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Impeachment: político ou jurídico? 14/12/2015 11h18 O primeiro texto de minha autoria na Gazeta do Povo, publicado em julho de 2009, foi a respeito do impeachment. Passados seis anos, a atualidade do assunto me deixa intrigado. Mas, vejam bem, tratavase de impeachment em outro país latino americano: “O alerta que vem de Honduras” foi o título. Naquele artigo, escrevi que deveríamos nos orgulhar “de nossas respostas jurídicas a severas crises institucionais. A História nos prova que não é qualquer país que, depois de anos de ditadura, tem a capacidade de promover pacificamente o impeachment do presidente da República.” Por isso a atenção a ser prestada ao que acontecia em Honduras – em que a política e o Direito se confundiram numa crise que convulsionou o Estado e gerou as mais variadas reações, nacionais e internacionais. Hoje, as instituições brasileiras voltam a ser submetidas ao teste do impeachment. Sim, porque o processo de destituição do presidente eleito não é apenas uma técnica de alteração do titular da Presidência da República, mas algo muitíssimo mais sério. O que está em xeque – e é preciso que prestemos muita atenção a isso – são as instituições que organizam o Brasil. Isto é, para tomar emprestado a teoria institucionalista do saudoso Douglass C. North, instituições são o conjunto de regras e as organizações responsáveis pelo seu cumprimento. Quais são as regras do impeachment e quem lhes dará cumprimento? Como elas serão garantidas? Quem assegurará o respeito às regras do jogo? A resposta a estas perguntas dão significado profundo ao impeachment. Logo, ele vai bulir com a Constituição; com os Códigos de Processos; com a Lei 10.079/1950 (crimes de responsabilidade); com o Poder Legislativo (inclusive o TCU); com o Poder Executivo; com o Poder Judiciário (especialmente o STF); com os partidos políticos etc. etc. – cada qual com as suas premissas (e seus direitos, deveres e interesses). Para ser desenvolvido, precisa respeitar as instituições. Em outras palavras, o essencial está em tomarmos consciência de que o impeachment trata daquilo que nos há de mais caro: o respeito às regras do jogo e às organizações que zelam pelo seu cumprimento. As instituições precisam ser preservadas e sobreviver incólumes ao impeachment. Ele não pode ser reduzido a simpatias pessoais ou a preferências político partidárias – mas é essencialmente institucional. Por isso que autoriza a reflexão a propósito das fronteiras entre o político e o jurídico. Justiça e Direito Colunistas EGON BOCKMANN MOREIRA » VER MAIS COLUNISTAS Tempos atrás, o jurista dedicava atenção a tal limiar quando estudava o Poder Constituinte: a situação em que a política se torna a razão de ser da Lei fundamental de um país (que, ao mesmo tempo, politicamente põe por terra a Lei fundamental anterior). Bem vistas as coisas, a Constituição é a única norma do sistema cujo motivo é essencialmente político. Todas as demais têm base jurídica (a própria Constituição). Daí o desconforto oriundo desse paradoxo: a norma juridicamente mais importante é aquela que não tem fundamento no Direito, mas na política. Daí também a inabilidade dos juristas em lidar com tal situaçãolimite: boa parte deles se refugia no postulado da Grundnorm kelseniana, a norma básica de que todos devemos obediência à Constituição. Mas, se antes a política regia formalmente o Direito somente quando do exercício do Poder Constituinte, hoje o assunto tornouse bem mais difuso e complexo. Tal perspectiva político jurídica vem sendo ampliada de modo significativo. Basta que pensemos na atuação do STF (que diz o que é a Constituição, conferindo e renovando os significados das escolhas políticas dantes constitucionalizadas). Inclusive, mais recentemente, o STF vem modulando a própria norma constitucional: a título de interpretar o texto original – ou o derivado de emendas , a Corte promove mutações substanciais e cria preceitos inéditos ao interno da própria Constituição (lembremonos do caso dos precatórios na ADI 4357, em que o STF inovou em quase tudo, até nas datas, prazos e exercícios financeiros para o pagamento dos precatórios!). Daí que se falar do impeachment como “mero julgamento político” diz tudo e nada ao mesmo tempo. Diz tudo por que o conteúdo da escolha a ser feita pelos julgadores – o Poder Legislativo – não é jurídico, mas político. A sua fundamentação – os motivos que os levam a votar “sim” ou “não” pelo impedimento do presidente – é naturalmente política. As opções dos congressistas não levam em conta a técnica ou as hipóteses normativas e sua aplicação ao caso concreto (podem até levar, mas não configuram condição para o exercício do voto). Nada disso: a razão de decidir não se compadece do mundo do Direito, mas sim do universo da política. A condição necessária e suficiente para a decisão é a consciência política daqueles que ocupam os cargos no Poder Legislativo. Porém, dizer que é um “mero julgamento político” também nada significa. Isso porque há muito de jurídico nesse julgamento político. Em primeiro lugar, a Lei 10.079/1950 define os crimes de responsabilidade – capitulação necessária à instalação do impeachment. Aqui, o Direito Penal reina soberano: afinal, a subsunção dos fatos à norma não é singela escolha política. Ao contrario: o Direito Penal é da maior complexidade e sutilezas, pois desenvolveu teorias duras, de delicada prescrição. Tem ele dignidade constitucional: apenas os valores mais caros a determinado país podem ser objeto da disciplina, que, no caso brasileiro, deve respeito à dignidade da pessoa (e outros valores constitucionais). Além disso, o processo de impeachment também é marcadamente jurídico: o devido processo legal, com todos os seus desdobramentos, precisa ser prestigiado à risca. O rito deve obedecer à Constituição. Estamos a falar de direitosgarantias processuais constitucionais (ampla defesa, contraditório, juiz natural, publicidade, impessoalidade etc. etc.), os quais deverão ser ponderados e aplicados. Não é qualquer processo que permitirá o desenvolvimento e a votação do pedido de impeachment, mas sim aquele que dê fiel cumprimento à Constituição. Em outras palavras, o impeachment trata de temas de Direito material e de Direito processual. O respeito ao Direito é essencial para que a decisão política seja regulamente exercitada. O conteúdo da decisão, portanto, é político, mas as suas premissas são jurídicas. O que me autoriza a reproduzir, no próximo parágrafo, minha conclusão do artigo escrito em 2009: devemos ter orgulho de as nossas instituições terem resistido ao impeachment – mas também precisamos ter bastante cuidado. Daí os ecos do alerta que veio de Honduras. “O alerta, portanto, está no perigo de esse orgulho degenerarse em desapreço, em desatenção, em menosprezo à Constituição. Está no risco de criar governantes e governados que, vaidosos de nosso Estado constitucional, insistam em descumprir a Constituição e ignorar as ordens dos poderes constituídos (ou cumprir apenas pedaços dela, a seu bel prazer). A bem da verdade, e por mais rígida que seja a resposta constitucional, fato é que a Constituição é uma dama frágil, que merece todo o nosso constante carinho e respeito. A força bruta e os discursos vazios têm facilidade em ignorar o Direito. Assim, não basta a repetição dos bordões da “Constituiçãocidadã”, nem tampouco o prestígio exacerbado só aos direitos fundamentais (como se a dignidade da pessoa não exigisse o respeito aos deveres fundamentais e à solidariedade social). O orgulho constitucional exige muito mais do que isso. A Constituição deve sempre – e cada dia mais – ser levada a sério.” O processo políticojurídico do impeachment exige isso: que levemos a Constituição a sério. PS: Dedico este artigo ao meu amigo e Professor Rodrigo Sánchez Rios, que me provocou a avançar no tema.
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