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ESTRUTURA E FUÍMCÃO NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS A.R. RADCLIFFE-BROWN INTRODUÇÃO Os t r a b a lh o s que aqui publico são t raba lhos ocas iona is , na v e rd ad e i r a acepção da palavra; todos e les foram escr i tos p a ra ocasiões especiais. Têm, no entan to , uma cer ta un idade , por terem sido escri tos de i.m certo ponto de vista teórico. O que q u e r o d iz e r com o termo teo r ia é um e s q u e m a de i n t e r p r e t a ç ã o que se aplica, ou que p enso que se p o d e ap l ica r , à com preensão dos fen ó m en o s de um a ce r ta categoria. Uma teo r ia cons is te num c o n ju n to de conceitos ana l í t icos que devem s e r c l a r a m e n t e def in idos em re fe rê n c ia à r e a l i d a d e c o n c r e t a a que devem es ta r logicamente l igados. P ro p o n h o -m e , assim, como in t rodução a e s te s d i f e r e n t e s t r a b a lh o s , de f in i r cer tos c o n ce i tos que u ti l izo p a r a fins de análi se , dos fen ó m e nos soc ia is . Deve le m b ra r - s e que ex is te pouca c o n c o r d â n c i a e n t r e os antropólogos, no que diz r e s p e i to aos conce i tos e te rmos que uti l izam, de fo rma que es ta in t ro d u çã o e os t raba lhos segu in tes devem s e r c o n s id e r a d o s uma exposição d e f u m a d a d a teo r ia e não como uma teor ia n o rm a lm en te ace i te . 9 História e teoria A diferença entre o estudo histórico das institui ções sociais e o estudo teórico das mesmas pode facil mente ver-se comparando a história das leis com a ju r i sp rudênc ia teórica. Em antropologia, no entanto, exist iu e existe ainda uma grande confusão, que se mantém através de discussões, nas quais os termos -his tór ia", -ciência- ou -teoria» são utilizados pelos in te rven ien tes com significados muito diferentes. Es tas confusões poderiam ser evitadas até certo ponto, se fossem utilizados os termos reconhecidos pela lógica e pela metodologia e se se fizesse uma dist inção entre os estudos ideográficos e nomotéticos. \ u m estudo ideográfico, o objectivo é estabelecer cer tas proposições aceitáveis ou certas declarações específicas ou factuais. Um estudo nomotético, pelo contrário , tem por objectivo chegar a proposições gerais aceitáveis. Define-se a natureza de um estudo pelo tipo de conclusões que se propõe alcançar. A História, como o termo se en tende normalmente, é o estudo dos arquivos e monumentos, com o fim de se obterem conhecimentos sobre as condições e acon tecimentos ocorridos no passado, incluindo as investi gações que se referem a um passado bastante recente. E óbvio que a História consiste principalmente em estudos ideográficos. No século passado, houve uma disputa , a famosa Methodenstreit, durante a qual as pessoas se interrogaram se os historiadores deveriam ou não aceitar considerações teóricas nos seus traba lhos ou t raba lhar apenas com generalizações Muitos h is toriadores consideram que os estudos nomotéticos não devem incluir-se nos estudos históricos e que devem limitar-se apenas a contar-nos o que aconteceu e como. Os estudos teóricos ou nomotéticos deveriam p e r ten ce r à sociologia. Mas existem certos autores que pensam que um historiador pode ou mesmo deve incluir as interpretações teóricas nos seus relatos 10 sobre o passado. Uma controvérsia sobre esta questão e sobre a re lação entre a História e a sociologia ainda pers iste depois de passados sessenta anos. Existem cer tamente traba lhos de historiadores que são váli dos, não apenas como relatos ideográficos do passado, mas também porque contém interpretações teóricas (nomotéticas) desses factos. O que se tornou uma t ra dição nos estudos históricos do francês Fustel de Cou- langes e dos seus seguidores como, por exemplo, Gustave Glotz, i lustra bem este tipo de combinação. Alguns escri tores modernos referem-se a estes traba lhos como consti tuindo a história sociológica ou a sociologia histórica. Em antropologia, isto é, no estudo dos chamados povos primitivos ou atrasados, o termo etnografia aplica-se ao que consti tui especificamente um certo tipo de estudo ideográfico, cujo objectivo é fornecer- nos relatos aceitáveis desses povos e da sua vida social. A etnografia diferencia-se da História no modo como o etnógrafo obtém os seus conhecimentos ou a maioria desses conhecimentos através da observação d irec ta ou dos contactos com os povos sobre os quais escreve e não. como no caso dos historiadores, a tra vés de arquivos escritos. A arqueologia pré-histórica, que é outro ramo da antropologia, é, obviamente, um estudo ideográfico, que tem por objectivo fornecer- -nos um conhecimento factual sobre o passado pré- -histórico. O estudo teórico das instituições sociais ern geral é n o rm a lm en te chamado sociologia, mas como este termo é utilizado vagamente para tipos diferentes de trabalhos sobre a sociedade, podemos utilizar mais especificamente o termo de sociologia comparada ou teórica. Quando Fraze r deu a sua iição inaugural em 1908, definiu a antropologia social como o ramo da sociologia que diz respeito às sociedades primitivas. Algumas confusões entre antropólogos resultam do facto de náo se fazer a distinção entre c.vplicaçáo histó- 11 rica e compreensão teórica das instituições. Se nos in terrogarmos por que razão uma dada instituição existe numa sociedade, a resposta adequada será uma afir mação histórica sobre a sua origem. Para explicarmos por que razão os Estados Unidos da América tém uma consti tuição política, com um presidente, duas câma ras, um gabinete e um supremo tribunal, iremos b u s ca r refe rências à história da América do Norte. A isto dá-se o nome de explicação histórica, na verda de i ra acepção da palavra. A existência de uma insti tuição é explicada através de uma sequência complexa de acontecimentos, que formam uma cadeia causal de que é o resultado. A a ce i t a b i l id a d e de uma explicação his tórica depende da totalidade e da segurança do arquivo histó rico em que se baseia. Nas sociedades primitivas, que a antropologia social estuda, não existem arquivos históri cos. Não possuímos conhecimentos sobre o desenvolvi mento das instituições sociais dos aborígenes australia nos. por exemplo. Os antropólogos, que consideram os seus estudos como um certo tipo de estudo histórico, instalam-se em conjecturas e pura imaginação e imren- tam expl icações -«pseudo-históricas» ou «'pseudo- -causais». Tém aparecido, por exemplo, inúmeros rela tos pseudo-históricos, nem sempre concordantes, sobre a origem e o desenvolvimento das instituições totémicas dos aborígenes australianos. Nos trabalhos do presente livro, que fazem alusão a certas especulações pseudo- -históricas. a minha opinião é que essas especulações não só não tém qualquer interesse como não servem para nada. Isto não implica, de modo algum, uma rejei ção da explicação histórica, muito pelo contrário. A sociologia comparada, da qual a antropologia é um ramo, é aqui considerada como constituindo um estudo teórico ou nomotético, que tem por objectivo a obtenção de generalizações aceitáveis. A compreen são teórica de uma dada instituição é a sua in terpreta ção à luz de tais generalizações. 12 0 processo social Uma pr im eira pergunta que deve ser feita, se é que temos a intenção de formular uma teoria sistemática da sociologia comparada, é a seguinte: Qual é a reali dade concreta, observável, fenomenológica, que esta teoria irá abordar? Certos antropólogos diriam que essa r e a l i d a d e consis te em «sociedades» que se concebem como sendo, de certa maneira, entidades reais específicas. Outros antropólogos,no entanto, descrevem a rea l idade que tem de ser estudada como consti tuindo «culturas», todas elas consideradas enti dades específicas. Outros ainda parecem conceber esta questão como dizendo respeito a ambos os tipos de entidades — «sociedades» e «culturas» — de tal forma que a sua re lação parece problemática. A minha opinião é que a realidade concreta que o antropólogo social estuda, através da observação, da descrição, da comparação e da classificação dos fenó menos, não é uma entidade mas sim um processo, o processo da vida social. A unidade que se investiga é a vida social de uma certa região do mundo, durante um certo período. O processo em si consiste numa multidão imensa de acções e interacções dos seres humanos, agindo individualmente ou em conjunto com outros indivíduos ou grupos de indivíduos. Entre os diversos acontecimentos específicos é necessário descobr irem-se regularidades, de forma a que seja possível fazer af irmações ou descrições de certas características gerais da vida social de uma dada região. Uma afi rmação sobre essas características significati vas do processo da vida social constitui uma descri ção do que passará a chamar-se - forma de vida social». A minha concepção da antropologia social é a que considera o estudo teórico comparado das formas de vida social dos povos primitivos. Uma cer ta forma de vida social de um grupo de seres humanos pode permanecer mais ou menos igual 13 duran te um certo tempo. Mas se esse tempo for sufi c ientemente longo, a própr ia forma da vida social modifica-se ou transforma-se. Consequentemente , apesa r de podermos considerar os acontecimentos da vida social como fazendo par te de um processo, existe, além de tudo isto, o processo de transformação da forma de vida social. Numa descrição sincrónica faze mos uma crónica sobre a vida social, tal como ela existe a um