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Estrutura e Função Radcliffe Intro, Cap I, IV,V, IX

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ESTRUTURA E FUÍMCÃO 
NAS SOCIEDADES 
PRIMITIVAS
A.R. RADCLIFFE-BROWN
INTRODUÇÃO
Os t r a b a lh o s que aqui publico são t raba lhos 
ocas iona is , na v e rd ad e i r a acepção da palavra; todos 
e les foram escr i tos p a ra ocasiões especiais. Têm, no 
entan to , uma cer ta un idade , por terem sido escri tos 
de i.m certo ponto de vista teórico.
O que q u e r o d iz e r com o termo teo r ia é um 
e s q u e m a de i n t e r p r e t a ç ã o que se aplica, ou que 
p enso que se p o d e ap l ica r , à com preensão dos 
fen ó m en o s de um a ce r ta categoria. Uma teo r ia 
cons is te num c o n ju n to de conceitos ana l í t icos que 
devem s e r c l a r a m e n t e def in idos em re fe rê n c ia à 
r e a l i d a d e c o n c r e t a a que devem es ta r logicamente 
l igados. P ro p o n h o -m e , assim, como in t rodução a 
e s te s d i f e r e n t e s t r a b a lh o s , de f in i r cer tos c o n ce i ­
tos que u ti l izo p a r a fins de análi se , dos fen ó m e­
nos soc ia is . Deve le m b ra r - s e que ex is te pouca 
c o n c o r d â n c i a e n t r e os antropólogos, no que diz 
r e s p e i to aos conce i tos e te rmos que uti l izam, de 
fo rma que es ta in t ro d u çã o e os t raba lhos segu in tes 
devem s e r c o n s id e r a d o s uma exposição d e f u m a 
d a d a teo r ia e não como uma teor ia n o rm a lm en te 
ace i te .
9
História e teoria
A diferença entre o estudo histórico das institui­
ções sociais e o estudo teórico das mesmas pode facil­
mente ver-se comparando a história das leis com a 
ju r i sp rudênc ia teórica. Em antropologia, no entanto, 
exist iu e existe ainda uma grande confusão, que se 
mantém através de discussões, nas quais os termos 
-his tór ia", -ciência- ou -teoria» são utilizados pelos 
in te rven ien tes com significados muito diferentes. 
Es tas confusões poderiam ser evitadas até certo 
ponto, se fossem utilizados os termos reconhecidos 
pela lógica e pela metodologia e se se fizesse uma 
dist inção entre os estudos ideográficos e nomotéticos.
\ u m estudo ideográfico, o objectivo é estabelecer 
cer tas proposições aceitáveis ou certas declarações 
específicas ou factuais. Um estudo nomotético, pelo 
contrário , tem por objectivo chegar a proposições 
gerais aceitáveis. Define-se a natureza de um estudo 
pelo tipo de conclusões que se propõe alcançar.
A História, como o termo se en tende normalmente, 
é o estudo dos arquivos e monumentos, com o fim de 
se obterem conhecimentos sobre as condições e acon­
tecimentos ocorridos no passado, incluindo as investi­
gações que se referem a um passado bastante recente. 
E óbvio que a História consiste principalmente em 
estudos ideográficos. No século passado, houve uma 
disputa , a famosa Methodenstreit, durante a qual as 
pessoas se interrogaram se os historiadores deveriam 
ou não aceitar considerações teóricas nos seus traba­
lhos ou t raba lhar apenas com generalizações Muitos 
h is toriadores consideram que os estudos nomotéticos 
não devem incluir-se nos estudos históricos e que 
devem limitar-se apenas a contar-nos o que aconteceu 
e como. Os estudos teóricos ou nomotéticos deveriam 
p e r ten ce r à sociologia. Mas existem certos autores 
que pensam que um historiador pode ou mesmo deve 
incluir as interpretações teóricas nos seus relatos
10
sobre o passado. Uma controvérsia sobre esta questão 
e sobre a re lação entre a História e a sociologia ainda 
pers iste depois de passados sessenta anos. Existem 
cer tamente traba lhos de historiadores que são váli­
dos, não apenas como relatos ideográficos do passado, 
mas também porque contém interpretações teóricas 
(nomotéticas) desses factos. O que se tornou uma t ra ­
dição nos estudos históricos do francês Fustel de Cou- 
langes e dos seus seguidores como, por exemplo, 
Gustave Glotz, i lustra bem este tipo de combinação. 
Alguns escri tores modernos referem-se a estes traba­
lhos como consti tuindo a história sociológica ou a 
sociologia histórica.
Em antropologia, isto é, no estudo dos chamados 
povos primitivos ou atrasados, o termo etnografia 
aplica-se ao que consti tui especificamente um certo 
tipo de estudo ideográfico, cujo objectivo é fornecer- 
nos relatos aceitáveis desses povos e da sua vida 
social. A etnografia diferencia-se da História no modo 
como o etnógrafo obtém os seus conhecimentos ou a 
maioria desses conhecimentos através da observação 
d irec ta ou dos contactos com os povos sobre os quais 
escreve e não. como no caso dos historiadores, a tra­
vés de arquivos escritos. A arqueologia pré-histórica, 
que é outro ramo da antropologia, é, obviamente, um 
estudo ideográfico, que tem por objectivo fornecer- 
-nos um conhecimento factual sobre o passado pré- 
-histórico.
O estudo teórico das instituições sociais ern geral é 
n o rm a lm en te chamado sociologia, mas como este 
termo é utilizado vagamente para tipos diferentes de 
trabalhos sobre a sociedade, podemos utilizar mais 
especificamente o termo de sociologia comparada ou 
teórica. Quando Fraze r deu a sua iição inaugural em 
1908, definiu a antropologia social como o ramo da 
sociologia que diz respeito às sociedades primitivas.
Algumas confusões entre antropólogos resultam do 
facto de náo se fazer a distinção entre c.vplicaçáo histó-
11
rica e compreensão teórica das instituições. Se nos in­
terrogarmos por que razão uma dada instituição existe 
numa sociedade, a resposta adequada será uma afir­
mação histórica sobre a sua origem. Para explicarmos 
por que razão os Estados Unidos da América tém uma 
consti tuição política, com um presidente, duas câma­
ras, um gabinete e um supremo tribunal, iremos 
b u s ca r refe rências à história da América do Norte. 
A isto dá-se o nome de explicação histórica, na verda­
de i ra acepção da palavra. A existência de uma insti­
tuição é explicada através de uma sequência complexa 
de acontecimentos, que formam uma cadeia causal de 
que é o resultado.
A a ce i t a b i l id a d e de uma explicação his tórica 
depende da totalidade e da segurança do arquivo histó­
rico em que se baseia. Nas sociedades primitivas, que a 
antropologia social estuda, não existem arquivos históri­
cos. Não possuímos conhecimentos sobre o desenvolvi­
mento das instituições sociais dos aborígenes australia­
nos. por exemplo. Os antropólogos, que consideram os 
seus estudos como um certo tipo de estudo histórico, 
instalam-se em conjecturas e pura imaginação e imren- 
tam expl icações -«pseudo-históricas» ou «'pseudo- 
-causais». Tém aparecido, por exemplo, inúmeros rela­
tos pseudo-históricos, nem sempre concordantes, sobre 
a origem e o desenvolvimento das instituições totémicas 
dos aborígenes australianos. Nos trabalhos do presente 
livro, que fazem alusão a certas especulações pseudo- 
-históricas. a minha opinião é que essas especulações 
não só não tém qualquer interesse como não servem 
para nada. Isto não implica, de modo algum, uma rejei­
ção da explicação histórica, muito pelo contrário.
A sociologia comparada, da qual a antropologia é 
um ramo, é aqui considerada como constituindo um 
estudo teórico ou nomotético, que tem por objectivo a 
obtenção de generalizações aceitáveis. A compreen­
são teórica de uma dada instituição é a sua in terpreta­
ção à luz de tais generalizações.
12
0 processo social
Uma pr im eira pergunta que deve ser feita, se é que 
temos a intenção de formular uma teoria sistemática 
da sociologia comparada, é a seguinte: Qual é a reali­
dade concreta, observável, fenomenológica, que esta 
teoria irá abordar? Certos antropólogos diriam que 
essa r e a l i d a d e consis te em «sociedades» que se 
concebem como sendo, de certa maneira, entidades 
reais específicas. Outros antropólogos,no entanto, 
descrevem a rea l idade que tem de ser estudada como 
consti tuindo «culturas», todas elas consideradas enti­
dades específicas. Outros ainda parecem conceber esta 
questão como dizendo respeito a ambos os tipos de 
entidades — «sociedades» e «culturas» — de tal forma 
que a sua re lação parece problemática.
A minha opinião é que a realidade concreta que o 
antropólogo social estuda, através da observação, da 
descrição, da comparação e da classificação dos fenó 
menos, não é uma entidade mas sim um processo, o 
processo da vida social. A unidade que se investiga é 
a vida social de uma certa região do mundo, durante 
um certo período. O processo em si consiste numa 
multidão imensa de acções e interacções dos seres 
humanos, agindo individualmente ou em conjunto 
com outros indivíduos ou grupos de indivíduos. Entre 
os diversos acontecimentos específicos é necessário 
descobr irem-se regularidades, de forma a que seja 
possível fazer af irmações ou descrições de certas 
características gerais da vida social de uma dada região. 
Uma afi rmação sobre essas características significati­
vas do processo da vida social constitui uma descri­
ção do que passará a chamar-se - forma de vida social». 
A minha concepção da antropologia social é a que 
considera o estudo teórico comparado das formas de 
vida social dos povos primitivos.
Uma cer ta forma de vida social de um grupo de 
seres humanos pode permanecer mais ou menos igual
13
duran te um certo tempo. Mas se esse tempo for sufi­
c ientemente longo, a própr ia forma da vida social 
modifica-se ou transforma-se. Consequentemente , 
apesa r de podermos considerar os acontecimentos da 
vida social como fazendo par te de um processo, existe, 
além de tudo isto, o processo de transformação da 
forma de vida social. Numa descrição sincrónica faze­
mos uma crónica sobre a vida social, tal como ela 
existe a um dado momento, abstraindo o mais possível 
das transformações que estão a ocorrer nas suas 
caracterís t icas diversas. Uma crónica diacrónica, por 
outro lado. é um relato dessas transformações durante 
um certo período de tempo. Em sociologia comparada 
temos de considera r de forma teórica a continuidade 
e as transformações das formas de vida social.
