessão final do Concílio
Vaticano. Em contraste com a abertura, um ano antes, S.Pedro estava quase deserta.
Na tribuna real estavam duas damas, uma delas a Infanta de Portugal, bem como um
decrépito oficial da Ordem de S.Januário, de faixa brasonada sobre o peito. A tribuna
diplomática também tinha muitos lugares vagos. Os Grandes Poderes tinham instruído
os seus embaixadores para boicotarem uma cerimónia que não lhes traria qualquer
vantagem.
O tempo estava mau. Uma tempestade ameaçara toda a noite. Para uma manhã
romana de meados de Julho, a luz era extremamente fraca.
Havia 532 bispos, homens já velhos, vestidos de casula branca e na cabeça a mitra
também branca, sentados no transepto norte da basílica. Para muitos, como Manning
de Westminster, o único convertido do Concílio, este era o maior dia das suas vidas. Só
pela porta principal do transepto é que os de fora podiam vislumbrar os trabalhos. O
papa entrou a coxear, quase despercebido; vinha paramentado e a entoar o Veni
Creator Spiritus. Depois, no meio de um calor vaporoso, um bispo com voz de baixo
numa ópera de Verdi leu a nova Constituição, Pastor aeternus (“Pastor eterno“). Seguiu-
se a chamada.
Foi então que deflagrou a mais famosa tempestade alguma vez registada, qual ira de
Deus, sobre S.Pedro. Nos intervalos entre cada placet dos padres do Concílio ouvia-se
o estrépito de um trovão. O timing era liturgicamente preciso. Os relâmpagos entravam
por todas as janelas e cintilavam em volta do zimbório e de todas as cúpulas menores,
transformando o bronze do baldacchino de Bernini em ouro brilhante.
Durante hora e meia a tempestade continuou a rugir até terminar a chamada. Só dois
bispos votaram non-placet: Riccio de Cajazzo, de Nápoles, e Fitzgerald, de Little Rock,
Arkansas. Mas 140 bispos abstiveram-se. Votar placet ia contra as suas consciências;
votar non-placet seria ofender o Santo Padre perante o mundo.
Uma análise da votação é esclarecedora. Trezentos dos quinhentos bispos que
apoiaram o papa eram bispos titulares ou funcionários do Vaticano que viviam em Roma
a expensas do Papa Pio. A maioria dos dissidentes tinha dioceses cujas crenças e
sentimentos representavam no Concílio. Pelo menos dois terços dos bispos
americanos, liderados por Kenrick de St.Louis, opunham-se à decisão na convicção de
que ela tornaria as conversões mais difíceis.
A simples dimensão da oposição provava que a Igreja não estava preparada para tão
momentosa decisão; ela foi aprovada, mas não reflectia adequadamente o espírito da
Igreja Ocidental. Estava em jogo uma verdade muito importante e muitos sentiam que o
decreto estava incompleto. Como disse o sincero bispo Strossmayer numa sessão:
126
Este Concílio carece de liberdade e verdade…
Um Concílio que ignora a velha regra da necessidade da
unanimidade moral e começa a decidir sobre propostas por maioria
vai, é minha convicção profunda, perder o direito de vincular a
consciência do mundo católico como condição da vida e morte
eternas.
Pio IX recusou ouvir a oposição afirmando que ele era «meramente o porta-voz do
Espírito Santo».
Ao aprovar o decreto sem se preocupar com a Igreja Ortodoxa nem com os
Protestantes, Pio parecia estar a perpetuar a secular fractura entre Roma e as outras
grandes comunhões cristãs.
As divisões no Concílio de Pio contrastavam cruamente com o Concílio de Constança
no século XV em que foi decretado que toda a Igreja, incluindo o papa, está sujeita a um
Concílio Geral. Convém lembrar que Constança aprovou isto por unanimidade. Nem a
Cúria, nem o futuro papa Martinho V levantaram a mais leve objecção.