dado momento, abstraindo o mais possível das transformações que estão a ocorrer nas suas caracterís t icas diversas. Uma crónica diacrónica, por outro lado. é um relato dessas transformações durante um certo período de tempo. Em sociologia comparada temos de considera r de forma teórica a continuidade e as transformações das formas de vida social. Cultura Os antropólogos utilizam a palavra -cultura- com um grande número de significados. Tenho a impressão de que alguns a utilizam como equivalente daquilo a que chamo vida social. A sua utilização comum em inglês, com o significado mais ou menos de cultivo, refere-se a um processo que podemos definir como o processo através do qual uma pessoa adquire, por meio do contacto com outras pessoas, livros ou obras de arte. certos conhecimentos, dotes, ideias, crenças, gostos ou sentimentos. Numa certa sociedade pode mos descobri r certos processos de tradição cultural. tendo esta palavra tradição l iteralmente o significado de herança. A compreensão e a utilização de uma língua herdam-se por tradição cultural, tomada neste sentido. Um indivíduo inglês aprenderá, assim, por este processo, a en tender e a utilizar a língua inglesa, mas em certos estratos da sociedade poderá também ap ren d e r latim, grego, francês ou gaélico. Nas socie dades modernas complexas existem muitas tradições 14 cultura is diferentes. Numa delas uma pessoa poderá a p re n d e r a ser médico ou cirurgião e noutra a ser engenheiro ou arquitecto. Nas formas mais simples de vida social, o número de tradições culturais reduz-se a dois, uma tradição para os homens e outra para as mulheres. Se considerarmos a realidade social que es tuda mos não como uma entidade mas sim como um processo, então a cultura e a tradição cultural são nomes para certos aspectos reconhecíveis deste processo e não para o processo na sua totalidade. As palavras são manei ras convenientes de nos referirmos a certos as pectos da vida social humana. É através da existência da cultura e das tradições culturais que a vida social humana se diferencia muito da vida social de outras espécies de animais. A transmissão das formas de pensamento conhecidas e das formas de sentir e de agir consti tui o processo cultural, que é uma carac te ríst ica específica da vida social humana. É evidente que é uma parte desse processo de interacçáo entre as pessoas que aqui definimos como processo social, que consti tui a rea l idade social. A continuidade e as transformações das formas de vida social, que são o objecto de estudo da sociologia comparada, implicam que a continuidade das tradições culturais e as suas transformações sejam parte da matéria que terá de s e r tomada em consideração. 0 sistema social Foi Montesquieu quem estabeleceu, no meio do século XVIII, as bases da sociologia comparada e, ao fazé-lo, formulou e utilizou o conceito que foi e poderá continuar a ser chamado sistema social. A sua teoria, que consti tui o que posteriormente Comte chamou «a pr imeira lei da estática social», era que numa dada forma de vida social existem relações de interligação 15 e de in te rdependência ou aquilo a que Comte chamava relações de solidariedade entre as diversas caracte rísticas dessa forma de vida social. A ideia de um sistema natura l ou fenomenológico é a de um conjunto de relações entre acontecimentos, tal como é o caso num sistema lógico como a geometria de Euclides que é um conjunto de relações entre proposições ou um sistema ético que é um conjunto de relações entre julgamentos éticos. Quando se fala do «sistema bancá rio« da Grã-Bretanha fala-se de facto de existir um número considerável de acções, interacções e transac- çôes como, por exemplo, os pagamentos por meio de um cheque assinado descontado num banco, que estão de tal forma relacionadas que consti tuem global mente um processo, que poderemos descrever anali ti camente e que exemplificará de que forma essas acções estão interl igadas e formam, por conseguinte, um sis tema. Estamos, evidentemente, perante um processo que consti tui uma parte complexa do processo social total da vida social da Grã-Bretanha. Nos presentes ensaios faço alusão a «sistemas de parentesco-, A ideia é que numa sociedade podemos isolar conceptualmente, se não realmente, um certo conjunto de acções e interacções entre pessoas, que são determinadas pelas relações de parentesco ou de matrimónio, e numa dada sociedade estas estão de tal maneira re lacionadas entre si que poderemos des- crevé-las anal i t icamente e mostrar que formam um sistema. O significado teórico da ideia dos sistemas é que o nosso primeiro passo para compreendermos uma caracterís t ica constante de uma forma de vida social — como. por exemplo, a utilização de cheques ou o hábito que um homem tem de evitar contactos sociais com a mãe da sua m u lh e r— deveria ser o de descobri rmos o seu lugar no sistema a que pertence. A teoria de Montesquieu, no entanto, é uma teoria do sistema social, segundo a qual todas as caracterís ticas da vida social compõe uma totalidade coerente. 1(3 Como e s tud ioso da ju r i sp ru d ê n c ia , Montesquieu interessava-se sobretudo pelas leis e o seu desejo era mostrar que as leis de uma sociedade estão relaciona das com a consti tuição política, com a vida económica, com a religião, com o clima, com a população, com os hábitos e costumes e também com o que ele chamava o espíri to geral (l’esprit général) — a que mais tarde outros autores deram o nome de ethos de uma sociedade. Uma lei teórica como esta «lei fundamental da estática social'* não é a mesma coisa que uma lei empírica, mas sim um guia para a investigação. Dá-nos razão para pensarmos que é possível aumentarmos a nossa compreensão das sociedades humanas se estudarmos sis tematicamenteas relações entre as diversas carac teríst icas da vida social. Estática e dinâmica Comte fez notar que em sociologia como noutras ciências existem dois conjuntos de problemas a que chamou problemas de estática e problemas de d inâ mica. Na estática tentam descobrir-se e definir-se as condições de existência ou de coexistência: na d inâ mica tentam descobrir-se as condições que determi nam as mudanças. As condições de existência das moléculas ou dos organismos sáo objecto de estudo da estática: e da mesma forma as condições de existência das sociedades, dos sistemas sociais ou das formas de vida social sáo objectos de estudo da estática social, enquanto os problemas da dinâmica social se relacio nam com as condições de mudança das formas da vida social. A base de uma ciência assenta numa classificação sistemática. A primeira tarefa da estática social é ten ta r comparar as formas de vida social de modo a a lcançar classificações. Mas as formas de vida social não podem ser classificadas em espécies e géneros, da 17 mesma maneira que classificamos a vida orgânica; a classificação tem de ser tipológica e não específica, e isto implica um tipo de estudo mais complexo. Este estudo só é possível se estabelecermos tipologias para as carac te rí s t icas que aparecem em sistemas sociais parciais. Isto não é só uma tarefa complexa como tem sido negligenciada em razão da ideia de que o método antropológico deveria ser um método histórico. Mas apesa r dos estudos tipológicos constituírem uma p a r t e im por tan te da es tá tica social, existe também uma outra tarefa, a de formular generaliza ções sobre as condições de existência dos sistemas sociais ou das formas de vida social. A chamada pri meira lei da estática social é uma generalização que af irma que. para que uma forma de vida social possa manter-se ou persistir, as suas diversas característ i cas devem apresenta r um certo tipo ou medida de consistência, mas isto apenas define o problema da estát ica social, que reside no estudo da natureza desta consistência. O estudo da dinâmica social relaciona-se com o es tabelec imento de generalizações sobre as formas de mudança dos sistemas sociais. Um corolário à hipótese da relação sistemática das características da vida social é a hipótese, segundo a qual as transformações de cer tas caracter ís t icas produzirão seguramente trans formações noutras características. Evolução social A teor ia da evolução social .foi formulada por H erber t Spencer como parte da sua formulação geral da teoria da evolução. Segundo esta teoria, o desen volvimento da vida na terra constitui um processo único ao qual Spencer aplica o termo de «evolução». A t e o r ia da evolução (social) orgânica e super- -orgãnica pode reduzir-se a duas proposições funda is mentais: 1) Que tanto no desenvolvimento das formas de vida orgânica como no desenvolvimento das formas de vida social humana existiu um processo de diversi ficação através do qual muitas formas diferentes de vida social se desenvolveram a parti r de um número muito mais pequeno de formas originais: 2) Que exis tiu uma tendência geral para o desenvolvimento a t ra vés do qual formas mais complexas de estrutura e de organização (orgânica ou social) surgiram a part ir de formas mais simples. A aceitação da teoria da evolu ção necessita apenas da aceitação destas proposições, que nos proporcionam um esquema de interpretação que pode ser aplicado ao estudo da vida orgânica e social. Mas é preciso lembrar que alguns antropólogos reje itam a hipótese da evolução. Podemos aceitar, provisoriamente, a teoria fundamental de Spencer e ao mesmo tempo re je i t a r as várias especulações pseudo-históricas que lhe adicionou, e esta aceitação dá-nos alguns conceitos que