Cultura
Os antropólogos utilizam a palavra -cultura- com 
um grande número de significados. Tenho a impressão 
de que alguns a utilizam como equivalente daquilo a 
que chamo vida social. A sua utilização comum em 
inglês, com o significado mais ou menos de cultivo, 
refere-se a um processo que podemos definir como o 
processo através do qual uma pessoa adquire, por 
meio do contacto com outras pessoas, livros ou obras 
de arte. certos conhecimentos, dotes, ideias, crenças, 
gostos ou sentimentos. Numa certa sociedade pode­
mos descobri r certos processos de tradição cultural. 
tendo esta palavra tradição l iteralmente o significado 
de herança. A compreensão e a utilização de uma 
língua herdam-se por tradição cultural, tomada neste 
sentido. Um indivíduo inglês aprenderá, assim, por 
este processo, a en tender e a utilizar a língua inglesa, 
mas em certos estratos da sociedade poderá também 
ap ren d e r latim, grego, francês ou gaélico. Nas socie­
dades modernas complexas existem muitas tradições
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cultura is diferentes. Numa delas uma pessoa poderá 
a p re n d e r a ser médico ou cirurgião e noutra a ser 
engenheiro ou arquitecto. Nas formas mais simples de 
vida social, o número de tradições culturais reduz-se a 
dois, uma tradição para os homens e outra para as 
mulheres.
Se considerarmos a realidade social que es tuda­
mos não como uma entidade mas sim como um processo, 
então a cultura e a tradição cultural são nomes para 
certos aspectos reconhecíveis deste processo e não 
para o processo na sua totalidade. As palavras são 
manei ras convenientes de nos referirmos a certos as­
pectos da vida social humana. É através da existência 
da cultura e das tradições culturais que a vida social 
humana se diferencia muito da vida social de outras 
espécies de animais. A transmissão das formas de 
pensamento conhecidas e das formas de sentir e de 
agir consti tui o processo cultural, que é uma carac te­
ríst ica específica da vida social humana. É evidente 
que é uma parte desse processo de interacçáo entre as 
pessoas que aqui definimos como processo social, que 
consti tui a rea l idade social. A continuidade e as 
transformações das formas de vida social, que são o 
objecto de estudo da sociologia comparada, implicam 
que a continuidade das tradições culturais e as suas 
transformações sejam parte da matéria que terá de 
s e r tomada em consideração.
0 sistema social
Foi Montesquieu quem estabeleceu, no meio do 
século XVIII, as bases da sociologia comparada e, ao 
fazé-lo, formulou e utilizou o conceito que foi e poderá 
continuar a ser chamado sistema social. A sua teoria, 
que consti tui o que posteriormente Comte chamou 
«a pr imeira lei da estática social», era que numa dada 
forma de vida social existem relações de interligação
15
e de in te rdependência ou aquilo a que Comte chamava 
relações de solidariedade entre as diversas caracte­
rísticas dessa forma de vida social. A ideia de um 
sistema natura l ou fenomenológico é a de um conjunto 
de relações entre acontecimentos, tal como é o caso 
num sistema lógico como a geometria de Euclides que 
é um conjunto de relações entre proposições ou um 
sistema ético que é um conjunto de relações entre 
julgamentos éticos. Quando se fala do «sistema bancá­
rio« da Grã-Bretanha fala-se de facto de existir um 
número considerável de acções, interacções e transac- 
çôes como, por exemplo, os pagamentos por meio de 
um cheque assinado descontado num banco, que estão 
de tal forma relacionadas que consti tuem global­
mente um processo, que poderemos descrever anali ti­
camente e que exemplificará de que forma essas acções 
estão interl igadas e formam, por conseguinte, um sis­
tema. Estamos, evidentemente, perante um processo 
que consti tui uma parte complexa do processo social 
total da vida social da Grã-Bretanha.
Nos presentes ensaios faço alusão a «sistemas de 
parentesco-, A ideia é que numa sociedade podemos 
isolar conceptualmente, se não realmente, um certo 
conjunto de acções e interacções entre pessoas, que 
são determinadas pelas relações de parentesco ou de 
matrimónio, e numa dada sociedade estas estão de tal 
maneira re lacionadas entre si que poderemos des- 
crevé-las anal i t icamente e mostrar que formam um 
sistema. O significado teórico da ideia dos sistemas é 
que o nosso primeiro passo para compreendermos 
uma caracterís t ica constante de uma forma de vida 
social — como. por exemplo, a utilização de cheques 
ou o hábito que um homem tem de evitar contactos 
sociais com a mãe da sua m u lh e r— deveria ser o de 
descobri rmos o seu lugar no sistema a que pertence.
A teoria de Montesquieu, no entanto, é uma teoria 
do sistema social, segundo a qual todas as caracterís­
ticas da vida social compõe uma totalidade coerente.
1(3
Como e s tud ioso da ju r i sp ru d ê n c ia , Montesquieu 
interessava-se sobretudo pelas leis e o seu desejo era 
mostrar que as leis de uma sociedade estão relaciona­
das com a consti tuição política, com a vida económica, 
com a religião, com o clima, com a população, com os 
hábitos e costumes e também com o que ele chamava 
o espíri to geral (l’esprit général) — a que mais tarde 
outros autores deram o nome de ethos de uma sociedade. 
Uma lei teórica como esta «lei fundamental da estática 
social'* não é a mesma coisa que uma lei empírica, 
mas sim um guia para a investigação. Dá-nos razão 
para pensarmos que é possível aumentarmos a nossa 
compreensão das sociedades humanas se estudarmos 
sis tematicamenteas relações entre as diversas carac­
teríst icas da vida social.
Estática e dinâmica
Comte fez notar que em sociologia como noutras 
ciências existem dois conjuntos de problemas a que 
chamou problemas de estática e problemas de d inâ­
mica. Na estática tentam descobrir-se e definir-se as 
condições de existência ou de coexistência: na d inâ­
mica tentam descobrir-se as condições que determi­
nam as mudanças. As condições de existência das 
moléculas ou dos organismos sáo objecto de estudo da 
estática: e da mesma forma as condições de existência 
das sociedades, dos sistemas sociais ou das formas de 
vida social sáo objectos de estudo da estática social, 
enquanto os problemas da dinâmica social se relacio­
nam com as condições de mudança das formas da vida 
social.
A base de uma ciência assenta numa classificação 
sistemática. A primeira tarefa da estática social é 
ten ta r comparar as formas de vida social de modo a 
a lcançar classificações. Mas as formas de vida social 
não podem ser classificadas em espécies e géneros, da
17
mesma maneira que classificamos a vida orgânica; 
a classificação tem de ser tipológica e não específica, 
e isto implica um tipo de estudo mais complexo. Este 
estudo só é possível se estabelecermos tipologias para 
as carac te rí s t icas que aparecem em sistemas sociais 
parciais. Isto não é só uma tarefa complexa como tem 
sido negligenciada em razão da ideia de que o método 
antropológico deveria ser um método histórico.
Mas apesa r dos estudos tipológicos constituírem 
uma p a r t e im por tan te da es tá tica social, existe 
também uma outra tarefa, a de formular generaliza­
ções sobre as condições de existência dos sistemas 
sociais ou das formas de vida social. A chamada pri­
meira lei da estática social é uma generalização que 
af irma que. para que uma forma de vida social possa 
manter-se ou persistir, as suas diversas característ i­
cas devem apresenta r um certo tipo ou medida de 
consistência, mas isto apenas define o problema da 
estát ica social, que reside no estudo da natureza desta 
consistência.
O estudo da dinâmica social relaciona-se com o 
es tabelec imento de generalizações sobre as formas de 
mudança dos sistemas sociais. Um corolário à hipótese 
da relação sistemática das características da vida social 
é a hipótese, segundo a qual as transformações de 
cer tas caracter ís t icas produzirão seguramente trans­
formações noutras características.
Evolução social
A teor ia da evolução social .foi formulada por 
H erber t Spencer como parte da sua formulação geral 
da teoria da evolução. Segundo esta teoria, o desen­
volvimento da vida na terra constitui um processo 
único ao qual Spencer aplica o termo de «evolução». 
A t e o r ia da evolução (social) orgânica e super- 
-orgãnica pode reduzir-se a duas proposições funda­
is
mentais: 1) Que tanto no desenvolvimento das formas 
de vida orgânica como no desenvolvimento das formas 
de vida social humana existiu um processo de diversi­
ficação através do qual muitas formas diferentes de 
vida social se desenvolveram a parti r de um número 
muito mais pequeno de formas originais: 2) Que exis­
tiu uma tendência geral para o desenvolvimento a t ra ­
vés do qual formas mais complexas de estrutura e de 
organização (orgânica ou social) surgiram a part ir de 
formas mais simples. A aceitação da teoria da evolu­
ção necessita apenas da aceitação destas proposições, 
que nos proporcionam um esquema de interpretação 
que pode ser aplicado ao estudo da vida orgânica e 
social. Mas é preciso lembrar que alguns antropólogos 
reje itam a hipótese da evolução. Podemos aceitar, 
provisoriamente, a teoria fundamental de Spencer e 
ao mesmo tempo re je i t a r as várias especulações 
pseudo-históricas que lhe adicionou, e esta aceitação 
dá-nos alguns conceitos que nos podem ser úteis como 
instrumentos analíticos.
Adaptação
Este termo é um termo-chave da teoria da evolu­
ção. Aplica-se ou pode aplicar-se tanto ao estudo das 
formas de vida orgânica como às formas de vida so­
cial dos se res humanos. Um organismo existe e man­
tém-se vivo se conseguir adaptar-se tanto in terior 
como ex ter io rm ente ao meio ambiente. A adaptação 
in te r io r depende do ajuste dos seus diversos órgãos e 
das suas actividades. de forma que os vários proces­
sos fisiológicos consti tuam um sistema contínuo ope­
rac ional através do qual a vida desse organismo se 
mantém. A adaptação exter io r é feita em relação ao 
meio ambiente em que o organismo vive. A distinção 
en tre adaptação in terior e adaptação exterior é ape ­
nas uma dis t inção entre dois aspectos do sistema dc
adaptação, que é o mesmo para os organismos da 
mesma espécie.