O Concílio Vaticano viria a provar mais uma vitória de Pirro para o papado, mais
terrível até, nas suas consequências, do que a de Gregório VII em Canossa. Mostrou
uma vez mais que não foram papas ímpios como Benedito IX e Alexandre VI que
provocaram os estragos mais duradouros na Igreja, mas antes os piedosos como
Gregório VII, Pio V e Pio IX. Porque a máxima de Acton de que o poder absoluto
corrompe absolutamente aplica-se a pecadores e também a santos. Neste caso, Pio IX
tinha triunfado; mas semeou a tempestade.
Quando lhe levaram os resultados da votação em S.Pedro, a escuridão era tanta que
ele não conseguia ver. Acenderam uma vela para que ele desse a sua aprovação à
Constituição na sua voz musical: «Nosque sacro approbante Concilio» (Com a
aprovação do Santo Concílio, Nós assim decretamos, decidimos e sancionamos o que
acabou de ser lido).
Os padres bateram palmas, a multidão no corpo da basílica acenou com lenços como
asas de pombas fantasmais. A que é que Sua Santidade tinha acabado de dar força de
lei? As exclamações da multidão forneceram a resposta: «Viva il Papa infallibile». Pio, a
quem Montalembert chamou «o ídolo do Vaticano» tinha-se investido dos poderes de
um deus; tinha infalivelmente decretado a sua própria infalibilidade.
Aqueles corajosos bispos, que momentos antes a tinham negado, confessavam agora
de joelhos a Pio IX — «Modo credo, Sancte Pater» — que criam nela tão sinceramente e
sem reservas como criam em Deus e na divindade de Jesus. Foi a mais rápida
conversão da História.
Os bispos que tinham saído de Roma para evitarem magoar o Santo Padre votandode acordo com as suas consciências, também reconsideraram mais depressa do que
seria de esperar e aceitaram o Pastor aeternus. Era uma questão de aceitar ou deixar a
Igreja, e a segunda também teria seguramente magoado o Santo Padre. Voltaram para
as suas terras para dizer aos fiéis que os decretos do Vaticano foram unânimes, o que
ficava bastante aquém da verdade. Alguns até tiveram a coragem de despedir e
excomungar teólogos académicos, homens de reputação internacional, como Döllinger
de Munique, por continuarem a atrever-se a dizer aquilo que eles próprios tinham dito
antes e durante o Concílio.
Daqui para a frente, a autoridade vai calcar aos pés a razão e a consciência, porque o
Vaticano I abrira um precedente. Qualquer académico católico que promova a
democracia ou a liberdade religiosa ou a investigação científica das origens do homem
127
tem de estar preparado para levar umas marteladas - ou, pelo menos, esconder a
cabeça num qualquer canto.
Porque o que foi decidido no Concílio foi isto: quando o papa exerce a plenitude das
suas funções e define uma doutrina para toda a Igreja, as suas decisões são infalíveis
por si só, não dependem da aprovação da Igreja. A clara impressão que ficava é que,
longe de ser o papa a ir buscar a sua fé à Igreja, é a Igreja que busca a fé no papa. O
pontífice é auto-suficiente; não há fiscalização, nem balanços, nem governo, nem
oposição parlamentar. O mundo pode tornar-se cada vez mais democrático, um homem
(ou mulher), um voto; a Igreja, nunca. No Catolicismo, um homem, um voto tem um tom
muito diferente. A Cúria ficou encantada. Eles receavam um Concílio e, passados três
séculos sobre Trento, acreditavam sinceramente que os Concílios não eram
necessários. Mas agora os bispos tinham generosamente e de uma vez por todas posto
nas suas mãos a direcção da Igreja. Eles deram o seu consentimento ao papa e este
nunca mais precisou dele. O episcopado católico era finalmente a força vazia que
Gregório VII desejara que fosse; os bispos tinham abdicado perante o mundo. Por uma
maravilhosa metamorfose, os pastores tinham-se tornado as ovelhas.