nos podem ser úteis como instrumentos analíticos. Adaptação Este termo é um termo-chave da teoria da evolu ção. Aplica-se ou pode aplicar-se tanto ao estudo das formas de vida orgânica como às formas de vida so cial dos se res humanos. Um organismo existe e man tém-se vivo se conseguir adaptar-se tanto in terior como ex ter io rm ente ao meio ambiente. A adaptação in te r io r depende do ajuste dos seus diversos órgãos e das suas actividades. de forma que os vários proces sos fisiológicos consti tuam um sistema contínuo ope rac ional através do qual a vida desse organismo se mantém. A adaptação exter io r é feita em relação ao meio ambiente em que o organismo vive. A distinção en tre adaptação in terior e adaptação exterior é ape nas uma dis t inção entre dois aspectos do sistema dc adaptação, que é o mesmo para os organismos da mesma espécie. No que diz respeito à vida social dos animais, surge outra característ ica de adaptação. A existência de uma colónia de abelhas depende de uma combina ção das actividades do trabalhador individual abelha na colheita do mel e do pólen, na manufactura da cera , na construção dos favos, na manutenção dos ovos e das larvas e sua alimentação, na protecção do arma zenamento do mel contra roubos, na ventilação da colmeia por meio do abanar das asas, na manutenção da tempera tura no Inverno agarrando-se umas às ou tras. Spencer utiliza o termo -cooperação» ao referir-se a esta característ ica da vida social. A vida social e a adaptação social implicam, consequentemente, o ajus tamento dos diversos comportamentos dos organismos individuais às necessidades do processo que mantém a vida social operacional. Quando observamos uma forma de vida social de seres humanos, que constitui um sistema de adap ta ção. torna-se útil distinguirmos três aspectos do sistema social. Existe a forma como a vida social se ajusta ao meio físico e poderemos, se assim o desejarmos, falar deste aspecto como constituindo a adaptação ecológica. Em segundo lugar, existem as organizações institucio nais através das quais se mantém uma vida social ordenada, de modo a que possa exist ir aquilo a que Spencer chama cooperação e também exista a possibi l idade de repr im ir os conflitos ou de os regulamentar. A este aspecto poderíamos dar o nome. se o dese ja r mos. de aspecto institucional da adaptação social. Em te rceiro lugar existe o processo social através do qual um ind iv íduo a d q u i r e hábi tos e c a rac te r í s t i c a s mentais que o fazem encaixar-se na vida social e lhe dão a possibil idade de participar nas suas activida des. Este aspecto poderia chamar-se o aspecto da adaptação cultural, se quisermos, de acordo com a an ter io r definição de tradição cultural como processo. 20 tação são apenas de diferentes aspectos a partir dos quais o sistema total de adaptação pode ser conside rado, para maior conveniência de análise e de compa ração. A teoria da evolução social implica, consequente mente. que teremos de incluir no nosso esquema de in te rpre tação dos sistemas sociais a consideração, segundo qual um sistema qualquer é considerado um sistema de adaptação. A estabilidade do sistema e logo a sua continuidade durante um certo tempo de pendem da eficácia dessa adaptação. A estrutura social A teoria da evolução é apenas uma fase numa cadeia de desenvolvimentos através dos quais tipos mais complexos de est ru tura surgem a partir de tipos menos complexos. Incluo neste livro uma conferência sobre a es t ru tu ra social, que foi escrita em tempos de guerra e publicada sob uma forma resumida, de modo que não é tão clara como deveria ser Quando utiliza mos o termo es t ru tu ra referimo-nos a uma certa forma de organização ordenada de certas partes ou compo nentes. Uma composição musical tem uma estrutura, tal como uma frase. Um prédio tem uma estrutura, tal como uma molécula ouum animal, os componentes ou unidades de uma estru tura social são as pessoas e uma pessoa é um ser humano considerado não como um organismo mas como tendo uma posição numa dada estrutura social. Um dos problemas teóricos fundamentais da socio logia é o que diz respeito à natureza da continuidade social. A continuidade da vida social depende da continuidade est ru tural , isto é. de uma certa continui dade na organização das pessoas umas em relação às outras. Nos dias de hoje. existe uma organização das 21 pessoas em nações e o facto de durante setenta anos eu te r pertencido à nação inglesa, apesar de ter vivido a maior parte da minha vida noutros países, e um facto da es tru tura social. Uma nação, uma tribo, um clã, ou uma instituição como a Academia Francesa, ou a Igreja Romana podem continuar a exist ir como orga nizações de pessoas apesar dos seus componentes, as unidades que as compõem mudarem de tempos a tempos. Existe uma continuidade de estruturas, tal como num corpo humano, cujos componentes são mo léculas. que mantêm uma continuidade de estrutura a p esa r das moléculas que o compõem mudarem cons tantemente . Na es t ru tu ra política dos Estados Unidos tem de exist ir sempre um presidente: num certo momento foi Herber t Hoover, noutro Franklin Roosevelt, mas a es tru tura , como tipo de organização, mantém-se igual. As relações sociais, cuja rede contínua constitui a e s t ru tu ra social, não são conjunções casuais entre indivíduos, mas são. isso sim, determinadas pelo pro cesso socia l , e q u a l q u e r re lação impl ica que o com por tam ento das pessoas nas suas interacções mútuas seja controlado por normas, regras ou padrões, de forma que. numa qua lquer relação no interior de uma estru tu ra social, uma pessoa sabe que terá de se comportar segundo essas normas e estará certa ao pensa r que o mesmo se espera das outras pessoas. As normas de comportamento estabelecidas numa certa forma de vida social dá-se o nome de instituições. Uma instituição é uma norma de comportamento esta belecida que é reconhecida por um certo grupo social ou c lasse ao qua l e la pertence. As inst i tu ições referem-se a um certo tipo ou classe de relações sociais ou interacções. Consequentemente, numa certa socie dade verificamos que existem certas regras aceites no que diz respeito ao comportamento que um homem deve te r com a sua mulher e com os seus filhos. A relação entre as instituições e a estrutura social 22 um lado, existe a es tru tura social — como, por exem plo, a família, neste c a s o — para cuja constituição as instituições fornecem normas; por outro, existe o grupo — a sociedade local, neste c a so —. na qual a norma é e s tab e lec id a por reconhec imento geral enquanto norma de comportamento adequado. As instituições — se este termo for utilizado em referência ao ordena mento das interacções entre pessoas, feito pela socie dade no que diz respeito às relações socia is— têm esta dupla re lação com a estrutura, grupo ou classe a que pertencem, e com essas relações no interior do sistema social ao qual as normas se aplicam. Num sistema social podem existir instituições que estabe lecem normas de comportamento para um rei. para os juizes no cumprimento das suas obrigações, para os polícias, para os pais de família e assim de seguida e também normas de comportamento que dizem respei to a pessoas que estabelecem contactos casuais na vida social. Pode fazer-se uma breve menção ao termo organiza ção. O conce i to re lac iona-se . obviamente , com o conceito e es tru tu ra social, mas é aconselhável não uti lizar os dois termos como sinónimos. Uma utiliza ção adequada não se afasta muito do seu uso comum na lingua inglesa, é quando se define a estrutura social como consti tuindo um ordenamento de pessoas nas suas relações insti tucionalmente controladas ou definidas, como no caso da relação entre rei e súbdi tos ou marido e mulher, e utilizar o termo organização quando nos referimos ao ordenamento das suas activi- dades. A organização de uma fábrica é o ordenamento das diversas actividades do director, do capataz e dos trabalhadores que são partes integrantes da actividade geral da fábrica. A est ru tura de uma casa de família formada pelos pais. filhos e criados está institucio nalmente controlada. As actividades dos vários mem bros que fazem parte dessa casa estarão provavel- 23 mente sujei tas a um certo ordenamento regular, e a organização da vida caseira pode ser diferente, neste sentido, nas diferentes famílias que compõem essa s o c ie d a d e . A es t ru tu ra de um exército moderno consiste, em primeiro lugar, num ordenamento em grupos — regimentos, divisões, corpos, etc., e em segundo lugar num ordenamento por patentes — gene rais. coronéis, majores, cabos, etc. A organização do exército consiste no ordenamento das suas activida- des em tempo de paz e em tempo de guerra. Numa dada organização, cada pessoa tem o que pode ser chamado um papel. Assim, pode dizer-se que quando se considera um sistema estrutural tem-se em mente um sistema de posições sociais, enquanto numa orga nização se trata de um sistema de papéis. A função social 0 te rmo função tem um grande número de signifi cados d ife ren tes em diferentes contextos. Em mate mática. esta palavra, tal como a introduziu Euler no século XVIII. diz respeito a uma expressão ou símbolo que pode ser escri to no papel como. por exemplo. ■ log. X- e não tem qualquer relação com a mesma palavra util izada numa ciência como é o caso da fisio logia. Em fisiologia, o conceito de função tem uma importância fundamental porque nos dá a possibilidade de nos referirmos à relação contínua