No que diz respeito à vida social dos animais, 
surge outra característ ica de adaptação. A existência 
de uma colónia de abelhas depende de uma combina­
ção das actividades do trabalhador individual abelha 
na colheita do mel e do pólen, na manufactura da 
cera , na construção dos favos, na manutenção dos ovos 
e das larvas e sua alimentação, na protecção do arma­
zenamento do mel contra roubos, na ventilação da 
colmeia por meio do abanar das asas, na manutenção 
da tempera tura no Inverno agarrando-se umas às ou­
tras. Spencer utiliza o termo -cooperação» ao referir-se 
a esta característ ica da vida social. A vida social e a 
adaptação social implicam, consequentemente, o ajus­
tamento dos diversos comportamentos dos organismos 
individuais às necessidades do processo que mantém 
a vida social operacional.
Quando observamos uma forma de vida social de 
seres humanos, que constitui um sistema de adap ta ­
ção. torna-se útil distinguirmos três aspectos do sistema 
social. Existe a forma como a vida social se ajusta ao 
meio físico e poderemos, se assim o desejarmos, falar 
deste aspecto como constituindo a adaptação ecológica. 
Em segundo lugar, existem as organizações institucio­
nais através das quais se mantém uma vida social 
ordenada, de modo a que possa exist ir aquilo a que 
Spencer chama cooperação e também exista a possibi­
l idade de repr im ir os conflitos ou de os regulamentar. 
A este aspecto poderíamos dar o nome. se o dese ja r­
mos. de aspecto institucional da adaptação social. Em 
te rceiro lugar existe o processo social através do qual 
um ind iv íduo a d q u i r e hábi tos e c a rac te r í s t i c a s 
mentais que o fazem encaixar-se na vida social e lhe 
dão a possibil idade de participar nas suas activida­
des. Este aspecto poderia chamar-se o aspecto da 
adaptação cultural, se quisermos, de acordo com a 
an ter io r definição de tradição cultural como processo.
20
tação são apenas de diferentes aspectos a partir dos 
quais o sistema total de adaptação pode ser conside­
rado, para maior conveniência de análise e de compa­
ração.
A teoria da evolução social implica, consequente­
mente. que teremos de incluir no nosso esquema de 
in te rpre tação dos sistemas sociais a consideração, 
segundo qual um sistema qualquer é considerado um 
sistema de adaptação. A estabilidade do sistema e 
logo a sua continuidade durante um certo tempo de­
pendem da eficácia dessa adaptação.
A estrutura social
A teoria da evolução é apenas uma fase numa 
cadeia de desenvolvimentos através dos quais tipos 
mais complexos de est ru tura surgem a partir de tipos 
menos complexos. Incluo neste livro uma conferência 
sobre a es t ru tu ra social, que foi escrita em tempos de 
guerra e publicada sob uma forma resumida, de modo 
que não é tão clara como deveria ser Quando utiliza­
mos o termo es t ru tu ra referimo-nos a uma certa forma 
de organização ordenada de certas partes ou compo­
nentes. Uma composição musical tem uma estrutura, 
tal como uma frase. Um prédio tem uma estrutura, tal 
como uma molécula ouum animal, os componentes ou 
unidades de uma estru tura social são as pessoas e uma 
pessoa é um ser humano considerado não como um 
organismo mas como tendo uma posição numa dada 
estrutura social.
Um dos problemas teóricos fundamentais da socio­
logia é o que diz respeito à natureza da continuidade 
social. A continuidade da vida social depende da 
continuidade est ru tural , isto é. de uma certa continui­
dade na organização das pessoas umas em relação às 
outras. Nos dias de hoje. existe uma organização das
21
pessoas em nações e o facto de durante setenta anos 
eu te r pertencido à nação inglesa, apesar de ter vivido 
a maior parte da minha vida noutros países, e um 
facto da es tru tura social. Uma nação, uma tribo, um 
clã, ou uma instituição como a Academia Francesa, ou 
a Igreja Romana podem continuar a exist ir como orga­
nizações de pessoas apesar dos seus componentes, as 
unidades que as compõem mudarem de tempos a 
tempos. Existe uma continuidade de estruturas, tal 
como num corpo humano, cujos componentes são mo­
léculas. que mantêm uma continuidade de estrutura 
a p esa r das moléculas que o compõem mudarem cons­
tantemente .
Na es t ru tu ra política dos Estados Unidos tem de 
exist ir sempre um presidente: num certo momento foi 
Herber t Hoover, noutro Franklin Roosevelt, mas a 
es tru tura , como tipo de organização, mantém-se igual.
As relações sociais, cuja rede contínua constitui a 
e s t ru tu ra social, não são conjunções casuais entre 
indivíduos, mas são. isso sim, determinadas pelo pro­
cesso socia l , e q u a l q u e r re lação impl ica que o 
com por tam ento das pessoas nas suas interacções 
mútuas seja controlado por normas, regras ou padrões, 
de forma que. numa qua lquer relação no interior de 
uma estru tu ra social, uma pessoa sabe que terá de se 
comportar segundo essas normas e estará certa ao 
pensa r que o mesmo se espera das outras pessoas. As 
normas de comportamento estabelecidas numa certa 
forma de vida social dá-se o nome de instituições. 
Uma instituição é uma norma de comportamento esta­
belecida que é reconhecida por um certo grupo social 
ou c lasse ao qua l e la pertence. As inst i tu ições 
referem-se a um certo tipo ou classe de relações sociais 
ou interacções. Consequentemente, numa certa socie­
dade verificamos que existem certas regras aceites no 
que diz respeito ao comportamento que um homem 
deve te r com a sua mulher e com os seus filhos. 
A relação entre as instituições e a estrutura social
22
um lado, existe a es tru tura social — como, por exem­
plo, a família, neste c a s o — para cuja constituição as 
instituições fornecem normas; por outro, existe o grupo
— a sociedade local, neste c a so —. na qual a norma é 
e s tab e lec id a por reconhec imento geral enquanto 
norma de comportamento adequado. As instituições
— se este termo for utilizado em referência ao ordena­
mento das interacções entre pessoas, feito pela socie­
dade no que diz respeito às relações socia is— têm 
esta dupla re lação com a estrutura, grupo ou classe a 
que pertencem, e com essas relações no interior do 
sistema social ao qual as normas se aplicam. Num 
sistema social podem existir instituições que estabe­
lecem normas de comportamento para um rei. para os 
juizes no cumprimento das suas obrigações, para os 
polícias, para os pais de família e assim de seguida e 
também normas de comportamento que dizem respei ­
to a pessoas que estabelecem contactos casuais na 
vida social.
Pode fazer-se uma breve menção ao termo organiza­
ção. O conce i to re lac iona-se . obviamente , com o 
conceito e es tru tu ra social, mas é aconselhável não 
uti lizar os dois termos como sinónimos. Uma utiliza­
ção adequada não se afasta muito do seu uso comum 
na lingua inglesa, é quando se define a estrutura 
social como consti tuindo um ordenamento de pessoas 
nas suas relações insti tucionalmente controladas ou 
definidas, como no caso da relação entre rei e súbdi­
tos ou marido e mulher, e utilizar o termo organização 
quando nos referimos ao ordenamento das suas activi- 
dades. A organização de uma fábrica é o ordenamento 
das diversas actividades do director, do capataz e dos 
trabalhadores que são partes integrantes da actividade 
geral da fábrica. A est ru tura de uma casa de família 
formada pelos pais. filhos e criados está institucio­
nalmente controlada. As actividades dos vários mem­
bros que fazem parte dessa casa estarão provavel-
23
mente sujei tas a um certo ordenamento regular, e a 
organização da vida caseira pode ser diferente, neste 
sentido, nas diferentes famílias que compõem essa 
s o c ie d a d e . A es t ru tu ra de um exército moderno 
consiste, em primeiro lugar, num ordenamento em 
grupos — regimentos, divisões, corpos, etc., e em 
segundo lugar num ordenamento por patentes — gene­
rais. coronéis, majores, cabos, etc. A organização do 
exército consiste no ordenamento das suas activida- 
des em tempo de paz e em tempo de guerra. Numa 
dada organização, cada pessoa tem o que pode ser 
chamado um papel. Assim, pode dizer-se que quando 
se considera um sistema estrutural tem-se em mente 
um sistema de posições sociais, enquanto numa orga­
nização se trata de um sistema de papéis.
A função social
0 te rmo função tem um grande número de signifi­
cados d ife ren tes em diferentes contextos. Em mate ­
mática. esta palavra, tal como a introduziu Euler no 
século XVIII. diz respeito a uma expressão ou símbolo 
que pode ser escri to no papel como. por exemplo. 
■ log. X- e não tem qualquer relação com a mesma 
palavra util izada numa ciência como é o caso da fisio­
logia. Em fisiologia, o conceito de função tem uma 
importância fundamental porque nos dá a possibilidade 
de nos referirmos à relação contínua entre estrutura 
e processo de vida orgânica. Um organismo complexo 
como o corpo humano tem como estrutura um orde­
namento dos seus órgãos, tecidos e fluidos. Mesmo um 
organismo que seja composto apenas por uma só célula 
tem como estru tura um ordenamento das suas molé­
culas. Um organismo também tem uma vida e por vida 
queremos dizer um processo. O conceito de função 
orgânica de um organismo é o conceito que diz res­
peito à re lação entre a estrutura de um organismo e o
sos que têm lugar dentro de um corpo humano vivo 
dependem da sua es tru tura orgânica. É função do 
coração bombear o sangue através do corpo. A estru­
tura orgânica, enquanto est ru tura viva, depende, para 
a sua existência contínua, do processo formado por 
todos os processos vitais. Se o coração deixa de exe­
cu ta r a sua função, o processo vital termina e a estru­
tura, enquanto est ru tura viva, cessa também. Conse­
quentemente , o processo depende da estrutura e a 
cont inuidade da estrutura depende do processo.
