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História de Lince - Levi Strauss

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COIOTE PAI E FILHO.
(pg. 30 a 37 do livro história de Lince)
Dualidade dos protagonistas (Thompson) => duas histórias: “de Lince” e do “filho do Coiote”. 
Mito inteiro: duas histórias com um único relato. (entre as páginas 30 a 32) sendo que tem uma introdução comum 1 com 2, 7 a 11; e a outra história com introdução 1, 3 a 6. 
Filho de Coiote: 
Numa aldeia, uma moça jovem e bonita recusava todos os pretendentes. Cansada da insistência deles, certo dia foi se refugiar com a irmã caçula na casa de sua avó Muflão (grande carneiro selvagem de fortes chifres recurvados) americano.
Após vários dias de caminhada, passam perto da cabana de Coiote, que provoca um grande frio para que elas entrem em sua casa para se aquecer. Serve-lhes um jantar dizendo que é gordura, quando na verdade é seu esperma ressecado. A mais velha desconfia, jogo um fogo da substância no fogo, constata que crepita e faz fumaça em vez de se inflamar; recusa-se a experimentar. A caçula cede a tentação e engravida... As irmãs retomam sua caminhada, Coiote se adianta a elas e utiliza a mesma artimanha quatro vezes seguidas. Afinal a caçula esta prestes a dar à luz. Coiote anuncia que matará a criança se for menina, cuidará dela se for um menino. A mais velha deixa a irmã, que se tornou mulher de Coiote, e segue sozinha o seu caminho. 
A irmã caçula, mulher de Coiote, por sua vez, deu à luz quatro filhos chamados coletivamente de “os Tsamû’ xei” (significado desconhecido) *(em outro grupo que opõe Coiote e Antílope os filhos de Coiote possuem nomes individuais). Apenas o mais novo, que herdara do pai poderes mágicos, tinha um nome distintivo cujo sentido poderia ser “Pé Forte” – pois era ele que, chutando tocos de árvore, fazia surgir fogo aqui e acolá para que seus companheiros pudessem se aquecer. 
O mais velho dos quatro irmãos quis um dia desposar a filha de um temido feiticeiro chamado Canibal. Alegando que iria ajuda-lo a atravessar o rio, Canibal, que vivia na outra margem, convidou o rapaz a saltar para dentro de sua piroga. Ela virou e ele se afogou. Dois outros irmãos tiveram o mesmo destino. Foi a vez do caçula, este auxiliado pelo pai, querer tentar a aventura. Os dois conseguiram cair bem no meio da piroga, sem fazê-la virar. 
Cercando-se de cubos de gelo, eles conseguiram proteger-se do braseiro em que canibal pretendia mata-los. Então Canibal concordou com o casamento; porém, com seu amigo e assistente Kwalum, conspirou contra o genro. 
Graças ao conselho do Rato-de-Rabo-Curto, o rapaz conseguiu evitar um incêndio iniciado por Kwalum, tratando de mater-se no meio de uma picada. Em seguida, escapou de uma árvore cujos flancos se fechavam sobre ele enquanto procurava fendê-las, e de um monstro aquático metade homem, metade peixe (falta uma quarta prova, esquecida pelo narrador). 
No dia seguinte, Canibal e Coiote se desafiaram. Ambos resistiram ao fogo, à água e ao vento. Coiote finalmente venceu, provocando um frio intenso que congelou Canibal, a filha deste, Kwalum e todos os habitantes de sua aldeia. Vingados, Coiote e seu filho voltaram para casa. 
Mito Thompson “de Lince”: 
Numa aldeia, uma moça jovem e bonita recusava todos os pretendentes. Cansada da insistência deles, certo dia foi se refugiar com a irmã caçula na casa de sua avó Muflão (grande carneiro selvagem de fortes chifres recurvados) americano.
