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Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 1 www.estetus.com.br Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 2 www.estetus.com.br Sumário INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAS PLANTAS CALMANTES .................................................. 9 INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAS PLANTAS ESTIMULANTES ........................................... 11 INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAS PLANTAS ALUCINÓGENAS .......................................... 14 MARACUJÁ (Passiflora sp) ........................................................................................... 19 MELISSA (Melissa officinalis) ....................................................................................... 28 VALERIANA (Valeriana officinalis) ................................................................................ 38 PLANTAS ESTIMULANTES ............................................................................................ 46 CAFÉ (Coffea arabica) .................................................................................................. 46 ERVA-MATE (Ilex paraguariensis) ................................................................................ 55 GUARANÁ (Paullinia cupana) ...................................................................................... 64 MACONHA (Cannabis sp) ............................................................................................ 72 AYAHUASCA ................................................................................................................ 93 REFERÊNCIA .............................................................................................................. 105 Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 3 www.estetus.com.br INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAS PLANTAS PSICOATIVAS Alguma discussão pode surgir a respeito da expressão utilizada, “plantas psicoativas”, em função de existir muita polêmica a respeito do assunto. Da mesma forma, algumas pessoas podem se sentir um tanto desconfortáveis com a expressão, uma vez que o senso comum considera, à primeira vista, as plantas psicoativas como sendo drogas de abuso e, portanto, combatidas pela legislação que regulamenta o uso de entorpecentes, o classificando como crime. Essa polêmica a respeito do termo surge em função de várias terminologias serem utilizadas em diferentes situações, sem uma análise criteriosa. Portanto, são consideradas as definições da Organização Mundial de Saúde (OMS), de forma a esclarecer - a conotação pretendida com o uso do termo “plantas psicoativas”. De acordo com a OMS, uma “droga psicoativa” possui como característica a capacidade de alterar o comportamento e os processos cognitivos; esses efeitos sobre o comportamento e a cognição são causados, portanto, por meio de alterações do funcionamento normal do sistema nervoso central. Já a definição de “droga psicotrópica”, ainda segundo a OMS, considera basicamente o mesmo conceito empregado para droga psicoativa; no entanto, inclui um elemento importante: drogas psicotrópicas, além de agirem sobre o comportamento e sobre os processos cognitivos, possuem também uma importante propriedade reforçadora, ou seja, elas causam efeitos que reforçam a continuidade do uso, o que pode levar a pessoa ao vício em função do uso repetido. Portanto, plantas psicoativas são aquelas espécies vegetais que, de alguma forma, interferem em processos relacionados à atividade mental, ao comportamento (como o controle das emoções ou a regulação do sono, por exemplo), ao humor e a processos cognitivos, como aprendizagem e memória. Muitas discussões têm sido conduzidas a respeito da terminologia mais adequada, discussões essas que se tornam acaloradas e muitas vezes não produtivas. Optou-se por utilizar a expressão “planta psicoativa”, com o sentido mencionado na primeira definição da OMS, apresentado no início deste tópico. Com o objetivo de evidenciar seus efeitos sobre o funcionamento ordinário da mente, do comportamento e de processos cognitivos, bem como de compreender os mecanismos pelos quais produz tais efeitos. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 4 www.estetus.com.br Essas plantas, que de alguma forma alteram o funcionamento da mente, fascinam os seres humanos desde os primórdios da história. Na grande maioria das culturas, em muitos pontos diferentes do globo, chegam mesmo a ser consideradas de um ponto de vista místico, com significado impregnado de crenças e superstições, dotadas de uma conotação mágica e muitas vezes utilizadas em rituais religiosos. Pode- se até mesmo falar, sem correr o risco de cair em exageros, que muitas sociedades consideradas tradicionais tiveram sua estrutura sócio-cultural construída e fortalecida sobre relações surgidas e/ou moldadas em torno do uso de determinadas espécies vegetais dotadas de propriedades psicoativas. É o que pode ser observado quando se toma como exemplo a relação existente entre os povos dos altiplanos andinos e a coca, ou entre os índios norte-americanos (com sua Igreja Nativa Americana) e o peiote, entre tantos outros exemplos. Nessas sociedades, a organização social pode ter sido influenciada pelo conhecimento que determinados indivíduos possuem sobre as plantas, em especial sobre as plantas psicoativas. Muitos são os nomes que esses indivíduos podem ter; seja considerado (a) um (a) curandeiro (a), um (a) erveiro (a), um (a) pajé ou um (a) xamã, entre outros nomes. É incontestável seu profundo e vasto conhecimento a respeito do uso e das condições associadas ao uso dessas plantas, podendo mesmo ser considerados como verdadeiros “bancos de dados” tradicionais do conhecimento associado a plantas. Como ocorre com outras categorias de plantas, o conhecimento sobre as espécies vegetais psicoativas foi sendo transmitido ao longo das gerações diretamente de um indivíduo a outro, principalmente por uma tradição oral de transmissão. Uma vez que a transmissão oral do conhecimento não deixa registros, muito pode ter sido perdido a respeito do conhecimento sobre inúmeras espécies vegetais psicoativas, bem como muito ainda pode vir a se perder. Considerando o acelerado processo de modernização em que se encontra um grande número de comunidades no mundo todo. Agricultores e caçador-coletores de algumas sociedades possuíam, e ainda possuem um papel importante no conhecimento dessas espécies vegetais; no entanto, o bruto do conhecimento sobre as plantas psicoativas, na maioria das vezes, está em indivíduos que dominam a arte da cura, do contato com o sagrado, que são considerados sábios e detentores de dons especiais. Como afirma o professor Luiz Claudio Di Stasi, importante pesquisador brasileiro na área do estudo das plantas medicinais utilizadas Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 5 www.estetus.com.br por comunidades tradicionais, o conhecimento das virtudes de espécies vegetais pode realmente ser considerado como a arte dos benzedores, dos curandeiros e dos Xamãs. A qual, por sua vez, foi herdada dos magos e feiticeiros do passado. Tal afirmação se torna ainda mais precisa quando se trata de plantas dotadas de propriedades psicoativas. Há quem se arrisque a afirmar que o uso de plantas psicoativas data de épocas específicas, remetendo ao antigo uso desses recursos vegetais. No entanto, a ancestralidade do uso dessas plantas é tão remota que torna qualquer estimativa aleatória e nos faz crer que seu uso, na verdade, tenha acompanhado toda a história humana. Achados arqueológicos sugerem que muitas espécies psicoativas já tenham sido empregadas pelos homens, e seus ancestrais, em tempos pré-históricos, e com uma distribuição geográfica de uso muito ampla. Outras evidências históricas, além dede seus principais constituintes), além de compostos terpenóides como o ácido carnósico, o ácido ursólico e o ácido oleanólico, e do fenilpropanóide ácido caféico. Muitos estudos, inclusive, já foram realizados especificamente com alguns desses compostos de forma isolada, com a finalidade de se investigar suas propriedades biológicas. Assim, por exemplo, já foi comprovada a ação do citral como um composto com propriedade anticolinesterásica fraca, bem como os efeitos antioxidantes, antiamiloidogênicos e antiapoptóticos de compostos fenólicos como o ácido rosmarínico. Embora os mecanismos de ação central da melissa ainda não estejam totalmente esclarecidos, sugere-se que os compostos ativos dos extratos de suas folhas estejam dentre os mencionados acima. Esses componentes podem ser os responsáveis inclusive, pelos efeitos observados in vitro, os quais demonstram potente atividade antioxidante e afinidade de ligação tanto com receptores muscarínicos quanto com receptores nicotínicos de tecido cortical do cérebro humano. Este mecanismo de ação, relacionado Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 34 www.estetus.com.br à função da acetilcolina cerebral, tem sido o mais frequentemente estudado quando se trata de Melissa officinalis, e facilmente se compreende o motivo: uma das doenças neurológicas mais conhecidas e frequentes atualmente, a Doença de Alzheimer, parece envolver particularmente mecanismos cerebrais que envolvem a função colinérgica. A Doença de Alzheimer, também conhecida por Mal de Alzheimer, ocorre com relativa frequência em pessoas idosas e acredita-se que seja o resultado do mau funcionamento de diferentes vias bioquímicas. Existem diferentes hipóteses para a causa deste distúrbio, embora a mais discutida atualmente seja a “hipótese colinérgica”. A acetilcolina é um neurotransmissor sintetizado a partir de dois precursores, a acetil coenzima A e a colina. Para que esses dois precursores possam dar origem à acetilcolina, é necessária a presença de uma enzima que facilita esse processo e que é chamada de acetiltransferase. Após realizar suas funções neurobiológicas, e para que não se acumule em excesso nas sinapses, a acetilcolina precisa ser degradada. E isso ocorre com a participação de uma segunda enzima, de ação oposta à primeira, e denominada acetilcolinesterase que age, por sua vez, quebrando a acetilcolina novamente em seus precursores (acetil coenzima A e colina). Portanto, quando a enzima acetilcolinesterase age de forma intensa, muita acetilcolina é degradada, diminuindo a função colinérgica cerebral. De forma contrária, quando algum composto inibe a ação da acetilcolinesterase, impedindo assim a destruição da acetilcolina, esse neurotransmissor se acumula no sistema nervoso central, aumentando a atividade colinérgica cerebral. A hipótese colinérgica da Doença de Alzheimer considera que tal distúrbio seja resultante de uma diminuição da quantidade disponível de acetilcolina em determinadas regiões cerebrais. Os principais medicamentos atualmente disponíveis para o tratamento do Alzheimer agem contrabalançando essa falta de acetilcolina, ou seja, aumentam o nível colinérgico no cérebro. E fazem isso justamente inibindo a ação da acetilcolinesterase, aquela enzima que degrada a acetilcolina e, por isso, são denominadas de drogas inibidoras da acetilcolinesterase. No entanto, e infelizmente, algumas das drogas aprovadas com tal finalidade terapêutica apresentam algum nível de hepatotoxicidade e, em função disso, tem-se dado maior importância e relevância à busca de novos compostos com ação semelhante e menor ocorrência de efeitos secundários indesejados. E, nesse aspecto, as plantas utilizadas tradicionalmente Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 35 www.estetus.com.br ocupam novamente lugar de destaque. Não é de surpreender, portanto, o fato de que um dos principais anticolinesterásicos atualmente empregados no tratamento do Alzheimer tenha sido descoberto justamente a partir de uma planta. Trata-se do alcaloide galantamina, isolado de várias espécies vegetais pertencentes à família botânica Amaryllidaceae, principalmente da espécie Galanthus nivalis. Além da hipótese colinérgica, existe também uma hipótese complementar muito aceita atualmente na tentativa de se explicar as causas da Doença de Alzheimer, hipótese essa que tem associado o distúrbio a um processo inflamatório. Peptídeos do tipo β-amilóide existentes em placas senis encontradas em cérebros de pacientes com Alzheimer têm sido associadas a processos inflamatórios nos quais espécies reativas de oxigênio são liberadas. Essas espécies reativas de oxigênio, conhecidas vulgarmente como radicais livres, podem causar danos a componentes celulares, além de atuarem como um segundo mensageiro em processos de inflamação. Assim, compostos antioxidantes, que atuariam capturando esses radicais livres, também podem ser considerados muito úteis no tratamento do Alzheimer, principalmente em seu componente mnemônico, ou seja, relativo à memória. Nesse sentido, existe um grande número de pesquisas sobre os efeitos biológicos de plantas tradicionalmente utilizadas em infusões ou em remédios caseiros para melhorar a memória. Esses estudos podem ser in vitro ou in vivo e envolvem, frequentemente, ensaios para verificar a atividade anticolinesterásica ou a atividade antioxidante dos extratos vegetais. Tais investigações são realizadas com a finalidade de encontrar novas moléculas ou grupo de moléculas que possam ser utilizadas terapeuticamente sem a toxicidade observada com os compostos quimicamente sintetizados. Para tal finalidade, portanto, a melhor estratégia de escolha para investigação do potencial terapêutico de espécies vegetais seria testar justamente aquelas indicadas pela população como capazes de melhorar a memória. E a espécie Melissa officinalis parece ser a espécie de escolha com relação a essa atividade, em função de ser indicada para melhorar a memória há centenas de anos. E muitos trabalhos já podem ser encontrados facilmente na literatura científica, atestando justamente sua propriedade anticolinesterásica, como um antioxidante natural e com propriedades antiamiloidogênicas. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 36 www.estetus.com.br Um relativo número de estudos realizados nesta década tem demonstrado a existência de um efeito benéfico do tratamento com o extrato de Melissa officinalis, indicando principalmente melhoria da função cognitiva e redução da agitação em pacientes com Doença de Alzheimer, em estágio leve a moderado. Um estudo recente, de 2006, mostra que essa planta é realmente capaz de modular o humor e a performance cognitiva, quando administrada a voluntários jovens e saudáveis. Além disso, um teste padronizado e controlado por placebo avaliou a eficácia e segurança de Melissa officinalis em 42 pacientes com Alzheimer, em estágio leve a moderado. Os indivíduos foram tratados durante 4 meses. Os resultados revelaram que os pacientes que receberam o extrato de melissa experimentaram melhora significativa na cognição após 16 semanas de tratamento. Os pesquisadores deste estudo não observaram diferenças significativas na frequência de efeitos colaterais entre o grupo que recebeu placebo e o grupo que recebeu o extrato de melissa. No entanto, a frequência de agitação foi maior no grupo que recebeu placebo, comparado ao qual recebeu o tratamento ativo, mostrando uma vantagem associada ao uso de melissa em quadros de Alzheimer, consistente com o uso tradicional que se faz dessa planta no tratamento da ansiedade. Outras investigações, também recentes, têm mostrado que tanto o extrato etanólico quanto a planta seca de Melissa officinalis possuem a propriedade de se ligar a receptores colinérgicos em testes in vitro, além de melhorar o desempenho damemória e aumentar a sensação de tranquilidade em 20 voluntários sadios, com uma dose de 1600 mg de extrato seco das folhas encapsulado. Os autores deste trabalho, também realizado em 2006, afirmam que o óleo volátil de Melissa officinalis inibiu a enzima acetilcolinesterase de maneira dose-dependente. E 65% dessa inibição foi obtida com uma quantidade de óleo essencial equivalente a 1013 mg da planta, o que é considerada uma quantidade relativamente pequena. Nesse trabalho, a melissa também apresentou uma forte atividade antioxidante, representada pela capacidade de capturar radicais livres presentes em uma solução. A melissa também é frequentemente empregada na terapêutica farmacológica em combinação com outras plantas. Como exemplo, pode-se citar a lista de drogas catalogadas pela indústria farmacêutica da Alemanha, a qual inclui 49 produtos contendo, em sua composição, Melissa officinalis. A planta que mais frequentemente Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 37 www.estetus.com.br aparece em combinação com a melissa é a valeriana, Valeriana officinalis, e essa combinação tem apresentado efeitos positivos sobre a qualidade do sono, de forma similar à dose de 0,125 mg do medicamento sintético triazolam. Outros estudos também atestam a grande validade da combinação melissa-valeriana no tratamento de distúrbios do sono, como um realizado em 1999 em que foram observadas melhorias significativas na qualidade do sono durante o tratamento de 30 dias com 600 mg diárias da combinação dos extratos de melissa e valeriana. Estudos adicionais sugerem efeitos específicos da Melissa officinalis, quando empregada sozinha, como sedativo, anti- agitação e calmante. Dentre tais estudos, inclui-se um realizado com animais experimentais em que foi observada redução da movimentação espontânea após administração tanto do óleo volátil de melissa quando dos terpenos isolados do seu extrato, além de reduções na atividade comportamental exploratória em situações aversivas, promovida pela administração do extrato hidroalcoólico de melissa. Neste último estudo, realizado em 1991, também foi observado um aumento nos parâmetros de sono induzido por pentobarbital, indicando efeitos hipnóticos significativos do extrato de melissa. O óleo volátil da melissa também tem sido frequentemente empregado em práticas de aromaterapia e, em função desta prática, diversas investigações têm sido conduzidas com o objetivo de verificar a validade ou não deste uso para fins tranquilizantes ou calmantes. Assim, um estudo clínico realizado em 2002 examinou os efeitos do óleo volátil de Melissa officinalis, empregado em aromaterapia, sobre parâmetros de agitação e qualidade de vida em 71 pacientes, os quais sofriam de algum tipo de demência grave. Os resultados deste trabalho mostraram que, após 4 semanas de tratamento, os pacientes tratados com o óleo volátil da melissa mostraram-se menos agitados, mais sociáveis e mais engajados em atividades construtivas do que aqueles que receberam placebo. Alguns resultados também indicam a ação da Melissa officinalis como um modulador do humor. Um trabalho realizado em 2003 afirma que a ingestão de doses únicas de melissa foi capaz tanto de modular o humor quanto de melhorar o desempenho cognitivo, em voluntários jovens saudáveis, de maneira dosedependente, e relaciona tais efeitos também à atividade sobre a neurotransmissão colinérgica. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 38 www.estetus.com.br VALERIANA (Valeriana officinalis) Canteiro de cultivo de Valeriana officinalis Nome científico Valeriana é o nome popular que recebem as espécies do gênero Valeriana, tais como Valeriana wallichii, Valeriana fauriei e Valeriana angustifolia. O gênero contém mais de 250 espécies atualmente descritas e pertence à família Valerianaceae. Na dependência do tipo de condições onde pode ser cultivada, cada espécie é mais utilizada em uma região geográfica. Assim, Valeriana wallichii é a espécie mais frequentemente utilizada na Índia e Valeriana angustifolia na China. No entanto, a mais conhecida em diferentes partes do mundo por suas atividades calmantes, sedativas e tranquilizantes é, sem dúvida, a espécie Valeriana officinalis. A qual será considerada neste item e que consta como a espécie oficial utilizada na Europa e nos Estados Unidos, estando presente nas farmacopeias de diversos outros países. Nomes populares Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 39 www.estetus.com.br A Valeriana officinalis não apresenta grande diversidade de nomes populares, quando comparada às outras espécies vegetais apresentadas. Dentre alguns dos nomes pelos quais a planta também pode ser conhecida, pode-se mencionar: - heliotrópio-de-jardim; - amantilla (em países de língua espanhola); - erva-de-gato. Informações botânicas A Valeriana officinalis é uma planta perene, herbácea, com pequenas e numerosas flores de coloração rósea (brancas mais raramente), que florescem após o segundo ano de idade e no período de primavera e verão. Geralmente apresenta cerca de 1 metro de altura, podendo alcançar no máximo 2 metros. Possui um caule resistente a intempéries e reto, dificilmente quebrável. Suas folhas são do tipo compostas e presentes em grande número. Desenvolve-se em lugares temperados, de onde são originárias, frescos, com solo profundo e pouco úmido (dificilmente se desenvolvem em solos com tendência à retenção de água). Seus frutos são pequenos e apresentam somente uma semente. A propagação desta planta se dá por meio do rizoma, que é também a parte empregada para uso medicinal e que costuma ser coletada para tal finalidade por volta do mês de outubro, em função da concentração de princípios ativos. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 40 www.estetus.com.br Detalhe da planta de Valeriana officinalis Histórico Acredita-se que a planta tenha recebido o nome “valeriana” como uma derivação do termo em latim “valere”, que significa bem-estar, felicidade, força e vigor, fazendo referência à finalidade do uso da planta. A espécie foi descrita por Dioscórides como um sedativo moderado. Seu uso contra estados de angústia, nervosismo, insônia, irritação e outras condições associadas já é relatado há mais de 2000 anos, uma vez que já era recomendada também por Galeno, para o tratamento de tais condições. A valeriana está presente em muitas lendas medievais, frequentemente associada a contextos místicos, ou fazendo referência às suas propriedades sedativas. Na Idade Média, acreditava-se que a realização de um ritual, realizado no último dia de lua cheia e logo após o pôr-do-sol, e o qual consistia em colher a planta e, segurando-a nas mãos, proferir um texto mágico, protegeria a pessoa contra qualquer tipo de mal físico, assegurando saúde até a próxima lua cheia. A espécie também é mencionada em muitos rituais medievais de expulsão de demônios, pois se acreditava que o mau odor de suas raízes teria a propriedade de limpar o espírito de indivíduos agitados, histéricos e que estivessem sob jugo de entidades malévolas. Tão interessante quanto, é um relato que associa a valeriana ao episódio do Flautista de Hamelin. O episódio, ocorrido em 1284, tornou-se folclórico após ser escrito pelos Irmãos Grimm e conta como um flautista conseguiu livrar uma cidade alemã, Hamelin, da infestação de ratos. Alguns relatos folclóricos alemães dizem que, além de tocar sua flauta mágica, o flautista levava em seus bolsos muitas raízes de valeriana. O mau cheiro liberado por elas teria sido capaz de atrair os ratos, os quais, sedados pela planta, acabaram afogados no mar. Embora seja um relato pitoresco e folclórico, é interessante notar como o efeito tranquilizante da espécie já fazia parte do imaginárioe do cotidiano em tempos remotos. Usos populares e efeitos popularmente relatados Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 41 www.estetus.com.br De forma inquestionável, os principais usos populares da espécie dizem respeito às suas propriedades sobre o sistema nervoso central, embora efeitos sobre outros sistemas orgânicos também sejam frequentemente mencionados. Assim, a espécie é popularmente indicada para promover o sono, combater a ansiedade e a insônia, para tratar episódios convulsivos, como sedativo, contra a irritabilidade nervosa, a fadiga e o estresse emocional, todas essas indicações em função de seus efeitos relaxantes e tranquilizantes. Além dos efeitos centrais, também é indicada para tratar distúrbios gastrointestinais, tais como espasmos e dispepsias, para tratar a hipertensão, angina, palpitações, asma brônquica, e cólicas menstruais. Dados químicos e farmacológicos Planta tradicionalmente utilizada principalmente contra a insônia, mas também como um tranquilizante moderado, a Valeriana officinalis é, atualmente, uma das espécies vegetais mais utilizadas medicinalmente em todo o mundo. O rizoma e as raízes secas desta planta têm recebido reputação considerável como um tranquilizante e para promover o sono por mais de 1 milênio, e esse conhecimento milenar foi intensamente incorporado também pela medicina atual. Estima-se que, só na Alemanha, existam mais de 400 produtos contendo valeriana em sua composição. Além disso, quase todos os fitoterápicos voltados ao tratamento de distúrbios do sono também contêm, em sua composição, extratos de valeriana. Atualmente, seu uso vem aumentando ainda mais em substituição a outras espécies vegetais, as quais são utilizadas para a mesma finalidade. Como exemplo, pode-se citar o caso da espécie Kava Kava (Piper methysticum), também tradicionalmente utilizada como hipnótico, ansiolítico, sedativo e tranquilizante. Recentemente, relatos de toxicidade hepática causados por extratos de Kava, a qual possui efeitos farmacológicos muito semelhantes aos da valeriana, fizeram com que órgãos fiscalizadores recomendassem a retirada de produtos à base de seus extratos do mercado. Dessa forma, produtos contendo extratos de valeriana passaram a substituir, no gosto popular, aqueles que apresentavam algum tipo de toxicidade. Durante as décadas de 80 e 90, com o aumento do uso de medicamentos benzodiazepínicos, a utilização da valeriana para tratar distúrbios do sono ou ansiedade Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 42 www.estetus.com.br diminuiu consideravelmente. Os benzodiazepínicos (tais como o diazepam, alprazolam, midazolam, mais conhecidos pelos nomes-fantasias Valium®, Frontal® e Dormonid®, respectivamente, entre outros compostos) são os medicamentos de escolha, na clínica, para promover o sono e tratar distúrbios de ansiedade; no entanto, são drogas que podem causar um grande número de efeitos secundários indesejados, tais como baixa tolerância, dependência, insônia paradoxal, amnésia e relaxamento muscular. Em função disso, os últimos anos vêm presenciando novamente o aumento do uso de compostos de origem vegetal para tratar a insônia, a ansiedade e demais sintomas associados ao estresse e, nesse contexto, a valeriana ocupa lugar de destaque. Inúmeros estudos vêm sendo realizados para comprovar a eficácia clínica da valeriana e, a despeito do grande número de trabalhos presentes na literatura, ainda é objeto de estudo de um considerável número de pesquisas voltadas a estabelecer a base química e farmacológica de sua atividade psicobiológica. A parte da planta empregada medicinalmente são as raízes e os rizomas, as quais contêm do ponto de vista químico, dois principais grupos de compostos: os sesquiterpenos do óleo volátil e os valepotriatos. Entre os sesquiterpenos encontrados no óleo volátil, óleo esse dotado de um odor desagradável, estão presentes a valeranona, o ácido valerênico, o ácido acetoxivalerênico, o valeranal e outros monoterpenos e sesquiterpenos. Os três últimos compostos mencionados (ácido valerênico, acetoxivalerênico e valeranal) só ocorrem na espécie Valeriana officinalis, o que permite distingui-la de outras espécies do gênero, podendo ser utilizado para sua correta identificação. O segundo grupo de compostos são os valepotriatos, principalmente diidrovaltrato, acevaltrato, isovaleroxi-hidroxivaltrato, valtrato e isovaltrato, sendo que os dois últimos representam 90% do conteúdo de valepotriatos. Por conterem uma determinada parte química comum, também podem ser chamados de compostos iridóides. Esses valepotriatos são compostos químicos muito instáveis, ou seja, degradam-se com facilidade, ocorrendo somente enquanto o material ainda está fresco ou quando o extrato é seco em temperaturas abaixo de 40o C. Se a planta não for seca e armazenada de forma adequada, ocorre a degradação dos valepotriatos, que é o que confere o cheiro desagradável característico pelo qual o extrato de valeriana é conhecido. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 43 www.estetus.com.br Além dos sesquiterpenos do óleo volátil e dos valepotriatos, outros constituintes como flavonóides, triterpenos, lignanas e alcaloides também podem estar presentes nos extratos de valeriana. Muitas pesquisas têm sido realizadas com o objetivo de determinar qual desses compostos é o responsável por sua ação sobre o sistema nervoso central, o que tem gerado certa polêmica. Durante muitos anos, seu efeito calmante foi atribuído ao óleo volátil, em função do fato de que esse tipo de atividade era associado a plantas as quais continham óleos com odores desagradáveis. No entanto, a partir do final da década de 60, com o isolamento dos valepotriatos, esses compostos passaram a ser vistos como os responsáveis pela propriedade calmante da valeriana. Até a década de 90, realmente acreditava-se que eram apenas os valepotriatos que exerciam atividade sobre o sistema nervoso central, a despeito de serem compostos instáveis e que estão presentes apenas em quantidades pequenas na maioria das preparações. Polêmicas à parte, uma coisa tem se tornado mais clara à medida que avançam as pesquisas sobre a valeriana: é muito provável que sua ação não seja devida a um ou dois compostos determinados ou classes de compostos e, sim, a uma ação sinérgica entre todos – ou a maioria – de seus compostos os quais, juntos, eliciariam a atividade depressora do sistema nervoso central. Os efeitos depressores da valeriana sobre o sistema nervoso central já foram demonstrados tanto em animais de laboratório quanto na clínica médica e, atualmente, parece haver certo nível de consenso com relação à sua ação: a maioria dos estudos científicos afirma, com base em seus resultados, que os compostos presentes na valeriana agem sobre a via de neurotransmissão GABAérgica, ou seja, atuam interferindo na quantidade do neurotransmissor GABA (ácido gamaaminobutírico) que é liberado nas fendas sinápticas. O GABA é o principal neurotransmissor inibitório do sistema nervoso central, modulando diversos sistemas funcionais. É justamente sobre o GABA, aumentando sua atividade, que agem os medicamentos benzodiazepínicos, utilizados na clínica para tratar a insônia e os sintomas da ansiedade, como já mencionado anteriormente. Sugere-se que diferentes constituintes de valeriana interajam com o sistema GABAérgico no cérebro: já foi relatada a inibição da GABA-transaminase (enzima que faz a degradação do GABA), a interação com receptores GABA/benzodiazepínicos e a interferência na recaptação e liberação do GABA nas fendas sinápticas, ecanismos Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 44 www.estetus.com.br os quais poderiam explicar, pelo menos em parte, os efeitos hipnóticos, sedativo e ansiolítico da valeriana. Existem muitos dadosexperimentais comprovando a ação hipnótica da valeriana, tanto em animais experimentais quanto em humanos. Em animais, o extrato etanólico das raízes de valeriana é capaz tanto de diminuir a latência para o início do sono induzido por pentobarbital, como de prolongar o tempo de sono. Isto quer dizer que animais tratados com o extrato de valeriana dormem mais rapidamente e durante um tempo maior. Além disso, animais sob o efeito da valeriana apresentam diminuição da locomoção espontânea, o que é um indicativo de sua atividade sedativa. Esses resultados fazem com que a valeriana seja, realmente, considerada útil como medicamento, não somente por apresentar propriedades de um hipnótico moderado, como também por produzir efeitos de melhoria da qualidade do sono Estudos sobre os efeitos da valeriana em seres humanos indicam que seus extratos são capazes de aumentar o sono de ondas lentas – característico do sono profundo –, de melhorar a qualidade do sono e de diminuir a latência para início do sono, fazendo com que os indivíduos durmam mais rapidamente. Alguns grupos de pesquisadores afirmam a existência do próprio neurotransmissor GABA nos extratos de valeriana. Caso isso seja realmente comprovado, ainda assim não é suficiente para explicar totalmente os efeitos da planta. Isso porque o GABA, quando administrado sistemicamente, não atravessa facilmente a barreira hemato-encefálica, ou seja, não chega facilmente às estruturas cerebrais. Embora não expliquem totalmente os efeitos da valeriana, outros estudos têm demonstrado a ação de seus compostos isolados sobre a neurotransmissão GABAérgica. Como exemplo, podem-se citar estudos afirmando que o ácido valerênico é capaz de inibir a degradação do GABA, contribuindo para o aumento da quantidade desse neurotransmissor na fenda sináptica. Em animais de laboratório, o ácido valerênico têm apresentado efeitos sedativos e anticonvulsivantes, muito provavelmente em função de uma ação direta sobre neurônios GABAérgicos, incluindo aumento da liberação de GABA, diminuição da recaptação ou diminuição da degradação do mesmo. Estudos com humanos reproduzem os resultados obtidos em animais de laboratório. Em voluntários saudáveis, por exemplo, doses entre 400 e 900 mg do extrato de valeriana mostraram-se capazes de diminuir a latência de sono e de melhorar Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 45 www.estetus.com.br a qualidade do mesmo, diminuindo o número de vezes em que o indivíduo acorda ao longo de uma noite. No entanto, é importante ressaltar que, na maioria dos indivíduos, esse efeito sobre o sono não é observado rapidamente. Em alguns casos, os efeitos benéficos da valeriana somente são observados após cerca de duas semanas de tratamento contínuo, ou seja, os efeitos podem não aparecer de forma aguda. Com relação aos efeitos adversos que a valeriana pode produzir, a literatura científica afirma que raramente ocorrem. Quando ocorrem, podem se manifestar na forma de alterações do funcionamento gastrointestinal, por alergia de contato, dores de cabeça, sono agitado paradoxal (que é quando ocorre o efeito oposto ao esperado, ou seja, o indivíduo apresenta ainda mais insônia) e midríase (dilatação pupilar). A título de exemplo, pode-se citar um estudo sobre os efeitos do tratamento com o extrato de valeriana, durante 14 dias, em 16 pacientes. Apenas dois efeitos adversos foram relatados: dor de cabeça e efeitos gastrointestinais. Já outro estudo, esse com 102 indivíduos, no qual foi avaliado o tempo de reação, o grau de alerta e a concentração dessas pessoas após o uso do extrato das raízes de valeriana, na dose de 600 mg, não foram observados efeitos secundários indesejados. Atualmente, não se conhece muito bem seus efeitos durante a gestação e a lactação, o que recomenda cautela no uso nessas condições. Ainda com relação aos cuidados recomendados, muitos artigos científicos afirmam que os compostos bioativos presentes na valeriana são capazes de potencializar os efeitos de drogas barbitúricas, de benzodiazepínicos ou de outros hipno-sedativos. Isso levanta a questão do cuidado que devem ter pacientes que fazem tratamento utilizando a valeriana, uma vez que seus efeitos sedativos podem potencializar os efeitos de outros compostos. Neste ponto, é relevante enfatizar que o objetivo não é, de forma alguma, recomendar ou estimular o uso de determinadas espécies vegetais, pelo contrário. Seu único objetivo é apresentar, de forma sintética, o que se encontra disponível atualmente na literatura científica a respeito dos mecanismos de ação farmacológica de diferentes espécies utilizadas tradicionalmente por diferentes comunidades. Caso haja interesse no uso medicinal de tais espécies, faz-se absolutamente necessária a recomendação e orientação médica adequada, lembrando que a automedicação faz um grande número de vítimas anualmente, o que é válido não somente no caso de medicamentos sintéticos como também no caso de medicamentos de origem vegetal. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 46 www.estetus.com.br PLANTAS ESTIMULANTES CAFÉ (Coffea arabica) Planta de Coffea arabica Nome científico O café como conhecido tradicionalmente é, na verdade, a semente de uma espécie vegetal chamada popularmente de cafeeiro. Pertencente à família botânica Rubiaceae, seu nome científico é Coffea arabica. No entanto, existem aproximadamente 100 outras espécies do gênero Coffea, entre as quais se incluem a Coffea canephora (que, junto com a Coffea arabica, responde por mais de 70% do café cultivado para fins comerciais) e a Coffea liberica, cultivada em pequena escala para os mesmos fins. Nomes populares Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 47 www.estetus.com.br A espécie Coffea arabica não possui grande variedade de nomes populares, sendo conhecida quase unanimemente, pelo menos em território brasileiro, pelo nome de café. A etnobotânica, subdivisão da etnobiologia, que estuda as diferentes interações existentes entre as plantas e o homem em comunidades consideradas tradicionais, afirma que a existência de poucos nomes populares para designar uma mesma espécie vegetal indica uma maior concordância com relação ao uso popular que é feito de tal planta. Em outras palavras, significa dizer que quando uma espécie vegetal é conhecida, em diferentes regiões geográficas, por um mesmo nome, o uso que se faz dessa planta também tende a ser o mesmo nessas regiões. E é exatamente o caso do café, o qual é utilizado para preparar a bebida consumida em função de suas propriedades aromáticas e estimulantes, em diferentes regiões do mundo. Ainda assim, no território brasileiro, a planta em si pode ser chamada tanto de café quanto de cafeeiro (ou até de “cafezeiro”, em algumas regiões), embora o termo “café” tenha sido inicialmente cunhado para designar a bebida preparada com as sementes torradas do cafeeiro. Informações botânicas O cafeeiro é uma planta arbustiva, raramente atingindo mais de 4 metros de altura. Possui folhas opostas, com ondulações nas bordas e flores brancas distribuídas ao longo dos ramos. Suas folhas possuem coloração entre verde e cinza, as quais se tornam mais verdejantes conforme ficam mais maduras. Seus frutos são ovalados, com cores diferentes conforme o estágio de desenvolvimento da planta: frutos verdes em estágio inicial de desenvolvimento, vermelhos em estágio médio e pretos quando em desenvolvimento avançado. As sementes, parte utilizada tradicionalmente, são envoltas por uma polpa adocicada e de aroma agradável. É uma espécie com preferência de cultivo em regiões de clima ameno, solos férteis e sem acúmulo de água, desenvolvendo-se melhor em lugares sombreados. Parece se desenvolver melhor em lugares em que a temperatura média esteja entre 18 e 22°C eque, mais importante, não apresentem picos de baixas temperaturas, pois é uma espécie pouco tolerante ao frio. Geralmente, não se desenvolvem bem em regiões abaixo de 500 m de altitude, pelo menos no que diz respeito à espécie Coffea arabica. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 48 www.estetus.com.br Frutos maduros de Coffea arabica Histórico A história do cafeeiro remete à província de Kaffa, nome antigo para a região que hoje é conhecida como Etiópia. Embora não existam evidências concretas que comprovem exatamente quando a planta passou a ser utilizada no preparo dessa bebida estimulante, feita com suas sementes, existem diversas lendas a respeito do início de sua utilização para tal finalidade. A mais conhecida dessas lendas conta que, há cerca de 1000 anos, um pastor de cabras de nome Kaldi observou que seus animais ficavam sempre mais agitados depois de mastigar e ingerir pequenos frutos vermelhos de uma planta muito comum naquela região. Como Kaldi não tinha tempo para se dedicar à leitura do Alcorão durante o dia, pois cuidava de suas cabras o dia todo, pensava em alguma maneira de conseguir ficar acordado durante a noite para que pudesse lê-lo. Assim, passou a observar ainda mais o comportamento das cabras e notou que, após ingerir aquelas sementes, os animais conseguiam caminhar durante muito tempo com maior facilidade e disposição. Tendo isso em mente, Kaldi resolveu mastigar algumas daquelas sementes e notou, para sua felicidade, que seu cansaço havia diminuído, sendo substituído por uma sensação de disposição, conseguindo ficar acordado por mais tempo, para que pudesse ler o Alcorão. Em suas andanças conduzindo as cabras, comentou o ocorrido com um religioso daquela região e lhe ofereceu algumas daquelas sementes, que passara a carregar consigo. O religioso, por sua vez, curioso sobre os efeitos relatados, resolveu experimentá-las também. Porém, em função de não apreciar Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 49 www.estetus.com.br o gosto amargo que elas liberavam após a mastigação, decidiu fazer uma infusão com aquelas sementes e bebê-la. Após a sua ingestão, percebeu que conseguia ficar acordado durante muito tempo, tempo esse que destinava a realizar suas orações. Embora essa seja apenas uma lenda, existem realmente indícios de que o café não só tenha sido originado como bebida na antiga região de Kaffa, como também que tenha sido cultivado em monastérios por volta da mesma época mencionada pela lenda. Já com relação à sua comercialização, os primeiros registros indicam que a mesma tenha ocorrido após o século XV, onde hoje está localizado o Iêmen. Documentos históricos afirmam que as primeiras casas de comercialização do café, já na forma de bebida, foram abertas em Meca, de onde se espalharam pelo mundo árabe. Essas casas de café, na época, eram lugares finamente decorados, onde negociantes tratavam de seus negócios enquanto ocorriam apresentações de dança e música. Posteriormente, passaram a ser combatidas em função de terem se tornado centros de discussão e de atividade política, embora tenham retornado após algum tempo. O cultivo do café, bem como seu preparo, era tratado com muito sigilo e envolto por segredos por parte dos árabes, os quais sequer permitiam que estrangeiros visitassem suas plantações. Mesmo assim, as sementes chegaram até as colônias alemãs da época, situadas em Java e na Índia, e foram os alemães os responsáveis por fazer a bebida chegar à Europa, de onde se difundiu para outras regiões do mundo conforme foram ocorrendo colonizações. Semente de café após a torrefação Dados químicos e farmacológicos Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 50 www.estetus.com.br Como o próprio nome indica, a cafeína (1,3,7-trimetilxantina) é o principal constituinte químico da bebida preparada à base das sementes de Coffea arabica. É sintetizada não somente nesse gênero, como em grande número de espécies vegetais (Paullinia cupana, o guaraná, e Ilex paraguariensis, a erva-mate). Portanto, muito do mecanismo de ação aqui mencionado também é aplicado a essas espécies, em virtude de também apresentarem a cafeína em sua composição. A cafeína é um alcaloide amplamente difundido pelo reino vegetal, tanto em plantas superiores como em plantas mais simples, como é o caso da monocotiledônea Scilla maritima, conhecida popularmente como cebola-do-mar. No entanto, a quantidade de cafeína presente entre as espécies varia enormemente. Com relação especificamente ao gênero Coffea, a quantidade de cafeína presente nas sementes pode variar entre 0,4 e 2,4% do seu peso seco. Embora existam outros componentes presentes em sua constituição química, a cafeína é a principal responsável por seus efeitos estimulantes e, em função dos inúmeros estudos disponíveis na literatura que afirmam esse fato, este item é voltado para a discussão da ação desta metilxantina sobre o sistema nervoso central. A cafeína é a substância psicoativa mais consumida no mundo. Os Estados Unidos registram um consumo médio de 200 mg/dia por pessoa, o que equivale a 2 ou 3 xícaras de café por dia. Além disso, o que contribui para que seja o psicoativo mais consumido em todo o mundo. É o fato de que também faz parte da composição de um grande número de bebidas, tais como os refrigerantes à base de cola, que também contêm quantidades apreciáveis de cafeína e que são consumidos em larga escala não somente por adultos, mas também por crianças. Os efeitos estimulantes da cafeína relacionam-se à diminuição da fadiga, melhoria da concentração e da atenção, à estimulação física, à inibição do sono decorrente do cansaço, entre outros efeitos oriundos de sua ação estimulante sobre o sistema nervoso central. Estudos clínicos indicam que a cafeína é eficaz em reduzir o tempo de reação a estímulos, além de melhorar a capacidade cognitiva em testes de laboratório. É importante mencionar, no entanto, que tais efeitos são dose- dependentes e que, após um limite máximo de consumo, o qual fica por volta de 300 mg, os efeitos benéficos são sobrepujados por reações indesejadas, tais como tremores, insônia de longo prazo, desconfortos gastrointestinais, entre outros sintomas. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 51 www.estetus.com.br A cafeína não só é ingerida por meio do café, como também é sintetizada quimicamente para utilização terapêutica. Muitos medicamentos utilizados para o tratamento de condições dolorosas apresentam cafeína em sua composição, em função de potencializar o efeito analgésico de algumas drogas, como a aspirina. Além disso, prolonga o tempo de convulsões em terapias eletroconvulsivas e também é utilizada no tratamento de enxaquecas e dores de cabeça de origens diversas, entre outros usos terapêuticos. É um composto bem absorvido pelo trato gastrointestinal e, quando ingerido, induz o esvaziamento gástrico por meio da estimulação dos nervos submucoso e mioentérico gástrico. A isso se segue a passagem direta da cafeína do estômago para a corrente sanguínea. O sistema nervoso central também é estimulado pela cafeína, por meio dos nervos autonômicos colinérgicos do trato gastrointestinal. Para compreender seu mecanismo de ação central é necessário mencionar o papel neurofisiológico desempenhado por uma substância endógena chamada adenosina. A adenosina é considerada um neuromodulador por agir modulando a liberação de diversos neurotransmissores, incluindo a acetilcolina, a dopamina, a noradrenalina, o GABA e a serotonina. A adenosina age sobre esses neurotransmissores de forma inibitória, ou seja, diminuindo sua liberação. Considerando que os receptores de adenosina se encontram preferencialmente no sistema nervoso central, torna-se fácil compreender o efeito central que desencadeia. Entre os receptoresde adenosina atualmente conhecidos, os tipos A1 e A2 são os que predominam em regiões cerebrais. Há mais de vinte anos foi proposto que os efeitos psicoestimulantes tanto da cafeína como de outras metilxantinas fossem decorrentes do antagonismo que exercem sobre a adenosina. Em outras palavras, a cafeína atua como um antagonista seletivo do receptor de adenosina; isso quer dizer que ela se liga ao mesmo sítio de ligação da adenosina, no entanto exercendo efeitos bloqueadores, não deixando que esta cumpra seu papel fisiológico, que é inibitório. A cafeína se liga, como antagonista, tanto aos receptores do tipo A1 quanto do tipo A2, embora possua uma afinidade maior para estes últimos. Acredita-se que o bloqueio desses receptores seja o principal responsável por seus efeitos estimulantes e essa hipótese foi confirmada por dados experimentais. Os quais demonstram a habilidade de outros antagonistas de receptores do tipo A2 em reproduzir os mesmos efeitos bioquímicos e comportamentais da cafeína, enquanto que antagonistas dos receptores do tipo A1 não produziram tais efeitos. Além disso, Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 52 www.estetus.com.br pesquisas científicas também afirmam que a cafeína não produz a estimulação esperada em animais experimentais, ditos knockout para os receptores A2, isto é, animais geneticamente selecionados em função de não possuírem esses receptores, indicando que seja realmente seu alvo preferencial de ação. Dados disponíveis na literatura científica também sugerem que os efeitos estimulantes observados após a ingestão de cafeína ocorrem em função do bloqueio dos receptores de adenosina influenciar a neurotransmissão de dopamina, como ocorre com outras categorias de psicoestimulantes. Essa hipótese é reforçada por dois tipos de evidências: primeiro, pelo fato de que a estimulação motora induzida pela cafeína pode ser evitada por drogas que bloqueiam receptores dopaminérgicos ou que produzam a depleção de dopamina; em segundo lugar, pela crença de que os efeitos reforçadores da cafeína sejam dependentes da dopamina, uma vez que esse neurotransmissor é crucial em casos de estabelecimento de reforço positivo. A compreensão do que é reforço positivo é necessária para compreender a questão da dependência química a diferentes compostos e, no caso da cafeína, existe certa polêmica a respeito disso. Um reforço positivo é uma situação que aumenta a probabilidade de um determinado comportamento ocorrer em função de ter causado uma sensação prazerosa. Dessa maneira, drogas psicoestimulantes que produzem dependência assim o fazem em função de serem reforçadoras, ou seja, os efeitos prazerosos produzidos reforçam a repetição do uso. Nesses casos, muitas evidências científicas afirmam que é a dopamina o neurotransmissor que regula tais processos. E, se a cafeína atua como um antagonista de receptores de adenosina - e isso interfere na quantidade de dopamina liberada - a probabilidade de que ocorra tolerância e dependência se torna muito grande. Como já foi mencionado, essa é uma questão polêmica. Embora o uso milenar do café sugira sua relativa inocuidade, uma grande quantidade de trabalhos científicos afirma que os indivíduos que fazem uso constante da cafeína podem, realmente, desenvolver tolerância ao composto e, consequentemente, apresentar sintomas de abstinência com a interrupção do uso. Esses sintomas podem incluir: dores de cabeça (sintoma mais comum), frequentemente de origem difusa, pulsante e intensamente dolorosa, que é exacerbada por exercícios; letargia; apatia; cansaço; tremores; perda do controle sobre movimentos finos, além de falta de concentração, irritabilidade e distúrbios gastrointestinais. Os dados também sugerem que a probabilidade de ocorrência de Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 53 www.estetus.com.br sintomas de abstinência à cafeína é maior entre mulheres. Podem aparecer 12 horas após a última ingestão de cafeína, ou após um período de tempo relativamente maior, na dependência da intensidade e da frequência com que o café é normalmente consumido. O Manual de Diagnóstico e de Estatística dos Distúrbios Mentais, em sua quarta edição, conhecido pela sigla DSM-IV, reconhece alguns distúrbios relacionados ao consumo de cafeína. Incluindo intoxicação cafeínica, ansiedade induzida por cafeína e distúrbios do sono, mas não reconhece, por insuficiência de dados, a cafeína como droga de abuso ou ocorrência de dependência, física ou psicológica. Nos últimos anos, diferentes grupos de pesquisa têm sugerido que a cafeína talvez possa ser empregada no tratamento da doença de Parkinson, embora os estudos ainda estejam em fase experimental. Essa hipótese partiu de trabalhos que indicam a existência de uma pronunciada associação inversa, e dose-dependente, entre o consumo de café em algumas populações europeias e norte-americanas e o risco de desenvolvimento de Parkinson. Em outras palavras, esses pesquisadores sugerem que o consumo habitual de café reduza os riscos de aparecimento da doença de Parkinson, atuando como um agente protetor. Isso faz sentido ao se considerar que, de acordo com seu mecanismo de ação, ao atuar como bloqueador dos receptores de adenosina do tipo A2, a cafeína realmente poderia melhorar déficits motores, que são justamente um dos sintomas do Parkinson. Essa hipótese tem sido reforçada por resultados obtidos com animais experimentais. Trabalhos recentemente publicados têm demonstrado que antagonistas de receptores de adenosina do tipo A2 são capazes de melhorar déficits motores em modelos animais da doença de Parkinson. Além disso, o efeito neurotóxico causado pela droga conhecida pela sigla MPTP (1-metil-4-fenil-1,2,3,6- tetrahidropiridina) sobre a depleção de dopamina em modelos animais da doença de Parkinson também se mostrou diminuída em camundongos tratados com cafeína. Com relação à sua possível toxicidade, existem diversos relatos na literatura acerca de seus efeitos tóxicos, a despeito do café ser utilizado milenarmente. Muitos desses estudos investigam os efeitos do consumo de café sobre o feto durante a gestação, em função das características físico-químicas da cafeína permitir que a mesma atravesse a barreira placentária com facilidade, podendo exercer algum tipo de efeito durante o desenvolvimento fetal. Alguns deles sugerem que o feto, quando exposto à Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 54 www.estetus.com.br cafeína, pode apresentar prejuízos de desenvolvimento neuromuscular, além de contribuir para seu mau posicionamento no útero. Estudos com animais de laboratório afirmam que a administração por via intraperitoneal de doses sub-letais de cafeína, na segunda semana de gestação de fêmeas, resulta em uma alta frequência de fetos mal formados, principalmente com má formação esquelética. Talvez isso aconteça porque a cafeína e seus metabólitos passam livremente através da placenta, e o feto pode não conseguir degradar essas substâncias, que interfeririam em seu desenvolvimento normal. Estudos adicionais afirmam, ainda, que a cafeína, na dose de 25 mg/kg e administrada por via oral à fêmeas de roedores grávidas, induz a um déficit na formação do tubo neural contribuindo para a mortalidade pós-natal. Também existem evidências dos embriões, além de atrasar o desenvolvimento do coração, olhos e patas, o que do acúmulo de cafeína e seus metabólitos no tecido cerebral de fetos de animais experimentais. No entanto, é importante ressaltar que esses efeitos tóxicos, embora