entre estrutura e processo de vida orgânica. Um organismo complexo como o corpo humano tem como estrutura um orde namento dos seus órgãos, tecidos e fluidos. Mesmo um organismo que seja composto apenas por uma só célula tem como estru tura um ordenamento das suas molé culas. Um organismo também tem uma vida e por vida queremos dizer um processo. O conceito de função orgânica de um organismo é o conceito que diz res peito à re lação entre a estrutura de um organismo e o sos que têm lugar dentro de um corpo humano vivo dependem da sua es tru tura orgânica. É função do coração bombear o sangue através do corpo. A estru tura orgânica, enquanto est ru tura viva, depende, para a sua existência contínua, do processo formado por todos os processos vitais. Se o coração deixa de exe cu ta r a sua função, o processo vital termina e a estru tura, enquanto est ru tura viva, cessa também. Conse quentemente , o processo depende da estrutura e a cont inuidade da estrutura depende do processo. Quando consideramos os sistemas sociais e a sua compreensão teórica, uma das formas de utilização do conceito de função é que se emprega cientificamente em fisiologia. Também pode ser utilizada para nos referirmos à relação entre a estrutura social e o pro cesso da vida social. É esta a utilização da palavra função que me parece ser útil na sociologia compa rada. Os três conceitos de processo, estrutura e função são, consequentemente , os componentes de uma só teoria que consiste num esquema de interpretação dos sistemas sociais humanos. Os três conceitos estão logicamente interligados, já que o conceito de «fun ção» se refere às relações entre o processo e a est ru tura. Esta teoria é um esquema que se pode aplicar ao estudo não apenas da continuidade das formas de vida social mas também aos processos de mudança dessas mesmas formas. Se considerarmos uma característica da vida social, por exemplo, a pena para um crime, por outras pala vras. aaplicação por meio de algum processo organi zado de sanções penais a certos tipos de comporta mento e se nos perguntarmos qual é a sua função social, estaremos perante um problema fundamental da sociologia comparada, para o qual Durkheim foi o primeiro a contribuir com a sua obra Division do-Tra- vàil Social. Coloca-se-nos um enorme problema geral quando nos perguntamos qual é a função social da 25 religião. Tal como afirmo num dos trabalhos deste livro, o estudo deste problema necessita que sejam considerados certos problemas menores, tais como a função social da veneração dos antepassados nas sociedades em que ela existe. Mas nestes estudos me nores, se aceitarmos a teoria aqui delineada, o pro cesso deverá consistir na observação da relação entre as carac terís t icas estruturais da vida social e o pro cesso social correspondente, que estão ambos inseri dos num sistema contínuo. 0 pr imeiro trabalho desta coleetánea poderá servir como exemplo destas ideias teóricas. Este trabalho diz respei to a uma instituição através da qual o filho da irmã de um homem tem direito a ter um comporta mento privilegiado com o irmão da sua mãe. Este costume é conhecido nas tribos da América do Norte, como. por exemplo, as tribos Winnebago e outras, certos povos da Oceania, tais como os habitantes do Fidji e de Tonga e em algumas tribos de África. As minhas próprias observações, no que diz respeito a esta insti tuição, foram feitas em Tonga e no Fidji, mas como o meu trabalho foi apresentado a um público sul-africano, pareceu-me preferível mencionar um único exemplo sul-africano, já que uma discussão comparada mais alargada teria necessitado de um t rabalho muito mais longo. A forma usual de abordar esta instituição, tanto na Oceania como em África, seria ad ian ta r uma explicação pseudo-histórica para mos trar que esta instituição é uma sobrevivente de uma an te r io r condição de direito materno numa socie dade pa tr i l inear. Um método alternativo de abordagem desta insti tuição ser ia a busca de uma compreensão teórica para esta instituição como sendo parte integrante de um sistema de parentescos definido, no interior do qual tem a sua função que iríamos descobrir . Ainda não possuímos uma tipologia geral sistemática dos siste mas de parentesco, porque a sua elaboração constitui 2G tados parciais e provisórios de uma tentativa deste género, que tem por objectivo determinar os tipos de sistemas de parentesco, num recente trabalho publi cado sob a forma de introdução a um trabalho sobre os sistemas africanos de parentesco e matrimónio. Entre a grande diversidade de sistemas de parentesco, podemos, penso eu, reconhecer um tipo do chamado direito paterno e outro tipo de direito materno. Em ambos os tipos, a estrutura de parentescos está baseada em linhagens, e a ênfase é feita no que diz respeito às relações de linhagem. Em direito materno, a linha gem é matri l inear, isto é, a criança pertence à l inha gem da máe. Pra ticamente todas as relações ju r íd i cas de um homem dizem respeito à sua linhagem matr i l inear e aos seus membros e. consequentemente, depende grandemente dos irmãos de sua mãe, que exercem sobre a sua pessoa a autoridade e controlo, e a quem deverá dirigir-se para a sua protecção e para herdar os seus bens. Num sistema de direito paterno, por outro lado. um homem depende em grande parte da sua linhagem pa tr i l inear e. consequentemente, do seu pai e dos seus irmãos, que sobre ele exercem autoridade e controlo, e é a eles que terá de se dirigir para sua protecção e para receber a herança. 0 direito pa terno está re p re se n ta d o pelo sistema de parna potestas da Roma antiga e existem sistemas que se aproximam mais ou menos dos tipos encontrados em África e noutros lugares. Temos, por exemplo, os Bathongas. 0 direito materno é representado pelos sistemas dos Nayares, de Malabar, e dos Malaios. de Menangkukan, e existem igualmente sistemas próxi mos destes noutros lugares. 0 objectivo do ensaio sobre o papel do irmão da mãe de um homem poderia ser contestar a explicação pseudo-histórica, proporcionando uma interpretação dessa instituição como tendo a sua função num sistema de parentescos que possui um dado tipo de estrutura. 27 Se voltasse a escrever o mesmo ensaio tr inta anos depois cer tamente que o modificaria e alongaria. Mas suger iram-me que o ensaio talvez tivesse algum inte resse histórico no que diz respeito ao desenvolvi mento do pensamento antropológico e, por isso, volta mos a publicá-lo tal como foi escrito, fazendo-lhe somente pequenas alterações. O interesse que este livro poderá despertar será no modo como expõe uma teoria, no sentido em que a pa lavra teoria é aqui empregue, isto é, como esquema de in te rpre tação que pode ser aplicado à compreen são de uma certa classe de fenómenos. A teoria pode s e r ap re sen tada por in termédio de très conceitos f u n d a m e n ta i s , re lac io n ad o s en t re si, que são os seguintes: «processo-, «estrutura e «função». Estes conceitos derivam de escri tores do passado, tais como, Montesquieu, Comte. Spencer e Durkheim e perten cem, consequentemente , a uma tradição cultural que tem duzentos anos. Esta introdução contém uma refor mulação destes conceitos, na qual alguns serão utili zados de uma forma diferente daquela que tém em cer tos trabalhos anter iores que aqui publicamos de novo. Por exemplo, nesses anter iores trabalhos escri tos há mais de vinte anos. a palavra «cultura» é uti li zada com o significado aceite na altura, isto é. para o modo de vida em geral, que inclui o modo de pensar de um certo grupo social. 28 Capítulo I O IRMÀO DA MÃE DE UM HOMEM NA ÁFRICA DO SUL1 Os povos primitivos em muitas partes do mundo atribuem uma grande importância à relação que existe entre o irmão da máe de um homem e o filho de sua irmã. Em alguns casos, o filho da irmã tem certos direitos especiais sobre os bens do irmão de sua mãe. A uma dada altura, era habitual considerarem-se estes costumes como estando relacionados com insti tuições matriarcais e afirmava-se que a sua presença em povos pa t r i l inea res podia considerar-se como sendo a prova de que esses povos teriam sido, em qua lquer a ltura do seu passado, matri lineares. Este ponto de vista ainda se mantém em certos antropólo gos e foi adotado por Junod no seu livro sobre os povos Bathongas da África Orienta l Portuguesa. Referindo-se aos costumes que dizem respeito aos 1 Um trabalho lido perante a South African Association for the Advancement of Science no dia 9 de Julho de 1924 e publi cado no South African Journal of Science, vol. xxi. pp. 542-555. 