3 – Avisada por seus poderes mágicos de que a jovem não está longe, a avó envia Lebre ao seu encontro com algumas provisões. Lebre se esconde atrás de um tronco caído que cruza o caminho, no qual a viajante tropeça. Emboscada abaixo dela, Lebre vê sua vulva vermelha e zomba dela. A moça bate nele e faz um buraco em seu nariz com seu bastão, dando ao focinho do animal a forma que possui desde então.
4 – Assim que avistada a jovem, a avó organiza uma corrida entre os diversos animais (entre os quais Lince) que povoam a aldeia; o vencedor a terá por esposa. Quando Colibri está prestes a vencer, a avó o ultrapassa; agarra a jovem e a tranca em casa. 
5 – Lince, que aqui é jovem e belo (à diferença das versões já resumidas), faz um buraco no telhado, acima da cama da jovem. Engravida-a cuspindo em seu umbigo. Ela dá a luz um belo menino, de pai desconhecido. Decide-se que todos os machos da aldeia apresentarão seu arco e suas flechas ao bebê. Este não se interessa nem pelas belíssimas armas que Coiote fabricou especialmente para a ocasião. Lince se mantém afastado, é empurrado para frente e, apesar de suas armas serem grosseiras, o menino as aceita e assim o reconhece como pai. 
6 – Furiosos com o fracasso, Coiote e os outros aldeões se lançam sobre Lince, desfiguram-no e pisoteiam-no. Abandonam-no com a moça e o bebê. Ela cuida de Lince e cura suas feridas, exceto no rosto, que fica feio e enrugado. Antes de saírem da aldeia, alguns habitantes, apiedados, tinham deixado um pouco de peixe seco. Mais tarde, o filho de Lince, que se tornara um grande caçador como o pai, agradeceu-lhes com provisões de gordura. 
Destaca as conotações meteorológicas de coiote e do filho.
Coiote: cerca-se de gelo e vence a fornalha de Canibal. Só Coiote suporta o frio intenso. 
Filho: chuta troncos de árvores e faz surgir fogo para aquecer os companheiros.
O fogo = produção de calor reconfortante opõe ao fogo mortífero provocado por Canibal. 
Fogo (filho do Coiote) x fogo (Canibal) = dois fogos terrestres com relação de simetria com dois fogos celestes.
Sol = antes excessivo e destruidor => (excesso ou falta) => emitiu um fogo moderado que sem matar os humanos os aquecia.
Ligação dos fogos (celeste e terrestre) => duas versões de mitos (pgs. 34 a 36). 
	Coiote
	Lince
	Mais desenvolvida (estilo narrativo)
	Desenrola livremente
	Relatos míticos: leitura oral.
Quadratura (musícos): periodicidade. No texto: quadrupletos no texto. Pg. 33. 
	Gênero romanesco: mito transformando-se me lenda
	Fórmula: “Se for menina eu mato, se for menino eu crio”. As vezes inverte. Problemas: distribuição geográfica e significação nas duas Américas. (p. 60s.)
	Episódios desapareceram: estufa e ao nevoeiro; acontecimentos ocorridos no caminho de Lince (recuperados em versões mais extensas)
	Enfatiza as conotações metereológicas de Coiote: Senhor do frio (cercado de gelo que sobrevive a fornalha de Canibal)
	Não enfatiza as conotações metereológicas.
	Derrota Canibal com um frio intenso.
	
	Filho de Coiote compartilha o mesmo talento: fogo para aquecer seus companheiros. 
	
	Fogo terrestre em simetria com o fogo celeste. Sol => antes excessivo e destruidor; agora, aquece os humanos. 
	
Duas versões do mito atestam a ligação do fogo terrestre e celeste:
História de Lince. Versão dos Shuswap (vizinhos os Thompson ao norte):
Uma Moça-Cervo (heroína) os país rejeitam os pretendentes ou porque ela é avessa ao casamento (depende da versão), ela vai para casa da avó, que finge organizar uma corrida de pretendentes e se apodera da neta graças ao nevoeiro ou à noite que faz cair em pleno meio-dia. Diz uma versão que se acredita que o sol levou a jovem. 