bastante descritos em animais de laboratório, não se encontram muito bem documentados em humanos. De qualquer forma, sugere-se cautela na ingestão de café durante a gestação, recomendando-se que a gestante reduza as doses consumidas diariamente. Adicionalmente, a cafeína pode provocar o aumento da quantidade decálcio intracelular, quando presente em doses muito elevadas na circulação sanguínea, o que pode levar à ocorrência de tremores involuntários e hiperestimulação da função cardiovascular, com aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial. O excesso de cafeína no sangue pode levar também à intoxicação cafeínica, cujos sintomas mais comuns são tonturas, perda do equilíbrio, náuseas ou vômitos, diarreias, câimbras, cansaço e irritabilidade. A dose letal para um adulto saudável de peso médio é relativamente alta e, quando medida na forma de xícaras, fica em torno de 70 a 100 xícaras de café, uma quantidade muito acima do que normalmente é consumida. Apenas a título de curiosidade, é interessante mencionar que, embora produza efeitos estimulantes no organismo, inclusive melhorando o desempenho físico, o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) atualmente não lista a cafeína como substância proibida em exames antidoping. Ainda, muitas pessoas procuram evitar a ingestão de cafeína evitando o consumo de café; no entanto, é necessário lembrar que também está presente em grande número de bebidas, tais como o chá-preto, o chá-verde, Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 55 www.estetus.com.br refrigerantes à base de cola, entre outras. Algumas espécies vegetais podem apresentar, inclusive, quantidades de cafeína maiores do que as contidas em Coffea arabica, como é o caso do guaraná. ERVA-MATE (Ilex paraguariensis) Ilex paraguariensis Nome científico “Erva-mate” é um dos nomes populares mais frequentes da espécie Ilex paraguariensis, pertencente à família botânica Aquifoliaceae, família que possui cerca de 400 espécies. Em função de semelhanças morfológicas e entre suas propriedades, Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 56 www.estetus.com.br outras espécies do gênero também podem ser chamadas de ervamate, como é o caso de Ilex mate, Ilex sorbilis, Ilex theezans e Ilex domestica. Nomes populares A erva-mate também recebe outros nomes populares, na dependência da região geográfica e da população ali residente. Além disso, a forma de processamento da erva- mate antes de chegar ao consumidor final, bem como a forma de preparo, também interfere no nome que recebe. Assim, pode ser encontrada com as seguintes designações, entre outras menos frequentes: - Mate (preferencialmente a forma utilizada para o preparo do “chimarrão”); - Chá-mate (nome que recebe a erva-mate comercializada na forma de sachês, para o preparo do chá); - Erva-verdadeira; - Erveira; - Congonha; - Verba mate (em países de língua espanhola da América Latina); - Tereré; - Chimarrão; - Mate Tea (em países de língua inglesa). Informações botânicas É uma espécie arbórea endêmica das regiões situadas mais ao sul da América Latina, principalmente no sul do Brasil (onde desempenha um papel social e econômico extremamente importante), na Argentina, no Paraguai e no Uruguai. É uma árvore dióica, perene e que, em alguns casos, pode atingir mais de 10 metros de altura, mas com altura média entre 4 e 8 metros. Produz flores e frutos; floresce de outubro a novembro e frutifica de março a junho. Necessita de um regime severo de chuvas anuais, as quais não devem ser menores do que 1200 mm, bem distribuídas ao longo do ano. No entanto, não é tão vulnerável a variações de temperatura, podendo resistir a Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 57 www.estetus.com.br temperaturas de até -6°C, embora se desenvolva melhor em locais que apresentem média anual de temperatura entre 21 e 22°C. Resiste até mesmo a nevascas, que são frequentes em algumas regiões montanhosas em que se desenvolve. Seu caule possui tonalidade acinzentada e o tamanho relativamente pequeno, com diâmetro de aproximadamente 30 cm. Suas folhas são ovais, do tipo coriácea. As plantas encontradas na forma nativa, não cultivadas, são germinadas com o auxílio de pássaros, os quais ingerem suas sementes e as dispersam. Folhas de Ilex paraguariensis Histórico Embora hoje a bebida preparada com a erva-mate seja um dos principais símbolos da população do sul do Brasil, bem como da Argentina, Paraguai e Uruguai, sua história remete aos índios Guaranis que habitavam a região do Rio da Prata, na época da colonização europeia da América Latina. Os registros deixados pelos colonizadores que chegaram a esta região relatam que os índios Guarani tinham dois hábitos relacionados à erva-mate: ou tostavam suas folhas, trituravamnas e mastigavam como um alimento energético, ou colocavam as folhas trituradas, tostadas ou frescas em uma cabaça seca, acrescentavam água e ingeriam com o auxílio de um canudo feito de bambu ou outra planta. A essa bebida, os índios davam o nome de “caá” ou “caá-i”. A planta era tão importante na cultura desses índios que eles acreditavam ter sido enviada diretamente por Tupã, o deus indígena. A lenda conta que em uma das tribos de índios Guarani, vivia um cacique muito sábio. Esse cacique possuía uma única filha, de nome Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 58 www.estetus.com.br Caá-Yari, a quem muito se dedicava e amava. No entanto, algo o preocupava: sua velhice se aproximava e as regras da tribo exigiam que o cacique fosse substituído por seu filho homem. Como ele só possuía uma filha e, portanto, não tinha um sucessor natural, pensou em escolher para seu sucessor um bravo e corajoso guerreiro da tribo. Mas isso lhe trazia muita angústia, uma vez que sabia que sua filha era apaixonada por esse guerreiro. Caso o escolhesse, o novo cacique teria muitas vezes que se ausentar da tribo e, como as regras exigiam que sua esposa o acompanhasse, o velho cacique teria que ficar sem a companhia de sua amada filha e sofrendo de uma profunda solidão. Ele estava em um grande dilema. Para ajudá-lo a tomar a melhor decisão, resolveu pedir ajuda a Tupã. Como sabia que não poderia ter sua filha ao seu lado para sempre, pediu que Tupã enviasse a ele algo que fosse sua companhia em todas as horas. E Tupã o atendeu: enviou uma árvore e disse ao cacique que, quando estivesse se sentindo sozinho, poderia preparar uma bebida quente e acolhedora utilizando as folhas torradas dessa árvore. Ainda, ordenou que a preparasse dentro de uma cabaça sagrada e a ingerisse com o auxílio de um pequeno bambu. E assim fez o sábio cacique. Após o casamento de sua filha com o bravo guerreiro, e sempre que esses se ausentavam, o velho cacique preparava a bebida sagrada e, bebendo-a durante horas, sentia-se muito revigorado, animado, bem disposto e, o mais importante, nunca mais se sentiu sozinho. Relatos históricos afirmam que os colonizadores europeus instalados na região do Rio da Prata, observando os índios Guarani que consumiam grandes quantidades daquela bebida, a experimentaram e, notando seus efeitos estimulantes e benéficos ao corpo, também passaram a consumi-la à maneira dos indígenas. Em função de sua grande popularidade, rapidamente os europeus aqui situados passaram a cultivá-la e a comercializá-la com colonizadores situados nas províncias brasileiras, como foi o caso das Missões do Guaíra, onde hoje se situa o Paraná. Acredita-se que tenha sido nesta região que os jesuítas também passaram a consumir a bebida, inclusive desenvolvendo uma técnica de cultivo muito produtiva e passando a comercializá-la na região. Alguns desses jesuítas, ao se deslocarem para a região argentina de Missiones, iniciaram o cultivo do mate em grande escala, contribuindo para que a região se estabelecesse como um dos maiores produtores dessa espécie vegetal na América Latina. Atualmente, o hábito de compartilhar o mate representa mais do que uma tradição entre as populações do sul do Brasil, da Argentina, do Uruguai e do Paraguai: Plantas psicoativas –uma abordagem farmacológica 59 www.estetus.com.br tornou-se um verdadeiro símbolo dessas regiões. A forma tradicional de consumo da bebida é chamada de “chimarrão” (ou apenas de “mate”). É preparado de maneira semelhante à descrita na lenda, com a adição de água quente às folhas trituradas e secas da planta, dispostas em uma cuia e ingeridas com o auxílio da bomba. No entanto, também pode ser consumida de outras formas, como o “tererê”, preparado com adição de água gelada e limão às folhas trituradas, ou simplesmente como um chá, adicionando-se água quente a sachês contendo a folha queimada e triturada da planta. A produção brasileira anual de Ilex paraguariensis está em torno de 200.000 toneladas, sendo que os principais estados produtores são Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul. Com relação ao maior consumidor, o Rio Grande do Sul destaca-se, consumindo mais de 50% do que é comercializado no Brasil. Anteriormente restrito à região sul do país, o consumo do mate vem se expandindo, sendo hoje consumido inclusive em estados da região norte. Aparece como uma das espécies arbóreas naturais de maior importância econômica para a região sul do Brasil já há muitas décadas, principalmente por ser uma espécie resistente às baixas temperaturas observadas na região. Contribuiu, inclusive, para a fixação do homem ao campo nas regiões sulinas. Atualmente, a Argentina é considerada o principal produtor de Ilex paraguariensis, cultivando mais de 150.000 hectares anualmente, o que equivale a cerca de 280.000 toneladas da planta. O Brasil e o Paraguai são o segundo e o terceiro produtores, respectivamente. No mundo todo, são cultivados mais de 290.000 hectares de mate, com uma produção anual de mais de 800.000 toneladas, isso só no ano de 2002. Em 2004, o valor de sua produção mundial foi estimado em cerca de 1 bilhão de dólares. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 60 www.estetus.com.br Folhas de Ilex paraguariensis após processamento Dados químicos e farmacológicos As folhas da erva-mate, parte utilizada tradicionalmente no preparo da bebida estimulante mais conhecida por “chimarrão” ou por “chá-mate”, possui como principal constituinte químico, responsável por seus efeitos estimulantes do sistema nervoso central, a cafeína. Em função de ser o principal constituinte químico do café, as propriedades psicobiológicas da cafeína já foram mencionadas no item anterior, sobre a espécie Coffea arabica. Portanto, a fim de evitar redundâncias, suas propriedades biológicas não serão novamente mencionadas, embora seja o principal componente químico estimulante presente nas folhas de Ilex paraguariensis. Muitos outros compostos, no entanto, também estão presentes nas folhas de erva-mate, os quais também podem contribuir para suas propriedades centrais estimulantes. Além da cafeína (presente num teor entre 0,8 e 2%), as folhas jovens de erva-mate contêm entre 0,08 e 0,5% de teobromina e pequenas quantidades de teofilina. Aliás, a questão da presença ou não de teofilina na espécie é controversa: alguns pesquisadores indicam a presença de pequenas quantidades desse alcaloide estimulante; outros grupos de pesquisa, no entanto, afirmam que a teofilina não está presente em extratos de Ilex paraguariensis. De qualquer forma, a cafeína e a teobromina parecem ser realmente seus principais compostos psicoestimulantes. Além de cafeína e teobromina, investigações fitoquímicas sobre a espécie Ilex paraguariensis demonstram a existência de muitas classes de constituintes químicos, Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 61 www.estetus.com.br tais como aminoácidos, polifenóis (como o ácido clorogênico e o ácido caféico), flavonóides (quercetina, rutina e canferol) e saponinas triterpênicas. É importante mencionar que diversos trabalhos científicos têm associado a presença de polifenóis e de flavonóides ao papel protetor que alguns extratos vegetais desempenham contra determinadas doenças, como parece ser também o caso da erva-mate. Das três metilxantinas mais comumente encontradas no reino vegetal, a cafeína, como já mencionado, é a que está presente em maior concentração no mate, seguida pela teobromina. Esses dois compostos são encontrados principalmente nas folhas das plantas e em pequena concentração no tronco. A concentração de cafeína que chega até o consumidor é de aproximadamente 78 mg em uma xícara do mate (aproximadamente 150 ml). Comparada com o café, é uma quantidade de cafeína muito similar (85 mg por xícara). No entanto, a frequência com que o mate é consumido no método tradicional representa uma média mínima de ingestão de 500 ml, o que resulta em 260 mg ou mais de cafeína, quantidade essa que dificilmente seria atingida com a ingestão diária de café. É importante mencionar também que, embora exista uma grande variabilidade do conteúdo de metilxantinas existente em Ilex paraguariensis, em função do tipo de solo, das condições climáticas, da ocorrência ou não de ataque de parasitas, da época de colheita, entre outros fatores. A legislação atual brasileira estabelece que deva haver um conteúdo mínimo de cafeína de 0,5% (massa/massa) no mate comercializado. Mais do que suas propriedades aromáticas ou sua bebida estimulante, a erva- mate parece representar uma importante fonte de compostos necessários ao bom funcionamento do organismo. No entanto, relativamente poucos estudos científicos já foram realizados a respeito de toda a sua potencialidade medicinal, provavelmente em função de que apenas um pequeno número de países está envolvido em seu consumo. Nos últimos anos, esse panorama já vem apresentando alguma alteração, principalmente em virtude de outros países já terem incorporado a erva-mate em seus hábitos alimentares. As bebidas à base de erva-mate, de sabor amargo, parecem possuir propriedades hepatoprotetora, hipocolesterolêmica, anti-reumático, diurética, glicogenolítica e lipolítica. Atualmente, a erva-mate também tem sido empregada em preparações fitoterápicas como tônica, anticelulítica e para combater o envelhecimento. Algumas Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 62 www.estetus.com.br dessas atividades farmacológicas são atribuídas ao seu alto teor de derivados cafeoil e de flavonóides. No entanto, a principal atividade da erva-mate parece ser como um antioxidante natural, combatendo os radicais livres, especialmente em regiões cerebrais. Essa possível capacidade antioxidante da ervamate pode estar relacionada à sua concentração de polifenóis. Em média, a quantidade de polifenóis extraída do mate utilizado em forma de chá é de 92 mg, equivalente a ácido clorogênico por grama de folhas secas, enquanto outros chás possuem significativamente menos. A produção de radicais livres está envolvida em uma série de condições patológicas, entre as quais se incluem doenças neurodegenerativas como o Alzheimer, como já mencionado no item sobre a espécie Melissa officinalis. Antioxidantes naturais têm sido considerados como eficazes no combate à ação nociva desses radicais livres e, consequentemente, na prevenção de tais condições patológicas. Isso leva a crer que o dano oxidativo e as doenças, consequentes da progressão do mesmo, possam ser retardados por meio de antioxidantes naturais. A oxidação de lipoproteínas de baixa densidade induzida por radicais livres parece ser uma causa chave para o estabelecimento de tais doenças. Estudos sobre o potencial da espécie Ilex paraguariensis como um antioxidante natural indica que a planta possui constituintes que inibem efetivamente a oxidação de lipoproteínas de baixa densidade in vitro, sugerindo que a ingestão desses constituintes antioxidantes pode ser benéfica. Esses compostos antioxidantes da erva-mate são facilmente absorvidos e alcançam níveis suficientesno plasma para inibir a autoxidação lipídica. Algumas pesquisas têm demonstrado que a espécie Ilex paraguariensis aumenta a capacidade antioxidativa do plasma, e que essa ação talvez possa ser explicada pela presença de quantidades significativas de polifenóis e de flavonóides. Muitos tipos de flavonóides são conhecidos por serem absorvidos pelo trato gastrointestinal de humanos e animais e são considerados antioxidantes potentes, “captadores” de radicais livres e inibidores da peroxidação lipídica. Além de seu possível efeito antioxidante potente, há evidências científicas de que a erva-mate promova melhoria do humor, da performance psicomotora e da concentração. Embora considerada inócua em doses moderadas, pode causar insônia, ansiedade e aumento da frequência cardíaca com o uso excessivo, além de ser preferível que pessoas com úlceras gástricas, hipertensão e taquicardia evitem seu consumo. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 63 www.estetus.com.br Existem algumas evidências, ainda, de que seu consumo na forma de infusão (principalmente na forma conhecida como “chimarrão”) esteja relacionado à ocorrência de câncer orofaríngeo, embora a explicação mais cogitada para esse fato relacione-se à alta temperatura da água adicionada à bebida, a qual é ingerida ainda bastante quente. No entanto, estudos mais aprofundados ainda são necessários para esclarecer essa possível correlação. Estudos sobre os efeitos farmacológicos da erva-mate, quando comparado a outras espécies vegetais estimulantes, são relativamente limitados, a despeito de seu grande uso popular, principalmente na região sul do Brasil. Ainda assim, um estudo realizado em 2004, com 71 voluntários, indica que a quantidade de cafeína presente na erva-mate não foi suficiente para afetar o funcionamento cardiovascular, o que representaria uma vantagem. Ao contrário do esperado, no entanto, o consumo da bebida preparada à base de erva-mate após o almoço não produziu um melhor desempenho em atividades cognitivas, como ocorre após a ingestão do café e do guaraná. No entanto, os autores justificam esse resultado afirmando que a dose de erva- mate empregada neste estudo apresentava uma quantidade relativamente pequena de cafeína, a qual não seria suficiente para eliciar os efeitos esperados. Portanto, os resultados disponíveis atualmente na literatura científica sugerem que a ingestão do mate pode representar uma maneira eficaz e econômica de fornecer uma quantidade importante de compostos que aumentam o sistema de defesa antioxidante do organismo. Considerando que tal atividade antioxidante parece estar relacionada com a presença de polifenóis, é importante ressaltar que a quantidade dos compostos polifenóicos encontrados no mate para chá difere significativamente do mate que é vendido para o preparo do chimarrão. Ainda assim, estudos afirmam que ambas as formas de apresentação mostram atividades antioxidantes comparáveis, as quais indicam que a etapa de secagem, conhecida como “sapeco”, embora modifique o perfil dos compostos voláteis e do conteúdo de compostos polifenólicos da infusão, não afeta sua propriedade antioxidante. No entanto, estudos adicionais são necessários tanto para comprovar definitivamente sua atividade antioxidante em tecidos neuronais, quanto para assegurar a ausência de toxicidade das preparações de Ilex paraguariensis, embora seja uma espécie tradicionalmente utilizada há séculos. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 64 www.estetus.com.br GUARANÁ (Paullinia cupana) Paullinia cupana Nome científico O estimulante conhecido como guaraná trata-se, na verdade, das sementes do guaranazeiro, cujo nome botânico é Paullinia cupana, mais especificamente sua variedade sorbilis, pertencente à família botânica Sapindaceae. No entanto, farmacopeias de diferentes países podem considerar o guaraná como sendo outra Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 65 www.estetus.com.br espécie pertencente ao gênero Paullinia, como por exemplo, a farmacopeia norteamericana, que conhece o guaraná por dois nomes específicos diferentes: Paullinia cupana Kunth e Paullinia sorbilis Martius. Na verdade, trata-se de duas variedades de uma mesma espécie: Paullinia cupana variedade cupana e Paullinia cupana variedade sorbilis. Nomes populares Assim como ocorre com o café, a espécie Paullinia cupana não apresenta uma grande diversidade de nomes populares. Em quase toda a totalidade em que ocorre naturalmente é conhecida pelo nome de “guaraná” ou pelo nome de sua árvore, o “guaranazeiro”. Aqui também se evidencia a relação entre a baixa diversidade de nomes populares encontrados e a relativa uniformidade na finalidade do uso, que, neste caso, se faz como tônico e estimulante. Os índios Sateré-Mawé, considerados os inventores da cultura do guaraná, o chamam de “çapó”, que é o guaraná em forma de bastão, que é ralado na água e bebido rotineiramente ou para finalidades rituais e religiosas. Informações botânicas Planta lenhosa e trepadeira, a espécie Paullinia cupana ocorre na região Amazônica, da qual é um dos símbolos de beleza e uso medicinal, principalmente nos estados do Acre, Amazonas e Pará, e uma pequena parte do Maranhão, além de regiões localizadas na Venezuela, Peru, Colômbia e Bolívia. Quando cresce em área de mata fechada, pode atingir cerca de 10 metros de altura; no entanto, em áreas abertas, assume um porte arbustivo, atingindo no máximo 3 metros. Apresenta um número maior de flores femininas quando comparadas às flores masculinas, e florescem nos meses mais secos do ano. O fruto, que dá origem ao preparado que recebe o nome de guaraná, é bem característico. Composto por uma cápsula de coloração alaranjada a qual se abre ao amadurecer, expondo as sementes – de 1 a 3 por fruto – de cor marrom, envoltas por um arilo de coloração branca, lembrando a morfologia de um olho humano. E é nesse estágio que a colheita deve ser feita, para que não se percam as sementes, as quais se desprendem da cápsula. O guaranazeiro pode ser propagado pelas sementes Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 66 www.estetus.com.br ou por propagação vegetativa, com o auxílio de estacas. A espécie necessita de solo profundo e bem drenado, onde não haja acúmulo de água, o qual pode inviabilizar as sementes. É uma planta que se desenvolve bem em baixas altitudes e clima quente e úmido, com média anual de chuvas em torno de 2500 mm, tal qual o clima amazônico. Frutos de Paullinia cupana Histórico A região brasileira com maior prevalência do guaranazeiro coincide com o território habitado pelos índios da etnia Sateré-Mawé. O guaraná é uma espécie vegetal de tal importância para esses indígenas que seu cultivo e preparo se confunde com sua história, inclusive com a lenda que explica o seu surgimento. Não é exagero afirmar, portanto, que os Sateré-Mawé sejam os inventores da cultura do guaraná, e eles assim se consideram, como os Filhos do Guaraná. Não é de se estranhar, portanto, que a produção do guaraná estivesse, até o final da década de 70, concentrada no município de Maués, no Estado do Amazonas, município que recebe esse nome em função de estar localizado em área tradicional dos SateréMawé. Os índios Sateré-Mawé possuem a reputação de serem excelentes comerciantes e acredita-se que essa habilidade seja decorrente do comércio de guaraná, que realizam há séculos. Desde que os homens brancos tomaram contato com o guaraná, ficaram impressionados com suas propriedades como estimulante, tônico e supostamente afrodisíaco, e passaram Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 67 www.estetus.com.br também a beneficiá-lo para consumo e comércio. No entanto, por não possuírem os conhecimentostradicionais dos Sateré-Mawé sobre o cultivo e o preparo, esse guaraná produzido pelos homens brancos era considerado, naquela época, como sendo de baixa qualidade ou um falso guaraná. Esse fato também faz parte da lenda do guaraná, a qual trata tanto do surgimento do guaranazeiro quanto do aparecimento do primeiro índio Sateré-Mawé. Segundo a lenda indígena, existiam três irmãos de uma etnia indígena ancestral, dois meninos e uma menina. A menina, de nome Onhimuab (ou Onhiámuáçabê) era muito querida por seus irmãos, tanto porque brincava todos os dias com eles, indo juntos buscar castanhas na castanheira-sagrada, quanto porque cuidava de seus ferimentos e de sua saúde com remédios que só ela sabia preparar, de uma grande variedade de plantas. Onhimuab queria muito se casar, mas seus irmãos não gostavam da idéia, pois ela não poderia mais ficar com eles todo o tempo. Um dia, ao caminhar pela floresta, uma cobra tocou sua perna e a índia engravidou. Seus irmãos ficaram tão bravos por ela estar grávida que a expulsaram da tribo e a proibiram de comer as castanhas da castanheira-sagrada, das quais os três tanto gostavam e que ela mesma havia plantado. Triste, Onhimuab foi embora e construiu sua própria cabana, onde viveu até o nascimento de seu filho. A índia deu à luz um belo e forte menino, que trouxe muita alegria à sua vida. Logo que aprendeu a falar, o menino disse à mãe que queria comer daquelas castanhas que ela e seus tios tanto gostavam, mas ela explicou ao filho que não podia, pois seus tios a haviam proibido de se aproximar da castanheira-sagrada. Ao ver a tristeza do filho, Onhimuab permitiu que o menino fosse até a castanheira e pegasse algumas castanhas. Como seus irmãos deixaram no local alguns vigias – animais da floresta – para cuidar da castanheira e garantir que ninguém se aproximasse, ao saber da presença dos dois ali, ordenaram que matassem quem quer que se aproxime novamente. Assim, quando o menino voltou ao local para apanhar mais algumas castanhas, deu-se a tragédia: o indiozinho foi decepado e sua mãe, que se aproximava por ter ouvido os gritos do filho, não chegou a tempo de salvá-lo. Tomando o corpo do filho nos braços, em completo desespero, Onhimuab arrancou os olhos do menino e os plantou naquele local. Dizem os índios que do olho esquerdo nasceu uma planta que não prestava o falso guaraná, enquanto que do olho direito plantado nasceu o guaraná verdadeiro, uma planta que dava ânimo e coragem aos índios, curando-os de todos os Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 68 www.estetus.com.br males. Ali também a índia enterrou o corpo do filho e cercou o local. Dias depois, saiu da sepultura uma criança, que era o filho de Onhimuab ressuscitado, o qual foi o primeiro Sateré-Mawé, nascido do pé de guaraná brotado do olho enterrado do menino, fazendo referência ao formato das sementes do guaranazeiro. Lendas a parte, o fato é que foram realmente os índios Sateré-Mawé os primeiros detentores do conhecimento sobre o cultivo e o preparo do guaraná. Foi no início da década de 80 que a produção do guaraná saiu da região amazônica, sendo introduzida em regiões do centro-oeste e do nordeste brasileiro. Atualmente, o guaraná é consumido e exportado na forma das sementes em si ou de preparações das mesmas, na forma de pó (empregados com muita frequência em compostos terapêuticos), de xaropes (utilizados para o preparo de sucos e refrigerantes que levam o nome da planta), entre outras apresentações. Estima-se que sejam exportadas, anualmente, aproximadamente 500 toneladas de guaraná para