O Concílio fez um interrupção numa atmosfera internacional tumultuosa. Poucos
acreditavam que ele recomeçasse, mas, de qualquer maneira, porquê a preocupação?
Este, previam muitos curialistas confiantes, seria o último Concílio da Igreja. Para
convocar outro, só um papa completamente louco. Ou, pedindo desculpa à Cúria, um
santo.
Não-católicos complacentes observavam estarrecidos. Aos olhos de muitos, como por
exemplo o Primeiro Ministro britânico, Gladstone, foi um Gigantesco Passo Atrás em
direcção à Idade das Trevas. Muitos estavam genuinamente intrigados. Como é que
dezoito séculos depois de Pedro, foram precisas semanas de debate agonizante para
decidir, com a maioria de votos de um fragmento da Igreja, que uma doutrina,
acaloradamente contestada até ao último minuto, era subitamente evangélica e vital
para a salvação?
Os mais inclinados para a teologia, com um claro sentido de ironia, ficaram satisfeitos
por verem que havia pelo menos um Protestante a fazer juízos particulares na Igreja
Católica: o papa. Era uma crítica astuta. O Vaticano I tinha transformado o papa de «o
Católico dos Católicos» no único Protestante da Igreja.
Os críticos mais filosóficos perguntavam como é que o papa pode falar infalivelmente
sobre Deus, se Deus é inefável e reside em luz inacessível.
Mas os mais sensatos de todos sugeriam: Isto é mais uma afirmação política do que
religiosa. Quase a perder os seus estados, o papa estava determinado a ser um
monarca absoluto numa terra que nem o monarca mais poderoso lhe pode alguma vez
arrancar.
A busca do poder absoluto não tinha parado; havia de continuar no campo da
verdade.
Com a verdade, tal como com o poder, o currículo da Igreja também não era bom.
128
129
130
131
Segunda Parte
A Verdade
«Os papas não só foram assassinos em grande estilo, como também fizeram do
assassínio uma base legal da Igreja Cristã e uma condição de salvação.»
Lord Acton
132
133
9
O Esmagamento da Dissidência
A Casa Papal da Esquina
Embora se tenha sempre chamado Santa, Católica e Apostólica, poucos ou nenhuns
peregrinos a vão ver. Poucos guias turísticos se preocupam em mencioná-la. Tendo em
vista a sua história, isto é estranho, porque poderia dizer-se que este edifício tem a
chave para a compreensão da Igreja Romana. E é ainda mais estranho na medida em
que fica a muito pouca distância da sacristia da Basílica de S.Pedro, numa rua
sossegada, à esquerda da Basílica, por detrás da colunata quádrupla de Bernini. Uma
grande casa de esquina, esta Casa Santa, com os seus grandes portões, é conhecida
localmente como o Palácio da Inquisição.
Devido à má reputação que adquiriu, e tal como aconteceu com a polícia secreta
soviética, a Santa Inquisição Católica Apostólica, foi rebaptizada por mais de uma vez
em anos recentes. Em 1908 a mais antiga das Sagradas Congregações de Roma
passou a chamar-se Santo Ofício; e a partir de 1967, mudou o nome para Congregação
para a Doutrina da Fé. O seu actual secretário e chefe do executivo — o antigo Grande
Inquisidor — é o cardeal bávaro Ratzinger, mas o seu presidente sempre foi o pontífice
reinante.
Emílio Zola, no seu brilhante mas amargo Roma, escrito nos últimos anos do século
XIX, descreve as impressões que o Palácio da Inquisição lhe deixou:
É uma zona solitária e silenciosa, raramente perturbada pelos
passos de peões ou pelo ruído de rodas. Só o sol ali vive em tiras de
luz que alastram lentamente sobre o pequeno pavimento branco.