Detalhe que aparece em outra versão Thompsom, reduzida a história de Lince, cuja heroína também pertence a família dos Cervos. Esta versão provém dos Thompsom a montante, perto dos Shuswap. (é a mesma versão contada por investigadores diferentes). Substituição de Muflões por Cervos. (p. 73)
Obs.: é em troca de uma esposa humana que o sol aceita passar a emitir um calor benfazejo. 
Mito “do Desaninhador de pássaros”:
Neste mito os protagonistas são o Coiote e seu filho. Só que aqui um conflito os opõe; diferente de outros mitos em que são solidários: Coiote ajuda o filho a obter uma esposa. (pg. 35.)
Entre os Thompson (América) o mito é longo e complexo. Explica por que os povos a jusante das cascatas e quedas fazem uso do salmão para sua alimentação e os povos a montante, por não ter salmão, tem de se alimentar de muflões. 
Para se vingar de Coiote, seu filho o faz cair no rio. Coiote, levado pela corrente, descobre e liberta os salmões
preso no estuário. Desde então, esses peixes sobem os rios, Coiote, que guia sua primeira viagem, avista moças que se banham, interpela-as e lhes oferece costela de salmão. Em seguida ele copula com aquelas que aceitam esse alimento através do rio, graças a seu longo pênis; mas, quando, mais adiante, outras moças declaram sua preferência pela carne de muflão, Coiote interrompe o rio com cachoeiras, que os peixes não conseguiram atravessar, e multiplica os mulflões. 
Conclusão: o mito relaciona, assim, a circulação de salmões e as das mulheres: só terão salmões os povos que se prestarem às uniões exogâmicas. 
Mito simétrico: (sobre as aventuras de Coiote e se filho) inverte essa proposição (de modo implícito).
Uma moça avessa ao casamento (e que continua manifestando essa disposição ao recusar-se a consumir o esperma ressecado de Coiote, o qual, no registro do árido, corresponde ao longo pênis luxurioso) se refugia na casa da avó. Esta é justamente uma Cabra que, alegando pretender casar a neta, emprega um subterfugio: uma corrida entre animais de espécies diferentes, da qual finge não participar mas que tem certeza de vencer, de modo a furtar a neta a essas uniões exogâmicas, “pois o Muflão pode vencer qualquer animal na corrida em terreno acidentado”; um tipo de relevo que acompanha também as quedas que cortam os rios, e impede a subida dos salmões. 
“História de Salmão”, pertence ao um vasto conjunto de mitos chamado ecológicos. Este mito é difundido desde o baixo vale do Columbia até o alto vale do Fraser ao norte, e de oeste para leste desde a costa do Pacífico até o sopé das Rochosas. Este mito trata da distribuição desigual dos animais por diversos pontos do território. Esses mitos, entretanto, operam ao inverso dos outros. Em vez de explicar por que não se encontram salmões e muflões nos mesmo locais, a história de Salmão imagina as condições nas quais salmões e lobos (animais montanheses como os muflões) podem, em determinados períodos do ano, reunir-se. 
Paralelismo:
	 Salmão x Lince
	Os heróis em concorrência com outros animais obtém uma esposa
	 Os rivais frustrados se vingam, maltratando o vencedor
	O vencedor se recupera dos ferimentos ou sucumbe a eles
	Mas, antes gera um filho, que no caso do mito de Salmão, livrará a mãe dos lobos que a tinham raptado.
A caminho da cada da avó, a heroína tropeça num tronco atravessado na picada. Chegando a aldeia a heroína, distraída, senta-se numa extremidade do tronco de madeira que a avó esta rachando; seu peso o faz balançar e revela assim sua presença. Mas adiante no relato, os filhos de Coiote querem saltar numa piroga. Caem num dos extremos da embarcação (e não no meio, como deveriam), fazem-na virar e se afogam. Finalmente, o último filho se protege de um incêndio na floresta mantendo-se numa picada desmatada, a beira da qual o fogo se detém, por falta de combustível (ou que, segundo versões kutenai, o fogo atravessa sem queimar). 