29 comportamentos do Irmão da mãe de um homem para com o filho de sua irmã, ele diz o seguinte: «Ora, tendo es tudado com um cuidado especial esta característica curiosa do sistema tonga, chego à conclusão de que a única explicação possível é que, em tempos remotos, esta tribo passou pelo estado matriarcal.» (Junod. The Life o f a South African Tribe, 1913, vol. I, p. 253.) É sobre esta teoria que irei debruçar-me neste trabalho: mas o meu propósito não é repetir ou adicio nar mais objecções àquelas que já existem feitas por vários críticos nos últimos anos. Críticas puramente negativas não fazem avançar uma ciência. A única forma satisfatória de nos livrarmos de uma hipótese que não nos satisfaz é descobrindo uma melhor. Consequentemente , proponho-mo apresentar-vos uma h ipó te se a l t e rn a t iv a e. se o conseguir, não irei demonstrá-la mas sim mostrar que ela constitui uma explicação possível dos factos, rejeitando, assim, pelo menos, o ponto de vista de Junod que afirma ser o «únicopossível». No que se re fe re a muitas tribos africanas, não tem os p r a t i c a m e n t e n e n h u m a in formação sobre costumes deste tipo. Não que não existam ou não sejam impor tan tes pa ra os próprios nativos, mas porque o estudo sistemático e cientifico dos nativos desse país começou há pouco tempo. Terei, portanto, de fazer r e f e r ê n c i a s o b re tu d o aos es tudos dos Bathongas, feitos por Junod. Estes podem ser encon trados no primeiro volume do trabalho supracitado ípp. 225 e seg. e pp. 253 e seg.). Alguns dos seus pon tos mais importantes podem resumir-se da seguinte maneira: 1 2 1) O sobr inho u te r ino , ao longo da sua c a r re i ra . ê alvo dos cuidados especiais do seu tio: 2) Quando o sob r inho adoece, o irmão da mãe faz sacri f íc ios em seu nome: 30 U / V-f tJWA *»*“ V J" vv* ^ — “ com o irmão dã mãe, por exemplo, pode ir a casa do tio e comer a sua comida; 4) 0 sobr inho re iv indica par te dos bens do irmão da mãe quando este morre, e pode, por vezes, re ivindicar uma das suas viúvas; 5) Quando o irmão da mãe faz um sacrifício aos seus antepassados, o filho da irmã pode rou bar e comer a carne ou bebida fermentada, que é oferecida aos deuses. Não devemos p a r t i r do princípio de que estes costumes são específicos dos Bathongas. Existem indí cios de que costumes semelhantes se encontram nou tras tr ibos africanas e sabemos da sua existência nou tros povos em várias partes do mundo. Na África do Sul. Hoern le descobriu costumes deste tipo entre os povos Hotentotes. O filho da irmã de um homem pode te r um comportamento muito livre com o irmão da mãe e pode ficar com um belo animal do seu rebanho ou com outro objecto de valor que ele possua. Pelo contrário, o irmão da mãe poderá ficar com um animal decrépito ou deformado que per tença ao rebanho do seu sobrinho ou com um objecto qualquer seu que esteja gasto ou velho. 0 que me parece part icularmente interessante é que, na região da Polinésia que eu melhor conheço, isto é, nas Ilhas Amigas (Tonga) e no Fidji, existem costumes que tém grandes semelhanças com os costu mes dos Bathongas. Neste caso, também o filho da irmã de um homem tem autorização para tomar mui tas l ibe rdades com o irmão de sua mãe, e também pode levar um qua lquer bem que ele possua. Lá também se encontra o costume, segundo o qual o tio executa um sacrifício e o filho da sua irmã fica com a porção oferecida aos deuses e poderá comê-la. Farei, consequentemente , referências ocasionais aos costu mes dos Tongas ao longo deste ensaio. 31 Estes três povos, os Bathongas, os Namas e os Tongas têm insti tuições patri lineares ou patriarcais, isto é, as cr ianças pertencem ao grupo social do pai e não ao grupo social da mãe, e os bens são herdados em linha paterna, passando normalmente de pais para filhos. O ponto de vista que eu apresento é o ponto de vista segundo o qual os costumes relacionados com o irmão da mãe de um homem só podem ser explicados partindo-se do princípio que, num dado momento, no passado, estes povos t inham instituições matri l inea res. tais como aquelas que se encontram hoje em dia nou t ros povos pr imitivos, nas quais as c r ianças pertencem ao grupo social da mãe e os bens são herdados em linha materna, passando de um homem para o seu irmão e para os filhos da sua irmã. É e r rado supor-se que é possível compreender as inst i tu ições das sociedades , estudando-se isolada mente. sem considerar as outras instituições, que coexistem com elas e com as quais estão relacionadas e desejo cham ar a atenção para a relação que parece exist ir en t re os costumes relacionados com o irmão da mãe de um homem e os costumes relacionados com a irmã de seu pai. De acordo com as informações de que dispomos, nos casos em que o irmão da mãe é impor tante. também se observa que a irmã do pai é igual mente importante , se bem que de uma forma dife rente. O costume que permite ao filho da irmã de um homem tom ar certas l iberdades com o irmão de sua mãe parece ser gera lmente acompanhado por uma obrigação de especial respeito e obediência no que diz respeito à irmã do pai. Junod diz pouco sobre a irmã do pai de um homem nos povos Bathongas. Falando do comportamento de um homem para com es ta p a r e n t e (o seu narana), só diz o seguinte : -Demonstra-lhe grande respeito. No entanto, ela não é de modo nenhum uma mãe (m a m a n a ( O p . cir.. p. 223). Sobre os Hotentotes Nama temos mais dados e. neste caso. a irmã do pai de um homem é alvo do 32 Tonga, o costume está claramente definido. A irmã do pai de um homem é o parente acima de todos os paren tes que é preciso respei ta r e obedecer. Se ela lhe escolher uma esposa, terá de casar com ela sem poder seque r apresenta r qualquer espécie de objcc- cão. E assim será ao longo de toda a sua vida. A irmã do seu pai é sagrada para ele; a sua palavra é uma lei; e a maior ofensa que poderia cometer seria mostrar- -Ihe falta de respeito. Consequentemente, esta relaçáo (que não se limita, claro está, apenas a estes très exemplos que mencio nei. mas parece, como já dissemos, estar generalizada), tem de ser considerada numa qua lquer explicação dos costumes que dizem respeito ao irmão da mãe de um homem, já que os costumes que estào relacionados com este costume não são. se é que não estou em erro, instituições independentes, mas sim parte integrante de um sistema; e nenhuma explicação de uma parte de um sistema será satisfatória se náo se enquadrar numa análise do sistema na sua totalidade. Nas sociedades mais primitivas, as relações .sociais dos indivíduos sáo, em grande parte, governadas na base dos parentescos. Isto acontece em razão da formação de padrões de comportamentos fixos e mais ou menos definidos para cada um dos tipos reconheci dos de parentesco. Existe um padrão específico de •omportamento. por exemplo, para um filho em re la çáo a seu pai e outro para um irmáo mais novo em relação a um irmão mais velho. Os padrões específicos de comportamento variam de sociedade para sociedade, mas existem alguns princípios básicos ou tendências que aparecem em todas as sociedades ou em todas as sociedades de um certo tipo. Sáo estas tendências gerais que têm de ser descobertas e que constituem a tarefa específica da antropologia social. Uma vez que se comece a fazer o rastreio dos parentescos até um certo limite, o número dos dife- 33 rentes tipos de parentes que é possível dist inguir é enorme. Esta dificuldade evita-se nas sociedades pri mitivas através de um sistema de classificação segundo o qual os parentes dos diferentes tipos são inseridos num número limitado de grupos. 0 principio de classi ficação que é normalmente adoptado nas sociedades primitivas é o da equivalência dos irmãos. Por outras palavras, se eu tiver um certo tipo de parentesco com um certo homem, considero que terei o mesmo tipo de parentesco com o seu irmão; e da mesma forma no caso de uma mulher e da sua irmã. Deste modo, o irmão do pai de um homem passa a ser considerado como uma espécie de pai e os seus filhos serão, conse quen tem ente , parentes do mesmo tipo que os seus irmãos. De igual modo, a irmã da mãe de um homem é cons iderada como outra mãe e os seus filhos serão, consequentemente , irmãos e irmãs. Este é o sistema das tr ibos Bantus, da África do Sul. e dos Hotentotes Nama e dos Kambemes, nas Ilhas Amigas. Através deste princípio, as sociedades primitivas conseguem chegar a padrões de comportamento definidos em re lação a tios. t ias e sobrinhos de cer tos tipos. O comportamento de um homem para com o irmão de seu pai tem de ser do mesmo tipo geralque o seu comportamento para com o seu próprio pai e terá de compor ta r -se com a irmã de sua mãe segundo o mesmo padrão de comportamento que tem com a sua própria mãe. Os filhos do irmão de seu pai ou da irmã de sua mãe terão de ser tratados mais ou menos da mesma forma que os seus irmãos e irmãs. Este princípio, no entanto, não nos oferece, à pri meira vista, nenhum padrão nem para o irmão da mãe nem para o irmão do pai. Seria possível, evidente mente. ele t ra ta r o primeiro como trata o pai e a segunda como trata a mãe, e este parece ter sido o caso em algumas sociedades. Uma tendência nesta direcção encontra-se em certas partes de Africa e em cer tas pa r tes da Polínésia. Mas é uma característ ica 34 dos parentescos ou não está completamente desenvol vido ou desapareceu parcialmente . Onde o sistema de classificação está altamente desenvolvido ou elaborado surge uma outra tendên cia: a tendência para o desenvolvimento de padrões de comportamento para o irmáo da máe de um homem e para a irmã de seu pai, sendo o primeiro conside rado como uma espécie de máe-macho e a segunda como uma espécie de pai-fêmea. Esta tendência apa rece por vezes na língua. Assim, na África do Sul, o termo comum para o irmáo da máe é malume ou uma- larne, que é uma palavra composta formada a partir da raiz «màe»-ma e de um sufixo que significa «macho». Entre os Bathongas a irmã do pai de um homem chama-se rarana que é um termo que Junod diz signi ficar «pai-fémea». Em algumas línguas sul-africanas não existe nenhum termo específico para a irmã do pai de um homem: em Xosa ela é referida por um te rmo descritivo — udade bo baico, que quer dizer lite ra lmente «irmã do pai». Em zulu pode ser referida por um termo descritivo semelhante ou pode ser tratada simplesmente por ubaba, isto é. «pai», tal como os irmãos do pai. Xas Ilhas Amigas, o irmáo da mãe é tra tado por um