Adivinha-se a proximidade da basílica porque se sente o cheiro do
incenso, uma tranquilidade claustral como que de um torpor de
séculos. E numa das esquinas ergue-se o Palácio da Inquisição de
uma nudez pesada e inquietante, com apenas uma fila de janelas a
rasgar a sua majestosa fachada amarela. A parede que margina
uma rua lateral tem um aspecto ainda mais suspeito com a sua fila
de janelas ainda mais pequenas, meros buracos de caixilhos
glaucos. À luz brilhante do sol, este enorme cubo e a alvenaria cor
de lama parecem adormecidos, misteriosos e fechados como uma
prisão, quase sem qualquer abertura de comunicação com o mundo
exterior.
A aparente sonolência é uma ilusão. Neste local continua a fazer-se a leitura de uma
enorme quantidade de documentos e daqui sai uma infindável corrente de avisos,
instruções e censuras. As masmorras, onde num passado não muito distante tantos
foram torturados, já o não são. Felizmente um estado secular arrancou o poder temporal
das garras de Pio IX.
134
Desde 1870 as masmorras e as celas da Inquisição foram transformadas em
gabinetes e arquivos onde o trabalho prossegue metodicamente como outrora, embora
de uma maneira muito menos brutal.
Os católicos fazem a sua vida em todo o mundo sem pensarem na Inquisição. São
conhecidos pela sua devoção e normalidade. Poucos são os maníacos e os fanáticos
que se encontram entre eles. O proselitismo esganiçado e ostensivo não é com eles. Os
missionários católicos — padres, freiras e leigos — são discretos. Muitos deixam as suas
terras para dedicarem a vida ao serviço dos mais necessitados. Quando pensam no
Santo Ofício, assumem que ele é um braço essencial da ortodoxia, uma maneira de
preservar a fé apostólica. Ficariam chocados se descobrissem os abusos que tiveram
origem neste edifício na Via del Sant’Ufficio.
O Papa João Paulo II
Onde é que o actual pontífice se situa? Ele não está isento de contradições bem
aparentes. Em primeiro lugar, é claramente um homem bom e compassivo. Em 1987
deu autorização a Madre Teresa de Calcutá para construir um lar para os sem abrigo
dentro do Vaticano. Tem um profundo afecto pelas crianças e pelos doentes. Onde quer
que vá, apela eloquentemente para os direitos e dignidade do homem. Por outro lado,
aparece muitas vezes como o papa maissevero de que há memória viva. Teríamos de
recuar até ao tempo de Pio X, no virar do século, para encontrar um papa que menos
ouvisse e mais exigisse pronta obediência. A razão disto é clara. O pontífice é por
natureza e por formação um platónico. Crê que a verdade é eterna e imutável. Como
Vigário de Cristo, tem uma opinião privilegiada e espiritualmente inspirada sobre aquelas
verdades que é seu dever apresentar à Igreja e das quais nenhum católico se pode
desviar um centímetro que seja.
E mais uma vez, João Paulo diz repetidamente que o clero se deve manter fora da
política. Mas quando trabalhava na Polónia como padre, bispo ou cardeal empenhou-se
constantemente naquilo que, pelo menos os Comunistas, designavam por «actividades
políticas de direita». Além disso, Sua Santidade deve saber que as visitas à sua terra
natal não podem deixar de ser interpretadas como actividade política. Isto, de facto,
enquadra-se inteiramente na tradição do Vaticano.
Durante séculos e séculos, a Igreja Católica foi a primeira força política da Europa.
Envolvia-se nas actividades de todos os países como e quando queria. Os papas, quase
à sua vontade, depunham imperadores e reis. Pio X, no seu primeiro consistório em 9 de
Novembro de 1903, disse:
Nós vamos ofender muita gente ao dizermos que temos
necessariamente de nos preocupar com a política. Mas qualquer
pessoa que julgue esta questão imparcialmente terá de reconhecer
que o Soberano Pontífice, investido por Deus na Suprema
Magistratura, não tem o direito de separar os assuntos políticos dos
do domínio da fé e da moral.