Quando consideramos os sistemas sociais e a sua 
compreensão teórica, uma das formas de utilização do 
conceito de função é que se emprega cientificamente 
em fisiologia. Também pode ser utilizada para nos 
referirmos à relação entre a estrutura social e o pro­
cesso da vida social. É esta a utilização da palavra 
função que me parece ser útil na sociologia compa­
rada. Os três conceitos de processo, estrutura e função 
são, consequentemente , os componentes de uma só 
teoria que consiste num esquema de interpretação 
dos sistemas sociais humanos. Os três conceitos estão 
logicamente interligados, já que o conceito de «fun­
ção» se refere às relações entre o processo e a est ru­
tura. Esta teoria é um esquema que se pode aplicar ao 
estudo não apenas da continuidade das formas de 
vida social mas também aos processos de mudança 
dessas mesmas formas.
Se considerarmos uma característica da vida social, 
por exemplo, a pena para um crime, por outras pala­
vras. aaplicação por meio de algum processo organi­
zado de sanções penais a certos tipos de comporta­
mento e se nos perguntarmos qual é a sua função 
social, estaremos perante um problema fundamental 
da sociologia comparada, para o qual Durkheim foi o 
primeiro a contribuir com a sua obra Division do-Tra- 
vàil Social. Coloca-se-nos um enorme problema geral 
quando nos perguntamos qual é a função social da
25
religião. Tal como afirmo num dos trabalhos deste 
livro, o estudo deste problema necessita que sejam 
considerados certos problemas menores, tais como a 
função social da veneração dos antepassados nas 
sociedades em que ela existe. Mas nestes estudos me­
nores, se aceitarmos a teoria aqui delineada, o pro­
cesso deverá consistir na observação da relação entre 
as carac terís t icas estruturais da vida social e o pro­
cesso social correspondente, que estão ambos inseri­
dos num sistema contínuo.
0 pr imeiro trabalho desta coleetánea poderá servir 
como exemplo destas ideias teóricas. Este trabalho 
diz respei to a uma instituição através da qual o filho 
da irmã de um homem tem direito a ter um comporta­
mento privilegiado com o irmão da sua mãe. Este 
costume é conhecido nas tribos da América do Norte, 
como. por exemplo, as tribos Winnebago e outras, 
certos povos da Oceania, tais como os habitantes do 
Fidji e de Tonga e em algumas tribos de África. As 
minhas próprias observações, no que diz respeito a 
esta insti tuição, foram feitas em Tonga e no Fidji, mas 
como o meu trabalho foi apresentado a um público 
sul-africano, pareceu-me preferível mencionar um 
único exemplo sul-africano, já que uma discussão 
comparada mais alargada teria necessitado de um 
t rabalho muito mais longo. A forma usual de abordar 
esta instituição, tanto na Oceania como em África, 
seria ad ian ta r uma explicação pseudo-histórica para 
mos trar que esta instituição é uma sobrevivente de 
uma an te r io r condição de direito materno numa socie­
dade pa tr i l inear.
Um método alternativo de abordagem desta insti­
tuição ser ia a busca de uma compreensão teórica para 
esta instituição como sendo parte integrante de um 
sistema de parentescos definido, no interior do qual 
tem a sua função que iríamos descobrir . Ainda não 
possuímos uma tipologia geral sistemática dos siste­
mas de parentesco, porque a sua elaboração constitui
2G
tados parciais e provisórios de uma tentativa deste 
género, que tem por objectivo determinar os tipos de 
sistemas de parentesco, num recente trabalho publi­
cado sob a forma de introdução a um trabalho sobre 
os sistemas africanos de parentesco e matrimónio. 
Entre a grande diversidade de sistemas de parentesco, 
podemos, penso eu, reconhecer um tipo do chamado 
direito paterno e outro tipo de direito materno. Em 
ambos os tipos, a estrutura de parentescos está baseada 
em linhagens, e a ênfase é feita no que diz respeito 
às relações de linhagem. Em direito materno, a linha­
gem é matri l inear, isto é, a criança pertence à l inha­
gem da máe. Pra ticamente todas as relações ju r íd i ­
cas de um homem dizem respeito à sua linhagem 
matr i l inear e aos seus membros e. consequentemente, 
depende grandemente dos irmãos de sua mãe, que 
exercem sobre a sua pessoa a autoridade e controlo, e 
a quem deverá dirigir-se para a sua protecção e para 
herdar os seus bens. Num sistema de direito paterno, 
por outro lado. um homem depende em grande parte 
da sua linhagem pa tr i l inear e. consequentemente, do 
seu pai e dos seus irmãos, que sobre ele exercem 
autoridade e controlo, e é a eles que terá de se dirigir 
para sua protecção e para receber a herança. 0 direito 
pa terno está re p re se n ta d o pelo sistema de parna 
potestas da Roma antiga e existem sistemas que se 
aproximam mais ou menos dos tipos encontrados em 
África e noutros lugares. Temos, por exemplo, os 
Bathongas. 0 direito materno é representado pelos 
sistemas dos Nayares, de Malabar, e dos Malaios. de 
Menangkukan, e existem igualmente sistemas próxi 
mos destes noutros lugares.
0 objectivo do ensaio sobre o papel do irmão da 
mãe de um homem poderia ser contestar a explicação 
pseudo-histórica, proporcionando uma interpretação 
dessa instituição como tendo a sua função num sistema 
de parentescos que possui um dado tipo de estrutura.
27
Se voltasse a escrever o mesmo ensaio tr inta anos 
depois cer tamente que o modificaria e alongaria. Mas 
suger iram-me que o ensaio talvez tivesse algum inte­
resse histórico no que diz respeito ao desenvolvi­
mento do pensamento antropológico e, por isso, volta­
mos a publicá-lo tal como foi escrito, fazendo-lhe 
somente pequenas alterações.
O interesse que este livro poderá despertar será no 
modo como expõe uma teoria, no sentido em que a 
pa lavra teoria é aqui empregue, isto é, como esquema 
de in te rpre tação que pode ser aplicado à compreen­
são de uma certa classe de fenómenos. A teoria pode 
s e r ap re sen tada por in termédio de très conceitos 
f u n d a m e n ta i s , re lac io n ad o s en t re si, que são os 
seguintes: «processo-, «estrutura e «função». Estes 
conceitos derivam de escri tores do passado, tais como, 
Montesquieu, Comte. Spencer e Durkheim e perten­
cem, consequentemente , a uma tradição cultural que 
tem duzentos anos. Esta introdução contém uma refor­
mulação destes conceitos, na qual alguns serão utili­
zados de uma forma diferente daquela que tém em 
cer tos trabalhos anter iores que aqui publicamos de 
novo. Por exemplo, nesses anter iores trabalhos escri­
tos há mais de vinte anos. a palavra «cultura» é uti li­
zada com o significado aceite na altura, isto é. para o 
modo de vida em geral, que inclui o modo de pensar 
de um certo grupo social.
28
Capítulo I
O IRMÀO DA MÃE DE UM HOMEM 
NA ÁFRICA DO SUL1
Os povos primitivos em muitas partes do mundo 
atribuem uma grande importância à relação que existe 
entre o irmão da máe de um homem e o filho de sua 
irmã. Em alguns casos, o filho da irmã tem certos 
direitos especiais sobre os bens do irmão de sua mãe. 
A uma dada altura, era habitual considerarem-se 
estes costumes como estando relacionados com insti­
tuições matriarcais e afirmava-se que a sua presença 
em povos pa t r i l inea res podia considerar-se como 
sendo a prova de que esses povos teriam sido, em 
qua lquer a ltura do seu passado, matri lineares. Este 
ponto de vista ainda se mantém em certos antropólo­
gos e foi adotado por Junod no seu livro sobre os 
povos Bathongas da África Orienta l Portuguesa. 
Referindo-se aos costumes que dizem respeito aos
1 Um trabalho lido perante a South African Association for 
the Advancement of Science no dia 9 de Julho de 1924 e publi­
cado no South African Journal of Science, vol. xxi. pp. 542-555.
29
comportamentos do Irmão da mãe de um homem para 
com o filho de sua irmã, ele diz o seguinte: «Ora, tendo 
es tudado com um cuidado especial esta característica 
curiosa do sistema tonga, chego à conclusão de que a 
única explicação possível é que, em tempos remotos, 
esta tribo passou pelo estado matriarcal.» (Junod. The 
Life o f a South African Tribe, 1913, vol. I, p. 253.)
É sobre esta teoria que irei debruçar-me neste 
trabalho: mas o meu propósito não é repetir ou adicio­
nar mais objecções àquelas que já existem feitas por 
vários críticos nos últimos anos. Críticas puramente 
negativas não fazem avançar uma ciência. A única 
forma satisfatória de nos livrarmos de uma hipótese 
que não nos satisfaz é descobrindo uma melhor. 
Consequentemente , proponho-mo apresentar-vos uma 
h ipó te se a l t e rn a t iv a e. se o conseguir, não irei 
demonstrá-la mas sim mostrar que ela constitui uma 
explicação possível dos factos, rejeitando, assim, pelo 
menos, o ponto de vista de Junod que afirma ser o 
«únicopossível».
No que se re fe re a muitas tribos africanas, não 
tem os p r a t i c a m e n t e n e n h u m a in formação sobre 
costumes deste tipo. Não que não existam ou não 
sejam impor tan tes pa ra os próprios nativos, mas 
porque o estudo sistemático e cientifico dos nativos 
desse país começou há pouco tempo. Terei, portanto, 
de fazer r e f e r ê n c i a s o b re tu d o aos es tudos dos 
Bathongas, feitos por Junod. Estes podem ser encon­
trados no primeiro volume do trabalho supracitado 
ípp. 225 e seg. e pp. 253 e seg.). Alguns dos seus pon­
tos mais importantes podem resumir-se da seguinte 
maneira: 1 2
1) O sobr inho u te r ino , ao longo da sua c a r ­
re i ra . ê alvo dos cuidados especiais do seu 
tio:
2) Quando o sob r inho adoece, o irmão da mãe 
faz sacri f íc ios em seu nome:
30
U / V-f tJWA *»*“ V J" vv* ^ — “
com o irmão dã mãe, por exemplo, pode ir a 
casa do tio e comer a sua comida;
4) 0 sobr inho re iv indica par te dos bens do 
irmão da mãe quando este morre, e pode, por 
vezes, re ivindicar uma das suas viúvas;
5) Quando o irmão da mãe faz um sacrifício aos 
seus antepassados, o filho da irmã pode rou­
bar e comer a carne ou bebida fermentada, 
que é oferecida aos deuses.