termo especial tuasina ou pode ser chamado fa ’e tangata, que qu e r dizer l iteralmente •mãe-macho». Estas semelhanças entre a África do Sul e a Polinésia não podem ser consideradas aciden tais e, no entanto, náo existe qualquer espécie de ligaçáo entre as línguas polinésica e bantu e acho extremamente difícil de conceber que as duas regiões tenham adoptado o mesmo costume de chamarem ao irmão da mãe de um homem «máe-macho» a parti r de uma origem comum. Vejamos agora se é possível deduzirmos os padrões de comportamento que deveriam existir no que diz respeito ao irmão da mãe e à irmã do pai de um homem numa sociedade patri l inear, baseando-nos na 35 tendênc ia ou princípio que eu sugiro existir. Para este fim, te remos primeiro de conhecer os padrões de comportamento para o seu pai e sua mãe, respectiva mente , e penso que será mais seguro procurar as suas definições nos estudos de Junod, já que as observa ções dele não devem te r sido influenciadas pela hipó tese que estou a tentar demonstrar. A relação com o pai implica, diz ele, -respeito e mesmo medo. O pai, apesar de não ter muitos cuida dos com os seus filhos, é, no entanto, o seu instrutor, aque le que ralha e que castiga. Tal como os irmãos do pa i- . (Op. cit., p. 222). Quanto à mãe de um homem, diz o seguinte: -Ela é a sua verdadeira maraana e esta re lação é muito profunda e terna, é uma combinação d e respeito e amor. O amor. no entanto, é maior do que o respeito.- (Op. cit.. p. 224). Quanto à relação da mãe para com os seus filhos lê-se o seguinte: -É geral mente fraca com eles e é normalmente acusada pelo pai de lhes da r muito mimo.» Existe um certo perigo na apresentação de fórmu las condensadas , mas penso que não erraremos muito se dissermos que. numa sociedade fortemente patr ia r cal como a que existe na África do Sul. o pai é aquele que tem de ser respeitado e obedecido e a mãe é aque la que dá te rnura e que é indulgente. Poderia mostrar-vos. se fosse necessário, que o mesmo acon tece nas famílias dos povos das Ilhas Amigas. Se agora aplicarmos a estes povos, o princípio que sugeri existir, deduziremos que a irmã do pai de um homem será um tipo de parente que terá de ser obe decido e respeitado, enquanto por parte do irmáo da màe desse homem se pode espera r indulgência e car i nho. Mas o assunto complica-se em razão de um outro factor. Se considerarmos a relação de um sobrinho com os seus tio e tia. a questão do sexo aparece. Xas sociedades primitivas existe uma grande diferença de comportamento no que diz respeito aos homens ou às mulheres Arriscando mais uma fórmula, podemos 36 familiar iedade em sociedades do tipo bathonga, entre pessoas do mesmo sexo. Um homem deve tra ta r os seus parentes femininos com mais respeito que os seus parentes masculinos. Consequentemente, o sobri nho deve tra ta r a irmã de seu pai ainda com mais respeito que o seu própr io pai. (Igualmente, segundo o princípio do respeito motivado pela idade ou idonei dade, um homem deve tra ta r o irmão mais velho de seu pai com mais respeito ainda do que o seu próprio pai.) Pelo contrário, um homem poderá tratar o irmão dc sua mãe, que é do mesmo sexo que ele. com um grau de familiariedade que não seria possível se se tratasse de uma mulher, mesmo tratando-se da sua própr ia mãe. A influência do sexo no comportamento en tre parentes é mais visível nas relações entre irmão e irmã. Nas Ilhas Amigas e nos povos Nama, um homem deve te r muito respeito pela sua irmã. espe cialmente mais velha, e não poderá ter qualquer espé cie de familiar iedade com ela. O mesmo acontece, penso eu. com os povos Bantu, da África do Sul. Em muitas sociedades primitivas, a irmã do pai e as irmãs mais velhas de um homem são alvo do mesmo tipo geral de comportamento e em algumas dessas socieda des os dois tipos de parentes pertencem à mesma classe e sáo chamados pelo mesmo nome. Deduzimos do nosso suposto princípio um certo padrão de comportamento parí a irmã do pai c para com a irmã da mãe de um certo homem. Estes padrões são exactamente os mesmos que encontramos nos Bathongas, nos Hotentotes e nos povos das Ilhas Ami gas. A irmã do pai de um homem é. entre todos os parentes, o parente que deve ser mais respeitado e obedecido. O irmão da mãe de um homem é. entre todos os parentes, aquele de quem se pode esperar mais indulgência e com quem é possível ter-se~um comportamento mais livre e é permitido tomar certas l iberdades . Aqui está. consequentemente, uma expli- 37 cação al ternativa «possível» para os costumes que dizem respeito ao irmão da mãe de um homem, e ela tem a vantagem, sobre a teoria de Junod, de explicar também os costumes relacionados com este que dizem respeito à irmã do pai de um homem. Isto traz-nos, no entanto, não ao fim mas ao princípio do nosso estudo. É bastante fácil inventar hipóteses. O trabalho impor tante e difícil começa quando as queremos demons trar. É impossível, com o pouco tempo de que dispo nho. verificar aqui esta hipótese que adiantei. Tudo o que posso fazer é apontar algumas linhas de estudo que poderão, penso eu. proporcionar essa demonst ra ção. A pr imeira coisa a fazer e a mais óbvia de todas e las será estudar pormenorizadamente os comporta mentos do filho da irmá e do irmão da mãe de um homem en tre si nas sociedades matriarcais. Infeliz- mente, não existe pra ticamente nenhuma informação sobre esta questão em Africa e quase nenhuma sobre outras partes do mundo. Além disso, existem algumas ideias falsas re lacionadas com a distinção entre socie dades matriarcais e sociedades patriarcais, que é necessário clarif icar antes de podermos avançar. Em todas as sociedades, sejam elas primitivas ou avançadas, o parentesco é. necessariamente,bilateral. Um indivíduo está relacionado com certas pessoas através de seu pai e com outras através de sua mãe. e o sistema de parentescos estabelece qual será o carác te r das suas relações com os parentes paternos e com os pa rentes maternos, respectivamente. Mas a socie dade tem tendência para se dividir em segmentos (gru pos locais, linhagens, clàs. etc.) e quando o princípio hereditár io é aceite, como é o caso frequentemente, na medida em que ele constitui um meio para dete r m inar os membros de um segmento, então torna-se necessár io escolher entre a descendência materna e a descendência paterna. Quando uma sociedade está dividida em grupos segundo a regra através da qual as 38 crianças pertencem ao grupo do pai, teremos uma descendência patril inear, enquanto no caso de as crianças pertencerem sempre ao grupo da mãe te re mos uma descendência matrilinear. Existe infelizmente uma grande imprecisão no que diz respeito à utilização dos termos matriarcal e pa triarcal e por isso muitos antropólogos não os empre gam. Se os quisermos utilizar temos primeiro de lhes da r definições exactas. Uma sociedade chamar-se-á patriarcal quando a sua descendência for patri l inear (isto é, as crianças pertencem ao grupo do pai): o casa mento é patri local (isto é, a mulher vai viver com o grupo local do marido), a herança dos bens e a suces são (hierárquica) per tencem à linha masculina e a família é patripotestal (isto é. a autoridade sobre os membros da família está nas mãos do pai e dos seus parentes). Por outro lado. uma sociedade é matriarcal quando a descendência , a herança e a sucessáo per tencem à l inha feminina, o casamento é matrilocal (o marido indo viver para a casa da mulher) e quando a au toridade sobre as crianças é exercida pelos pa rentes maternos. Se esta definição dos dois termos for aceite, torna-se imediatamente óbvio que um grande número de socie dades primitivas náo são nem matriarcais nem pa triarcais. apesa r de algumas se inclinarem mais para um lado e outras para o outro. Assim, se observarmos as tr ibos da Austrália Oriental, que por vezes se consi deram matriarcais, descobrimos que o casamento é patri local , de forma que os membros da família herdam em linha pa terna: a autoridade sobre as cr ianças é exercida pelo pai e seus irmãos, os bens (que existem) são principalmente herdados em linha paterna, apesa r de náo exist ir nenhuma sucessáo em razão de não se reconhecer uma hierarquia. A única instituição matr i l inear é a descendência do grupo totémico que se faz pelo lado da mãe, de forma que estas tribos, longe de serem matriarcais, inclinam-se 39 mais para o lado patriarcal . Os parentescos sâo forte mente bilaterais, mas, na maioria dos casos, os paren tescos em linha paterna têm mais importância que o< parentescos em linha materna. Existem indícios, poi exemplo, de que a obrigação de vingança por ocorrén cia de morte per tence aos parentes paternos mais dt que aos parentes maternos. Encontra-se um exemple in teressante desta bila teralidade, se assim a podere mos chaînai', na África do Sul, na tribo Ovaherero As informações não são complctamente seguras, ma.1 pa rece que esta tr ibo está subdividida em dois gru pos de segmentos que se intercruzam. Num deles tos om aandai a descendênc ia é matri l inear, enquanto que no outro <obuzo) ela é patri l inear. Uma criança per tence aos eanda de sua mãe e herda cabeças de gado dos irmãos de sua mãe. mas pertence ao oruzo de seu pai e herda os seus espíritos ancestrais. A auto r idade sobre as crianças parece pe r tencerão pai. seus irmãos e irmãs. Parece claro, espero bem, que a distinção entre as sociedades matr ia rcais e as sociedades patriarcais não é absoluta mas sim relativa. Mesmo na sociedade mais fortemente patriarcal atribui-se alguma impor tância social aos parentescos da linha materna e da mesma forma na sociedade mais matriarcal o pai e seus parentes têm sempre alguma importância na vida de um indivíduo. No Sudeste da África temos um grupo de tribos que se inclinam for temente para o lado patriarcal. A des cendência. a herança e a sucessão dos chefes são transmitidas pela l inha paterna; o casamento é patri local e a autoridade familiar é fortemente patripotes tal. Xo Norte de África, no Quénia e países circundan tes, existe outro grupo de povos fortemente patriar cais, alguns deles falando bantu, outros nilótico e hamítieo. Entre estas duas regiões patriarcais existe uma linha de povos que se estendem, ao que parece, de um lado ao outro da África, ao nível da Niassalán- 40 (lia e da Rodésia do Norte, nos quais a tendência é para as instituições matriarcais. A descendência do grupo social, as heranças e a sucessão dos reis ou chefes fazem-se pela l inha materna. Em algumas dessas tribos o casamento parece ser matrilocal, pelo menos temporar iamente senão defínitivamente. isto ó. quando um homem casa vai viver para casa da família da sua mulher. E sobre estes povos e os seus costumes que necessi tamos urgentemente de informações, se é que deseja mos compreender as questões abordadas neste ensaio. Temos uma descrição de uma dessas tribos, que é bastante completa, no trabalho de Smith e Dale (The Ha-speaking People o f Northern Rhodesia. 