Muitos padres e irmãs da África do Sul, confrontados com o apartheid, ficaram
perplexos ao ouvir o papa polaco dizer-lhes que o envolvimento na política é contrário à
sua missão religiosa.
Finalmente, a Igreja Católica é o único corpo religioso existente que é
simultaneamente igreja e organização política. Esta a razão por que é a única de entre
135
as igrejas que procede à troca de representantes diplomáticos e reivindica o
reconhecimento como membro independente da comunidade das nações. E não o faz
como pequeno estado (o Vaticano) mas como organização religiosa mundial.
A maioria dos comentadores concorda que João Paulo deu uma volta pelo Vaticano e
fechou as janelas e correu os estores. Mesmo depois do Concílio Vaticano II, mandou
rever o código canónico da Igreja em 1983 sem se preocupar em pedir a aprovação dos
bispos de todo o mundo. Ao contrário do seu antecessor Paulo VI, não é de modo
nenhum vítima de dúvidas ou hesitações. Isto explica o facto de ele tratar com
severidade qualquer teólogo que ouse questionar as suas decisões, mesmo as não
infalíveis.
Logo em 1979, revogou a licença ao mais conhecido escritor católico do mundo, Hans
Küng. Em consequência disto, Küng deixou de ser considerado como teólogo católico e
perdeu o seu lugar na Faculdade Católica da Universidade de Tübingen. Se o reitor não
lhe tivesse oferecido um lugar fora da Faculdade Católica, Küng ficaria desempregado.
Roma pareceu ficar satisfeita por ele ter sido reduzido ao silêncio e os outros potenciais
dissidentes na Europa e na América do Norte ficaram avisados.
O teólogo holandês Edward Schillebeeckx é frequentemente repreendido pelo Santo
Ofício; o Padre Leonardo Boff do Brasil, especialista em conciliar os pensamentos
católico e marxista, também já foi repreendido. Ambos estão em situação probatória com
a promessa de se comportarem bem. João Paulo ganhou a sua causa: alinhado com
Gregório VII e Pio IX, não se contenta com menos do que a total submissão, mesmo em
matérias que são altamente contestadas.
Alvo: os Jesuítas
Alvo maior do que os teólogos individuais foi a Ordem dos Jesuítas. João Paulo
depressa deu mostras de que não estava satisfeito com os tradicionais defensores do
papado. O então Geral da Ordem, Padre Pedro Aruppe, tinha fama de liberal. Andava
apenas a tentar pôr em prática entre os irmãos os decretos progressistas do Vaticano II.
Quando adoeceu, foi nomeado o Padre Vincent O’Keefe para Vigário Geral em
exercício. O’Keefe, de nacionalidade americana, fora o reitor de Fordham, a
Universidade Jesuíta de Nova Iorque. João Paulo achou que ele era inaceitável. Em
1981 impôs à Ordem o Padre Paolo Dezza, de setenta e nove anos e quase cego, como
seu delegado pessoal. Nunca nenhum papa agira assim.
Karl Rhoner, o mais distinto teólogo actual, juntamente com mais dezassete Jesuítas
de proa da Alemanha Ocidental, apresentou uma petição ao papa: «Santo Padre, permiti
que elejamos o nosso Superior Geral com a liberdade que, desde os primórdios da
Igreja, sempre representou uma das regras básicas de todas as ordens».