Não devemos p a r t i r do princípio de que estes 
costumes são específicos dos Bathongas. Existem indí­
cios de que costumes semelhantes se encontram nou­
tras tr ibos africanas e sabemos da sua existência nou­
tros povos em várias partes do mundo. Na África do 
Sul. Hoern le descobriu costumes deste tipo entre os 
povos Hotentotes. O filho da irmã de um homem pode 
te r um comportamento muito livre com o irmão da 
mãe e pode ficar com um belo animal do seu rebanho 
ou com outro objecto de valor que ele possua. Pelo 
contrário, o irmão da mãe poderá ficar com um animal 
decrépito ou deformado que per tença ao rebanho do 
seu sobrinho ou com um objecto qualquer seu que 
esteja gasto ou velho.
0 que me parece part icularmente interessante é 
que, na região da Polinésia que eu melhor conheço, 
isto é, nas Ilhas Amigas (Tonga) e no Fidji, existem 
costumes que tém grandes semelhanças com os costu­
mes dos Bathongas. Neste caso, também o filho da 
irmã de um homem tem autorização para tomar mui­
tas l ibe rdades com o irmão de sua mãe, e também 
pode levar um qua lquer bem que ele possua. Lá 
também se encontra o costume, segundo o qual o tio 
executa um sacrifício e o filho da sua irmã fica com a 
porção oferecida aos deuses e poderá comê-la. Farei, 
consequentemente , referências ocasionais aos costu­
mes dos Tongas ao longo deste ensaio.
31
Estes três povos, os Bathongas, os Namas e os 
Tongas têm insti tuições patri lineares ou patriarcais, 
isto é, as cr ianças pertencem ao grupo social do pai e 
não ao grupo social da mãe, e os bens são herdados 
em linha paterna, passando normalmente de pais para 
filhos. O ponto de vista que eu apresento é o ponto de 
vista segundo o qual os costumes relacionados com o 
irmão da mãe de um homem só podem ser explicados 
partindo-se do princípio que, num dado momento, no 
passado, estes povos t inham instituições matri l inea­
res. tais como aquelas que se encontram hoje em dia 
nou t ros povos pr imitivos, nas quais as c r ianças 
pertencem ao grupo social da mãe e os bens são 
herdados em linha materna, passando de um homem 
para o seu irmão e para os filhos da sua irmã.
É e r rado supor-se que é possível compreender as 
inst i tu ições das sociedades , estudando-se isolada­
mente. sem considerar as outras instituições, que 
coexistem com elas e com as quais estão relacionadas 
e desejo cham ar a atenção para a relação que parece 
exist ir en t re os costumes relacionados com o irmão da 
mãe de um homem e os costumes relacionados com a 
irmã de seu pai. De acordo com as informações de que 
dispomos, nos casos em que o irmão da mãe é impor­
tante. também se observa que a irmã do pai é igual­
mente importante , se bem que de uma forma dife­
rente. O costume que permite ao filho da irmã de um 
homem tom ar certas l iberdades com o irmão de sua 
mãe parece ser gera lmente acompanhado por uma 
obrigação de especial respeito e obediência no que 
diz respeito à irmã do pai. Junod diz pouco sobre 
a irmã do pai de um homem nos povos Bathongas. 
Falando do comportamento de um homem para com 
es ta p a r e n t e (o seu narana), só diz o seguinte : 
-Demonstra-lhe grande respeito. No entanto, ela não 
é de modo nenhum uma mãe (m a m a n a ( O p . cir.. 
p. 223). Sobre os Hotentotes Nama temos mais dados e. 
neste caso. a irmã do pai de um homem é alvo do
32
Tonga, o costume está claramente definido. A irmã do 
pai de um homem é o parente acima de todos os 
paren tes que é preciso respei ta r e obedecer. Se ela 
lhe escolher uma esposa, terá de casar com ela sem 
poder seque r apresenta r qualquer espécie de objcc- 
cão. E assim será ao longo de toda a sua vida. A irmã 
do seu pai é sagrada para ele; a sua palavra é uma lei; 
e a maior ofensa que poderia cometer seria mostrar- 
-Ihe falta de respeito.
Consequentemente, esta relaçáo (que não se limita, 
claro está, apenas a estes très exemplos que mencio­
nei. mas parece, como já dissemos, estar generalizada), 
tem de ser considerada numa qua lquer explicação 
dos costumes que dizem respeito ao irmão da mãe de 
um homem, já que os costumes que estào relacionados 
com este costume não são. se é que não estou em erro, 
instituições independentes, mas sim parte integrante 
de um sistema; e nenhuma explicação de uma parte 
de um sistema será satisfatória se náo se enquadrar 
numa análise do sistema na sua totalidade.
Nas sociedades mais primitivas, as relações .sociais 
dos indivíduos sáo, em grande parte, governadas na 
base dos parentescos. Isto acontece em razão da 
formação de padrões de comportamentos fixos e mais 
ou menos definidos para cada um dos tipos reconheci­
dos de parentesco. Existe um padrão específico de 
•omportamento. por exemplo, para um filho em re la­
çáo a seu pai e outro para um irmáo mais novo em 
relação a um irmão mais velho. Os padrões específicos 
de comportamento variam de sociedade para sociedade, 
mas existem alguns princípios básicos ou tendências 
que aparecem em todas as sociedades ou em todas as 
sociedades de um certo tipo. Sáo estas tendências 
gerais que têm de ser descobertas e que constituem a 
tarefa específica da antropologia social.
Uma vez que se comece a fazer o rastreio dos 
parentescos até um certo limite, o número dos dife-
33
rentes tipos de parentes que é possível dist inguir é 
enorme. Esta dificuldade evita-se nas sociedades pri­
mitivas através de um sistema de classificação segundo 
o qual os parentes dos diferentes tipos são inseridos 
num número limitado de grupos. 0 principio de classi­
ficação que é normalmente adoptado nas sociedades 
primitivas é o da equivalência dos irmãos. Por outras 
palavras, se eu tiver um certo tipo de parentesco com 
um certo homem, considero que terei o mesmo tipo de 
parentesco com o seu irmão; e da mesma forma no 
caso de uma mulher e da sua irmã. Deste modo, o 
irmão do pai de um homem passa a ser considerado 
como uma espécie de pai e os seus filhos serão, conse­
quen tem ente , parentes do mesmo tipo que os seus 
irmãos. De igual modo, a irmã da mãe de um homem é 
cons iderada como outra mãe e os seus filhos serão, 
consequentemente , irmãos e irmãs. Este é o sistema 
das tr ibos Bantus, da África do Sul. e dos Hotentotes 
Nama e dos Kambemes, nas Ilhas Amigas. Através 
deste princípio, as sociedades primitivas conseguem 
chegar a padrões de comportamento definidos em 
re lação a tios. t ias e sobrinhos de cer tos tipos. 
O comportamento de um homem para com o irmão de 
seu pai tem de ser do mesmo tipo geralque o seu 
comportamento para com o seu próprio pai e terá de 
compor ta r -se com a irmã de sua mãe segundo o 
mesmo padrão de comportamento que tem com a sua 
própria mãe. Os filhos do irmão de seu pai ou da irmã 
de sua mãe terão de ser tratados mais ou menos da 
mesma forma que os seus irmãos e irmãs.
Este princípio, no entanto, não nos oferece, à pri ­
meira vista, nenhum padrão nem para o irmão da mãe 
nem para o irmão do pai. Seria possível, evidente­
mente. ele t ra ta r o primeiro como trata o pai e a 
segunda como trata a mãe, e este parece ter sido o 
caso em algumas sociedades. Uma tendência nesta 
direcção encontra-se em certas partes de Africa e em 
cer tas pa r tes da Polínésia. Mas é uma característ ica
34
dos parentescos ou não está completamente desenvol­
vido ou desapareceu parcialmente .
Onde o sistema de classificação está altamente 
desenvolvido ou elaborado surge uma outra tendên­
cia: a tendência para o desenvolvimento de padrões 
de comportamento para o irmáo da máe de um homem 
e para a irmã de seu pai, sendo o primeiro conside­
rado como uma espécie de máe-macho e a segunda 
como uma espécie de pai-fêmea. Esta tendência apa­
rece por vezes na língua. Assim, na África do Sul, o 
termo comum para o irmáo da máe é malume ou uma- 
larne, que é uma palavra composta formada a partir da 
raiz «màe»-ma e de um sufixo que significa «macho». 
Entre os Bathongas a irmã do pai de um homem 
chama-se rarana que é um termo que Junod diz signi­
ficar «pai-fémea». Em algumas línguas sul-africanas 
não existe nenhum termo específico para a irmã do 
pai de um homem: em Xosa ela é referida por um 
te rmo descritivo — udade bo baico, que quer dizer lite­
ra lmente «irmã do pai». Em zulu pode ser referida por 
um termo descritivo semelhante ou pode ser tratada 
simplesmente por ubaba, isto é. «pai», tal como os 
irmãos do pai. Xas Ilhas Amigas, o irmáo da mãe é 
tra tado por um termo especial tuasina ou pode ser 
chamado fa ’e tangata, que qu e r dizer l iteralmente 
•mãe-macho». Estas semelhanças entre a África do 
Sul e a Polinésia não podem ser consideradas aciden­
tais e, no entanto, náo existe qualquer espécie de 
ligaçáo entre as línguas polinésica e bantu e acho 
extremamente difícil de conceber que as duas regiões 
tenham adoptado o mesmo costume de chamarem ao 
irmão da mãe de um homem «máe-macho» a parti r de 
uma origem comum.
Vejamos agora se é possível deduzirmos os padrões 
de comportamento que deveriam existir no que diz 
respeito ao irmão da mãe e à irmã do pai de um 
homem numa sociedade patri l inear, baseando-nos na
35
tendênc ia ou princípio que eu sugiro existir. Para este 
fim, te remos primeiro de conhecer os padrões de 
comportamento para o seu pai e sua mãe, respectiva­
mente , e penso que será mais seguro procurar as suas 
definições nos estudos de Junod, já que as observa­
ções dele não devem te r sido influenciadas pela hipó­
tese que estou a tentar demonstrar.