1920). Infeliz- mente. no que diz respeito aos pontos que nos interes sam. as informações são escassas e seguramente muito incompletas. Há. no entanto, duas coisas que quero apontar. A pr imeira diz respeito à conduta do irmão da mãe de um homem para com o filho da sua irmã. Dizem-nos que o «irmão da mãe- é uma personagem com uma enorme importância, tendo mesmo poder de vida ou de morte sobre os seus sobrinhos e sobrinhas que mais nenhum outro parente tem. nem os próprios pais: tem de ser respei tado mais ainda do que o pró prio pai. Isto é. avunculi potestas, que nos povos Baila é mais forte ainda do que patria potestas. Quando se fala do irmão da mãe é normal utilizar-se o título honorífico que se atribui a pessoas que são altamente respeitadas- (Op. cit.. vol. i, p. 230). Este tipo de rela ção entre o irmão da mãe e o filho da irmã de um homem é, obviamente, de esperar numa sociedade for temente matriarcal . Mas. então, segundo a teoria de Junod, como se explica a transformação que se deu a par t i r deste tipo de relação para a que agora existe nos povos Bathonga? Isto traz-me a outro ponto que não será possível discuti r em pormenor, mas que tem uma relação im portante com esta polémica. Temos até agora conside 41 rado a re lação entre o filho da irmã com o irmão da mãe de um homem; mas se quisermos chegar a uma explicação definitiva, também devemos estudar o comportamento de um homem com os outros parentes maternos e com o grupo materno na sua totalidade. Nas Ilhas Amigas, a est ranha relação que existe entre o filho da irmã e o irmão da mãe de um homem existe também entre o filho da filha e o pai da sua mãe. O filho da filha deve ser respeitado pelo seu avó. O primeiro é como sc fosse um «chefe» para o segundo. Pode levar os bens e ofertas que ele faça aos deu ses durante uma cerimónia kava. O pai da mãe e o irmão da mãe de um homem são alvo dos mesmos padrões de comportamento, cuja característ ica mais impor tante é a indulgência de uns no que diz respeito ás l iberdades tomadas pelos outros. Também existem indícios deste tipo nos povos Bathongas, mas mais uma vez as informações que possuímos estão incompletas. Junod escreve que um avó é «mais indulgente com o seu neto, filho de sua filha, do que com o seu neto, filho de seu filho». (Op. cit.. p. 227.) A este respeito o hábito de se cham ar ao irmão da mãe kokicana (avó) é significativo.Aqui está uma coisa que parece ser impossível segundo a teoria de Junod. Numa sociedade forte mente matriarcal , o pai da mãe de um homem não per tence ao mesmo grupo que o seu neto e não é uma pessoa de quem se possam herdar bens ou que exerça uma qua lquer autoridade sobre esse homem. Qual q u e r explicação para as l iberdades consentidas que podem ser tomadas com o irmão da mãe não será satisfatória se não explicar também o mesmo tipo de l iberdades que existem para com o pai da mãe. que também existem na Polinésia e ao que parece em certos casos na África do Sul. A teoria de Junod náo faz isto nem poderá fazé-lo. Mas na hipótese que apresentei , a questão torna-se re la t ivamente simples. Nas sociedades primitivas. 42 existe uma forte tendência para fundir um indivíduo com o grupo a que ele ou ela pertencem. Isto implica, no que diz respeito ao parentesco, uma tendência para um extensão de um certo tipo de comportamento, que tem origem numa relação específica com um certo membro do grupo, a todos os membros desse mesmo grupo. Por isso, a tendência na tribo Bathonga seria p a ra uma genera l ização de um cer to padrão de compor tamento a parti r do padrão específico que apa rece no comportamento de um filho para com a sua mãe, a todos os membros do grupo de sua mãe (família ou linhagem). Já que é de sua mãe que um homem espera recebe r carinho e indulgência, também o e spe rará da parte das pessoas do grupo a que ela pertence, isto é, dos seus parentes maternos. Por outro lado, é aos seus pa rentes paternos que tem de obedecer e mostrar respeito. Os padrões que, portanto, aparecem no que diz respeito ao pai e à mãe generalizam-se e estendem-se aos parentes tanto de uma linha como de outra. Se tivesse tempo mostrar-vos-ia que é este o princíp io que governa as relações entre um indivíduo e os pa rentes maternos nas tribos patriarcais de África do Sul. Tenho, no entanto, de deixar esta demonst ra ção para outra ocasião. Posso apenas exemplificar esta afirmação. O costume muitas vezes erradamente denominado de compra de uma mulher é geralmente conhecido na África do Sul por lobola, e consiste, como Junod bem o mostrou, num pagamento feito para compensar a famí lia da rapariga em razão da sua perda, quando esta rapar iga abandona a sua família para se casar. Mas como nas tr ibos patriarcais de África do Sul a mulher pe r tence ao grupo do pai, este pagamento é feito a esse grupo. Ora, o que podemos observar é que em muitas tr ibos uma parte do pagamento é feita ao ir mão da mãe da rapariga. Assim, entre os Bapedis-uma cabeça de gado do rebanho lenyalo é oferecida ao i rmão da mãe da rapariga. Entre os Basothos uma parte do gado recebido pode ir para o irmão da mãe da rapariga, e chama-se neste caso ditsoa. Os nativos afirmam que o gado ditsoa recebido pelo irmão da mãe da rapariga ficam unicamente em seu poder em nome dos filhos de sua irmã. Se um dos filhos ou filhas de sua irmã adoecer, pedem-lhe que faça um sacrifício aos seus espíri tos ancestrais e nesse caso e le irá buscar um desses animais do rebanho ditsoa, para a cerimónia. Da mesma forma, quando o filho de sua irmã deseja uma rapariga para fins matrimoniais poderá dirigir-se ao irmão de sua mãe para que este o ajude a encontrar o gado necessário para o pagamento, e o tio poderá dar-lhe parte do gado ditsoa, que rece beu pelo casamento de sua irmã ou até parte o seu próprio gado. acreditando que será recompensado com o gado ditsoa que irá receber no futuro pelo casamento de alguma sobrinha sua. Penso que o tr ibu nal de recurso indígena decidiu que o pagamento do ditsoa ao irmáo da màe de uma rapariga é uma obriga ção natural e não pode ser considerado como uma obrigação legal, e eu concordo plenamente com esta decisão. Menciono este costume porque exemplifica o t ipo de interesse que o irmão da mãe de uma rapariga é suposto te r pelo filho de sua irmã. quando o ajuda e toma conta dele. Isto traz-nos de volta à questão da razão pela qual se pede ao irmáo da mãe para fazer sacrifícios quando o seu sobrinho adoece. No Sudeste de África, a veneração dos antepassados é patrilinear, isto é. um homem adora e participa em sacrifícios aos espíri tos dos seus antepassados da linha paterna. As afirmações de Junod sobre os Bathongas não estão completamente claras. A certa altura, ele afirma que cada família tem dois grupos de deuses , os que pertencem à linha paterna e os que pertencem à linha materna; têm a mesma dignidade e podem ambos ser invocados top. rir.. li. p. 349, e i. p. 256). Mas noutro lado. afirma que tem de se fazer alguma oferta aos deuses da família materna, isto por intermédio dos 44 paren tes maternos, os malume (op. cit., n, p. 367). Outras passagens confirmam esta afirmação e indicam que os espíri tos ancestrais só podem ser invocados direc tamente durante um ritual executado pelos seus descendentes da l inha masculina. Os nativos do Transkei são muito claros quando afirmam que os deuses maternos de um indivíduo, os seus antepassados matri l ineares, não o punirão nunca de forma sobrenatural , fazendo-o adoecer. (Não estou certo de que o mesmo aconteça nas tribos Sotho, mas penso que terão uma forma semelhante de comporta mento.) Por outro lado. uma mulher casada pode rece ber a protecção dos espíri tos ancestrais da sua l inha gem patri l inear , assim como os seus próprios filhos jovens enquanto estiverem perto dela. Isto porque os filhos só são incorporados na linhagem paterna quando chegam à adolescência. Assim, nos povos do Transkey, quando uma mulher casa. o pai oferece-lhe uma vaca, cham ada vaca ubulunga, escolhida entre as vacas do rebanho da sua linhagem, que ela poderá levar consigo para a sua nova casa. Já