os Estados Unidos e países europeus, o que movimenta uma cifra considerável no mercado brasileiro. No mercado interno, duas são as formas mais consumidas: na forma de extrato, presente em refrigerantes, e na forma de guaraná em pó, utilizado como complemento alimentar em função de suas propriedades estimulantes do funcionamento físico e mental. Dados indicam que o Brasil é praticamente o único país produtor do guaraná em grande escala, sendo os principais estados produtores a Bahia, o Amazonas, o Pará e o Acre. Dados químicos e farmacológicos A primeira investigação sobre a composição química das sementes do guaraná foi realizada no século XVIII pelo botânico alemão Theodore von Martius, o qual isolou uma substância amarga e cristalina com marcantes propriedades biológicas. Essa substância foi chamada inicialmente de guaranina; posteriormente, descobriu-se que se tratava da já conhecida cafeína. Como já mencionado, a cafeína é um alcaloide do tipo purínico amplamente distribuído no Reino Vegetal. Acredita-se que mais de 60 espécies de plantas a apresentem em sua composição, sendo o guaranazeiro a espécie com maior teor deste alcaloide psico-estimulante. Além da cafeína, e de forma semelhante ao que ocorre com a espécie Ilex paraguariensis, a espécie Paullinia cupana apresenta, ainda, os alcaloides teobromina e teofilina, em pequenas quantidades. Nas sementes da espécie, os teores de cafeína são bastante altos, variando entre 2,5 e 6% do seu peso Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 69 www.estetus.com.br seco, o que é uma quantidade considerável quando comparada às de teobromina e teofilina, inferiores a 0,02% e 0,01%, respectivamente. Além das metilxantinas mencionadas, o guaraná também possui saponinas e taninos em sua composição, e muitos estudos afirmam que esses compostos desempenham um papel muito importante na determinação dos efeitos estimulantes da espécie, de maneira semelhante ao que ocorre com outra espécie vegetal bastante utilizada em função de suas propriedades estimulantes do sistema nervoso central, o ginseng (Panax ginseng). Diversos estudos disponíveis na literatura científica afirmam, inclusive, que os taninos isolados de Paullinia cupana apresentam considerável atividade antioxidante, o que reforça ainda mais a importância desses compostos presentes no guaraná. Um considerável número de trabalhos investigando os efeitos do guaraná sobre a performance cognitiva, em animais de laboratório, encontra-se disponível na literatura. Já em humanos, o número de estudos é comparativamente menor, embora os dados até agora disponíveis contribuam de maneira significativa para a compreensão dos efeitos psicoativos do guaraná. As investigações sobre os efeitos do seu extrato sobre o humor e a performance mental mostram atividades que podem ser resumidas em alerta, melhoria de aspectos cognitivos como aprendizado e memória, como estimulante da performance motora, entre outras atividades. Com relação às investigações sobre os efeitos do guaraná em animais de laboratório, alguns estudos específicos podem ser citados. Em 1997, um grupo de pesquisadores brasileiros da Universidade Federal de São Paulo avaliou a ação do guaraná sobre a performance geral em animais experimentais, utilizando o teste do nado forçado (para avaliação sobre o desempenho físico), testes de esquiva passiva e ativa (para verificação dos efeitos sobre aprendizado e memória) e os efeitos sobre a longevidade dos animais após o tratamento crônico. Os resultados obtidos neste estudo mostraram que animais previamente tratados com o extrato do guaraná apresentaram um melhor desempenho físico, no teste do nado forçado, e que a administração aguda tanto do guaraná quando da cafeína isolada, para comparação, impediu o efeito amnésico induzido pela escopolamina nos animais. A administração crônica do guaraná também protegeu ratos mais velhos dos efeitos amnésicos da escopolamina. Os autores afirmam que esses efeitos positivos observados foram obtidos mesmo em doses muito Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 70 www.estetus.com.br pequenas, as quais continham apenas 0, 0062 mg/ml de cafeína (quantidade 15 vezes menor que a dose de cafeína utilizada como referência no trabalho).comprovar a remota origem de sua utilização, ainda confirmam sua grande importância dentro do contexto sócio-cultural em determinadas comunidades. Assim, uma espécie vegetal psicoativa poderia simultaneamente ser utilizada como alimento, para fins de proteção, para facilitar processos de caça e pesca, como um instrumento de comunicação, utilizada em adornos associados a contextos culturais ou hierárquicos da sociedade e, frequentemente, empregada em rituais de cura. O fato é que parece ser muito provável que as plantas psicoativas tenham acompanhado o homem ao longo de sua trajetória neste planeta. Ou que os homens tenham acompanhado – e até mesmo seguido – as plantas psicoativas. Portanto, um questionamento que pode ser feito a partir do conhecimento de que ambos, homens e espécies vegetais, talvez tenham caminhado juntos em seus percursos evolutivos e que é, no mínimo, intrigante é o seguinte: - “O que fez com que as plantas psicoativas fossem tão importantes para os homens e seus ancestrais? ” Ou ainda, de um ponto de vista evolutivo, outro questionamento pode aparecer: - “Existe algum motivo especial pelo qual os homens tenham optado por usar determinadas espécies psicoativas, a despeito de suas potencialidades tóxicas? ”. Essas questões não possuem respostas óbvias e as tentativas de responde-las têm sido alvo de muita polêmica. A importância da discussão, entretanto, parece não se chegar a um consenso na resposta, antes compreender os processos nos quais podem Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 6 www.estetus.com.br ter contribuído para que o conhecimento sobre o uso de espécies vegetais psicoativas não tenha desaparecido ao longo dos séculos. E que, pelo contrário, esteja sendo cada vez mais discutido em diferentes meios e por diferentes formas, é o que parece ser mais importante. Assim como o estudo das plantas bio-ativas, de uma forma geral, o estudo das plantas psicoativas é caracterizado por ser uma área absolutamente interdisciplinar – ou pelo menos deveria ser – envolvendo antropólogos, ecólogos, botânicos, agrônomos, químicos, farmacologistas, entre outros profissionais. Com o intuito de compreender, da forma mais abrangente possível, o que representa a planta tanto em termos de significado sócio-cultural quanto em termos biológicos. Dessa forma, uma única espécie vegetal pode gerar uma infinidade de informações, tais como: - O contexto social e cultural no qual ela é empregada por diferentes comunidades: se o uso é ritualizado, se existem hierarquias desenvolvidas com base no seu manejo, o papel que a espécie possui na cosmologia da sociedade, se é igualmente manipulada por homens e por mulheres, a forma como a comunidade vê aquele recurso, entre outros tantos fatores; - As lendas e mitos que cercam seus usos e efeitos; - Os nomes populares que recebe, os quais variam amplamente de uma região para outra; - Sua nomenclatura científica: o nome científico que foi dado à espécie e que permite identificá-la, corretamente, em qualquer lugar do mundo, ou que pelo menos facilite a correta identificação; - Os dados botânicos e agronômicos da espécie: suas características visuais e microscópicas, flores, colorações, tamanho da planta, climas nos quais se desenvolve as condições de cultivo, entre outros aspectos; - As formas como as diferentes populações a utilizam tradicionalmente: para quais finalidades, em que circunstâncias, para quais quadros de saúde, como se dá o preparo, a quantidade que é utilizada, quais partes são utilizadas; - A composição química de suas partes: quais substâncias estão presentes nas partes que são utilizadas, as quais classes químicas pertencem, de que forma extraí-las, como otimizar a obtenção de uma maior quantidade dessas substâncias, entre outros fatores; Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 7 www.estetus.com.br - A farmacologia dessas plantas: como agem no organismo, de que forma, por quais mecanismos, envolvendo quais sistemas orgânicos, produzindo quais efeitos adversos e efeitos positivos; - Entre outras classes de informações que podem ser obtidas por meio do estudo de uma espécie vegetal psicoativa. Nesse contexto, se faz necessária a colaboração de um grande número de profissionais, com as mais variadas formações acadêmicas, e a boa integração entre eles é que ajudará na maior compreensão da importância de uma planta psicoativa em um amplo contexto. Especificamente com relação à situação brasileira, o estudo das plantas psicoativas, ganha uma importância ainda maior. Isso se deve a diversos fatores: - À composição biológica, ou seja, à complexa diversidade biológica existente no Brasil, que faz com que seja considerado o primeiro em número de espécies vegetais no mundo, verdadeiro banco genético de espécies; - Ao grande número de espécies vegetais endêmicas, que existem somente em território brasileiro; - À existência de biomas tão diferentes e ricos em variedade biológica vegetal, tais como a Mata Atlântica, os Campos Sulinos, o Pantanal, o Cerrado, a Caatinga e a Amazônia; - E, tão importante quanto à grande diversidade cultural, proveniente da tão grande diversidade étnica. Um país de índios, colonizado por portugueses, povoado por descendentes de africanos, imigrantes italianos, espanhóis, asiáticos; um país onde convivem comunidades indígenas, remanescentes de quilombos, comunidades de pescadores, populações ribeirinhas, comunidades agro-extrativistas, entre tantos outros componentes do belo quadro multiétnico brasileiro. A questão da grande diversidade de povos e de origens acaba sendo tão importante quanto à própria diversidade biológica existente no país. Se pensarmos que a cada grupo étnico originário das terras brasileiras se somou um sem número de influências de outros povos, dos mais diferentes lugares do mundo, teremos uma pequena noção da real riqueza etno-botânica resultante. Uma fonte inesgotável de Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 8 www.estetus.com.br conhecimentos a respeito, inclusive, do uso de plantas que alteram o funcionamento da mente. Apenas a título de exemplo, em um estudo recém-divulgado e realizado por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo e liderado pela pesquisadora Eliana Rodrigues. Foram investigadas quais plantas com possíveis ações sobre o sistema nervoso central eram utilizadas popularmente no Brasil, a partir de fontes históricas dos séculos XVI ao XIX. As autoras utilizaram como fonte da pesquisa livros históricos encontrados em instituições brasileiras reconhecidas, tais como: as bibliotecas da Universidade de São Paulo e do Instituto Botânico do Estado de São Paulo, e pesquisaram quais plantas eram mencionadas nesses livros como sendo popularmente utilizadas por seus efeitos sobre o sistema nervoso central. Os resultados divulgados neste estudo são muito interessantes: as pesquisadoras encontraram 93 plantas mencionadas por seus efeitos centrais, inclusive espécies amplamente conhecidas no Brasil, tais como o caju (Anacardium occidentale), a mandioca (Manihot utilissima), o guaraná (Paullinia sp) e o cacau (Theobroma sp). Dessas 93 plantas, 34 espécies eram nativas do Brasil, ou seja, mais de 35% do total de plantas mencionadas, o que dá uma ligeira idéia da importância do Brasil como banco de espécies vegetais, especificamente de espécies vegetais psicoativas. Outro ponto importante a se considerar quando se trata do estudo de plantas psicoativas, bem como de todas as demais espécies vegetais bio-ativas, é a falsa crença, muitas vezes nutrida por uma mídia apelativa e equivocada, de que as plantas não causam efeitos adversos, por serem de fonte natural. Frases como “pode usar que não tem problema, é natural”, “o que é natural é bom”, “se bem não faz, mal não vai fazer”, ouAlém disso, a maior dose do extrato do guaraná testada, contendo uma quantidade maior de cafeína, não se mostrou ativa. Portanto, os autores concluíram que os efeitos do guaraná sobre a performance física, assim como sobre a memória de ratos jovens e velhos, podem ser devidos também a outras substâncias e não apenas à cafeína. Como mencionado no início deste tópico, realmente alguns pesquisadores sugerem que taninos e saponinas também contribuam para os efeitos benéficos do guaraná sobre o sistema nervoso central. Outros estudos também confirmam os efeitos do guaraná contra a amnésia induzida por escopolamina, em animais de laboratório. Em 2005, outro grupo de pesquisa brasileiro, dessa vez da Universidade Estadual de Maringá, investigou os efeitos do tratamento crônico com o extrato bruto do guaraná, bem como dos constituintes semi-purificados de suas sementes, sobre o comportamento cognitivo de ratos, utilizando o teste do labirinto aquático de Morris. Esses pesquisadores observaram que ratos cronicamente tratados com o extrato bruto apresentaram melhoria do comportamento cognitivo. Além disso, a administração crônica (tanto do extrato bruto quanto de seus compostos isolados) também foi capaz de proteger os animais dos efeitos amnésicos da escopolamina. Sugerindo que tanto o extrato bruto quando os compostos semi-purificados das sementes do guaraná são capazes de melhorar a cognição tanto em ratos normais quanto em ratos com amnésia induzida. Com relação a estudos clínicos, poucos já foram realizados para investigar os efeitos do guaraná sobre processos cognitivos, embora seus efeitos como estimulante físico já estejam bem estabelecidos. Neste sentido, um estudo clínico relevante foi realizado em 2004 por pesquisadores do Reino Unido, em que foram avaliados os efeitos do tratamento agudo com 75 mg de guaraná sobre a performance cognitiva e o humor em 28 voluntários saudáveis. Os resultados dessa pesquisa mostram que doses únicas de guaraná, bem como da combinação entre guaraná e ginseng, foram realmente capazes de melhorar a performance cognitiva em comparação com o placebo, pelo menos em jovens saudáveis. Tais melhorias foram representadas por um notável aperfeiçoamento do desempenho em muitas tarefas, bem como pela diminuição do declínio de desempenho observado no grupo controle (placebo) com relação à Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 71 www.estetus.com.br conclusão das tarefas solicitadas. Este estudo forneceu as primeiras evidências empíricas as quais confirmam as supostas propriedades psicoativas do guaraná em humanos. Os autores ressaltam que o resultado mais notável foi a melhoria da velocidade na realização de tarefas, observadas após a administração da dose de 75 mg do extrato de guaraná. Além de estudos clínicos e com animais experimentais, alguns estudos in vitro também já foram realizados com o extrato do guaraná para verificação de suas propriedades biológicas. Com relação à ação relacionada, direta ou indiretamente, ao sistema nervoso central, estudos in vitro demonstram a atividade do guaraná como um antioxidante natural, relacionando tal atividade à presença de quantidades significativas de polifenóis, similarmente ao que ocorre com a espécie Ilex paraguariensis. Portanto, estudos sobre o possível efeito protetor do guaraná contra doenças neurogenerativas, também associadas à ocorrência de danos oxidativos, representam uma área de pesquisa bastante promissora. Esses dados experimentais, quando observados em conjunto, fazem com que os pesquisadores dos efeitos psicoativos do guaraná o considerem como uma droga nootrópica. Essa terminologia é utilizada para designar uma categoria de agentes psicoativos os quais apresentam efeitos seletivos no desempenho intelectual, no aprendizado e na memória, na presença ou ausência de um déficit cognitivo anterior. Considerando que, pelo menos entre a população brasileira, a forma mais frequente do uso do guaraná como estimulante se dá na forma de pó. É importante mencionar a questão da quantidade de cafeína presente nessas preparações, a qual pode variar de acordo tanto com a procedência da matéria-prima, quanto com método de cultivo, com a presença de contaminantes, ou com outros fatores. Nesse sentido, pesquisadores de diferentes instituições de pesquisa localizadas na cidade de Campinas, SP, publicaram em 2007 um estudo sobre a contribuição do guaraná em pó sobre a quantidade de cafeína presente na dieta. Nesse estudo, os pesquisadores investigam os teores de cafeína presentes em diferentes marcas de guaraná em pó comercializados. Os pesquisadores observaram que as quantidades de cafeína nas amostras de guaraná avaliadas variaram tanto entre marcas quanto entre lotes de uma mesma marca, e que o coeficiente de variação entre os lotes ficou entre 4,5 a 30,6% de variação. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 72 www.estetus.com.br Os autores afirmam que o crescente consumo de guaraná em pó pela população brasileira nos últimos anos faz com que seja importante a determinação da quantidade média de cafeína neste produto, a fim de evitar possíveis interações ou efeitos inesperados. Ainda, fazem um alerta: de acordo com valores estabelecidos, ao seguir a orientação do fabricante para o consumo diário do guaraná em pó, que fica entre 3 e 15 g, um consumidor pode ingerir até cerca de 550 mg de cafeína, o que é uma quantidade suficiente para eliciar os sintomas de um distúrbio conhecido como “cafeinismo”. O “cafeinismo” pode ser causado por excesso de cafeína no organismo e apresentam como sintomas: sensação de ansiedade, inquietação, irritabilidade, entre outras reações desagradáveis, decorrentes do bloqueio excedente de receptores de adenosina, como mencionado no item sobre dados químicos e farmacológicos da espécie Coffea arabica. PLANTAS ALUCINÓGENAS MACONHA (Cannabis sp) Cannabis sativa Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 73 www.estetus.com.br Nome científico Pertencente à família botânica Cannabaceae, o gênero Cannabis possui um número considerável de espécies vegetais, entre as quais as mais comumente encontradas são Cannabis sativa, Cannabis indica e Cannabis ruderalis, espécies essas também consideradas a “maconha” popularmente conhecida. No entanto, embora diferentes espécies do gênero respondam pelo mesmo nome popular, a espécie mais comumente conhecida como maconha é, sem dúvida, a espécie Cannabis sativa. a b c Desenhos esquemáticos para comparação entre: Cannabis indica (a), Cannabis ruderalis (b) e Cannabis sativa (c). Nomes populares Espécies pertencentes ao gênero Cannabis, principalmente C. sativa, C. indica e C. ruderalis, são conhecidas por uma infinidade de nomes, na dependência da região mundial. Até mesmo dentro de um mesmo país, as espécies do gênero podem ser conhecidas popularmente por diversos nomes, os quais também variam em função do Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 74 www.estetus.com.br tipo de preparação que é feita a partir da planta. Os nomes mais frequentemente encontrados são cânhamo-da-índia (principalmente referindo-se à espécie C. indica), cânhamo, maconha (nome popular pelo qual as espécies do gênero são mais popularmente conhecidas no Brasil, em especial a espécie C. sativa), bhang e marijuana (nomes pelos quais são conhecidas preparações com menor conteúdo de substâncias psicoativas extraídas da planta como um todo), haxixe/hashish e charas (nomes dados à resina seca extraída das flores de plantas fêmeas, contendo uma maior porcentagem de compostos psicoativos), ghanja e sinsemila (o material seco encontrado no topo de plantas fêmeas), pot, weed ougrass (gírias norte-americanas pelas quais as espécies também podem ser conhecidas), hemp (nome usado para designar variedades com baixas concentrações do principal composto ativo, utilizadas principalmente para fins industriais), entre muitos outros nomes e gírias atribuídas popularmente a essas espécies. Informações botânicas A espécie Cannabis sativa é uma planta herbácea dióica, anual, com um talo rígido e resistente, reto e de cor verde escura. A planta possui um tamanho médio entre 1 e 2 metros, podendo, em alguns casos, atingir até 6 metros. Libera um odor forte em função de ser uma espécie aromática. As folhas, finas, compridas e de bordos serrilhados, digitadas, se originam diretamente do talo, sem pecíolos, e são alternadas. As flores femininas se aglomeram nas axilas das folhas e aparecem mais na parte superior da planta. As flores masculinas se agrupam em ramos e são menores que as femininas. A planta masculina geralmente morre após polinizar a feminina. As plantas de Cannabis sativa se adaptam facilmente a diferentes condições de solo e clima, embora se desenvolva melhor em climas temperados, com média anual de chuva por volta dos 60 cm. Necessita de solo fértil, bem drenado, com pH entre neutro e alcalino, não crescendo em solo ácido. Sua propagação se dá preferencialmente por sementes, as quais são viáveis por mais de dois anos. Histórico Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 75 www.estetus.com.br O uso de espécies vegetais do gênero Cannabis data de milhares de anos e, embora existam algumas contradições entre possíveis datas de início do uso, acredita- se que já tenha sido utilizada, principalmente para fins medicinais, há 8000 anos. É provável que esse antigo uso da maconha seja devido, além da utilização medicinal, à utilização das espécies para fins alimentares (principalmente as sementes) e em função de produzirem uma fibra vegetal muito útil para a construção de cordas, cabos e confecção de produtos têxteis. O primeiro registro de uso medicinal da maconha data de aproximadamente 2000 anos, tendo sido originária da China. Existem descrições de seu potencial terapêutico naquela que é conhecida como a primeira farmacopeia do mundo, o Pen-Ts’ao Ching. Nos textos sagrados hindus, o Atharvaveda, que datam de aproximadamente 1200 a 800 a.C., a maconha é mencionada como “erva sagrada”, uma das cinco plantas sagradas da Índia, sendo utilizada de formas rituais e medicinais em oferendas a Shiva, uma das principais divindades hindus. Evidências arqueológicas sugerem que a maconha tenha sido introduzida na cultura europeia por volta de 500 a.C., tendo sido encontrada, próximo a Berlim, uma urna contendo vestígios de folhas e que foi datada como sendo desta época. Personalidades as quais influenciaram o pensamento ocidental, tais como Heródoto, Dioscórides e Galeno também mencionaram a maconha, em alguma parte de suas obras, tanto em função de suas propriedades euforizantes quanto em função de sua potencialidade terapêutica. Referências que datam aproximadamente entre os anos 500 e 600 d.C. também são encontradas no Talmud dos judeus, com relação às suas propriedades euforizantes. Os assírios também faziam uso constante da maconha, a qual era considerada como o principal medicamento de sua farmacopeia, recebendo nomes em função da finalidade para a qual era utilizada, tal como o termo gan-zi-gunnu, denominação que quer dizer “substância que extrai a mente”. Lendas da tradição indiana dizem que a planta foi enviada pelos deuses como presente aos homens, para lhes dar coragem, prazer e aumentar seus desejos sexuais. Até hoje, na Índia, acredita-se nos poderes divinos da planta, que teria a capacidade de conferir poderes sobrenaturais a quem dela faz uso. Como pode ser percebido pelas informações acima, a maconha representa um dos cultivares mais antigos da humanidade, talvez em função de cinco principais motivos: por ser uma fonte de fibras, pelas características nutritivas de seu óleo, por suas sementes consumidas como alimentos, por suas propriedades psicoativas, Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 76 www.estetus.com.br principalmente as alucinógenas, e terapeuticamente por tratar de uma ampla variedade de condições na medicina popular tradicional. Essa forte relação entre a espécie vegetal e os seres humanos acabou por influenciar fortemente algumas de suas características, desde sua facilidade de dispersão até o aumento da variedade de cultivares, a eficácia de germinação, o poder das sementes, entre outras condições. Embora existam evidências de que a maconha seja originária de regiões asiáticas, muito cedo ela foi levada a outras regiões do mundo. Acredita-se que os vikings a tenham levado para a Europa; os europeus, por sua vez, a teriam disseminado por outras regiões; os franceses a teriam levado para o Canadá e os espanhóis para o México e América Latina, principalmente o Peru. Ou seja, as espécies conhecidas atualmente como maconha encontram-se amplamente distribuídas pelas mais diferentes regiões do globo, com exceção da região ártica. Usos populares e efeitos popularmente relatados Embora algumas comunidades tradicionais consumam as sementes da maconha ou outras partes da planta em função de seu alto valor nutritivo, sem dúvida o principal uso se deve às suas funções psicoativas alucinógenas. E, para esta finalidade, a forma de uso mais amplamente utilizada é o fumo de preparações feitas de partes da planta, principalmente das folhas, flores e talos. As pessoas que a utilizam na forma de fumo relatam que o aparecimento de seus efeitos ocorre de forma quase imediata, com um pico de ação em torno de 20 minutos e com duração do efeito por volta de 1 a 2 horas após o início. Já na forma de ingestão de partes da planta, o aparecimento dos efeitos ocorre de forma mais tardia, de 1 a 2 horas após a ingestão, com uma duração maior, por volta de 3 a 4 horas após o início. Os efeitos relatados por seus usuários podem ser classificados qualitativamente em “positivos” – que são aqueles que reforçam o uso, ou seja, classificados por eles como bons –, “neutros”, ou “negativos” – que são aqueles considerados desagradáveis e indesejados. Embora exista uma grande variabilidade individual, os principais efeitos relatados pelos usuários são: Positivos Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 77 www.estetus.com.br Euforia, relaxamento, alterações da percepção, sensação de bem-estar, aumento moderado dos sentidos (principalmente olfato, paladar e audição), maior sensibilidade à música, súbitas alterações no pensamento e na expressão, aumento da fluência verbal, risos frequentes e elevação do humor, redução do estresse, pensamento criativo e/ou filosófico, aumento do apetite, redução de náuseas, entre outros. Neutros Alteração geral do nível da consciência, movimentos vagarosos, alteração da percepção visual, aumento da sensibilidade a luzes e a cores, entre outros. Negativos Sentimentos paranóicos, problemas respiratórios das vias superiores, brusca alteração da frequência cardíaca, prejuízos cognitivos, sonolência e letargia, dificuldade em seguir uma linha de pensamento, náusea (principalmente quando associada ao uso de álcool ou de outros psicoativos), ataques de pânico e ansiedade severa, precipitação ou exacerbação de sintomas psiquiátricos, boca seca, nervosismo, redução da capacidade de concentração, cansaço e confusão mental, vermelhidão ocular, tensão facial, tosse