O papa ficou irritado. Se não conseguia uma obediência cega da parte dos Jesuítas, a
quem mais é que ele podia fazer exigências? Não é verdade que o fundador da Ordem,
Inácio de Loyola, na sua obra Exercícios Espirituais, disse aos seus seguidores que
«Para chegar à verdade em todas as coisas devemos estar sempre prontos a acreditar
que aquilo que nos parece branco é preto se a Igreja assim o decidir»? Não, antes de
terem um novo Geral que fosse para ele aceitável, os Jesuítas tinham de deixar de
discordar das proclamações papais. Só quando lhe asseguraram que tinham mudado as
suas posições e que votariam num Geral que fosse para ele aceitável é que ele os
deixou continuar. Mesmo assim, não correu riscos. Procedeu pessoalmente à abertura
da 33ª Congregação Geral — o primeiro papa a fazê-lo — na casa dos Jesuítas no
Borgo Santo Spirito, próximo do Santo Ofício. A sua presença foi mais uma ameaça do
136
que uma honra. Na primeira votação escolheram um moderado, o Padre holandês Piet
Hans Kolvenbach.
Resolvida a questão dos Jesuítas, o Santo Padre voltou a sua atenção para o maior
de todos os alvos.
Alvo: A Igreja dos Estados Unidos da América
À excepção da Holanda, onde a oposição aos ensinamentos da moral católica é
quase total, e onde praticamente deixou de haver ordenação de padres, não há país
nenhum onde a crise seja tão palpável como nos Estados Unidos. A crise, deve dizer-se,
concerne às estruturas e não ao espírito da comunidade, que continua vibrante e
esperançosa.
Em 1974, seis anos depois de Paulo VI ter ilegalizado os contraceptivos, só treze por
cento dos católicos americanos concordavam com ele. A única coisa que o então
Presidente da Conferência Episcopal, Arcebispo Bernardin, soube dizer foi que «Os
valores éticos não podem ser alcançados através de uma mera contagem de cabeças».
Contudo, havia indícios de que Bernardin não estava completamente satisfeito com a
perspectiva de um exército composto apenas de generais.
Em 1986 o Bispo James Marlow, de Youngtown, Ohio, Presidente cessante da
Conferência Episcopal, admitiu haver «uma crescente e perigosa discórdia entre o
Vaticano e a Igreja dos Estados Unidos».
Quando, nos fins de 1987, o Santo Padre visitou a América pela segunda vez, o
Arcebispo Weakland de Milwaukee disse-lhe que de 1958 a 1987 a frequência da igreja
nos Estados Unidos caíra de 75 para 53 por cento.
As últimas sondagens mostram que uma enorme maioria dos católicos americanos
são activamente favoráveis à contracepção e ao casamento após o divórcio. Só 14 por
cento pensam que o aborto devia ser ilegal em todos os casos e 93 por cento são de
opinião de que se pode ser um bom católico e discordar do pontífice em questões
morais básicas. O panorama da Igreja americana continua tempestuoso e a borrasca
começou realmente quando João Paulo castigou o Arcebispo Hunthausen, de Seattle. O
arcebispo foi informado secretamente pelo pro-núncio papal Pio Laghi de que lhe ia ser
retirada a autoridade em quatro áreas-chave: ensinamentos morais, laicização dos
padres, anulação de casamentos e a liturgia e ensino nos seminários. Um seu adjunto,
Donald Wuerl, ordenado em Roma por João Paulo II, foi investido de plenos poderes em
sua substituição. Contudo, Hunthausen não era propriamenteum funcionário do papa,
mas, tal como o próprio pontífice, sucessor dos apóstolos. Daí que o Vaticano se sinta
na necessidade de recorrer a estas tácticas clandestinas para o conter. João Paulo
comporta-se como se fosse ele o Bispo de Seattle e Hunthausen o seu vice. Se o vice
lhe desagrada pode ser substituído. Se e quando o vice dá provas de bom
comportamento, isto é, de obedecer à letra a todos os decretos do Vaticano, pode vir a
ser reinvestido nas suas funções. A livre iniciativa local é reduzida.