Oposição entre os símbolos:
Ausência de árvores (caminho incombustível) x e sua presença.
	Ausência de árvores (caminho incombustível)
	 E sua presença (árvore) em todos os outros casos
	
	(árvore) côncova (a piroga que vira), ou convexa.
	
	Convexa, sob duas formas, correlacionadas e opostas: o toro da madeira na extremidade, do qual a moça senta-se e que faz balançar, 
	
	E a árvore atravessada no caminho, que ela transpõe desajeitamente, e que a faz tropeçar (então é ela que balança).
Aspectos da árvore: combinatória explorada pelos mitos, demonstrando os contrários em relação a árvore. 
	Um caminho incombustível: Terra que não queima
	Forno de terra: Terra que queima
	Árvore caída, atravessada num caminho
	Piroga traiçoeira: tronco convexo que constitui obstáculo aos passos do viandante ou tronco côncavo que se esquiva sob seus pés.
	ausente
	presente
	concavo
	convexo
	Longitudinal 
	Diametral 
AS LADRAS DE DENTAIS. 
Abordaremos agora um terceiro estado, que se afasta dos mitos que anteriores, a saber:
Restabelece o equilíbrio entre os protagonistas, reintegrando tudo aquilo que, “no caminho de Lince”, faltava a intriga no segundo estado. 
Se o primeiro estado se encaixava no segundo, este se encaixa no terceiro, enriquecendo de novos episódios. (bonecas russas que se embutem uma na outra).
Novo grupo: designação “as ladras de dentais”. Encontrada entre os índios Thompson as formas mais típicas. 
Na montanhas, longe de qualquer habitação humana, sem família, viviam antigamente um homem e suas duas irmãs. Era um grande caçador, que trazia carne gorda e peles em abundância. Todos os dias ele se banhava num riacho próximo e esfregava o corpo com ramos de abeto. As agulhas se transformavam em conchas do gênero Dentalium. Ele levava as conchas para as irmãs, mas as proibia de visitar o local em que se banhava. Curiosa, a mais nova arrastou a irmã até lá e as duas pegaram punhados de conchas que jaziam no fundo da água. O irmão ficou irritado e resolveu separar-se delas. Levantou a laje da lareira, que encobria uma abertura, e desceu para o mundo inferior (outra versão situa os acontecimentos no mundo superior, e é para o nosso mundo que o herói desce.) Intrigadas com o comportamento do cão caçador, as mulheres se debruçaram sobre o buraco, de onde soprava um vento forte. Avistaram o irmão que jogava bola com as pessoas de baixo. A irmão mais velha repreendeu duramente a caçula e as duas choraram lágrimas grossas, que caíram pelo buraco e molharam o irmão. Isso o surpreendeu, pois, nos tempos míticos, a chuva ainda não existia (p. 23). Ele subiu para consolar as moças, que pediram para ir junto com ele. Ele concordou, mas por três vezes seguidas elas não conseguiram manter os olhos fechados durante a descida, o que provocou sua reascensão. O homem, desanimado, aconselhou-as a ir ter com sua tia Corça (o inglês elk designa na América do Norte o Cervo wapiti, Cervus canadenses). E recomendou que não parassem no caminho. 
Aqui, a não ser por pequenos detalhes, retorna-se ao mito Thompson, que era o tema central do capítulo anterior. (ver mito). 
 
Capitulo primeiro:
As "histórias de Lince", colhidas entre as populações da Colúmbia Britânica, se passam de modo um tanto parecido nas suas variadas versões. 