e asma, dores de cabeça intensa, episódios alérgicos, entre outros. Dados químicos e farmacológicos Estudos revelam que a espécie C. sativa possui mais de 400 compostos químicos. Os chamados “compostos canabinóides” representam 50 a 60 desses compostos e são os responsáveis pela atividade biológica da planta.O principal composto canabinóide é denominado Δ9-THC, abreviação de Δ9-tetrahidrocanabinol, o qual foi isolado pela primeira vez na década de 60. No entanto, outros canabinóides também contribuem para a atividade biológica da planta, tais como o Δ8-THC, o canabinol, o canabidiol, o canabigerol, entre outros compostos, que parecem ter efeitos sinérgicos ou antagonistas aos do Δ9-THC, podendo modificar suas ações na dependência das concentrações. Os canabinóides estão presentes no talo, folhas, flores e sementes da planta, além da resina secretada pela planta fêmea. Os demais compostos químicos da Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 78 www.estetus.com.br planta, considerados não-canabinóides, são muito semelhantes aos que estão presentes na espécie Nicotiana tabacum, conhecida popularmente como tabaco. A Cannabis afeta todo o sistema orgânico, combinando muitos dos efeitos presentes em outros agentes psicoativos, tais como o álcool, tranquilizantes, opióides e outros alucinógenos. Atua como ansiolítico, como sedativo, analgésico e psicodélico. Sua toxicidade aguda é extremamente baixa e, até hoje, nenhuma morte diretamente relacionada ao uso agudo de Cannabis foi relatada. Em função de seus efeitos especificamente sobre o sistema nervoso central, muitos estudos já foram conduzidos no sentido de esclarecer seu mecanismo de ação. Na década de 80, descobriu-se que os efeitos centrais da Cannabis ocorriam em função de suas ações sobre um conjunto específico de receptores celulares, por isso são chamados de receptores canabinóides, os quais estariam naturalmente presentes em neurônios humanos. Até o momento, são conhecidos dois tipos de receptores canabinóides neuronais, denominados de CB1 – amplamente distribuídos em regiões cerebrais –, e CB2 – esse encontrado apenas em regiões periféricas, principalmente no sistema imunológico. A partir da descoberta da existência desses receptores canabinóides, surgiu a pergunta: se existem receptores naturais para os compostos canabinóides provenientes da planta, existirá no organismo algum composto que atue como um canabinóide natural, ou seja, produzido pelo próprio organismo? Os estudos subsequentes responderam afirmativamente a essa questão: uma série de canabinóides endógenos os quais agem como ligantes naturais desses receptores, e que passaram a ser chamados de endocanabinóides, foi descoberta. Embora com uma constituição química diferente dos canabinóides encontrados na planta, uma vez que os endocanabinóides parecem ser derivados do ácido aracdônico, esses compostos endógenos agem como agonistas dos receptores CB1 ou CB2, ou seja, ativando-os para a ocorrência dos efeitos biológicos. Foram descobertos, até agora, pelo menos três endocanabinóides, dos quais o mais frequentemente estudado, em função de sua ampla distribuição e quantidade, foi denominado de anandamida, nome que deriva do termo sânscrito ananda e que significa felicidade, alegria ou êxtase. Portanto, em função dos estudos sobre os efeitos centrais Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 79 www.estetus.com.br promovidos pela Cannabis, foi descoberta uma nova classe de possíveis neurotransmissores, os quais compõem o sistema endocanabinóide humano. Alguns compostos canabinóides já puderam ser sintetizados artificialmente em laboratório e são consideradas drogas sintéticas que atuam como agonistas ou antagonistas específicos dos receptores CB1 e CB2. Um desses compostos, o rimonabanto, que atua bloqueando seletivamente os receptores CB1, tem sido amplamente utilizado em estudos sobre as ações dos canabinóides sobre o sistema nervoso central. A habilidade do THC e de um canabinóide sintético chamado nabilona em controlar a náusea e o vômito associado à quimioterapia do câncer é uma das poucas aplicações médicas bem documentadas dessas substâncias. O THC sinteticamente produzido, com o nome de dronabinol, e a nabilona foram aprovados para uso médico nos Estados Unidos, embora nenhuma das duas drogas tenha se mostrado muito útil. A estreita margem entre a dose antiemética e a que causa os efeitos psíquicos indesejados faz com que sejam drogas medicamentosas de difícil uso. Tendo sido constatados os efeitos centrais da planta, a pergunta é: como agem esses canabinóides vegetais no sistema nervoso central de forma que ocorram os efeitos psicoativos alucinógenos tão amplamente divulgados? Muitos estudos foram, e ainda o são, realizados em laboratório e, atualmente, dispõe-se de um grande número de informações sobre as ações dos compostos psicoativos da Cannabis. Alguns estudos sobre os efeitos dos canabinóides sobre o sistema psicomotor indicam que, em função dos receptores CB1 estarem expressos particularmente em altas densidades no gânglio basal e no cerebelo, que são áreas cerebrais responsáveis pelo controle motor, é compreensível que os canabinóides exerçam efeitos complexos sobre a função psicomotora. Em animais de laboratório, mostraram um efeito trifásico: em baixas doses, diminuem a atividade locomotora, em doses moderadas a altas estimulam os movimentos e, em doses extremas, causam catalepsia, que pode ser entendida como uma suspensão dos movimentos voluntários, acompanhada por rigidez muscular. Animais de laboratório também parecem apresentar respostas do tipo “pipoca” quando tratados com THC: quando sedados com a substância, pulam abruptamente como resposta a um estímulo auditivo ou tátil e, como acabam pulando sobre outros Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 80 www.estetus.com.br animais, inicia-se um evento em cascata. Ou seja, os animais permanecem imóveis por um período de tempo relativamente grande, saltando de forma abrupta ao serem estimulados. Esse comportamento sugere que os efeitos dos canabinóides sejam, em parte, devido a suas ações em receptores cerebelares ou estriatais, que são regiões cerebrais que controlam a intensidade do movimento de resposta, entre outras funções. Em testes com humanos, também já se demonstrou que a Cannabis produz prejuízos à performance motora, constatado por meio de testes os quais exigiam controle psicomotor. De fato, pessoas que fazem uso de Cannabis, com frequência relatam que podem permanecer imóveis por um longo período de tempo, mesmo sem se dar conta disso, respondendo de forma vigorosa quando estimulados. Com relação aos possíveis efeitos deletérios sobre a memória, relatados por pessoas que fazem uso de Cannabis, existe um grande número de estudos científicos realizados com humanos e que comprovam que a planta realmente exerce efeitos prejudiciais, especialmente sobre a memória de curta duração. A memória de curta duração, também chamada de memória de trabalho, é aquela necessária para que possamos realizar nossas tarefas diárias de forma satisfatória, sem que tenhamos que parar no meio delas sem saber o que estávamos fazendo ou o que deve ser feito na sequência. Os efeitos prejudiciais da Cannabis sobre a memória de curta duração são relacionados às ações dos canabinóides sobre uma estrutura cerebral chamada hipocampo, e que possui um papel fundamental nos mecanismos de memória, uma vez que existem relatos sobre a existência de um grande número de receptores CB1 hipocampais. Investigações a respeito dos efeitos da Cannabis sobre as habilidades de percepção têm produzido alguns resultados conflitantes. Enquanto os usuários frequentemente relatam um aumento subjetivo na percepção visual e auditiva, estudos realizados em laboratório não indicam grandes alterações em ambas as classes de percepção. Por outro lado, um efeito subjetivo que tem sido cientificamente confirmado é a sensação experimentada por quem utiliza a maconha de que o tempo parece passar mais rapidamente quando sob o efeito da substância. Com o intuito de investigar a suposta reação desonolência relatada por usuários da planta, trabalhos científicos avaliaram os efeitos do uso agudo ou crônico da Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 81 www.estetus.com.br Cannabis sobre a atividade eletroencefalográfica (EEG), que registra, em forma de ondas que representam o sinal elétrico cerebral, a situação fisiológica do cérebro. Tanto em humanos quanto em animais de laboratório, foram observadas profundas alterações no padrão do EEG, consistentes com um estado de sonolência ou torpor. Estudos de laboratório também foram feitos a respeito dos efeitos da Cannabis sobre a função cognitiva, a qual mostrou prejudicar o desempenho cognitivo em uma grande variedade de testes. No entanto, trabalhos científicos indicam que os efeitos danosos da Cannabis sobre as funções cognitivas mostramse mais discretos e tênues quando comparados àqueles produzidos pelo álcool, por exemplo. Tais estudos afirmam que respostas comportamentais que necessitam de uma rápida mobilização mostram-se muito prejudicadas mesmo por uma dose moderada de álcool, enquanto que doses altas de Cannabis não mostraram o mesmo efeito. Entre os prejuízos cognitivos causados pelo uso da Cannabis, já comprovados em muitos, porém não em todos os indivíduos, incluem-se: diminuição da habilidade de inibição de respostas, diminuição da vigilância, especialmente em tarefas longas e entediantes, diminuição da habilidade de realizar cálculos mentais complexos e prejuízos em testes de reações de tempo. Com relação à suposta atividade da Cannabis como estimulante do apetite, as investigações científicas confirmam esse fato, embora os resultados sejam variáveis. Testes clínicos demonstraram que o THC desempenhou um significativo efeito benéfico contra a perda de apetite e a redução do peso corporal em pacientes com AIDS, e essa é uma das indicações médicas para as quais essa substância foi aprovada oficialmente nos Estados Unidos. Trabalhos realizados indicam que o possível mecanismo pelo qual ocorre esse aumento no apetite seja devido à ação inibidora dos canabinóides sobre os efeitos de um hormônio chamado leptina que, em condições normais. Atua promovendo menor ingestão alimentar e regulando o eixo hipotálamo-hipófise, regulador do apetite, além de atuar sobre mecanismos neuroendócrinos. Muitas dúvidas existem a respeito da possibilidade de que o uso crônico de Cannabis possa causar efeitos irreversíveis às funções cerebrais, que persistam após a pessoa parar de usá-la. Essa é uma questão controversa e estudos que possam confirmar ou refutar essa hipótese são de difícil elaboração, uma vez que não é suficiente identificar um grupo de usuários e simplesmente testá-los após pararem de usar. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 82 www.estetus.com.br Embora exista essa dificuldade, que pode prejudicar os resultados de testes já realizados, a conclusão de algumas pesquisas a respeito do tema é que o uso regular de Cannabis pode, sim, causar pequenos, porém significativos, prejuízos sobre a função cognitiva, e que podem persistir após o término do uso. Esses danos parecem estar associados ao uso pesado e de longo prazo da planta e não parece afetar o que se chama de “usuários de recreação”. Além dos efeitos sobre o sistema nervoso central, os canabinóides interferem em muitos outros processos do organismo humano, da mesma forma que fazem outros alucinógenos. Com relação aos efeitos cardiovasculares, produzem taquicardia dose- dependente, podendo ultrapassar a frequência de 160 batimentos por minuto, embora a tolerância a esse efeito seja desenvolvida com o uso persistente. Ainda com relação aos efeitos vasculares, a ocorrência de vasodilatação e vermelhidão das conjuntivas é vista como sendo considerado um sinal característico do uso de Cannabis. Esses efeitos cardiovasculares podem representar um grande risco para indivíduos que apresentem uma doença cardíaca pré-existente, e vários casos de incidentes cardíacos agudos já foram relatados em jovens os quais faziam uso da planta. Com relação aos efeitos sobre o sistema respiratório, as preparações feitas à base de Cannabis com o intuito de serem fumadas apresentam uma composição química muito semelhante à do tabaco, como já foi mencionado anteriormente, ou seja, monóxido de carbono, diversas categorias de irritantes brônquicos, agentes mutagênicos que podem desencadear o desenvolvimento de tumores, e agentes carcinogênicos. Estima-se que um cigarro feito de Cannabis, quando fumado, aumente cinco vezes mais a concentração de carboxi-hemoglobina e três vezes mais a quantidade de alcatrão inalado e retido no trato respiratório do que um cigarro convencional de tabaco. Em função desse e de outros fatores, o fumo crônico de Cannabis está associado a crises de asma, bronquite e ocorrência de enfisema pulmonar. Existem evidências de que o fumo de 3 a 4 cigarros de maconha seja equivalente ao fumo de 20 cigarros ou mais por dia, com relação à ocorrência de bronquite aguda e crônica e ao alto grau de dano à mucosa brônquica. Além disso, parece haver um aumento da incidência de câncer orofaríngeo em pessoas jovens que fumam Cannabis de forma crônica. Ainda com relação aos efeitos sobre outros sistemas que não o central, a Cannabis parece possuir efeitos imunossupressores e endócrinos. Especificamente com Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 83 www.estetus.com.br relação ao sistema endócrino, existem relatos de desenvolvimento de ginecomastia em homens jovens, que é o desenvolvimento anormal das glândulas mamárias, associada ao uso da maconha. O uso crônico também está associado a riscos reprodutivos, tanto à mãe durante a gestação e ao feto quanto ao recémnascido, embora sejam necessários mais estudos nessa área. Muitos relatos já foram feitos a respeito do possível estabelecimento de tolerância aos efeitos da Cannabis, tanto aos efeitos psicoativos quanto aos efeitos sobre demais sistemas orgânicos. Isso significa que, para manter o mesmo efeito obtido inicialmente, as pessoas que dela fazem uso precisam aumentar a dose regularmente. A existência de sintomas de retirada também já foi demonstrada de forma clara por estudos científicos, tanto em animais de laboratório quando em humanos. Esses sintomas de retirada, ou de abstinência, são muito semelhantes aos causados pelo álcool, por agentes opióides ou por drogas benzodiazepínicas, os quais incluem sensação de impaciência, insônia, ansiedade, predisposição a comportamentos agressivos, anorexia, tremores musculares e efeitos autonômicos. Portanto, em função de haver desenvolvimento de tolerância, fazendo com que o usuário necessite aumentar sua dose para obtenção dos efeitos desejados. E de ocorrer sintomas com a retirada do uso, facilitando o encorajamento da continuidade do uso, o uso crônico da Cannabis parece sim causar dependência, ao contrário de informações polêmicas que são divulgadas, existindo, inclusive, pacientes em tratamento contra a dependência. Portanto, frases como “eu fumo há 40 anos e nunca me viciei”, como algumas que foram divulgadas na mídia recentemente, devem ser interpretadas apenas do ponto de vista cômico e teatral, realmente, uma vez que as investigações científicas e os relatos de pacientes mostram que o contrário com frequência acontece. COCA (Erythroxylon coca) Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 84 www.estetus.com.br Erythroxylon coca Nome científico Pertencente à família botânica Erythroxylaceae e ao gênero Erythroxylon, a espécie vegetal conhecida como “coca” foi descrita pela primeira vez como sendo pertencente a esse gênero em 1783, por A. L. Jussieu, embora seu nome tenha sido cunhado em 1786 por Lamarck, que a chamou de Erythroxylon coca. Embora tenha sido considerada como um único espécime botânicopor mais de 100 anos, hoje se sabe que existem duas variedades distintas. A primeira, denominada Erythroxylon coca variedade coca, é aquela conhecida com “coca boliviana” ou “coca huánuco”, e representa a variedade ancestral, tendo originado a segunda variedade, Erythroxylon coca variedade ipadu, conhecida como “coca amazônica”. Nomes populares A espécie Erythroxylon coca é conhecida como “coca” pelos povos dos altiplanos andinos, que a utilizam desde tempos ancestrais. A palavra coca foi originada do termo khoka que, na língua aymara – considerada a língua mãe na Bolívia e no Peru e também Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 85 www.estetus.com.br presente antes mesmo da chegada dos incas à região significa: árvore. Também é conhecida pelo nome de “ahpi” pelos índios Tukano de regiões brasileiras, palavra que tem o significado de leite ou leite materno. Em algumas tribos indígenas do extremo norte do Brasil também é conhecida como “epadu”, nome que remete à forma de uso das folhas de coca, as quais são utilizadas trituradas. Informações botânicas A espécie Erythroxylon coca é uma espécie perene que pode ser encontrada nas formas arbustiva ou arbórea. Sua propagação pode ser feita por meio de sementes ou estaquia, sendo que cada fruto produz uma só semente. Sua germinação ocorre em aproximadamente 24 dias e uma plantação pode vingar por até 15 a 20 anos. A colheita das folhas pode originar de 1700 a 2250 kg por hectare e, nos dois primeiros anos, pode haver uma média de 2 a 3 colheitas. Suas folhas são alternadas, elípticas ou ovaladas, com pecíolo, e apresentam duas linhas longitudinais em ambas as extremidades. Possuem flores pequenas e perfumadas, de coloração entre branca e amarela, que florescem nas axilas das folhas. Cresce melhor em altitudes entre 1200 e 2000 metros, com temperaturas amenas e apresenta pouca tolerância a temperaturas elevadas. Seus frutos são pequenos e de coloração avermelhada. Sua propagação se dá tanto por semente quanto por mudas transplantadas. Folhas de coca secas (a); folhas de coca secas para comercialização na região andina (b). b a Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 86 www.estetus.com.br Histórico A coca é uma espécie vegetal considerada sagrada pelos povos que habitam a região andina na América do Sul. Os incas, que habitavam principalmente a região onde hoje é Cuzco, no Peru, cultivavam e consumiam as folhas da coca, principal parte utilizada da planta, conservando diferentes lendas sobre sua origem. Para os incas, a coca teria uma ligação direta com a lenda de Manco Capac, que teria sido o primeiro inca, descendente direto do Deus Sol, para eles chamado de Inti. Diz a lenda que Manco Capac, o filho do Sol, teria descido dos céus sobre as águas do Lago Titicaca para ensinar aos homens as artes, a agricultura e para presentear-lhes com as primeiras sementes da planta cujas folhas seriam consumidas, tornando-os capazes de suportar a fadiga e a fome. Já para os índios Yunga, etnia indígena também de língua aymara e que habitavam a região onde hoje é a capital do Peru, Lima, o arbusto da coca possibilitaria derrotar o deus maligno. Portanto, em muitas regiões onde a planta da coca cresce naturalmente ou é cultivada, os habitantes possuem uma forte crença em sua origem divina, o que fez com que muitos sacerdotes mantivessem até hoje a tradição secular de utilizar as folhas para reverenciar seus deuses. Até hoje, a reverência aos deuses utilizando as folhas de coca faz parte da tradição religiosa de muitas populações indígenas do Peru, Colômbia, Bolívia e Equador, e pode ser vista em alguns eventos realizados com finalidades turísticas nessas regiões. Os primeiros relatos europeus sobre a utilização da planta datam de 1507 e foram feitos por Américo Vespúcio, o qual descreve o hábito de populações latino- americanas de se mascar as folhas juntamente com cinzas. No entanto, existem evidências arqueológicas que sugerem que as populações indígenas da região andina já utilizavam as folhas de coca há cerca de 5000 anos. Primeiramente, a mastigação de suas folhas era restrita aos sacerdotes e à classe dominante; eram oferecidas em sacrifício aos deuses, mastigadas como parte de cerimônias religiosas, e colocadas na boca dos mortos como forma de assegurar uma viagem segura e agradável ao próximo mundo. A mastigação casual de coca era considerada sacrilégio e punida rigorosamente. Com o declínio do Império Inca, o uso Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 87 www.estetus.com.br da coca começou a perder muito do seu significado religioso inicial e, na época da Conquista Espanhola, a mastigação das folhas já se encontrava disseminada entre todas as classes sociais. Quando se iniciou o processo de colonização nas regiões onde hoje se encontra o Peru, Bolívia e a Colômbia, as autoridades espanholas primeiramente condenaram o uso da coca, acreditando que os efeitos por ela produzidos tornavam os indígenas mais difíceis de serem catequizados e convertidos em força de trabalho, chegando mesmo a afirmar que era “uma planta enviada pelo demônio para destruir os nativos”. Assim, em 1551 o uso das folhas de coca pelas populações indígenas da região foi banido pelo Conselho Eclesiástico de Lima. Em 1569, no entanto, o Rei Felipe II da Espanha decretou que o ato de mascar as folhas de coca representava um hábito essencial para a manutenção da saúde do índio, liberando novamente seu consumo. O que pode ter parecido um ato de reconhecimento da cultura indígena local nada mais era que o interesse na otimização da força de trabalho, pois as autoridades espanholas perceberam que mascar as folhas aumentava o desempenho e diminuía a fome e a sede dos índios cativos, que eram explorados para o trabalho. Assim, sob o efeito dos princípios ativos contidos nas folhas, os índios trabalhavam mais arduamente e tinham menor necessidade de alimentação, efeito esse que é reconhecido até hoje. Frequentemente, passaram a ser pagos por seus trabalhos com folhas da coca e a Igreja Católica, que havia inicialmente declarado que seu uso era pecaminoso, passou a manter plantações para esse fim. Após a colonização espanhola, os médicos, botânicos e demais pesquisadores que acompanhavam as expedições, passaram a levar para a Europa a planta que continha princípios considerados por eles como “euforizantes”, visando introduzir seu uso na sociedade europeia. Ao contrário do que se poderia esperar, no entanto, a sociedade europeia da época não se interessou muito por seu uso, que teve seu ápice, somente muitas décadas depois. Embora seja uma planta nativa da região andina, principalmente no Peru e na Bolívia, a espécie Erythroxylon coca cresce naturalmente hoje em muitas regiões da América do Sul, tais como o Chile, a Argentina, a Colômbia e outras regiões da Bacia Amazônica. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 88 www.estetus.com.br Cultivada em clima tropical e altitudes que variam entre 450 e 1800 metros acima do nível do mar, continua sendo usada pelos nativos da região, que mascam suas folhas em uma grande variedade de situações. Atualmente, também é cultivada na África (principalmente em Camarões) e na Ásia (especialmente na Índia e na Indonésia). Usos populares e efeitos popularmente relatados Um grande número de lendas se refere à espécie como estando envolvida nos mistérios sagrados da fertilidade, da sobrevivência e da morte, bem como em práticas curativas amplamente difundidas entre as populações indígenas das regiões andinas. Muitas tribos da Bacia Amazônica, principalmente na região de fronteira entre a Venezuela, a Colômbia e o Brasil, mantêm o hábito de mascar o “epadu”, ou “ipadu”. Nessa forma, as folhas são consumidas torradase misturadas com elementos básico-alcalinos, transformadas em pó e agrupadas em pequenas bolinhas. Os homens e as mulheres mais idosos, principalmente índios brasileiros da tribo Tukano, ingerem o pó várias vezes ao dia. Além de ser consumida em função de seu alto valor nutritivo, esses indígenas buscam o bem-estar e a ação euforizante para realização de suas tarefas cotidianas; portanto, o uso das folhas da coca está profundamente inserido na cosmologia e na cosmovisão dessas populações indígenas. Desde tempos antigos, as folhas da coca são utilizadas pelas populações tradicionais como anestésico estimulante e como um inibidor da fome, sede e cansaço. Também são utilizadas para inibir a náusea induzida pelas grandes altitudes, para impedir os vômitos e no tratamento de dores de estômago. Muitos nativos das montanhas peruanas utilizam-na para evitar a fome, aliviar a fadiga e para “elevar o espírito”. A toxicidade do uso tradicional parece ser muito baixa, uma vez que poucas concentrações de alcaloides estão disponíveis nas folhas em forma bruta. Quando efeitos danosos ocorrem, muitas vezes não são notados, ou são associados a outras condições. A quantidade do princípio ativo presente nas folhas que são mastigadas é relativamente baixa. A estimativa é de que, em média, fossem mascadas 60 g de folhas por dia, ou seja, em torno de 200 a 300 mg de cocaína – em forma bruta e não refinada –, principal princípio ativo presente nas folhas e sobre a qual será falado mais detalhadamente adiante. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 89 www.estetus.com.br Com relação ao uso tradicional, parece haver um limite, até mesmo físico, do número de folhas capazes de serem mascadas, servindo até como uma segurança contra os efeitos tóxicos das folhas utilizadas pelas populações tradicionais. O uso de cinzas junto com as folhas, realizado no ato da mastigação, deve-se ao fato de sua absorção pela mucosa da cavidade oral apenas se realizar em pH básico, fato esse observado desde os antigos que já a utilizavam. Os efeitos das folhas mascadas sobre o corpo é semelhante aos efeitos produzidos pela ingestão de grandes doses de cafeína. Dados químicos e farmacológicos A descoberta dos componentes químicos das folhas de coca, bem como da cocaína como sendo seu principal componente bioativo, possui uma longa e detalhada história, bem como informações ligeiramente desencontradas com relação às datas precisas. Em 1855, o químico alemão Friedrich Gaedcke conseguiu preparar um extrato à base das folhas de coca, que ele chamou de erythroxylene. Em 1859, outro químico também alemão, chamado Albert Niemann, conseguiu isolar a cocaína desse extrato das folhas produzido por Gaedcke, entre os numerosos alcaloides que ali existiam, e notou que só a cocaína representava cerca de 80% do total de alcaloides presentes. Além da cocaína, outros alcaloides também se mostraram presentes no extrato, tais como a nicotina, a cafeína e a morfina. Em concentrações menores, também foram encontradas as vitaminas tiamina, riboflavina e ácido ascórbico. Os efeitos fisiológicos específicos da cocaína passaram a ser estudados a partir de 1862, e a partir de 1880 suas propriedades farmacológicas começaram a ser investigadas. Em 1885, um químico que trabalhava para a indústria farmacêutica, Parke Davis, descobriu uma maneira de produzir cocaína semi-refinada nos países onde as fábricas estavam instaladas, revolucionando a produção que, até então, era feita levando-se as folhas da coca da América do Sul para outros países. Em que eram transformadas em produtos, perdendo-se muito da concentração do princípio ativo ao longo desse transporte. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 90 www.estetus.com.br Treze anos depois, em 1898, a estrutura química da cocaína foi descoberta e, quatro anos mais tarde, em 1902, Richard Martin Willstätter, que em 1915 seria condecorado com o Prêmio Nobel de Química por seu trabalho sobre pigmentos vegetais, conseguiu produzir cocaína sintética em laboratório. A cocaína é um alcaloide, mais especificamente uma benzoilmetilecgonina, obtida por purificação a partir das folhas de E. coca, e representa cerca de 0,5 a 1,8% do peso seco do material vegetal. Cerca de trinta anos após o seu isolamento pelo químico alemão Gaedke, o uso medicinal da cocaína foi introduzida na medicina europeia por ninguém menos que Sigmund Freud, o renomado médico psiquiatra fundador da psicanálise. Freud ficou tão admirado com os efeitos da cocaína e com o que ele acreditava ser um potencial medicamentoso incomparável que, em 1884, escreveu um livro cujo tema central era justamente os efeitos da cocaína sobre o organismo humano. E para o qual ele deu o título de Uber Coca, que em alemão significa “Sobre a Coca”. Nesse livro, Freud se mostra convencido das propriedades medicinais da cocaína, enaltecendo-a em função dos efeitos provocados e relatando a prescrição que fez a pacientes em estados depressivos, de 50 a 100 mg por via oral. Em função de seu entusiasmo com a substância, Freud chegou a ser acusado de irresponsabilidade pela comunidade científica da época. Entre os efeitos medicamentosos da cocaína citados por Freud estão: estimulante, afrodisíaco, anestésico local, para o tratamento de diferentes tipos de asma e de desordens digestivas, contra exaustão nervosa, histeria e sífilis, no tratamento de mal-estares relacionados à altitude, no tratamento do alcoolismo e da dependência à morfina. O próprio Freud, segundo alguns de seus biógrafos, fazia uso diário de 200 mg de cocaína por dia, por via oral, em função do potencial medicamentoso da substância, por ele defendido. Em função disso, passou a tratar com cocaína um de seus amigos, Ernst Von Fleischl Marxow, um eminente fisiologista austríaco e estudioso do funcionamento cerebral, o qual havia amputado uma perna e se tornado dependente da morfina. No entanto, contrariamente ao esperado por Freud, Marxow não obteve nenhum quadro de melhora passando, inclusive, a desenvolver paranóias e alucinações e a se tornar dependente da cocaína. Freud também utilizou a cocaína para tratar outro Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 91 www.estetus.com.br amigo, Karl Koller, médico oftalmologista austríaco, o qual também se tornou dependente dessa substância. Em função dos resultados desastrosos obtidos, Freud mudou sua opinião a respeito das potencialidades médicas da cocaína e, em 1887, escreveu um novo livro, dessa vez depreciando e desaconselhando seu uso médico em função dos sintomas paranóides que observou em seus pacientes e de seu grande potencial em causar dependência. Em 1892, chegou mesmo a reeditar o livro Uber Coca, contradizendo o que havia afirmado na primeira edição a respeito da cocaína. Em 1884, o próprio Karl Koller, que havia sido tratado por Freud e que era médico oftalmologista, demonstrou, pela primeira, vez que o olho humano se tornava insensível à dor quando sob o efeito da cocaína e, desta forma, foi o primeiro a defender a cocaína como um potencial anestésico. E foi como anestésico local que a cocaína se difundiu na prática médica ocidental. Além da ação anestésica, a cocaína produz uma série de outros efeitos fisiológicos sobre diferentes sistemas orgânicos. Atua, também, como um potente agente vasoconstritor; possui forte efeito sobre o sistema nervoso simpático; aumenta a frequência cardíaca e a pressão sanguínea, entre tantos outros efeitos. Do ponto de vista de abuso da substância, os efeitos mais relevantes da cocaína incluem a grande habilidade em produzir euforia e à sua capacidade reforçadora, o que facilita o estabelecimento do vício. Portanto, embora tenha sido inicialmente empregada pela medicina, como um anestésico local, muitos outros compostos foram desenvolvidos quese mostraram, e ainda se mostram, superiores em eficácia à cocaína para este fim, além de não causarem os múltiplos efeitos indesejados desta. Atualmente, o único emprego médico desse alcaloide ocorre nos Estados Unidos, com o intuito de evitar sangramento nasal durante a entubação nasotraqueal, em função de seu efeito vasoconstritor e como analgésico local. Diversos estudos já comprovaram que efeitos estimulantes e alucinógenos da cocaína ocorrem em função de sua ação sobre neurotransmissores cerebrais específicos. Possui um efeito simpatomimético, ou seja, atua estimulando as funções gerais do organismo. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 92 www.estetus.com.br Potencializa os efeitos da estimulação simpática em quase todos os sistemas corporais, principalmente o sistema nervoso central, por meio da inibição da recaptação de catecolaminas (adrenalina, noradrenalina, dopamina, etc.) pelos terminais nervosos. Como a recaptação das catecolaminas é a principal forma de finalização da transmissão simpática, a resposta adrenérgica acaba sendo potencializada, uma vez que a concentração de catecolaminas vai aumentando na fenda sináptica. Além disso, outro mecanismo de ação da cocaína se refere ao bloqueio de canais de sódio inibindo, assim, a formação de um potencial de ação (tanto neuronal quanto no músculo cardíaco). Um sistema específico de neurotransmissores parece ser particularmente afetado pela cocaína, sendo relacionada a ele a maioria dos efeitos observados: o sistema dopaminérgico. Em regiões do cérebro, os receptores dopaminérgicos parecem possuir um sítio específico de ligação para a cocaína. Assim, quando ligada a este sítio específico do receptor dopaminérgico, a cocaína impediria a recaptação de dopamina, levando ao aumento das concentrações na fenda sináptica. Acredita-se que esse mecanismo de ação desempenhe um papel importante no mecanismo de recompensa. No qual leva ao abuso da cocaína, quando ocorre nos neurônios dopaminérgicos que partem do tronco cerebral e vão até o sistema límbico, área do cérebro que participa da regulação do comportamento emocional e da percepção do prazer. Os efeitos observados com o uso da cocaína tais como: resposta eufórica, hiperatividade, hiperestimulação sexual, entre outros efeitos considerados “prazerosos”, podem ser relacionados, portanto, ao aumento da dopamina especificamente nessas vias neuronais. Por meio do mecanismo de inibição da recaptação, portanto, a cocaína aumenta a quantidade de dopamina; no entanto, este efeito é apenas temporário, sendo seguido por uma queda dos níveis de dopamina a níveis abaixo do normal, o que pode explicar a ânsia por novo uso, estabelecendo-se um mecanismo de dependência. A cocaína parece afetar também, de forma significativa, as concentrações cerebrais de outro neurotransmissor: a serotonina. Inibindo sua síntese, que é feita a partir do aminoácido triptofano, e aumentando as ações da hidroxilase que a inativa, a cocaína pode promover uma diminuição da concentração normal de serotonina no cérebro. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 93 www.estetus.com.br A serotonina está envolvida na regulação do sono, apetite e do humor, o que ajudaria a explicar os efeitos da cocaína como inibidora do sono e anorexígeno. Outros efeitos da cocaína, como midríase (dilatação das pupilas), hipertensão, taquicardia e taquipnéia parecem ser mediados por uma ação da cocaína também sobre o sistema noradrenérgico de neurotransmissão, efeitos esses que são importantes do ponto de vista toxicológico. Além dos efeitos centrais, a cocaína produz uma ampla gama de efeitos sobre outros sistemas orgânicos. Estudos afirmam que a cocaína possui um forte efeito sobre o sistema cardiovascular, podendo induzir arritmias cardíacas e fibrilação ventricular. Frequentemente produz dores torácicas, hipertensão, distúrbios psiquiátricos como psicose, paranóia, agitação, ansiedade, depressão e ataques de pânico. Também é relatado, com frequência, ocorrência de hemorragia subaracnoídea, acidentes vasculares cerebrais, convulsões, dores de cabeça e até mesmo morte súbita com o uso de cocaína. AYAHUASCA Ayahuasca sendo preparada para uso ritual. Histórico Diferentemente do que vem sendo apresentado, a ayahuasca não representa uma espécie vegetal psicoativa e, sim, uma bebida preparada a partir de diferentes Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 94 www.estetus.com.br espécies vegetais. Portanto, a ordem dos tópicos que vinha sendo apresentada não será seguida aqui, de forma a tornar as informações mais coerentes. A ayahuasca é considerada por aqueles que dela fazem uso como um “enteógeno”, e não um alucinógeno propriamente dito. Enteógenos podem ser entendidos como substâncias nas quais geram experiências de cunho místico, que fazem com que aqueles que as vivenciam se sintam mais próximos do Divino, da esfera cósmica. Portanto, como pode ser compreendido por meio desta afirmação, o uso da ayahuasca tem se difundido muito mais vinculado a um contexto religioso e de facilitação do autoconhecimento do que como um alucinógeno de recreação, diferentemente de outras espécies vegetais. Embora frequentemente associado a grupos religiosos espalhados pelo Brasil e, hoje, também por muitos países ao redor do mundo, o uso da ayahuasca remete a tempos remotos entre grupos indígenas da Bacia Amazônica, e passou a chamar a atenção dos antropólogos ocidentais a partir da metade do século XIX. Embora não existam registros precisos da origem histórica do uso da ayahuasca, algumas evidências arqueológicas sugerem que seu uso poderia ter ocorrido já entre 1500 a 2000 anos antes de Cristo, na região da Amazônia Equatoriana, evidências essas que não dizem respeito especificamente ao uso da ayahuasca e, sim, a muitas outras espécies vegetais psicoativas; acredita-se que, se os grupos humanos desta região desenvolveram um conhecimento tão vasto a respeito de um grande número de outras espécies vegetais psicoativas por volta desta época, muito provavelmente a ação da ayahuasca também era conhecida, e seu uso também já era realizado. Para uma ampla e profunda revisão sobre as origens da utilização da ayahuasca, recomenda-se a leitura do trabalho intitulado Ayahuasca: An Ethnopharmacologic History (Ayahuasca: História Etnofarmacológica), do etnofarmacologista norte- americano Dennis McKenna, a quem a autora gostaria de agradecer particularmente pelas contribuições oferecidas durante a preparação deste item. Além de Dennis McKenna, a autora também agradece a Jace Callaway e a Jordi Riba, os quais se mostraram muito gentis ao enviar seus artigos originais, bem como demais informações, que foram incorporados neste item. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 95 www.estetus.com.br O termo “ayahuasca” vem da língua quíchua, uma das línguas oficiais do Equador, Peru e Bolívia, e significa “trepadeira das almas”, “vinho dos mortos” ou ainda “vinho das almas”, em uma referência direta ao seu efeito místico. No contexto tradicional, é uma bebida utilizada por xamãs, pajés ou outros indivíduos que atuam como líderes religiosos de comunidades indígenas amazônicas, principalmente em ritos de passagem, como fonte de cura para enfermidades do corpo e da alma, em rituais mágicos e religiosos. Estima-se que a ayahuasca faça parte do contexto social e cultural de mais de 70 grupos indígenas no Brasil, Venezuela, Equador, Peru e Bolívia. Sendo frequentemente empregada como um potente remédio, para promover o encontro com espíritos, entidades mágicas e divindades, para compreensão dos mistérios da natureza, entre outras condições da cultura de tais comunidades. O contato de seringueiros, agricultores e de populações ribeirinhas, que foram se instalando naregião amazônica no início do século passado. Proporcionou não só o contato com a bebida de uso ritual como a sua incorporação nos elementos religiosos já estabelecidos nesses grupos sociais, de forma que o uso da ayahuasca atingiu um novo contexto cultural. A partir das décadas de 20 e 30, aproximadamente, a bebida passou a representar o principal meio de contato com as dimensões espirituais em grupos religiosos brasileiros marcados por um forte sincretismo religioso, nos quais se fundem elementos das tradições indígenas, do catolicismo e de rituais afrobrasileiros. Três dos principais grupos pertencentes ao que se denomina de “religiões ayahuasqueiras” são representados atualmente pela União do Vegetal, pelo Santo Daime e pela Barquinha, entre outros grupos menores. Embora com manifestações distintas, os grupos tendem a ter características comuns, todas norteadas pelo consumo ritual da ayahuasca. Esse consumo é feito de maneira ritualística, incluindo ritos de iniciação e graus de aprendizagem; além disso, tais religiões são marcadas por princípios éticos e morais bem determinados, estabelecidos com base no grande envolvimento de seus membros tanto com os rituais em si quanto com a própria comunidade religiosa. Embora surgidas no território da Amazônia brasileira nas décadas de 20 e 30, atualmente encontram-se grupos espalhados por todo o território nacional, sendo que Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 96 www.estetus.com.br um grande número também já foi implantado em outros países. Principalmente no continente europeu, por brasileiros ali radicados ou por estrangeiros que, tendo tido contato com tais religiões no Brasil, para lá levaram o conhecimento do uso. A ayahuasca é preparada a partir da fervura de muitas horas do caule cortado da espécie Banisteriopsis caapi, com uma de diversas outras espécies vegetais, na dependência do contexto cultural de preparo. Mais de 90 espécies diferentes, pertencentes à cerca de 40 famílias botânicas, podem ser individualmente adicionadas à Banisteriopsis caapi no preparo da ayahuasca. Entre as quais podem ser citadas Nicotiana tabacum e Nicotiana rustica (tabaco), Erythroxylon coca (coca), Ilex guayusa (do gênero ao qual pertence à erva-mate), Paullinia yoco (do gênero do guaraná), Brugmansia suaveolens e Brugmansia insignis (saia-branca ou trombeteira), entre outras. De todas as possíveis espécies empregadas no preparo da ayahuasca, sem dúvida duas são as mais frequentes, Psychotria viridis e Diplopterys cabrerana, sendo a primeira a mais relevante em termos do número de grupos que a utilizam. Portanto, em função do possível emprego de diferentes espécies vegetais, juntamente com Banisteriopsis caapi, no preparo da ayahuasca, é sempre importante especificar quais espécies foram utilizadas, quer seja para uso ritual da bebida ou para fins de investigação de sua atividade biológica. Neste capítulo, será dada ênfase à ayahuasca preparada a partir de Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis. A história do conhecimento sobre a ayahuasca também recebeu importantes contribuições a partir do trabalho do antropólogo Luis Eduardo Luna, o qual foi o primeiro a utilizar o conceito de “plantas mestres”, como são consideradas muitas plantas capazes de produzir experiências místicas. Foi por meio do trabalho deste pesquisador em parceria com Dennis McKenna, em 1986, que surgiu o interesse em uma possível investigação biomédica sobre a ayahuasca. Tal investigação pôde ser iniciada a partir de 1991, quando foram convidados pela União do Vegetal a participar da primeira Conferência de Estudos Médicos sobre a Ayahuasca, em São Paulo. Retornando aos Estados Unidos, McKenna passou a elaborar as bases dessa investigação, a qual seria posteriormente conhecida como PROJETO HOASCA, e que teve seus trabalhos iniciados em 1993, contando com a participação de importantes Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 97 www.estetus.com.br pesquisadores da Universidade da Califórnia, da Universidade de Miami, da Universidade de Kuopio na Finlândia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e do Hospital Amazônico de Manaus. Tendo sido legitimada para uso ritual e adquirido status legal para uso em contexto religioso pelo Conselho Nacional de Entorpecentes brasileiro em 1992. As discussões sobre ayahuasca permanecem polêmicas, e seu uso ritual tem gerado grande impacto não só sobre a religião como também sobre a política, a ciência e a sociedade de forma geral. Nomes científicos e populares A espécie Banisteriopsis caapi é pertencente à família Malpighiaceae, e é conhecida popularmente como hoasca, mariri, jagube, entre outros nomes, os quais variam em função da comunidade que a utiliza. Já a espécie Psychotria viridis pertence à família botânica Rubiaceae, sendo conhecida como chacrona, chacruna ou rainha, entre outras denominações, também variando em função do local e da comunidade. Já a bebida, preparada com base nas duas espécies, pode também receber diferentes nomes, tais como daime, yagé, chá, hoasca, natema, vegetal, dapa, mihi, mariri, entre outras denominações. Banisteriopsis caapi Psychotria viridis Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 98 www.estetus.com.br Informações botânicas Banisteriopsis caapi – É uma planta arbustiva, considerada uma liana, nativa de florestas tropicais e que não atinge grandes alturas. Sua casca é lisa e possui coloração marrom. Suas folhas são opostas, ovaladas, inteiras, de superfície lisa de coloração verde intensa. Suas inflorescências podem se desenvolver tanto nas axilas quanto nas porções terminais da planta. Suas flores são pequenas e apresentam pétalas de coloração rósea. Em função do fato de dificilmente produzirem sementes, a propagação da espécie é prioritariamente vegetativa. Psychotria viridis – De hábito perene, é uma espécie arbustiva podendo, no entanto, atingir até 5 metros de altura. Suas folhas são peninervadas, opostas e cruzadas, lanceoladas, inteiras e com pecíolos curtos. Suas flores se desenvolvem em inflorescências e seus frutos, de tamanho pequeno, possuem coloração arroxeada. Cada fruto possui até 2 sementes, cada um com dois cotilédones. Desenvolve-se bem tanto com alta exposição ao sol quanto em áreas sombreadas e prefere solos férteis e bem drenados. Dados químicos e farmacológicos Como já mencionado, a ayahuasca é preparada pela combinação das folhas de Psychotria viridis, uma planta arbustiva, com o cipó ou a casca do caule da trepadeira Banisteriopsis caapi, os quais são fervidos por muitas horas e, então, decantados ou filtrados. O resultado é uma bebida viscosa, marrom e levemente oleaginosa. Sua ação biológica central ocorre em função de um extraordinário sinergismo entre os princípios ativos das duas plantas, raramente visto em preparações vegetais. Essa ação sinérgica, que intriga os pesquisadores até hoje, representa uma das realizações etnobotânicas mais significativas e antigas das culturas indígenas, que a descobriu sem os recursos técnicos dos quais dispõem os renomados farmacologistas. É mais uma incontestável evidência da importância do conhecimento etnobotânico como fonte de conhecimento empírico, principalmente quando diz respeito à atividade biológica de muitas espécies vegetais. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 99 www.estetus.com.br A teoria que explica a atividade oral da ayahuasca foi proposta pela primeira vez em um trabalho liderado por Dennis McKenna em 1984, no qual foi confirmado experimentalmente que a ação ocorria em função da combinação dos princípios ativos das duas plantas. Para entender essa relação, primeiramente é preciso conhecer quais são esses compostos ativos. Os principaiscompostos ativos de Banisteriopsis caapi são compostos chamados β-carbolínicos, e são principalmente quatro: harmina e tetrahidroharmina (em maiores proporções), harmalina (em menores proporções) e harmalol (traços), os quais podem representar de 0,5 a 1,95% do peso seco da planta - na dependência de variáveis como época de coleta, clima, condições de solo, entre outras. A harmina, presente em maior proporção quando comparado aos outros compostos, foi isolada primeiramente a partir das sementes de outra espécie vegetal, Peganum harmala, conhecida como arruda-da-síria, e que é uma planta nativa dos desertos asiáticos; somente em 1847 descobriu-se que também estava presente em grandes concentrações na espécie Banisteriopsis caapi. Essas βcarbolinas agem como inibidores reversíveis e altamente seletivos de uma enzima chamada monoaminaoxidase, mais conhecida como MAO. Essa enzima atua na fenda sináptica, entre os terminais nervosos, inativando neurotransmissores como a dopamina, a noradrenalina e a serotonina, para que esses neurotransmissores não ajam incessantemente nos terminais nervosos. Como os compostos β-carbolínicos de Banisteriopsis caapi inativam a enzima MAO, tais neurotransmissores se acumulam entre os neurônios, potencializando seus efeitos sobre o sistema nervoso central; embora essa potencialização também exerça efeitos fisiológicos importantes, não representa o principal mecanismo de ação da ayahuasca, o qual diz respeito mais aos efeitos do composto ativo presente em Psychotria viridis. Esse composto, pertencente à classe dos alcaloides, é chamado de dimetiltriptamina, ou DMT, o qual é estruturalmente relacionado à serotonina e, assim como outros compostos psicoativos alucinógenos, tais como o LSD e a mescalina, se liga a receptores serotonérgicos do tipo 5-HT2A, agindo como um agonista serotonérgico. O DMT pode representar de 0,1 a 0,66% do peso seco das folhas de Psychotria viridis, embora essas concentrações também estejam sujeitas às variáveis Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 100 www.estetus.com.br anteriormente mencionadas, além de variar de forma surpreendente ao longo de um mesmo dia. O DMT possui uma atividade alucinógena potente quando fumado, injetado ou inalado; entretanto, diferentemente de outras substâncias psicoativas conhecidas, parece ser inativo oralmente. Isso porque é metabolizado pela enzima MAO presente no fígado e no intestino. E é justamente aí que se encontra a relação sinérgica entre os compostos ativos de Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis: uma vez que os compostos βcarbolínicos presentes em B. caapi atuam como inibidores da MAO, a enzima inativada deixa de metabolizar o DMT presente em P. viridis que, aí sim, passa a ter condições de ser absorvido e de exercer seus efeitos psicoativos alucinógenos, como demonstrados experimentalmente no trabalho de McKenna, mencionado anteriormente. A grande maioria dos trabalhos existentes na literatura científica que afirmam avaliar os efeitos farmacológicos da ayahuasca, na verdade avaliam os efeitos das substâncias isoladas das espécies vegetais. Utilizadas no preparo da bebida, principalmente o DMT, ou de misturas entre o extrato de uma das plantas empregadas, fornecido por indústrias farmacêuticas e não preparado de maneira tradicional, com substâncias sintéticas. Os trabalhos que avaliam farmacologicamente os efeitos da ayahuasca integral, tal como utilizada tradicionalmente. Geralmente pertencem aos mesmos grupos de pesquisadores (Dennis McKenna, Jordi Riba, Jace Callaway e Jonathan Ott) envolvidos no já mencionado PROJETO HOASCA, os quais estudam os efeitos da ayahuasca preparada sob orientação de vegetalistas experientes das religiões sincréticas que dela fazem uso. Além disso, outros trabalhos que afirmam avaliar seus efeitos farmacológicos utilizam como via de administração a via intraperitoneal, enquanto que o uso tradicional se faz por via oral, ou misturam duas vias diferentes de administração, caracterizando um viés experimental. Em função dessas considerações, as informações a respeito dos efeitos biológicos centrais da bebida devem ser analisadas de maneira parcimoniosa, e estudos mais aprofundados devem ser realizados, de forma a minimizar a grande polêmica e especulação existente a respeito do tema. As primeiras investigações farmacológicas da ayahuasca em humanos, e que deram origem a um grande número de trabalhos científicos publicados, foram realizadas Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 101 www.estetus.com.br pelos pesquisadores integrantes do PROJETO HOASCA. Entre os resultados mais relevantes de tais estudos, realizados com voluntários, os quais faziam uso da bebida em um contexto ritual, inclui-se a elevação persistente das concentrações de serotonina plasmática, indicativo de um efeito de longo prazo sobre a modulação serotonérgica do sistema nervoso central que poderia estar relacionado a alterações adaptativas das funções cerebrais. Em 2003, a equipe liderada por Jordi Riba realizou, em 2003, um estudo clínico com a ayahuasca para avaliação de seus efeitos subjetivos e cardiovasculares, além de investigar a farmacocinética da substância em 18 voluntários sadios com experiência no uso de substâncias psicoativas. Os autores avaliaram também a quantidade de metabólitos monoaminérgicos presentes na urina desses voluntários, com o objetivo de medir os efeitos da ayahuasca como um inibidor da MAO. Nesse trabalho, os indivíduos foram rigorosamente selecionados e cada um recebeu cápsulas gelatinosas contendo diferentes quantidades de ayahuasca brasileira, liofilizada a partir da bebida tradicionalmente preparada, ou cápsulas de placebo contendo lactose. De forma resumida, a administração oral das cápsulas induziu um sentimento de ativação, euforia, bem-estar, efeitos somáticos, além de modificações da percepção, alterações do conteúdo do pensamento e aumento da instabilidade emocional, reações também observadas com outros compostos, tais como o LSD, a mescalina ou a cocaína. No entanto, os efeitos da ayahuasca diferiram dos desses últimos compostos com relação ao curso temporal. A duração total do efeito foi maior que a causada pelo DMT intravenoso, mas menor do que a causada pela mescalina ou pelo LSD. Ao contrário de drogas como a metanfetamina, a efedrina ou o metilfenidato, a ayahuasca não induziu aumento significativo na escala que avalia a percepção subjetiva da eficiência intelectual. Os autores afirmam, ainda, que a existência tanto de estimulação quanto da ampla variedade de alterações sensoriais coloca a ayahuasca como parte integrante da categoria dos compostos que possuem propriedades excitantes e psicoestimulantes. Com relação aos efeitos cardiovasculares, somente foi observada elevação significativa da pressão diastólica, em cerca de 9 mmHg, quando comparada com o grupo placebo e após 75 minutos da ingestão. Os aumentos na pressão diastólica, sistólica e na Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 102 www.estetus.com.br frequência cardíaca foram mais brandos do que os induzidos por outras drogas simpatomiméticas, tais como as anfetaminas ou o MDMA (conhecido como ecstasy). Os autores concluem sugerindo que os efeitos psíquicos produzidos pela ayahuasca talvez se deva ao DMT, uma vez que as concentrações plasmáticas desse composto atingem um pico máximo