Em tudo isto, o papa parece não ser apenas o Bispo de Roma, mas também o Bispo
do Mundo. Benedito XIV disse o mesmo: «O Papa é o principal padre de toda a Igreja e
pode retirar qualquer igreja local da jurisdição do seu bispo sempre que queira». Há uma
lógica nisto; os bispos juram servir não a Igreja e a religião mas «manter, defender,
aumentar e avançar os direitos, honras, privilégios e autoridade do seu Senhor, o Papa.»
A maioria dos outros bispos estava do lado de Hunthausen, mas, como
habitualmente, sentiram que não tinham outro remédio senão alinhar com o papa,
137
mesmo quando ele agia injustamente em relação a um dos seus. A ordem é a primeira
prioridade do catolicismo.
Hunthausen foi reinvestido nas suas funções em fins de Maio de 1987, e Wuerl foi
transferido para outro posto. Isto aconteceu depois de uma comissão de bispos dos
Estados Unidos, ordenada pelo Vaticano, garantir a ortodoxia de Hunthausen, muito
embora «sem intenção», dizia o relatório, os outros ficassem com a impressão de que
ele concordava com «uma certa permissividade». Assim, o arcebispo de uma grande
diocese foi castigado por Roma por causa de impressões erradas com que ficaram
alguns católicos “desembaraçados”. No futuro, ficam os bispos avisados de que terão de
ter cuidado não só em relação à sua ortodoxia, mas também mesmo quanto às
impressões que deixem em pessoas mal intencionadas.
Foi também em 1986, em meados de Março, que Ratzinger, o braço direito do papa,
retirou ao Padre Charles E. Curran a licença para ensinar. Para João Paulo, a função do
teólogo é simplesmente transmitir as decisões vindas de cima. Curran é um ingénuo
numa profissão onde a ingenuidade pode pôr a espécie em perigo. Ele pensa que o
teólogo tem o sagrado dever de «avaliar e interpretar» as decisões da hierarquia à luz
da Palavra de Deus. Curran perdeu o seu lugar na Universidade Católica de Washington
em 1987. O Papa João XXIII afirmou no início do Concílio Vaticano II que os dias da
condenação tinham acabado. E nenhum teólogo tinha sido demitido com base em
questões éticas desde o Concílio. A alegação de Ratzinger de que Curran não é «nem
adequado nem elegível» para ensinar num estabelecimento católico foi mais um aviso
para os pensadores de espírito independente.
Ratzinger também estabeleceu que os católicos leais devem obedecer não só às
doutrinas definidas, mas também ao completo magistério ordinário expresso pelo papa e
pelos bispos. Em termos práticos, isto é o mesmo que dizer “expresso pelo papa“. O
caso do Arcebispo Hunthausen é a prova de que os bispos não usufruem de qualquer
independência. Falando claro: os bispos e os teólogos só podem servir a verdade
obedecendo ao papa. A dissidência leal é, tragicamente, no Vaticano, tal como no
Kremlin, uma contradição.
Outro dos “casos” americanos foi o do velho Padre Terence Sweeney, Jesuíta de Los
Angeles. Com o encorajamento do seu superior, fez um inquérito aos 312 bispos
católicos americanos sobre quatro questões relacionadas com o celibato dos padres e a
ordenação das mulheres. Dos 145 que responderam, trinta e cinco eram a favor do
casamento dos padres, tendo em vista a carência de vocações. Onze disseram que
gostariam de ver mulheres ordenadas.
Ratzinger e o Geral dos Jesuítas em Roma disseram-lhe mais do que uma vez:
queime as suas investigações ou então abandone a Ordem. Sweeney, Jesuíta há vinte e
quatro anos, viu que a única saída que lhe restava era abandonar a Ordem. Como é que
ele podia queimar a verdade? Que valor é que tinha a obediência sem o fundamento da
verdade e da razão? Esse tipo de obediência, afirmava ele, «não é compatível com a
dignidade humana».