Lince:
Lince, um velho cheio de chagas, banha-se e torna-se um belo jovem. Com sua beleza, atrai para a comunidade de sua esposa um estado de extrema abundância. Os membros dessa comunidade, no entanto, liderados por Coiote, irmão da esposa, os abandonam na aldeia, o que provoca a vingança de Lince, que cada vez que descobre a cabeça faz que um denso nevoeiro recubra a aldeia de Coiote, impossibilitando-o de caçar para a sua família. Lince torna-se então senhor dos nevoeiros e dos produtos culturais, assumindo a posição própria de um demiurgo. O episódio parafraseado representa apenas parte de uma intriga mais vasta, um conjunto de mitos que inclui a participação de outros grupos de personagens. 
Uma das versões conta que a mulher de Lince parte em visita à sua irmã e no caminho de volta ambas cruzam Coiote, que as convida para uma refeição, engravidando a segunda com seu esperma dissolvido em um prato de sopa. Coiote é, portanto, apresentado em boa parte das versões como um "mau cunhado", um deceptor. 
Mitos sobre a gênese do mundo entre os Tupinambá.
Nos primeiros tempos do mundo, o deus Monan, cujo nome significa “o Antigo”, vivia entre os humanos e distribuía suas benesses. Mas os humanos se mostraram ingratos, e o deus os fez morrer num fogo de origem celeste. Também modelou o relevo, pois, naquele tempo, a terra era continua e plana; não existiam nem o mar nem a chuva. Foi salvo apenas um homem, que Monan levou para o céu. Cedendo as súplicas dos sobreviventes, o deus afogou o incêndio sob uma chuva diluviana, origem do mar e dos rios. Monan criou uma mulher para o homem, para que o casal se reproduzisse. Assim nasceram
uma segunda raça e, principalmente, o demiurgo Maíra-Monan, “Antigo Transformador”, senhor de todas as artes e de quem os brancos, - superiores aos índios na cultura – são os “verdadeiros filhos”. Foi Maíra-Monan que atribuiu a todos os seres vivos seu aspecto atual e suas características próprias. 
Descontentes com sua transformação, os contemporâneos de Maíra-Monan liquidaram-no queimando-o numa fogueira. Ele subiu ao céu e tornou-se a tempestade, mas deixou descendentes na terra. Um deles, Sommay (=Sumé), teve dois filhos chamados Tamendonaré e Aricuté. Um era de índole pacífica, o outro tinha um temperamento agressivo. Um conflito entre os dois irmãos resultou num dilúvio, desta vez de origem terrestre. Os dois irmãos e suas esposas se refugiaram no alto de uma montanha; todos os outros humanos e todos os animais pereceram. De um dos irmãos e sua mulher descendem os tupinambá, do outro seus inimigos hereditários. Cada um dos dois irmãos conseguiu acender seu próprio fogo graças ao fogo que Monan tinha tido o cuidado de colocar entre os ombros do Preguiça (Bradypus tridactulus, chamado de Ai-de-Bentinho no Brasil devido à mancha amarela que possui nas costas). 
Na aldeia vivia um certo Maíra-Pochy, “familiar do grande Monan”, embora tivesse o status de servo ou até de escravo. Era feio e deformado, mas possuía poderes mágicos. Certo dia ele trazia um peixe e a filha de seu senhor quis experimentá-lo; imediatamente ela se sentiu gravida e deu a luz um belo menino. Todos os homens da aldeia foram reunidos, para saber de quem o menino aceitaria o arco e as flechas, indicando-o assim como pai; Foi Maíra-Pochy. “Resmungaram contra ele” e o abandonaram com a mulher e filho. Mas “o lugar em que vivia esse Maíra era abundante em todas as coisas, e o lugar em que os outros viviam era estéril e sem nenhum fruto, tanto que os infelizes morriam de fome”. 