A relação com o pai implica, diz ele, -respeito e 
mesmo medo. O pai, apesar de não ter muitos cuida­
dos com os seus filhos, é, no entanto, o seu instrutor, 
aque le que ralha e que castiga. Tal como os irmãos do 
pa i- . (Op. cit., p. 222). Quanto à mãe de um homem, diz 
o seguinte: -Ela é a sua verdadeira maraana e esta 
re lação é muito profunda e terna, é uma combinação 
d e respeito e amor. O amor. no entanto, é maior do 
que o respeito.- (Op. cit.. p. 224). Quanto à relação da 
mãe para com os seus filhos lê-se o seguinte: -É geral­
mente fraca com eles e é normalmente acusada pelo 
pai de lhes da r muito mimo.»
Existe um certo perigo na apresentação de fórmu­
las condensadas , mas penso que não erraremos muito 
se dissermos que. numa sociedade fortemente patr ia r­
cal como a que existe na África do Sul. o pai é aquele 
que tem de ser respeitado e obedecido e a mãe é 
aque la que dá te rnura e que é indulgente. Poderia 
mostrar-vos. se fosse necessário, que o mesmo acon­
tece nas famílias dos povos das Ilhas Amigas.
Se agora aplicarmos a estes povos, o princípio que 
sugeri existir, deduziremos que a irmã do pai de um 
homem será um tipo de parente que terá de ser obe­
decido e respeitado, enquanto por parte do irmáo da 
màe desse homem se pode espera r indulgência e car i­
nho. Mas o assunto complica-se em razão de um outro 
factor. Se considerarmos a relação de um sobrinho 
com os seus tio e tia. a questão do sexo aparece. 
Xas sociedades primitivas existe uma grande diferença 
de comportamento no que diz respeito aos homens ou 
às mulheres Arriscando mais uma fórmula, podemos
36
familiar iedade em sociedades do tipo bathonga, entre 
pessoas do mesmo sexo. Um homem deve tra ta r os 
seus parentes femininos com mais respeito que os 
seus parentes masculinos. Consequentemente, o sobri­
nho deve tra ta r a irmã de seu pai ainda com mais 
respeito que o seu própr io pai. (Igualmente, segundo o 
princípio do respeito motivado pela idade ou idonei­
dade, um homem deve tra ta r o irmão mais velho de 
seu pai com mais respeito ainda do que o seu próprio 
pai.) Pelo contrário, um homem poderá tratar o irmão 
dc sua mãe, que é do mesmo sexo que ele. com um 
grau de familiariedade que não seria possível se se 
tratasse de uma mulher, mesmo tratando-se da sua 
própr ia mãe. A influência do sexo no comportamento 
en tre parentes é mais visível nas relações entre irmão 
e irmã. Nas Ilhas Amigas e nos povos Nama, um 
homem deve te r muito respeito pela sua irmã. espe­
cialmente mais velha, e não poderá ter qualquer espé­
cie de familiar iedade com ela. O mesmo acontece, 
penso eu. com os povos Bantu, da África do Sul. Em 
muitas sociedades primitivas, a irmã do pai e as irmãs 
mais velhas de um homem são alvo do mesmo tipo 
geral de comportamento e em algumas dessas socieda­
des os dois tipos de parentes pertencem à mesma 
classe e sáo chamados pelo mesmo nome.
Deduzimos do nosso suposto princípio um certo 
padrão de comportamento parí a irmã do pai c para 
com a irmã da mãe de um certo homem. Estes padrões 
são exactamente os mesmos que encontramos nos 
Bathongas, nos Hotentotes e nos povos das Ilhas Ami­
gas. A irmã do pai de um homem é. entre todos os 
parentes, o parente que deve ser mais respeitado e 
obedecido. O irmão da mãe de um homem é. entre 
todos os parentes, aquele de quem se pode esperar 
mais indulgência e com quem é possível ter-se~um 
comportamento mais livre e é permitido tomar certas 
l iberdades . Aqui está. consequentemente, uma expli-
37
cação al ternativa «possível» para os costumes que 
dizem respeito ao irmão da mãe de um homem, e ela 
tem a vantagem, sobre a teoria de Junod, de explicar 
também os costumes relacionados com este que dizem 
respeito à irmã do pai de um homem. Isto traz-nos, no 
entanto, não ao fim mas ao princípio do nosso estudo. 
É bastante fácil inventar hipóteses. O trabalho impor­
tante e difícil começa quando as queremos demons­
trar. É impossível, com o pouco tempo de que dispo­
nho. verificar aqui esta hipótese que adiantei. Tudo o 
que posso fazer é apontar algumas linhas de estudo 
que poderão, penso eu. proporcionar essa demonst ra ­
ção.
A pr imeira coisa a fazer e a mais óbvia de todas 
e las será estudar pormenorizadamente os comporta­
mentos do filho da irmá e do irmão da mãe de um 
homem en tre si nas sociedades matriarcais. Infeliz- 
mente, não existe pra ticamente nenhuma informação 
sobre esta questão em Africa e quase nenhuma sobre 
outras partes do mundo. Além disso, existem algumas 
ideias falsas re lacionadas com a distinção entre socie­
dades matriarcais e sociedades patriarcais, que é 
necessário clarif icar antes de podermos avançar.
Em todas as sociedades, sejam elas primitivas ou 
avançadas, o parentesco é. necessariamente,bilateral. 
Um indivíduo está relacionado com certas pessoas 
através de seu pai e com outras através de sua mãe. e 
o sistema de parentescos estabelece qual será o carác­
te r das suas relações com os parentes paternos e com 
os pa rentes maternos, respectivamente. Mas a socie­
dade tem tendência para se dividir em segmentos (gru­
pos locais, linhagens, clàs. etc.) e quando o princípio 
hereditár io é aceite, como é o caso frequentemente, 
na medida em que ele constitui um meio para dete r­
m inar os membros de um segmento, então torna-se 
necessár io escolher entre a descendência materna e a 
descendência paterna. Quando uma sociedade está 
dividida em grupos segundo a regra através da qual as
38
crianças pertencem ao grupo do pai, teremos uma 
descendência patril inear, enquanto no caso de as 
crianças pertencerem sempre ao grupo da mãe te re­
mos uma descendência matrilinear.
Existe infelizmente uma grande imprecisão no que 
diz respeito à utilização dos termos matriarcal e pa­
triarcal e por isso muitos antropólogos não os empre­
gam. Se os quisermos utilizar temos primeiro de lhes 
da r definições exactas. Uma sociedade chamar-se-á 
patriarcal quando a sua descendência for patri l inear 
(isto é, as crianças pertencem ao grupo do pai): o casa­
mento é patri local (isto é, a mulher vai viver com o 
grupo local do marido), a herança dos bens e a suces­
são (hierárquica) per tencem à linha masculina e a 
família é patripotestal (isto é. a autoridade sobre os 
membros da família está nas mãos do pai e dos seus 
parentes). Por outro lado. uma sociedade é matriarcal 
quando a descendência , a herança e a sucessáo 
per tencem à l inha feminina, o casamento é matrilocal 
(o marido indo viver para a casa da mulher) e quando 
a au toridade sobre as crianças é exercida pelos pa­
rentes maternos.
Se esta definição dos dois termos for aceite, torna-se 
imediatamente óbvio que um grande número de socie­
dades primitivas náo são nem matriarcais nem pa­
triarcais. apesa r de algumas se inclinarem mais para 
um lado e outras para o outro. Assim, se observarmos 
as tr ibos da Austrália Oriental, que por vezes se consi­
deram matriarcais, descobrimos que o casamento é 
patri local , de forma que os membros da família 
herdam em linha pa terna: a autoridade sobre as 
cr ianças é exercida pelo pai e seus irmãos, os bens 
(que existem) são principalmente herdados em linha 
paterna, apesa r de náo exist ir nenhuma sucessáo em 
razão de não se reconhecer uma hierarquia. A única 
instituição matr i l inear é a descendência do grupo 
totémico que se faz pelo lado da mãe, de forma que 
estas tribos, longe de serem matriarcais, inclinam-se
39
mais para o lado patriarcal . Os parentescos sâo forte 
mente bilaterais, mas, na maioria dos casos, os paren 
tescos em linha paterna têm mais importância que o< 
parentescos em linha materna. Existem indícios, poi 
exemplo, de que a obrigação de vingança por ocorrén 
cia de morte per tence aos parentes paternos mais dt 
que aos parentes maternos. Encontra-se um exemple 
in teressante desta bila teralidade, se assim a podere­
mos chaînai', na África do Sul, na tribo Ovaherero 
As informações não são complctamente seguras, ma.1 
pa rece que esta tr ibo está subdividida em dois gru 
pos de segmentos que se intercruzam. Num deles tos 
om aandai a descendênc ia é matri l inear, enquanto 
que no outro <obuzo) ela é patri l inear. Uma criança 
per tence aos eanda de sua mãe e herda cabeças de 
gado dos irmãos de sua mãe. mas pertence ao oruzo 
de seu pai e herda os seus espíritos ancestrais. A auto­
r idade sobre as crianças parece pe r tencerão pai. seus 
irmãos e irmãs.
Parece claro, espero bem, que a distinção entre as 
sociedades matr ia rcais e as sociedades patriarcais 
não é absoluta mas sim relativa. Mesmo na sociedade 
mais fortemente patriarcal atribui-se alguma impor­
tância social aos parentescos da linha materna e da 
mesma forma na sociedade mais matriarcal o pai e 
seus parentes têm sempre alguma importância na vida 
de um indivíduo.