É difícil de perceber a razão por que um distinto Jesuíta havia de ser obrigado a
deixar a Ordem, não por desvios à doutrina ou à moral, mas por tornar públicas as
atitudes dos bispos que livremente responderam ao seu inquérito. A impressão que fica
é que o papa parece ficar aterrorizado com a ideia de se saber o que os bispos, os seus
bispos, realmente pensam. Na cabeça fica-nos esta imagem: o papa pensa nos bispos
como altos funcionários públicos. Eles não fazem política, concretizam-na. Quaisquer
que sejam as ideias que tenham, devem guardá-las para si. Só ele é fala pela Igreja.
Ficou a impressão de que um bispo que discorda do papa já é bastante mau, mas
trinta e cinco num só país é intolerável Tal revelação ensombra a fachada de total
138
acordo que é o orgulho do Catolicismo. A Igreja do Silêncio também existe deste lado da
Cortina de Ferro e inclui prelados que não desejam seguir o exemplo de Hunthausen.
É difícil fugir a esta conclusão: os bispos têm muito receio do papa para dizerem o
que realmente pensam sobre o que é melhor para a Igreja e para as suas dioceses.
Aliás não existe qualquer meio de exprimir uma dissidência. Ao nível da paróquia, a
situação é a mesma. Os padres aconselham o rebanho em termos liberais, mas só no
confessionário. O papel de mártires públicos não é com eles. Crêem que é melhor ficar
calado e sobreviver. Mas onde está o testemunho para a verdade do Evangelho? E o
que é que está a acontecer a esta grande instituição que, a tantos níveis de
responsabilidade, está a viver uma mentira?
O choque frontal de dois sistemas gigantescos
A principal razão por que o papa elegeu como alvo para os seus mísseis a Igreja
americana foi esta: uma monarquia americana do tipo vaticano está em conflito directo
com os ideais fundamentais da primeira e maior república do mundo. A América orgulha-
se de ser a terra dos homens livres; e certas formas de liberdade são estranhas à noção
de fé cristã do pontífice. Para este, a verdade católica é absoluta e a obediência a ela
uma necessidade vital. O papa, como Porta-voz Ungido de Deus, tem a obrigação de
exigir de todos, desde o mais humilde paroquiano ao teólogo mais astuto, uma
obediência firme e pronta.
A História revela um perfeito contraste entre os ideais de liberdade católicos e
americanos. É este contraste que subjaz à profunda desconfiança do Vaticano em
relação à Igreja americana.
Primeiro, a Igreja.
Em 1520, Leão X condenou Lutero por este se atrever a dizer que queimar os
hereges era contrário à vontade de Deus. Gregório XIII celebrou com alegria o Massacre
de S.Bartolomeu na noite de 24 de Agosto de 1572, em que morreram milhares de
protestantes Huguenotes. Clemente VIII atacou o Édito de Nantes em 1598 porque ele
atribuía igualdade de cidadania a todos, independentemente da sua religião. O Édito foi
revogado em 1685 para satisfação da Igreja: nos três anos seguintes cinquenta mil
famílias protestantes abandonaram a França, dispersando-se por terras estrangeiras,
mais, segundo Voltaire, do que os próprios judeus. Inocêncio X tinha entretanto
condenado a Paz de Vestfália por esta ousar garantir a tolerância para com todos os
cidadãos, independentemente da sua religião ou da ausência desta. Em todos os casos,
e durante séculos, a Igreja Católica proclamou orgulhosamente o seu dogma da
intolerância religiosa.
No século XIX, a política na Europa alterou-se profundamente, mas o mesmo não se
passou com os ensinamentos católicos. A Igreja e o Estado, diziam os papas, estavam
indissoluvelmente unidos, como num casamento cristão consumado. A liberdade era
não-cristã, a lei e a ordem, o objectivo primordial. Pontífice após pontífice atacaram a
liberdade com a veemência que os papas do século XX reservaram para