Apiedado, Maíra enviou-lhes provisões por intermédio da mulher e os convidou a vir visita-lo. As roças férteis de seu anfitrião encheram-nos de cobiça e eles resolveram pilhá-las, Maíra transformou-os imediatamente em diversos animais. Esse incidente desgostou-o definitivamente da família da mulher e até da própria mulher: “Ele descobriu sua sórdida e feia face, tornando-se o mais belo de todos os humanos, e foi-se embora para o céu para lá viver a vontade”.
O filho de Maíra-Pochy, também chamado Maíra e que era um grande feiticeiro como o pai, quis ir junto com ele para o céu. Transformou-se durante algum tempo num rochedo que separava o mar e a terra, para impedir que o seguissem. Depois ele readquiriu a forma humana e permaneceu entre os índios. Entre outras maravilhas, ele fabricou um diadema de chamas, que um companheiro apressado arrancou de suas mãos para experimentar: o imprudente pegou fogo, jogou-se na água e se transformou em saracura. Finalmente esse Maíra foi ao encontro do pai (que Thevet chama aqui de Caroubsouz; compara-se com língua geral coaracy; guarani quaraçi, kuarahy, “sol”; tembé-tenetehara ko`ar-apo-har, “criador do mundo”); deixou na terra um filho chamado Maíra-Ata, que se casou com uma conterrânea. Ela, de índole errante, teve vontade de ver o mundo, apesar de estar gravida. Seu filho, no ventre, conversava com ela e lhe indicava o caminho; mas como ela não quis colher para eles certos “legumes pequenos”, que ele desejava, ele se calou; a mulher se perdeu, chegou à casa de Gambá, que a convidou a entrar e, aproveitando seu sono, engravidou-a de um outro filho, “que, no ventre, fazia companhia no primeiro”. 
A mulher deixa Gambá, se perde e acaba dando com índios ferozes, que a maram e, antes de comê-la, jogam fora os filhos tirados de seu ventre. Eles são encontrados por uma mulher, que os cria. Mais tarde vingariam a mãe afogando os assassinos, que se tornam os bichos selvagens de hoje em dia. Depois disso saem em busca de Maíra-Ata, que supõem ser o pai de ambos. Para reconhecê-los, ele lhes impõe provas, no decorrer das quais o filho de Gambá se mostra vulnerável e o filho de Maíra-Ata invulnerável, capaz até de ressuscitar o irmão cada vez que ele morre. 
O segundo conjunto de mitos analisados em História de Lince diz respeito às narrativas sobre a gênese do mundo colhidas entre os Tupinambá quinhentistas pelo frade André Thevet e analisadas por Alfred Métraux. Em uma dessas narrativas os gêmeos Tamendonaré, o pacífico, e Aricuté, o agressivo, são filhos de Sumé, descendente de Maíra-Monan, grande transformador e senhor de todas as artes. Do primeiro descendem os Tupinambá, e do segundo os seus inimigos. Essa narrativa tem um desdobramento: Maíra-Pochy, feio e deformado, possui poderes mágicos, engravida uma mulher e, como Lince, é abandonado pela comunidade desta; por vingança, o herói transforma os parentes da mulher em animais, fugindo então ao céu, seguido de seu filho Maíra, tornado um grande feiticeiro e que também gera um filho, Maíra-Ata, para quem a história cumprirá passos semelhantes: sua mulher viaja grávida e no caminho encontra Gambá, que a convida para entrar em casa e a engravida novamente, fazendo que a criança que ela já contém no ventre ganhe uma companhia. 
A análise de Lévi-Strauss faz transparecer homologias: 
Na América do Sul, Gambá engravida a mulher já grávida do marido, criando uma situação atípica de gemelaridade. Na América do Norte, Coiote e Lince, que guardam entre si algo de gemelaridade, uma vez que foram idênticos num passado remoto mas tiveram de se diferenciar, desposam duas irmãs, fazendo de seus filhos primos paralelos, quase germanos. Os demiurgos (Lince, Maíra) dão cabo das singularidades, promulgam regras aplicáveis universalmente a cada espécie e cada categoria e promovem atos de separação — entre índios e brancos, concidadãos e estrangeiros —, criando a primeira humanidade. Os deceptores (Coiote, Gambá) revelam sua importância metafísica ao pôr fim ao estado de inocência original.