No Sudeste da África temos um grupo de tribos que 
se inclinam for temente para o lado patriarcal. A des­
cendência. a herança e a sucessão dos chefes são 
transmitidas pela l inha paterna; o casamento é patri­
local e a autoridade familiar é fortemente patripotes­
tal. Xo Norte de África, no Quénia e países circundan­
tes, existe outro grupo de povos fortemente patriar­
cais, alguns deles falando bantu, outros nilótico e 
hamítieo. Entre estas duas regiões patriarcais existe 
uma linha de povos que se estendem, ao que parece, 
de um lado ao outro da África, ao nível da Niassalán-
40
(lia e da Rodésia do Norte, nos quais a tendência é 
para as instituições matriarcais. A descendência do 
grupo social, as heranças e a sucessão dos reis ou 
chefes fazem-se pela l inha materna. Em algumas 
dessas tribos o casamento parece ser matrilocal, pelo 
menos temporar iamente senão defínitivamente. isto ó. 
quando um homem casa vai viver para casa da família 
da sua mulher.
E sobre estes povos e os seus costumes que necessi­
tamos urgentemente de informações, se é que deseja­
mos compreender as questões abordadas neste ensaio. 
Temos uma descrição de uma dessas tribos, que é 
bastante completa, no trabalho de Smith e Dale (The 
Ha-speaking People o f Northern Rhodesia. 1920). Infeliz- 
mente. no que diz respeito aos pontos que nos interes­
sam. as informações são escassas e seguramente muito 
incompletas. Há. no entanto, duas coisas que quero 
apontar. A pr imeira diz respeito à conduta do irmão 
da mãe de um homem para com o filho da sua irmã. 
Dizem-nos que o «irmão da mãe- é uma personagem 
com uma enorme importância, tendo mesmo poder de 
vida ou de morte sobre os seus sobrinhos e sobrinhas 
que mais nenhum outro parente tem. nem os próprios 
pais: tem de ser respei tado mais ainda do que o pró­
prio pai. Isto é. avunculi potestas, que nos povos Baila 
é mais forte ainda do que patria potestas. Quando se 
fala do irmão da mãe é normal utilizar-se o título 
honorífico que se atribui a pessoas que são altamente 
respeitadas- (Op. cit.. vol. i, p. 230). Este tipo de rela­
ção entre o irmão da mãe e o filho da irmã de um 
homem é, obviamente, de esperar numa sociedade 
for temente matriarcal . Mas. então, segundo a teoria 
de Junod, como se explica a transformação que se deu 
a par t i r deste tipo de relação para a que agora existe 
nos povos Bathonga?
Isto traz-me a outro ponto que não será possível 
discuti r em pormenor, mas que tem uma relação im­
portante com esta polémica. Temos até agora conside­
41
rado a re lação entre o filho da irmã com o irmão da 
mãe de um homem; mas se quisermos chegar a uma 
explicação definitiva, também devemos estudar o 
comportamento de um homem com os outros parentes 
maternos e com o grupo materno na sua totalidade. 
Nas Ilhas Amigas, a est ranha relação que existe entre 
o filho da irmã e o irmão da mãe de um homem existe 
também entre o filho da filha e o pai da sua mãe. 
O filho da filha deve ser respeitado pelo seu avó. 
O primeiro é como sc fosse um «chefe» para o segundo. 
Pode levar os bens e ofertas que ele faça aos deu­
ses durante uma cerimónia kava. O pai da mãe e o 
irmão da mãe de um homem são alvo dos mesmos 
padrões de comportamento, cuja característ ica mais 
impor tante é a indulgência de uns no que diz respeito 
ás l iberdades tomadas pelos outros. Também existem 
indícios deste tipo nos povos Bathongas, mas mais uma 
vez as informações que possuímos estão incompletas. 
Junod escreve que um avó é «mais indulgente com o 
seu neto, filho de sua filha, do que com o seu neto, 
filho de seu filho». (Op. cit.. p. 227.) A este respeito o 
hábito de se cham ar ao irmão da mãe kokicana (avó) é 
significativo.Aqui está uma coisa que parece ser impossível 
segundo a teoria de Junod. Numa sociedade forte­
mente matriarcal , o pai da mãe de um homem não 
per tence ao mesmo grupo que o seu neto e não é uma 
pessoa de quem se possam herdar bens ou que exerça 
uma qua lquer autoridade sobre esse homem. Qual­
q u e r explicação para as l iberdades consentidas que 
podem ser tomadas com o irmão da mãe não será 
satisfatória se não explicar também o mesmo tipo de 
l iberdades que existem para com o pai da mãe. que 
também existem na Polinésia e ao que parece em 
certos casos na África do Sul. A teoria de Junod náo 
faz isto nem poderá fazé-lo.
Mas na hipótese que apresentei , a questão torna-se 
re la t ivamente simples. Nas sociedades primitivas.
42
existe uma forte tendência para fundir um indivíduo 
com o grupo a que ele ou ela pertencem. Isto implica, 
no que diz respeito ao parentesco, uma tendência 
para um extensão de um certo tipo de comportamento, 
que tem origem numa relação específica com um certo 
membro do grupo, a todos os membros desse mesmo 
grupo. Por isso, a tendência na tribo Bathonga seria 
p a ra uma genera l ização de um cer to padrão de 
compor tamento a parti r do padrão específico que apa­
rece no comportamento de um filho para com a sua 
mãe, a todos os membros do grupo de sua mãe (família 
ou linhagem). Já que é de sua mãe que um homem 
espera recebe r carinho e indulgência, também o e spe­
rará da parte das pessoas do grupo a que ela pertence, 
isto é, dos seus parentes maternos. Por outro lado, é 
aos seus pa rentes paternos que tem de obedecer e 
mostrar respeito. Os padrões que, portanto, aparecem 
no que diz respeito ao pai e à mãe generalizam-se e 
estendem-se aos parentes tanto de uma linha como de 
outra. Se tivesse tempo mostrar-vos-ia que é este o 
princíp io que governa as relações entre um indivíduo 
e os pa rentes maternos nas tribos patriarcais de África 
do Sul. Tenho, no entanto, de deixar esta demonst ra­
ção para outra ocasião. Posso apenas exemplificar 
esta afirmação.
O costume muitas vezes erradamente denominado 
de compra de uma mulher é geralmente conhecido na 
África do Sul por lobola, e consiste, como Junod bem o 
mostrou, num pagamento feito para compensar a famí­
lia da rapariga em razão da sua perda, quando esta 
rapar iga abandona a sua família para se casar. Mas 
como nas tr ibos patriarcais de África do Sul a mulher 
pe r tence ao grupo do pai, este pagamento é feito a 
esse grupo. Ora, o que podemos observar é que em 
muitas tr ibos uma parte do pagamento é feita ao ir­
mão da mãe da rapariga. Assim, entre os Bapedis-uma 
cabeça de gado do rebanho lenyalo é oferecida ao 
i rmão da mãe da rapariga. Entre os Basothos uma
parte do gado recebido pode ir para o irmão da mãe 
da rapariga, e chama-se neste caso ditsoa. Os nativos 
afirmam que o gado ditsoa recebido pelo irmão da 
mãe da rapariga ficam unicamente em seu poder em 
nome dos filhos de sua irmã. Se um dos filhos ou 
filhas de sua irmã adoecer, pedem-lhe que faça um 
sacrifício aos seus espíri tos ancestrais e nesse caso 
e le irá buscar um desses animais do rebanho ditsoa, 
para a cerimónia. Da mesma forma, quando o filho de 
sua irmã deseja uma rapariga para fins matrimoniais 
poderá dirigir-se ao irmão de sua mãe para que este o 
ajude a encontrar o gado necessário para o pagamento, 
e o tio poderá dar-lhe parte do gado ditsoa, que rece­
beu pelo casamento de sua irmã ou até parte o seu 
próprio gado. acreditando que será recompensado 
com o gado ditsoa que irá receber no futuro pelo 
casamento de alguma sobrinha sua. Penso que o tr ibu­
nal de recurso indígena decidiu que o pagamento do 
ditsoa ao irmáo da màe de uma rapariga é uma obriga­
ção natural e não pode ser considerado como uma 
obrigação legal, e eu concordo plenamente com esta 
decisão. Menciono este costume porque exemplifica o 
t ipo de interesse que o irmão da mãe de uma rapariga 
é suposto te r pelo filho de sua irmã. quando o ajuda e 
toma conta dele. Isto traz-nos de volta à questão da 
razão pela qual se pede ao irmáo da mãe para fazer 
sacrifícios quando o seu sobrinho adoece. No Sudeste 
de África, a veneração dos antepassados é patrilinear, 
isto é. um homem adora e participa em sacrifícios aos 
espíri tos dos seus antepassados da linha paterna. As 
afirmações de Junod sobre os Bathongas não estão 
completamente claras. A certa altura, ele afirma que 
cada família tem dois grupos de deuses , os que 
pertencem à linha paterna e os que pertencem à linha 
materna; têm a mesma dignidade e podem ambos ser 
invocados top. rir.. li. p. 349, e i. p. 256). Mas noutro 
lado. afirma que tem de se fazer alguma oferta aos 
deuses da família materna, isto por intermédio dos
44
paren tes maternos, os malume (op. cit., n, p. 367). 
Outras passagens confirmam esta afirmação e indicam 
que os espíri tos ancestrais só podem ser invocados 
direc tamente durante um ritual executado pelos seus 
descendentes da l inha masculina.
Os nativos do Transkei são muito claros quando 
afirmam que os deuses maternos de um indivíduo, os 
seus antepassados matri l ineares, não o punirão nunca 
de forma sobrenatural , fazendo-o adoecer. (Não estou 
certo de que o mesmo aconteça nas tribos Sotho, mas 
penso que terão uma forma semelhante de comporta­
mento.) Por outro lado. uma mulher casada pode rece­
ber a protecção dos espíri tos ancestrais da sua l inha­
gem patri l inear , assim como os seus próprios filhos 
jovens enquanto estiverem perto dela. Isto porque os 
filhos só são incorporados na linhagem paterna quando 
chegam à adolescência. Assim, nos povos do Transkey, 
quando uma mulher casa. o pai oferece-lhe uma vaca, 
cham ada vaca ubulunga, escolhida entre as vacas 
do rebanho da sua linhagem, que ela poderá levar 
consigo para a sua nova casa. Já que não pode beber 
leite que per tence ao gado de seu marido durante os 
primeiros tempos de casada; poderá, pelo menos, be­
ber leite deste animal, que pertencia à sua linhagem. 