que não pode beber leite que per tence ao gado de seu marido durante os primeiros tempos de casada; poderá, pelo menos, be ber leite deste animal, que pertencia à sua linhagem. Esta vaca é um elo de ligação entre ela e a sua l inha gem. o seu gado e os seus deuses, já que o gado é um elo materia l entre os membros vivos de uma linhagem e os seus espíritos ancestrais. Assim, se ela adoecer, poderá fazer um colar de pelos arrancados da cauda da vaca e coloca-se sob a protecção dos deuses da sua linhagem. Além disso, se um dos seus filhos adoecer, também poderá fazer o mesmo colar que se julga cons ti tuir também uma protecção para o seu filho. Quando o seu filho crescer, irá receber um boi ubulunga do rebanho de seu pai e será entáo da cauda desse boi que poderá fazer um amuleto para sua protecção: da mesma forma, a filha quando casa separa-se de sua mãe e poderá receber uma vaca ubulunga de seu pai. 45 No entanto, segundo me disseram, apesar de os ante passados maternos não castigarem os seus descenden tes por meio de doenças, pode-se pedir-lhes ajuda. Assim, quando um bebé adoece, os seus pais dirigem-se ao irmão da mãe ou ao pai da mãe do bebé, se ele for vivo, e pedem-lhe que faça um sacrifício e peça aos antepassados maternos que o ajudem. Isto passa-se de q u a lq u e r forma nas tribos Sotho e um dos objectivos do gado ditsoa, que consti tui um pagamento pelo casa mento de uma rapariga ao irmão da mãe dela. é servir de objecto para esses sacrifícios se estes forem neces sários. Isto devolve-nos à extensão do princípio que adian tei, na medida em que ele está na base dos costumes relacionados com o irmão da mãe de um indivíduo. 0 padrão de comportamento em relação à mãe. que se desenvolve na família em razão da natureza do grupo familiar e da sua vida social, alarga-se. com certas modif icações adequadas , à irmã da mãe e ao irmão da mãe e depois ao grupo de parentes maternose gera lmente aos deuses maternos, que são os antepas sados do grupo da mãe. Igualmente o padrão de comportamento em relação ao pai também se estende aos irmãos e irmãs do pai e ao conjunto total do grupo do pai (ou, por outras palavras, aos membros mais velhos desse grupo, já que o princípio de idoneidade implica necessárias modificações) e finalmente aos deuses paternos. O pai e os seus famil ia res tèm de ser obedecidos e re spe i tados (até mesmo adorados, no sentido origi nal do termo), tal como os antepassados paternos. 0 pai castiga os filhos tal como o podem fazer os seus an tepassados . Por outro lado. a mãe é terna e indu lgen te com os seus filhos e os seus parentes fazem supostam ente o mesmo, assim como os esp ír i tos maternos . Um princípio muito importante que eu tentei de mons tra r noutro lugar (The Andaman Islanders, cap. V). 46 c que os valores sociais que vigoram numa sociedade primitiva são mantidos porque são expressos através dc costumes ritualísticos ou cerimoniais. O conjunto de valores que encontramos nas relações de um indi víduo com os seus parentes de ambos os lados também terão de ser expressos, consequentemente, por meio de um ritual adequado. A questão é demasiado vasta para aqui ser abordada, mas gostaria de discutir ape nas um ponto. Nos Bathongas, e também na Polinésia Ocidental (e no Fidji e em Tonga), o filho da irmã (e em Tonga também o filho da filha) tomam parte no ritual do sacrifício. Junod descreve uma cerimónia de dest ru ição da cabana de um homem morto, durante a qual os batukulu (os filhos da irmã) tém um papel importante. Matam e distribuem as vítimas do sacrifí cio e quando o padre faz a sua oração aos espíritos do homem morto são os filhos da irmã do homem que, passado algum tempo, o interrompem ou «param- a oração e lhe põem um fim. Então, no caso dos clãs Bathongas, pegam nas porções do sacrifício que foram dedicadas ao espírito do morto e fogem com elas. -roubando-as». (Op. cit.. i. p. 162.) Sugiro que isto significa uma demonstração r i tua lística da relação especial que existe entre o filho da irmã e o irmão da mãe de um indivíduo. Quando o tio é vivo os sobrinhos têm o direito de se dirigirem à sua a ldeia e comerem a sua comida. Agora que ele está morto fazem o mesmo, como parte do ritual fune rário. pela última vez. ou seja. chegam e roubam bocados de carne e cerveja que foram deixados para o morto. 0 mesmo tipo de explicação pode ser dada, penso eu. no caso do filho da irmã. no que diz respeito a sacrifícios e outros rituais, tanto nos povos Bantus, da África do Sul, como nos povos de Tonga e Fidji. Quando um homem receia o seu pai também receará e re sp e i ta rá os seus antepassados paternos, mas não re c ea rá o irmão de sua mãe e poderá comportar-se 47 de forma i r r ev e re n te com os seus an tepassado m ate rnos : exigem-lhe por tr ad ição que, em certa ocas iões , se com por te dessa forma, expressand( ass im, r i t u a l i s t i c am en te as re lações sociais qu ex is tem en t re si e os seus pa ren te s maternos, d acordo com a função gera l do ri tual tal como eu en tendo . Talvez nos a ju d e se aqui f izermos uma brev a p r e s e n t a ç ã o da h i p ó t e s e que a d i a n t e i nest ensa io , j u n ta m e n te com os pr inc íp ios que lhe sul: j aeem e a lgumas das suas mais impor tantes impli cações: 1) A carac te r ís t ica da maioria destas socie dades a que chamamos primitivas é que c o m p o r t a m e n to dos ind iv íduos está er grande pa r te governado pelos parentescos através da formação de padrões de com por tamento fixos para cada um dos tipo reconhecidos de re lações de parentesco: 2) Isto está por vezes associado a uma organi zação segm en tá r ia da sociedade, isto é. ; uma condição na qual a sociedade se dividi num certo núm ero de segmentos (linhagen ou clãs): 3) Apesar do pa ren tesco ser sempre e necessa r iamente b i la te ra l ou cognítico, a organiza cão segm entá r ia necessi ta adoptar o princí pio u n i l in ea r e é preciso escolher entre a; insti tuições p a t r i l inea res e as matri l inea res: 4) Em s o c i e d a d e s p a t r i l i n e a r e s de un certo tipo. o padrão especial de comporta mento en tre o filho da irmã e o irmão dí mãe de um homem deriva do padrão di comportamento en t re o filho e a mãe. out também é o re su l tado da vida social no seic da família, no sentido rest ri to do termo: 48 5) 0 mesmo tipo de comportamento tende a estender-se a todos os parentes maternos, isto é. a toda a família ou grupo a que pertence o irmão da mãe do homem*’: fj) Em sociedades onde existe a veneração dos an tepassados da linha paterna (como nos Bathongas e nas Ilhas Amigas), o mesmo npo de comportamento pode também estender-se aos deuses da l inha materna: 7) O tipo de comportamento especial no one or.: respei to aos pa ren tes mate rnos (vivos ou mortos) ou ao grupo materno e aos seus de.u ses e objectos sagrados, expressa-se através de costumes de ordem ritualística, sendo a função do ritual, neste caso. como também noutros, fixar e tornar definitivos certos tipos de comportamento com as suas respectivas obrigações e sentimentos que lhes são ine rentes. Para concluir, permitam-me dizer que escolhi este assunto para esta contribuição que faço por estar convencido que não tem apenas um interesse teórico mas também um interesse prático. Por exemplo, existe o problema de sabermos se o tr ibunal de recurso estará certo ou não ao decidir que o pagamento do - Esta extensão do termo irmão da mãe a todos os parentes Riaternos.existe na terminologia da tribo Bathonga. O termo malume, que é principalmente aplicado ao irmão da mãe dc um indivíduo, estende-se aos filhos deste homem, que também são malumes. Se os irmãos da minha mãe tiverem morrido, são os meus filhos que terão de fazer um sacrifício, em meu ber.efí cio. aos meus antepassados maternos. Na parte N'orte desta tribo, o termo malume deixou de ser utilizado, e o pai da mãe. o irmão da mãe e os filhos do irmão da mãe de um indivíduo- ;ào todos chamados kokicana (avô). Apesar de nos parecer absurdo chamar o filho do irmão da nossa mãe. que pode ser mais novo gado ditsoa ao irmão da mãe de uma rapariga constitui uma obrigação legal ou uma obrigação moral. Na me dida em que me é autorizado adiantar uma opinião, eu diria que esta decisão estava certa. Todas as questões re lacionadas com o pagamento motivado por casamento (lobola) têm uma importância prática considerável nos dias de hoje, não só no que diz respeito a missionários e magistrados mas também para os próprios nativos. Ora, o estudo da posição exacta em que uma pessoa se encontra em relação aos seus parentes maternos é indispensável para uma compreensão total e exacta dos costumes do lobola. Uma das pr incipais funções do lobola é fixar a posição social dos filhos de um matrimónio. Se a família fizer um pagamento adequado, então, os filhos da rapariga que se vai casar per tencerão a essa família e os seus deuses serão também os seus. Os nativos consideram que o laço mais forte é o laço que existe entre mãe e filho e. consequentemente , em razão da extensão que inevitavelmente se dá. exist irá também um laço muito forte en t re um filho e a família de sua mãe. A função do pagamento do lobola não é destru ir mas sim modifi car este laço e colocar as crianças definitivamente na família e grupo paternos, no que diz respeito não só aos assuntos sociais mas também à vida religiosa da do que nós. por meio de um termo que significa »avó-, a discussão neste ensaio irá dar-nos a possibilidade
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