Mitos jê sobre a origem dos brancos.
No excurso dos mitos abordados em História de Lince se interpõe o grupo de mitos jê sobre a origem dos brancos, que trazem o herói Auké, menino que se transforma em animais e, depois de assassinado pelos membros de sua aldeia, torna-se um homem branco, dono dos bens culturais que nega qualquer auxílio aos índios. De forma análoga ao mito tupinambá, em que o demiurgo Maíra-Ata é queimado vivo numa fogueira porque transformava os índios em animais, este discorre sobre o tema da "sentença fatídica": aquele que cria os bens culturais com seus poderes transformadores deve ser sacrificado, sacrifício a partir do qual a sociedade ganha forma diferenciada e as coisas (re) cobram seu lugar, dada a consciência de uma certa fissura nas relações humanas. A sentença fatídica impele a um corte entre índios e brancos que jamais será pautado pelo equilíbrio, uma vez que os índios escolheram afastar o herói e, assim, tiveram de se contentar com a posição assimétrica e quiçá desvantajosa em que se encontram em relação aos brancos. Em ambos os grupos de mitos a semelhança se revela como estado insustentável, e algum incidente há de se impor de maneira a restabelecer o desequilíbrio. Nesse sentido, os argumentos contidos em História de Lince aproximam-se das conclusões alcançadas no debate sobre o dualismo jê e bororo — a assimetria mantém-se como horizonte, como se a simetria projetada, assim como a gemelaridade, estivessem sempre fadadas ao fracasso.
Análise:
Tomados em conjunto, os mitos analisados por Lévi-Strauss deixam transparecer aquilo que o autor interpreta como organização progressiva do mundo e da sociedade na forma de uma série de bipartições, mas sem que entre as partes resultantes em cada etapa surja jamais uma verdadeira igualdade. De algum modo, uma é sempre superior à outra. Desse desequilíbrio dinâmico depende o bom funcionamento do sistema, que, sem isso, estaria constantemente ameaçado de cair num estado de inércia. O que tais mitos proclamam implicitamente é que os pólos entre os quais se organizam os fenômenos naturais e a vida em sociedade
— céu e terra, fogo e água, alto e baixo, perto e longe, índios e não-índios, conterrâneos e estrangeiros etc. — nunca poderão ser gêmeos. O espírito se empenha em juntá-los em pares, sem conseguir estabelecer uma paridade entre eles. Pois essas distâncias são diferenciais em série, tais como concebidas pelo pensa- mento mítico, que colocam em movimento a máquina do universo.
A gemelaridade a que se referem os mitos não cessa de intrigar o etnólogo, já que a importância a ela reservada consiste no fato mesmo de que os gêmeos não podem sê-lo genuinamente. Como no problema verificado no Brasil Central, está-se diante de um desafio: por que essa insistência no apego à imagem de um mundo bipartido? A sentença fatídica a que estão sujeitas as personagens do grupo de mitos apresentado "remete, afinal, à afirmação implícita de que toda unidade contém uma dualidade e que, quando esta se atualiza, não importa o que se queira ou o que se faça, não pode existir verdadeira igualdade entre as metades". A questão deixa de ser então a da mistificação, tratando-se agora de examinar o fundamento de uma metafísica indígena que demonstra forte aversão pela imagem da unidade, pela síntese completa dos contrários. Após inúmeras mediações, Lévi-Strauss reconhece no tema dos gêmeos um "estado de espírito comum a todos os povos do Novo Mundo", a "rocha matriz da mitologia ameríndia". Esse pensamento singular avistado se revela então como uma maneira diferente de pensar a diferença, perfazendo um afastamento em relação a outros sistemas de pensamento, tais como aqueles que predominam no Ocidente.

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