Esta vaca é um elo de ligação entre ela e a sua l inha­
gem. o seu gado e os seus deuses, já que o gado é um 
elo materia l entre os membros vivos de uma linhagem 
e os seus espíritos ancestrais. Assim, se ela adoecer, 
poderá fazer um colar de pelos arrancados da cauda 
da vaca e coloca-se sob a protecção dos deuses da sua 
linhagem. Além disso, se um dos seus filhos adoecer, 
também poderá fazer o mesmo colar que se julga cons­
ti tuir também uma protecção para o seu filho. Quando 
o seu filho crescer, irá receber um boi ubulunga do 
rebanho de seu pai e será entáo da cauda desse boi 
que poderá fazer um amuleto para sua protecção: da 
mesma forma, a filha quando casa separa-se de sua 
mãe e poderá receber uma vaca ubulunga de seu pai.
45
No entanto, segundo me disseram, apesar de os ante­
passados maternos não castigarem os seus descenden­
tes por meio de doenças, pode-se pedir-lhes ajuda. 
Assim, quando um bebé adoece, os seus pais dirigem-se 
ao irmão da mãe ou ao pai da mãe do bebé, se ele for 
vivo, e pedem-lhe que faça um sacrifício e peça aos 
antepassados maternos que o ajudem. Isto passa-se de 
q u a lq u e r forma nas tribos Sotho e um dos objectivos 
do gado ditsoa, que consti tui um pagamento pelo casa­
mento de uma rapariga ao irmão da mãe dela. é servir 
de objecto para esses sacrifícios se estes forem neces­
sários.
Isto devolve-nos à extensão do princípio que adian­
tei, na medida em que ele está na base dos costumes 
relacionados com o irmão da mãe de um indivíduo. 
0 padrão de comportamento em relação à mãe. que se 
desenvolve na família em razão da natureza do grupo 
familiar e da sua vida social, alarga-se. com certas 
modif icações adequadas , à irmã da mãe e ao irmão 
da mãe e depois ao grupo de parentes maternose 
gera lmente aos deuses maternos, que são os antepas­
sados do grupo da mãe. Igualmente o padrão de 
comportamento em relação ao pai também se estende 
aos irmãos e irmãs do pai e ao conjunto total do grupo 
do pai (ou, por outras palavras, aos membros mais 
velhos desse grupo, já que o princípio de idoneidade 
implica necessárias modificações) e finalmente aos 
deuses paternos.
O pai e os seus famil ia res tèm de ser obedecidos 
e re spe i tados (até mesmo adorados, no sentido origi­
nal do termo), tal como os antepassados paternos. 
0 pai castiga os filhos tal como o podem fazer os 
seus an tepassados . Por outro lado. a mãe é terna e 
indu lgen te com os seus filhos e os seus parentes 
fazem supostam ente o mesmo, assim como os esp ír i ­
tos maternos .
Um princípio muito importante que eu tentei de ­
mons tra r noutro lugar (The Andaman Islanders, cap. V).
46
c que os valores sociais que vigoram numa sociedade 
primitiva são mantidos porque são expressos através 
dc costumes ritualísticos ou cerimoniais. O conjunto 
de valores que encontramos nas relações de um indi­
víduo com os seus parentes de ambos os lados também 
terão de ser expressos, consequentemente, por meio 
de um ritual adequado. A questão é demasiado vasta 
para aqui ser abordada, mas gostaria de discutir ape­
nas um ponto. Nos Bathongas, e também na Polinésia 
Ocidental (e no Fidji e em Tonga), o filho da irmã 
(e em Tonga também o filho da filha) tomam parte no 
ritual do sacrifício. Junod descreve uma cerimónia de 
dest ru ição da cabana de um homem morto, durante a 
qual os batukulu (os filhos da irmã) tém um papel 
importante. Matam e distribuem as vítimas do sacrifí­
cio e quando o padre faz a sua oração aos espíritos do 
homem morto são os filhos da irmã do homem que, 
passado algum tempo, o interrompem ou «param- a 
oração e lhe põem um fim. Então, no caso dos clãs 
Bathongas, pegam nas porções do sacrifício que foram 
dedicadas ao espírito do morto e fogem com elas. 
-roubando-as». (Op. cit.. i. p. 162.)
Sugiro que isto significa uma demonstração r i tua ­
lística da relação especial que existe entre o filho da 
irmã e o irmão da mãe de um indivíduo. Quando o tio 
é vivo os sobrinhos têm o direito de se dirigirem à 
sua a ldeia e comerem a sua comida. Agora que ele 
está morto fazem o mesmo, como parte do ritual fune­
rário. pela última vez. ou seja. chegam e roubam 
bocados de carne e cerveja que foram deixados para 
o morto.
0 mesmo tipo de explicação pode ser dada, penso 
eu. no caso do filho da irmã. no que diz respeito a 
sacrifícios e outros rituais, tanto nos povos Bantus, 
da África do Sul, como nos povos de Tonga e Fidji. 
Quando um homem receia o seu pai também receará 
e re sp e i ta rá os seus antepassados paternos, mas não 
re c ea rá o irmão de sua mãe e poderá comportar-se
47
de forma i r r ev e re n te com os seus an tepassado 
m ate rnos : exigem-lhe por tr ad ição que, em certa 
ocas iões , se com por te dessa forma, expressand( 
ass im, r i t u a l i s t i c am en te as re lações sociais qu 
ex is tem en t re si e os seus pa ren te s maternos, d 
acordo com a função gera l do ri tual tal como eu 
en tendo .
Talvez nos a ju d e se aqui f izermos uma brev 
a p r e s e n t a ç ã o da h i p ó t e s e que a d i a n t e i nest 
ensa io , j u n ta m e n te com os pr inc íp ios que lhe sul: 
j aeem e a lgumas das suas mais impor tantes impli 
cações:
1) A carac te r ís t ica da maioria destas socie 
dades a que chamamos primitivas é que 
c o m p o r t a m e n to dos ind iv íduos está er 
grande pa r te governado pelos parentescos 
através da formação de padrões de com 
por tamento fixos para cada um dos tipo 
reconhecidos de re lações de parentesco:
2) Isto está por vezes associado a uma organi 
zação segm en tá r ia da sociedade, isto é. ; 
uma condição na qual a sociedade se dividi 
num certo núm ero de segmentos (linhagen 
ou clãs):
3) Apesar do pa ren tesco ser sempre e necessa 
r iamente b i la te ra l ou cognítico, a organiza 
cão segm entá r ia necessi ta adoptar o princí 
pio u n i l in ea r e é preciso escolher entre a; 
insti tuições p a t r i l inea res e as matri l inea 
res:
4) Em s o c i e d a d e s p a t r i l i n e a r e s de un 
certo tipo. o padrão especial de comporta 
mento en tre o filho da irmã e o irmão dí 
mãe de um homem deriva do padrão di 
comportamento en t re o filho e a mãe. out 
também é o re su l tado da vida social no seic 
da família, no sentido rest ri to do termo:
48
5) 0 mesmo tipo de comportamento tende a 
estender-se a todos os parentes maternos, isto 
é. a toda a família ou grupo a que pertence o 
irmão da mãe do homem*’: 
fj) Em sociedades onde existe a veneração dos 
an tepassados da linha paterna (como nos 
Bathongas e nas Ilhas Amigas), o mesmo npo 
de comportamento pode também estender-se 
aos deuses da l inha materna:
7) O tipo de comportamento especial no one or.: 
respei to aos pa ren tes mate rnos (vivos ou 
mortos) ou ao grupo materno e aos seus de.u 
ses e objectos sagrados, expressa-se através 
de costumes de ordem ritualística, sendo a 
função do ritual, neste caso. como também 
noutros, fixar e tornar definitivos certos tipos 
de comportamento com as suas respectivas 
obrigações e sentimentos que lhes são ine­
rentes.
Para concluir, permitam-me dizer que escolhi este 
assunto para esta contribuição que faço por estar 
convencido que não tem apenas um interesse teórico 
mas também um interesse prático. Por exemplo, existe 
o problema de sabermos se o tr ibunal de recurso 
estará certo ou não ao decidir que o pagamento do
- Esta extensão do termo irmão da mãe a todos os parentes 
Riaternos.existe na terminologia da tribo Bathonga. O termo 
malume, que é principalmente aplicado ao irmão da mãe dc 
um indivíduo, estende-se aos filhos deste homem, que também 
são malumes. Se os irmãos da minha mãe tiverem morrido, são 
os meus filhos que terão de fazer um sacrifício, em meu ber.efí 
cio. aos meus antepassados maternos. Na parte N'orte desta 
tribo, o termo malume deixou de ser utilizado, e o pai da mãe. o 
irmão da mãe e os filhos do irmão da mãe de um indivíduo- ;ào 
todos chamados kokicana (avô). Apesar de nos parecer absurdo 
chamar o filho do irmão da nossa mãe. que pode ser mais novo
gado ditsoa ao irmão da mãe de uma rapariga constitui 
uma obrigação legal ou uma obrigação moral. Na me­
dida em que me é autorizado adiantar uma opinião, 
eu diria que esta decisão estava certa.
Todas as questões re lacionadas com o pagamento 
motivado por casamento (lobola) têm uma importância 
prática considerável nos dias de hoje, não só no que 
diz respeito a missionários e magistrados mas também 
para os próprios nativos. Ora, o estudo da posição 
exacta em que uma pessoa se encontra em relação aos 
seus parentes maternos é indispensável para uma 
compreensão total e exacta dos costumes do lobola. 
Uma das pr incipais funções do lobola é fixar a posição 
social dos filhos de um matrimónio. Se a família fizer 
um pagamento adequado, então, os filhos da rapariga 
que se vai casar per tencerão a essa família e os seus 
deuses serão também os seus. Os nativos consideram 
que o laço mais forte é o laço que existe entre mãe e 
filho e. consequentemente , em razão da extensão que 
inevitavelmente se dá. exist irá também um laço muito 
forte en t re um filho e a família de sua mãe. A função 
do pagamento do lobola não é destru ir mas sim modifi­
car este laço e colocar as crianças definitivamente na 
família e grupo paternos, no que diz respeito não só 
aos assuntos sociais mas também à vida religiosa da
do que nós. por meio de um termo que significa »avó-, a 
discussão neste ensaio irá dar-nos a possibilidade

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