concomitantemente ao pico máximo dos efeitos percebidos, enquanto tais efeitos ocorrem mesmo com níveis plasmáticos desprezíveis de harmina. Já que parece haver um consenso na literatura científica de que os efeitos centrais da ayahuasca estejam principalmente, mas não só, relacionados ao DMT, uma importante distinção deve ser feita entre os efeitos causados por preparações, contendo exclusivamente DMT. E que são injetadas, fumadase inaladas e aquelas que são compostas por misturas de DMT e inibidores da MAO, como os compostos presentes em Banisteriopsis caapi, e que são utilizadas oralmente. Quando ingerido, inalado ou fumado, o DMT possui uma atividade muito mais rápida: o pico dos efeitos cognitivos parece ocorrer entre 3 e 10 minutos, com um grau de consciência retornando ao nível inicial após cerca de 30 minutos. De forma contrastante, os efeitos somáticos iniciais após o uso oral de DMT (náuseas, formigamentos, aumento da temperatura corporal) parecem ocorrer em aproximadamente 20 minutos, seguidos por uma gama de efeitos cognitivos que atingem um pico entre 60 e 120 minutos. Os efeitos cognitivos diminuem gradualmente, retornando ao estado normal em aproximadamente 4 horas. Em doses normalmente utilizadas, os efeitos psicológicos do DMT oral são menos intensos do que os produzidos por injeção, fumo ou inalação. Em uma ampla e atual revisão das informações científicas disponíveis sobre a ayahuasca, o autor Robert Gable afirma que qualquer tentativa de se caracterizar os possíveis efeitos adversos agudos da ayahuasca é prejudicada pelo número limitado de estudos científicos relevantes sobre as decocções que envolvem o DMT e os compostos β-carbolínicos. Tal quadro pode facilmente provocar uma confusão de interpretações, e induzir a especulações ou facilitar a ocorrência de inferências tendenciosas. O autor afirma, de maneira muito coerente, que argumentos feitos com base no ponto de vista legal são Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 103 www.estetus.com.br especialmente tendenciosos, uma vez que decisões legais e políticas devem ser tomadas à luz do quanto realmente se conhece a respeito de determinado assunto. Um exemplo pode ser dado por uma situação ocorrida em 2006 nos Estados Unidos, onde um caso envolvendo a questão sobre quão segura era a decocção vegetal contendo DMT e β- carbolinas utilizada ritualmente por membros de uma igreja Cristã espiritualista acabou sendo decidido pela Suprema Corte. A igreja prevaleceu na decisão unânime em parte devido ao fato do governo, o qual se opõe ao uso do DMT, não ter conseguido demonstrar se a ayahuasca realmente oferecia um grave risco à saúde dos membros que dela fazem uso. As informações disponíveis até o momento indicam que a toxicidade sistêmica aguda da ayahuasca é, por comparação, substancialmente menor que a do álcool. A dose letal média aguda do álcool etílico é de aproximadamente 330 g, 10 vezes mais do que a dose “recreacional” normal. Já a dose letal aguda da ayahuasca é de cerca de 20 vezes a dose eficaz. Essa margem de segurança é semelhante à de compostos como a codeína e a metadona, por exemplo. Existem dados que indicam que a probabilidade de ocorrer uma overdose tóxica com o uso de ayahuasca é aparentemente minimizada pela estimulação serotonérgica do nervo vago, o qual, por sua vez, induz a vômitos. A ocorrência de vômitos está presente em grande número de relatos existentes na literatura sobre experiências individuais com a ayahuasca. Em alguns contextos rituais, e também em certos contextos não religiosos, esse comportamento chega mesmo a ser encorajado e considerado como uma forma de purificação do corpo, parte importante do contexto. O risco de uma overdose parece estar relacionado, portanto, primeiramente ao uso concomitante ou anterior de outras substâncias serotonérgicas. Em função disso, pessoas com algum tipo de deficiência metabólica ou com um estado de saúde comprometido possuem, obviamente, mais riscos do que a população normal, e devem prudentemente se manter afastados do uso. Além disso, embora o acúmulo excessivo de serotonina promovido pelos compostos β-carbolínicos de Banisteriopsis caapi não sejam os principais responsáveis pelo efeito psicoativo alucinógeno da ayahuasca, tal acúmulo pode gerar um grande número de sintomas fisiológicos adversos pertencentes ao que se chama de síndrome Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 104 www.estetus.com.br serotonérgica. Tal quadro inclui tremores, diarreia, instabilidade do sistema nervoso autônomo, hipertermia corporal, transpiração excessiva e espasmos musculares. Portanto, é recomendável que indivíduos que tenham feito uso recente de espécies vegetais tais como Panax ginseng (ginseng), Hypericum perforatum (ervade- São-João), de antidepressivos tricíclicos e de compostos inibidores seletivos da recaptação de serotonina, entre outras substâncias, não façam uso da bebida. Além disso, como ocorre com todos os compostos de ação psicoativa, recomenda-se que indivíduos com histórico prévio de quadros psiquiátricos não a utilizem, uma vez que existe grande risco de exacerbação ou precipitação dos sintomas, principalmente de sintomas psicóticos. Adicionalmente, é importante ressaltar que a ação alucinógena da ayahuasca, bem como de outros derivados triptamínicos, pode precipitar graves reações psicológicas adversas. E, isto se torna especialmente verdadeiro quando administrada fora de contextos cerimoniais bem organizados, uma vez que a estrutura ritual no qual é ingerida permite certo controle da dose e dos efeitos psicológicos subsequentes. Com relação à possibilidade de ocorrência de síndrome de abstinência após o uso crônico de ayahuasca, não existem estudos até o momento comprovando que realmente exista. No entanto, é importante enfatizar que a despeito da presumida ausência de dependência fisiológica. A ayahuasca pode agir como um reforçador positivo, levando a um potencial de abuso significativo, embora seu perfil psicofarmacológico geral (derivado triptamínico) sugira a não existência do potencial de abuso visto, por exemplo, em substâncias como a cocaína, as anfetaminas, os opióides ou outras substâncias de abuso. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 105 www.estetus.com.br REFERÊNCIAS AKHONDZADEH, S.; ABBASI, S.H. Herbal medicine in the treatment of Alzheimer´s disease. Am. J. Alzheimers Dis. Other Demen, v. 21, p. 113-118, 2006. AKHONDZADEH, S.; KASHANI, L.; MOBASERI, M.; HOSSEINI, S.H.; NIKZAD, S.; KHANI, M. Passionflower in the treatment of opiates withdrawal: a double-blind randomizes controlled trial. J. Clin. Pharm. Ther., v. 26, p. 369-373, 2001. AKHONDZADEH, S.; NAGHAVI, H.R.; VAZIRIAN, M.; SHAYENGANPOUR, A.; RASHIDI, H.; KHANI, M. Passionflower in the treatment of generalized anxiety: a pilot double-blind randomized controlled trial with oxazepam. J. Clin. 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Neste contexto, um trabalho divulgado em 2005 apresenta uma lista de efeitos adversos que podem ocorrer em virtude do uso de determinadas espécies vegetais, tais como fotodermatite pelo uso da ervade-São-João ou da angélica (Hypericum perforatum e Angelica archangelica, respectivamente), distúrbios hepáticos Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 9 www.estetus.com.br pelo uso do mate (Ilex paraguariensis) ou desconforto abdominal pelo uso de sene (Cassia augustifolia), entre outros efeitos. Outra pesquisa, dessa vez realizada em 1999, também confirma a necessidade de uma atitude parcimoniosa com relação ao uso de plantas bioativas. Esse estudo apresenta o número de casos, óbitos e letalidade por agentes tóxicos registrados em centros de controle de intoxicações humanas no Brasil, de 1993 a 1996. Os autores do trabalho afirmam que, nesses três anos, foram registrados 5.862 casos de intoxicações causadas pelo uso de plantas, sendo que, em 31 dos casos, o paciente veio a óbito, o que fornece um índice de letalidade (porcentagem de óbito) de 0,53%. Quando comparado ao gigantesco número de 57.548 casos de intoxicações causadas por medicamentos convencionais, as intoxicações por plantas podem parecer irrelevantes. No entanto, se for considerado que, deste total de intoxicações por medicamentos, foram registrados 266 óbitos decorrentes, com um índice de letalidade de 0,46%, portanto menor do que o índice de letalidade por intoxicações com plantas, tem-se um claro quadro da situação. Ou seja, o uso de plantas por suas propriedades bioativas deve ser feito com o mesmo cuidado e a mesma parcimônia que deve ser dedicada a qualquer outro tipo de composto bio-ativo sintético, visando à manutenção da integridade física do organismo. INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAS PLANTAS CALMANTES Diferentes nomes populares são dados àquelas espécies vegetais utilizadas como calmantes: tranquilizantes, sedativas, plantas “que dão sono”, que “assossegam”, que “acalmam crianças”, entre muitas outras denominações populares. A despeito da grande variedade de nomes, uma coisa elas têm em comum: são utilizadas em condições de agitação nervosa ou psicomotora, de angústia, de desconforto associado a algum tipo de nervosismo, e seu uso, assim como outras categorias de plantas medicinais, remonta às origens dos grupos sociais e desde que a espécie humana passou a reconhecer sintomas e associá-los a doenças. A importância associada ao estudo das plantas medicinais é multidimensional: contribui para a continuidade do saber tradicional associado ao uso de espécies vegetais para tratar diferentes condições de saúde; contribui para a preservação dos recursos Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 10 www.estetus.com.br genéticos vegetais representados por tais espécies; representa uma fonte de conhecimento e práticas farmacológicas que se perpetuam há gerações, entre outros fatores tão ou mais importantes. Dentro do amplo conhecimento tradicional sobre plantas empregadas para tratar condições de saúde, aquelas que são utilizadas para acalmar as pessoas possuem um lugar especial, tanto em função da grande diversidade de espécies empregadas para este fim quanto em função da vasta quantidade de quadros de saúde associados, implicitamente, ao termo “acalmar”. O que a medicina ocidental sistematizou, classificou ou subdividiu em diferentes categorias de doenças, a cultura popular pode considerar como sendo uma entidade única. Assim, enquanto o padrão médico ocidental dá diferentes nomes ao que considera como sendo diferentes coisas, o saber médico tradicional pode chamar de uma coisa só, ou variações de um mesmo quadro, como é o caso da finalidade do uso das “plantas calmantes”. Em comunidades tradicionais não são utilizados com frequência termos como ansiedade generalizada, síndrome do pânico, distúrbio bipolar, depressão, transtorno do estresse pós-traumático ou epilepsias de diferentes tipos. Esses são quadros ou síndromes que englobam sintomas característicos e que foram categorizados pela medicina ocidental. No entanto, embora o saber médico tradicional não reconheça fundamentalmente tais categorias, conhecem, e muito bem, cada um de seus sintomas característicos. Dessa forma, podem não usar com frequência o termo “ansiedade generalizada”, mas já sabiam tratar sintomas de “angústia”, “aperto-no-peito”, “nervosismo”, “agitação”, muito antes do surgimento da medicina ocidental. Podem não usar o termo “insônia”, mas possuem muitos remédios vegetais para “falta de sono à noite” ou “sono que não vem”. O termo “epilepsia” pode também não ser muito usado, mas possuem remédios utilizados há muitas gerações para tratar “ataques de criança”, “ataques de cabeça” ou “ataques de espíritos”, alguns nomes populares pelas quais as epilepsias são conhecidas em determinadas comunidades tradicionais. Portanto, as plantas calmantes fazem parte do berço da medicina, como esta é entendida hoje, e por muitos séculos representaram o único meio de tratar condições que traziam algum tipo de desconforto aos indivíduos. E tal conhecimento mostra-se tão arraigado, mesmo na cultura tecnológica dos dias atuais, que não há uma só pessoa que não saiba dizer ao menos um nome de planta utilizada para acalmar. Caso esse fato pareça inverossímil, faça o teste: procure um amigo e peçao para dizer um nome de uma Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 11 www.estetus.com.br planta usada para acalmar. E mais: o número de plantas diferentes que aparecerão será, muito provavelmente, proporcional ao número de pessoas interrogadas. Muitas plantas têm sido utilizadas para combater, inclusive, os sintomas relacionados ao estresse em função de suas habilidades de agir no sistema nervoso, ou de induzir estados de relaxamento e tranquilidade. Outras plantas agem relaxando a tensão muscular, o que por si só já representa uma fonte de alívio, e outras ainda ajudam a eliminar dores de cabeça, também causadas por situações estressantes ou auxiliam a dormir. Consequentemente, muitos desses remédios vegetais considerados calmantes auxiliam a combater, ou diminuir, diversos sintomas relacionados ao estresse, incluindo fadiga, insônia, ansiedade e nervosismo. As plantas calmantes descritas (maracujá, Passiflora sp; melissa, Melissa officinalis; e valeriana, Valeriana officinalis) não se referem apenas a plantas frequentemente utilizadas por diferentes comunidades no mundo todo. Referem-se também a plantas cujos efeitos relatados pelas populações já foram, ou continuam sendo, estudados em diferentes laboratórios de pesquisa. A fim de elucidar quais princípios ativos estão associados aos seus tão conhecidos efeitos, ou a fim de produzir medicamentos, baseados nos conhecimentos tradicionais, que possam representar um novo tratamento a diferentes condições de saúde mental, tais como os transtornos de ansiedade ou outras condições associadas ao funcionamento cerebral. INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAS PLANTAS ESTIMULANTES A medicina popular tradicional conta com uma infinidade de espécies vegetais que são utilizadas em função de suas propriedades estimulantes, ou seja, que agem promovendo uma maior ativação do sistema nervoso central e, consequentemente, contribuem para manter o organismo mais alerta, estimulado, com maior resistência e vigor. Popularmente, são conhecidas por diferentes nomes: tônicas, estimulantes, revigorantes, fortificantes, entre outras designações. Em uma época em que se discutemhumanas no Brasil. Cad. Saúde Pública, v.15, n.4, p. 859-869, 1999. BROWN, T.T.; DOBS, A.S. Endocrine effects of marijuana. The Journal of Clinical Pharmacology, v. 42, p. 90S-96S, 2002. CALLAWAY, J.C. Various alkaloid profiles in decoctions of Banisteriopsis caapi. Journal of Psychoactive Drugs, v. 37, n. 2, p. 1-5, 2005. CAMI, J.; FARRE, M. Farmacología de los alucinógenos. Disponível em: . Acesso em 20/09/2007. CANTERLE, L.P. 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Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 113 www.estetus.com.br INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAS PLANTAS CALMANTES INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAS PLANTAS ESTIMULANTES INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAS PLANTAS ALUCINÓGENAS MARACUJÁ (Passiflora sp) Nome científico Nomes populares Informações botânicas Histórico Usos populares e efeitos popularmente relatados Dados químicos e farmacológicos MELISSA (Melissa officinalis) Nome científico Nomes populares Informações botânicas Histórico Usos populares e efeitos popularmente relatados Dados químicos e farmacológicos VALERIANA (Valeriana officinalis) Nome científico Nomes populares Informações botânicas Histórico Usos populares e efeitos popularmente relatados Dados químicos e farmacológicos PLANTAS ESTIMULANTES CAFÉ (Coffea arabica) Nome científico Nomes populares Informações botânicas Histórico Dados químicos e farmacológicos ERVA-MATE (Ilex paraguariensis) Nome científico Nomes populares Informações botânicas Histórico Dados químicos e farmacológicos GUARANÁ (Paullinia cupana) Nome científico Nomes populares Informações botânicas Histórico Dados químicos e farmacológicos MACONHA (Cannabis sp) Nome científico a b c Nomes populares Informações botânicas Histórico Usos populares e efeitos popularmente relatados Dados químicos e farmacológicos Nome científico Nomes populares (1) Informações botânicas (1) Histórico (1) Usos populares e efeitos popularmente relatados (1) Dados químicos e farmacológicos (1) AYAHUASCA Histórico Nomes científicos e populares Informações botânicas Dados químicos e farmacológicos REFERÊNCIASmuitos aspectos do modo de vida dito “estressante”, as pessoas estão fazendo uso dessas plantas com frequência cada vez maior, quer seja para aumentar sua produção individual, para conseguir realizar as inúmeras tarefas necessárias ou mesmo para aumentar suas capacidades cognitivas Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 12 www.estetus.com.br (memória e atenção, por exemplo). As plantas estimulantes são utilizadas tanto para melhorar a resistência e diminuir o cansaço quanto para diversos outros aspectos, tais como combater os sinais do envelhecimento, melhorar o desempenho sexual, combater o estresse e também para combater o sobrepeso/obesidade, finalidade esta última muito divulgada nos tempos atuais. Em função dessa grande diversidade de usos, muitas espécies vegetais estimulantes têm sido empregadas há muitos séculos. E, fazem parte do cotidiano e da rotina de milhares de pessoas ao redor do mundo, como é o caso do café (Coffea arabica), do cacau (Theobroma cacao) e de muitos tipos de chás estimulantes. Essas espécies não só movimentam um mercado de milhões de dólares como, historicamente, contribuíram para a formação de muitas sociedades, o que torna fácil compreender sua acentuada importância sócio-econômica. Atualmente, o número de bebidas energéticas disponíveis no mercado só tem aumentado. Essas bebidas possuem, em sua composição, extratos de espécies vegetais ou constituintes químicos derivados das mesmas, como é o caso da cafeína, composto bioativo primeiramente isolado do café, do guaraná (Paullinia cupana), do ginseng (Panax ginseng), do chá-verde (Camellia sinensis), da cola (Cola sp), da erva-mate (Ilex paraguariensis), entre outras espécies. Entre o final da década de 40 e início da década de 50, um pesquisador russo de nome Nikolai Lazarev, ao estudar algumas espécies vegetais estimulantes russas, criou o termo “adaptógeno” para designar plantas cujos efeitos, como o próprio nome diz, auxiliariam os indivíduos a se adaptar a determinadas situações, geralmente estressantes. Essas plantas, consideradas por Lazarev como adaptógenos, seriam capazes de aumentar o estado de resistência do indivíduo frente a situações de estresse, melhorar sua capacidade cognitiva, diminuir os déficits cognitivos decorrentes do envelhecimento, aumentar a disposição, entre outros fatores. Ou seja, à primeira vista, seria apenas uma nova denominação para aquelas plantas, já tradicionalmente conhecidas, como estimulantes. No entanto, o conceito de adaptógeno criado por Lazarev envolve uma atividade biológica mais abrangente, considerando principalmente três condições: a) a planta deve produzir aumento da resistência de forma não-específica, ou seja, relativa a todo o organismo e não apenas a um único sistema orgânico; Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 13 www.estetus.com.br b) sua ação deve promover a normalização de algum estado patológico presente no organismo; e, c) seus efeitos não devem causar nenhum dano e nem alterar desnecessariamente o funcionamento do organismo. Levando em consideração esses três critérios, é possível perceber que qualquer planta estimulante não pode, arbitrariamente, ser considerada um adaptógeno. Tanto porque, para que seja assim considerada, ela precisa ter sido intensamente estudada para a verificação de seus efeitos sobre diferentes sistemas orgânicos, porque deve ser desprovida de qualquer efeito tóxico. De forma simplista, é possível afirmar que uma planta considerada um adaptógeno pode ser considerada também uma planta estimulante, mas que o inverso não é verdadeiro – nem toda planta estimulante atua como um adaptógeno. De qualquer forma, é importante mencionar essa questão da terminologia, a qual vem sendo utilizada com maior frequência no Brasil. Com relação à constituição química das plantas estimulantes, grande parte delas (entre as quais já mencionadas aqui) possui algo em comum: a presença de compostos classificados quimicamente como metilxantinas. As metilxantinas são compostos que podem se comportar tanto como ácidos quanto como bases e ocorrem em mais de 50 espécies vegetais. Alguns pesquisadores as consideram como sendo alcaloides do tipo purínicos, embora exista alguma discussão a respeito. As metilxantinas mais conhecidas e de maior ocorrência em espécies vegetais são a cafeína, a teobromina e a teofilina. Do ponto de vista farmacológico, apresentam uma ampla gama de ações biológicas, em diferentes sistemas orgânicos; algumas delas são, inclusive, empregadas atualmente no tratamento de distúrbios respiratórios, como é o caso da teofilina. Sua ação sobre o sistema nervoso central é pronunciada: agem aumentando a disponibilidade de neurotransmissores catecolaminérgicos (principalmente dopamina e noradrenalina) eles atuam como antagonistas de receptores de adenosina (acelerando o metabolismo neuronal), entre outros mecanismos de ação ainda não totalmente esclarecidos. As espécies vegetais estimulantes apresentadas (café, Coffea arabica; erva-mate, Ilex paraguariensis; e guaraná, Paullinia cupana) foram escolhidas por dois motivos principais: primeiro, por serem espécies amplamente utilizadas pela população brasileira em função de suas propriedades estimulantes, em diferentes regiões brasileiras. E, em segundo lugar, e não menos importante, por serem espécies que, de Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 14 www.estetus.com.br alguma forma, caracterizam o folclore, a cultura e a sociedade brasileira em diferentes aspectos, além de movimentarem um grande volume financeiro. Em função de todas elas apresentarem usos e efeitos popularmente relatados muito semelhantes – como tônico, estimulante, para combater o cansaço e a fraqueza, para recuperar o vigor e a força, contra esgotamento mental, entre outros usos relacionados às suas propriedades estimulantes. INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAS PLANTAS ALUCINÓGENAS Na literatura científica, frequentemente se encontra a expressão “plantas psicoativas” como sinonímia para “plantas alucinógenas”. No entanto, é de suma importância uma breve distinção entre as duas expressões. Embora as plantas alucinógenas sejam plantas psicoativas, uma vez que atuam alterando estados mentais modulados pelo funcionamento do sistema nervoso central, nem toda planta psicoativa atua como planta alucinógena. Existe um grande número de plantas que atuam modificando aspectos da fisiologia do sistema nervoso central sem, entretanto, produzir alucinações. Mas, afinal, o que são alucinógenos? O que são alucinações? Muitas definições são propostas para ambos os termos, na dependência da área de estudo, e o objetivo não é discutir a pertinência de cada definição. Portanto, a definição aqui apresentada nada mais é do que uma entre várias, e não tem a pretensão de negar as demais; apenas se mostra mais coerente com o contexto das informações apresentadas. Alucinações podem ser consideradas como experiências individuais baseadas na percepção de algo que “não está lá” realmente. A despeito de ser a percepção de algo que não está presente para os demais, para a pessoa que a vivencia pode ser tão real quanto ela mesma. As alucinações podem estar presentes em condições médicas ou ser induzidas por outras situações, entre as quais figuram as substâncias alucinógenas. Quando associadas a condições médicas, muitas vezes são chamadas de “psicoses” ou de “quadros psicóticos”, quando o indivíduo afirma ter a percepção de algo que não é real, como ouvir sons que não estão sendo produzidos, ter percepções táteis sem origem real, sentir cheiros que não estão presentes, entre outras percepções ausentes de objeto. Uma das doenças caracterizadas pela presença constante de alucinações é conhecida por esquizofrenia. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 15 www.estetus.com.br Como mencionado,as alucinações podem ser induzidas por outras situações que não são decorrentes de uma condição médica, ou seja, ocorrem em indivíduos fisicamente sadios. Uma destas situações é o uso de substâncias alucinógenas. Alucinógena, portanto, pode ser considerada uma substância capaz de produzir percepções sem objetos, de alterar o sentido de tempo, de produzir distorções dos sentidos, tal como conhecemos, e de alterar a organização racional do pensamento. As substâncias alucinógenas podem ser naturalmente produzidas por fungos, plantas ou animais ou, ainda, ser sintetizadas artificialmente em laboratório. O estudo das plantas produtoras de substâncias alucinógenas, especificamente, tem aumentado vertiginosamente nas últimas décadas por diferentes razões, e muitos estudiosos da área consideram que os principais motivos para esse grande aumento do interesse devem-se aos seguintes fatores: a) Em função dos alucinógenos representarem uma “porta de entrada” para a compreensão dos intricados processos da mente, uma vez que seus efeitos afetam grande número de funções mentais humanas; b) Em virtude de representarem potencialidades terapêuticas, ou seja, de serem compostos bio-ativos que poderiam hipoteticamente atuar como medicamentos; c) Considerando que o uso de substâncias alucinógenas produz um quadro muito semelhante aos dos quadros psicóticos presentes em condições médicas, o estudo do mecanismo de ação dessas substâncias poderia lançar luz à fisiopatologia de tais condições; d) Em função do consumo de tais substâncias aumentarem progressivamente com o passar dos anos. A essa lista deveria ser acrescentado, embora não o seja com frequência, o fato de que essas plantas representam um meio importante para o conhecimento e entendimento de relações sociais e culturais. Nas quais se desenvolvem em muitas comunidades as quais possuem como elemento importante de seu contexto cultural o uso de plantas psicoativas alucinógenas. Pensar que o interesse pelo tema só é justificável em termos de que “pode auxiliar a modernidade”, seja na compreensão do funcionamento cerebral seja na produção de novos medicamentos, é uma visão excessivamente utilitarista e reduz sua relevância e seu caráter multidisciplinar. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 16 www.estetus.com.br Os seres humanos descobriram que algumas espécies vegetais eram capazes de alterar a percepção ordinária da mente nos primórdios de sua história, e mantêm sua utilização até os dias de hoje. Com relação a isso, dois questionamentos interessantes, resgatados da Introdução Geral, podem ser feitos. Primeiro, o que fez com que as plantas alucinógenas fossem tão importantes para os homens e seus ancestrais, a ponto dessa utilização ter sobrevivido até os dias de hoje? Segundo, existe, de um ponto de vista evolutivo, algum motivo especial pelo qual os homens tenham optado por usar determinadas espécies alucinógenas, a despeito de suas potencialidades tóxicas? Muitas hipóteses têm sido formuladas na tentativa de responder a tais questionamentos. Considerando sempre que representam apenas hipóteses, uma vez que muito dificilmente os processos históricos podem ser incontestavelmente comprovados, duas hipóteses para a manutenção do uso de espécies alucinógenas chamam a atenção. Uma dessas hipóteses foi formulada recentemente por R. J. Sullivan, do Departamento de Antropologia da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, e por E. H. Hagen, do Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, nos Estados Unidos, os quais consideram as expressões: “psicoativos” e “alucinógenos” como sendo sinônimos. De forma bastante resumida, essa hipótese sugere que os seres humanos tenham compartilhado uma relação co-evolucionária com as plantas psicotrópicas que data de milhões de anos. Os autores afirmam que essa relação co-evolucionária se evidencia, tanto pelas muitas adaptações químicas e ecológicas que os mamíferos desenvolveram para metabolizar substâncias vegetais psicotrópicas (tais como o sistema de metabolização hepática), quanto pela estrutura química de compostos vegetais de defesa (os alcaloides, muitos deles dotados de propriedades alucinógenas). Os quais se desenvolveram no sentido de mimetizar a estrutura, e interferir na função, dos neurotransmissores de mamíferos. Segundo os autores, duas situações podem ter pressionado essa relação co-evolucionária: a restrição alimentar sofrida por homens primitivos, que comprometia sua provisão orgânica de aminoácidos essenciais à síntese de neurotransmissores e os levava a buscar por plantas dotadas de substâncias análogas, e ao fato dessas substâncias vegetais auxiliarem na modulação do estresse. Dessa forma, o consumo de substâncias alucinógenas vegetais, além de prevenir a depleção monoaminérgica, permitia que seus Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 17 www.estetus.com.br consumidores tolerassem melhor o estresse causado por condições ambientais aversivas. Uma segunda explicação, que não diz respeito a um grupo específico de autores e, sim, a uma linha de pensamento bastante difundida, considera o papel religioso ou místico do uso das plantas alucinógenas. Deste ponto de vista, algumas civilizações, ao ingerir, aplicar ou fumar plantas contendo substâncias alucinógenas, teriam atribuído às alterações da percepção observadas a formas de contato espiritual, a deuses, a poderes sagrados e/ou a forças da natureza. Desta maneira, muitas crenças místicas, religiosas e ritualísticas teriam surgido com base no uso de espécies vegetais alucinógenas, o que teria contribuído para a manutenção do seu uso, desta vez não por pressão biológica, mas em função da cultura e da religião. As duas hipóteses mencionadas, apesar de muito diferentes em sua essência – uma vez que uma parte do ponto de vista biológico e a outra do ponto de vista cultural –, não se mostram incompatíveis nem excludentes e, hipoteticamente, podem mesmo ter ocorrido conjuntamente, ou aliadas a uma série de outros fatores. Inegável é a ancestralidade do conhecimento humano sobre as espécies vegetais alucinógenas. No final da década de 60 e início da década de 70 houve uma grande expansão da curiosidade a respeito de espécies vegetais alucinógenas em todo o ocidente, em função principalmente do movimento de contracultura, que ganhava força e se disseminava principalmente entre os jovens da época. Aliado a esse movimento, o lançamento dos livros do escritor e antropólogo Carlos Castañeda (The Teachings of Don Juan - a Yaqui way of knowledge, de 1968; A Separate Reality, de 1971, e Journey to Ixtlan - Lessons of Don Juan, de 1973, lançados no Brasil com os títulos A Erva do Diabo, Uma Estranha Realidade e Viagem a Ixtlan, respectivamente), aumentou ainda mais não só o interesse quanto a curiosidade sobre o tema. Nesses livros, principalmente no primeiro, o autor faz uma longa narrativa, descrevendo rituais realizados por um feiticeiro da etnia indígena Yaqui, do deserto mexicano. O qual utilizava espécies vegetais e um cogumelo como forma de enxergar o mundo e seus mistérios da forma como ele realmente seria, e não da forma como aprendemos e/ou fomos condicionados a compreendê-lo. A despeito das polêmicas sobre a veracidade ou não das experiências relatadas por Carlos Castañeda, o fato é que a publicação dos livros aguçou ainda mais a curiosidade das pessoas a respeito das plantas alucinógenas. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 18 www.estetus.com.br Muitas espécies de plantas e fungos podem produzir como parte integrante de suas funções metabólicas, diferentes substâncias com propriedades alucinógenas, a grande maioria delas na forma de alcaloides. Alcaloides são substâncias produzidas também por vegetais e considerados uma das classes de metabólitos secundários,ou seja, substâncias que geralmente não estão envolvidas em funções fisiológicas vitais das plantas e que são produzidas secundariamente a partir de outras substâncias as quais, essas sim, estão envolvidas em processos vegetais vitais. De forma geral, são aquelas substâncias cujo nome termina no sufixo “ina”, tais como a cocaína (presente em espécies vegetais, principalmente em Erythroxylon coca), a dimetiltriptamina (presente em vários gêneros vegetais, tais como Anadenanthera, Psychotria ou Mimosa, por exemplo), a cafeína, a teobromina, a teofilina (as três últimas já mencionadas na Introdução ao Estudo de Plantas Estimulantes), entre outras substâncias também consideradas alcaloides. Dois pontos, no entanto, são importantes mencionar. O primeiro é que, embora a maioria dos compostos vegetais alucinógenos pertença à classe dos alcaloides, nem todos os alcaloides possuem propriedades alucinógenas. E, em segundo lugar, é importante lembrar que determinados alcaloides podem ser considerados estimulantes ou alucinógenos na dependência da dose, embora o limite entre essas duas categorias de efeitos seja consideravelmente tênue. Embora as espécies vegetais alucinógenas sejam amplamente encontradas em diferentes regiões do globo, muitas delas encontram maior facilidade de adaptação em climas tropicais e temperados. Em virtude de tal característica, a América Central e a América Latina se destacam como verdadeiras fontes de grande número dessas espécies vegetais. Estima-se que, só nessas regiões, existam mais de 90 espécies vegetais utilizadas popularmente em função de suas propriedades alucinógenas. Essa grande disponibilidade natural de espécies psicoativas talvez ajude a explicar, pelo menos em parte, a predominância do uso de plantas em função de seus efeitos sobre o sistema nervoso central, especialmente entre comunidades descendentes de africanos e em comunidades indígenas brasileiras. As quais utilizam tais espécies vegetais principalmente associadas a contextos religiosos e/ou rituais. Tendo em vista as considerações aqui mencionadas, o objetivo principal é apresentar informações a respeito de algumas espécies vegetais consideradas alucinógenas. O critério de escolha de tais espécies em detrimento de outras se deve Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 19 www.estetus.com.br tanto à disponibilidade de informações científicas quanto ao contexto de uso. Assim, serão discutidos aspectos referentes a duas espécies alucinógenas associadas a um contexto de amplo uso social vinculado a ostensivas proibições legais (maconha, Cannabis sp, e coca, Erythroxylon coca), bem como outras espécies associadas a um contexto cultural de uso (Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis – uma das combinações empregadas no preparo da ayahuasca). PLANTAS CALMANTES MARACUJÁ (Passiflora sp) Nome científico Como “maracujá” - são conhecidas diferentes espécies pertencentes ao gênero Passiflora. O gênero Passiflora é composto por aproximadamente 500 espécies vegetais, sendo o gênero da família Passifloraceae com maior número de espécies descritas. No Brasil, duas espécies são principalmente comercializadas em função de suas propriedades alimentícias: Passiflora edulis, o maracujá utilizado para o preparo de sucos, que algumas vezes pode ser confundido com a espécie Passiflora incarnata, de origem europeia, e a espécie Passiflora alata, ou “maracujáde-colher”, assim denominado em função do fruto apresentar polpa bastante adocicada, permitindo que seja consumido in natura. Além dessas duas espécies, as quais são as espécies de maracujá mais comumente encontradas em território brasileiro, outras espécies também são conhecidas como maracujá, tais como Passiflora coccinea, Passiflora caerulea, Passiflora quadrangularis, Passiflora foetida, Passiflora maliformis, entre outras. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 20 www.estetus.com.br Flor de Passiflora incarnata Flor de Passiflora edulis Flor de Passiflora alata Nomes populares As espécies do gênero Passiflora podem ser conhecidas com diferentes nomes, em função tanto da espécie a que se refere quanto da região em que se encontra. Assim, podem ser denominadas: - maracujá-amarelo; - maracujá-roxo; - maracujá-de-colher; - granadilla (países da América Latina); - passion fruit (fruta da paixão, nos países de língua inglesa); - maypop (países de língua inglesa). Informações botânicas As espécies do gênero Passiflora são plantas herbáceas, arbustivas e trepadeiras vigorosas que se sustentam com auxílio de gavinhas, de caule frequentemente sulcado. Em algumas espécies, as folhas são arredondadas e, em outras, são profundamente partidas, com bordos serrados. Apresentam flores: grandes, vistosas, de coloração que pode variar de branco-esverdeada a alaranjada, vermelha ou arroxeada, de acordo com a espécie. De modo geral, florescem no período de dezembro a abril. Apresentam frutos arredondados cuja morfologia externa também varia de acordo com a espécie, podendo ser de coloração verde, amarelada, alaranjada, arroxeada ou com manchas verde-claras. As sementes são achatadas, pretas, envolvidas por um arilo de textura gelatinosa de Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 21 www.estetus.com.br coloração amarelada e translúcida. Frutificam durante todo o ano, de forma menos intensa de maio a agosto. Sua maior disseminação por países tropicais se deve à preferência por climas quentes e úmidos. Necessitam de solo argiloso-humoso, profundo, fértil e bem drenado. Histórico As espécies pertencentes ao gênero Passiflora encontram-se distribuídas em ambos os hemisférios, com predominância nas regiões tropicais do hemisfério sul, exceto na África tropical, Ásia e Austrália, onde ocorrem mais raramente. Muitas de suas espécies são cultivadas nos trópicos em função de seus frutos comestíveis. Neste caso, destaca-se por seu amplo cultivo a espécie Passiflora edulis. Muitas outras espécies do Fruto imaturo de Passiflora Incarnata Fruto maduro de Passiflora edulis Fruto maduro de Passiflora alata Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 22 www.estetus.com.br gênero são também cultivadas em jardins, estufas ou canteiros residenciais em função da beleza de suas exóticas flores, que o fazem ser conhecido como um gênero ornamental. E acredita-se que as espécies de maracujá tenham sido primeiramente cultivadas não em função de seus frutos e, sim, em função das belas flores que produzem. O uso de espécies vegetais do gênero Passiflora para fins medicinais foi descrito pela primeira vez pelo pesquisador espanhol Monardus, no Peru, em 1569 e, desde então, muitas espécies deste gênero têm sido utilizadas com frequência pela medicina tradicional em diversas regiões do mundo. Farmacopeias de vários países contêm monografias sobre as possíveis ações medicinais do gênero: Farmacopeia Britânica (British Herbal Pharmacopoeia), Farmacopeia NorteAmericana (United States Homoeophatic Pharmacopoeia), Farmacopeia Indiana (Homoeophatic Pharmacopoeia of India), Farmacopeia Helvética, Farmacopeia Alemã e Farmacopeia Francesa. No entanto, muitos dos compêndios vegetais, da Materia Medica e das farmacopeias acima mencionadas contêm monografias referentes apenas à espécie Passiflora incarnata. Já na Farmacopeia Brasileira, considera-se como o “maracujá”, tradicionalmente utilizado, a espécie Passiflora alata. O nome popular da espécie em português, maracujá, deriva do termo tupi “murukuia” ou “marakuia”, que significa “alimento que dá em cuia”, fazendo referência à polpa e ao formato da casca dos frutos. Já o nome popular da espécie em inglês, passion flower, significa “flor-da-paixão”e esse nome faz uma interessante associação entre a flor das espécies de maracujá e a religiosidade católica, mais especificamente à Paixão de Cristo. Acredita-se que os missionários católicos que chegaram ao Brasil por ocasião do período de colonização e catequização indígena tenham lançado mão da flor do maracujá para auxiliá-los a ensinar aos indígenas, aqui presentes, a história da Paixão de Cristo, em uma interessante e peculiar história. As cores mais frequentes das flores foram associadas às cores oficiais utilizadas nos rituais católicos praticados durante a Semana Santa, o vermelho e o roxo. A coroa floral, onde se inserem as múltiplas e finas pétalas, foi associada à coroa de espinhos colocada em Jesus. Os três estigmas florais, onde se localiza o pólen da flor, representariam os três pregos que fixaram e sustentaram Jesus na cruz. As anteras, órgãos sexuais femininos, em número de cinco, representariam as chagas de Cristo. As gavinhas, caule modificado com a função de Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 23 www.estetus.com.br sustentar a planta e auxiliá-la a crescer rente a estruturas, representariam os chicotes utilizados para açoitar Jesus, e o fruto, por último, representaria o mundo que seria salvo por Ele. Daí o nome pelo qual os diferentes maracujás também podem ser conhecidos, como “flor-da-paixão” ou “fruta-da-paixão”. Usos populares e efeitos popularmente relatados Embora diferentes espécies de maracujá sejam utilizadas para diferentes condições, tais como diurético, anti-inflamatório, anti-helmíntico, entre outras, uma coisa possuem em comum: de forma geral, todas as espécies são indicadas popularmente para o tratamento de condições nervosas, principalmente da ansiedade. Assim, existem indicações populares para acalmar nervosismo de “condição de mulher” (associado ao período de tensão pré-menstrual), para acalmar “criança que não dorme”, para o tratamento de convulsões (principalmente infantis), para ataque dos nervos, e para uma série de outros quadros associados à hiperestimulação nervosa. No Brasil, a título de exemplo, a espécie Passiflora alata (que consta como espécie oficial da Farmacopeia Brasileira) tem sido recomendada popularmente como sedativa, diurética, ansiolítica e analgésica. Já a espécie Passiflora caerulea (ou “maracujá-de-flor-azul”) tem sido indicada, no Brasil, tanto como sedativa e ansiolítica como para o tratamento de erisipelas e outras doenças inflamatórias da pele. Em outros países latino-americanos, a mesma espécie tem sido utilizada também como anti-helmíntica, anti-diarreico, tônico, no tratamento da hipertensão, dos sintomas associados à menopausa, nas cólicas infantis, além de sedativo e calmante. Já a Matéria Médica Americana menciona o uso de Passiflora incarnata para o tratamento de diferentes formas de epilepsia e, na Europa, esta espécie tem sido a espécie tradicional de referência no tratamento da insônia e da ansiedade. No Brasil, é utilizada prioritariamente como analgésica, antiespasmódica, antiasmática e sedativa, sendo a espécie Passiflora edulis a mais indicada pelas comunidades tradicionais brasileiras para o tratamento de condições nervosas. Dados químicos e farmacológicos Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 24 www.estetus.com.br Diversos trabalhos científicos têm estudado a composição química dos extratos de Passiflora. Como principais constituintes aparecem os alcaloides, flavonóides, fenóis e compostos cianogênicos. P. incarnata e P. edulis são as duas espécies mais estudadas com relação à constituição química de seus extratos. Em P. incarnata aparecem em maior quantidade os flavonóides luteolina, apigenina, quercetina, canferol, vitexina, isovitexina, orientina, isorientina, entre outros. Esses mesmos compostos também parecem ser os principais constituintes de outras espécies de Passiflora, além dos alcaloides indólicos. Muitos pesquisadores concordam que, quando comparado com a grande variedade de fitoconstituintes do gênero Passiflora, foram realizados, até agora, relativamente poucos estudos farmacológicos com as espécies do gênero. Desses estudos, nota-se que a grande maioria investiga os efeitos dos extratos de apenas algumas espécies do gênero sobre parâmetros relacionados à atividade do sistema nervoso central, principalmente com relação à ansiedade. As espécies mais estudadas com relação aos seus efeitos sobre parâmetros centrais parecem ser P. edulis, P. alata e P. incarnata, espécies que co-existem em território brasileiro. No entanto, tais estudos apresentam uma grande variedade de metodologia experimental utilizada, dosagem via de administração e, talvez por essas variações, resultados algumas vezes contraditórios. Um estudo realizado no Brasil em 1984 demonstrou que a administração intraperitoneal do extrato de P. alata, em camundongos, produziu os seguintes efeitos: diminuição da atividade motora induzida por anfetamina, um psicoestimulante; aumento do tempo de sono induzido por barbitúricos, um indicativo de efeito hipnótico, ou seja, promovendo o sono; diminuição do tempo de latência do sono, fazendo com que os animais dormissem mais rapidamente quando tratados com o extrato de P. alata; e diminuição da mortalidade associada a convulsões induzidas por pentilenotetrazol, indicativo de efeito protetor contra convulsões. Todos esses efeitos foram obtidos com doses de 75 e 150 mg/kg. O mesmo estudo indica a DL50 do mencionado extrato (dose necessária para matar 50% dos animais experimentais e que é indicativa de segurança) como sendo de 456 mg/kg. Um estudo realizado por outro grupo de pesquisadores também avaliou os efeitos centrais de extratos de P. edulis e P. alata, nas doses de 50, 100 e 150 mg/kg. Importante ressaltar que, neste trabalho, embora haja indicação das doses utilizadas para investigação, não há indicação da via de administração utilizada. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 25 www.estetus.com.br Outro trabalho, também investigando os efeitos do extrato aquoso de P. edulis, indica, por sua vez, que o extrato não apresentou efeitos depressores centrais específicos e, sim, efeitos depressores centrais “não-específicos”, embora não mencionem o que consideram como efeitos “não-específicos”. Um estudo realizado em 1983, o qual consistia em uma investigação sobre os efeitos centrais também de P. edulis, demonstrou que o extrato aquoso da planta prolongou o tempo de sono induzido por barbitúricos e por morfina, além de bloquear parcialmente os efeitos estimulantes induzidos por anfetamina. Embora não haja informações sobre as doses em que tais efeitos foram observados. Diferentes trabalhos apresentam resultados relacionados à atividade tipo-ansiolítica da espécie, principalmente utilizando como teste o modelo do labirinto em cruz elevado, o qual se baseia no medo inato dos animais de laboratório a lugares abertos e intensamente iluminados. Nesse modelo, a espécie parece aumentar o tempo que os animais permanecem nos braços abertos do modelo, indicativo de atividade ansiolítica. Outros estudos, utilizando diferentes testes animais de ansiedade, também apresentam resultados que corroboram sua ação como um potencial ansiolítico natural. A opinião de diferentes autores também diverge na questão das espécies do gênero que produzem ou não efeitos centrais relevantes. Como exemplo, pode-se citar a espécie P. edulis. Um grupo de pesquisas brasileiro indica a espécie como sendo utilizada pela população tradicional brasileira para o tratamento de diversos distúrbios centrais, na forma de sucos e refrescos. No entanto, um grupo de cientistas indianos afirma o contrário, sugerindo que a espécie seja desprovida de efeitos centrais relevantes. A justificativa para esta última opinião está na grande semelhança morfológica entre P. incarnatae P. edulis. Esse grupo de pesquisa indiano sugere que, em estudos nos quais os extratos de P. edulis tenham demonstrado algum tipo de efeito depressor central, este extrato não seria realmente de P. edulis e, sim, de P. incarnata. Esse tipo de observação reforça ainda mais a necessidade de um estudo consistente sobre os efeitos depressores centrais das duas espécies. Devidamente classificadas taxonomicamente, ainda mais num país como o Brasil, cujos trabalhos científicos mencionam o grande uso feito pela população, tanto de extratos de P. edulis quanto de P. incarnata, para o tratamento das mesmas disfunções centrais. Foi justamente em função desta necessidade que o grupo de pesquisas, decidiu investigar os efeitos Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 26 www.estetus.com.br centrais da espécie P. edulis, devidamente coletada e identificada taxonomicamente como sendo realmente tal espécie. Os resultados preliminares deste trabalho, os quais fazem parte de sua tese de doutorado atualmente em andamento, apontam efeitos centrais significativos de diferentes partes da espécie P. edulis, tais como efeitos do tipo ansiolítico, hipnótico e sedativo, sem prejuízo da atividade motora, ou seja, um efeito relativamente seletivo. Com relação à espécie P. incarnata, um estudo de 1997 relata sua atividade ansiolítica na dose de 400 mg/kg e atividade sedativa em doses superiores, indicando que a diferença qualitativa dos efeitos farmacológicos observados seja produzida de forma dose-dependente. Deve-se considerar, no entanto, que as doses utilizadas em tal trabalho (400 mg/kg e 800 mg/kg) são consideradas altas, em se tratando da investigação de efeitos farmacológicos de espécies vegetais, não reproduzindo de forma fidedigna o efeito sedativo obtido pela população quando da utilização da espécie, uma vez que seria necessária uma grande quantidade de planta para obtenção de tal efeito sedativo. É importante mencionar, neste ponto, que a seleção de determinadas partes da planta para a preparação do extrato, quando da investigação dos efeitos centrais de espécies de Passiflora, é extremamente importante. Isso porque a inserção de partes inertes da planta, ou seja, desprovidas de princípios ativos, ou com uma concentração menor dos mesmos, pode prejudicar a obtenção dos efeitos centrais desejados. Um exemplo existente na literatura são as raízes de P. incarnata as quais, quando presentes no extrato, podem adulterar os efeitos da espécie por serem destituídas de efeitos ansiolíticos, ou produzirem efeitos muito tênues, e devem ser separadas das partes aéreas para preparação de extratos terapêuticos. Essa observação foi feita apenas pelo mesmo grupo de pesquisas indiano mencionado anteriormente e, no entanto, nenhum outro trabalho indicou, até o momento, a mesma conclusão. O que é importante realmente é o fato de que diferentes estudos podem estar mencionando efeitos de uma mesma espécie vegetal utilizando, no entanto, extratos com constituição química diferente, em função das partes que foram utilizadas em sua preparação. A questão da via de administração também é muito relevante e as diferentes vias têm sido utilizadas por diferentes grupos de pesquisa. Um grande número de trabalhos investigativos sobre os efeitos centrais de espécies de Passiflora utiliza a via Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 27 www.estetus.com.br intraperitoneal de administração, como por exemplo, nos trabalhos acima mencionados. No entanto, existe uma contradição com relação a tal metodologia. A grande maioria dos trabalhos utiliza como justificativa principal para seus estudos o amplo e difundido uso que a população tradicional faz de tais espécies vegetais, desde tempos imemoriais, para o tratamento de diferentes disfunções centrais. Porém, a via de administração mais utilizada popularmente é, sem dúvida, a via oral, uma vez que as populações fazem uso, principalmente, de sucos e refrescos das espécies. O conhecimento farmacológico atesta que a via de administração intraperitoneal diverge completamente da via oral com relação ao modo de ação de drogas. Portanto, tais estudos talvez não estejam representando a ação mencionada pela população da forma mais fidedigna, que seria utilizada como via de administração a via oral. Com relação a estudos clínicos, muitas informações já se encontram divulgadas na literatura a respeito da eficácia de extratos de maracujá como ansiolíticos ou para tratar outras condições associadas à hiperestimulação psicomotora. Um trabalho realizado em 2001 com 65 pacientes, os quais apresentavam dependência química a opiáceos, afirma que o extrato de P. incarnata mostrou-se benéfico no tratamento dos sintomas mentais da síndrome de abstinência. Uma vez que o grupo tratado com o extrato da espécie apresentou uma redução no número de sintomas associados à abstinência, quando comparado ao grupo que recebeu clonidina e ao grupo que recebeu um placebo. O mesmo grupo de pesquisa, também em 2001, verificou os efeitos do tratamento com cápsulas contendo extrato de P. incarnata em pacientes com diagnóstico para ansiedade generalizada. Os resultados obtidos por eles mostraram que tal extrato foi tão eficaz no tratamento dos sintomas desse tipo de ansiedade como o oxazepam, uma droga benzodiazepínica utilizada na clínica. Embora esses efeitos aparecessem mais rapidamente nos pacientes que receberam esse último tratamento do que nos pacientes que receberam o extrato da planta. Os autores afirmam que uma vantagem do uso desse extrato no tratamento da ansiedade generalizada estaria associada à ausência de efeitos colaterais frequentemente presentes com o tratamento com benzodiazepínicos, uma vez que os pacientes tratados com o extrato de P. incarnata neste estudo não apresentaram prejuízos de desempenho em suas ocupações. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 28 www.estetus.com.br Finalmente, é importante mencionar que muita discussão tem sido gerada na literatura científica a respeito de quais seriam os componentes biologicamente ativos presentes nos extratos de espécies de Passiflora, os quais seriam os responsáveis pelas atividades centrais tanto relatadas pela população quanto observadas experimentalmente. Pesquisadores de diferentes instituições em todo o mundo têm apresentado diferentes opiniões a respeito da bioatividade de espécies de Passiflora. Alguns grupos sugerem que sejam os alcaloides harmânicos (também presentes em algumas espécies alucinógenas) os fitoconstituintes bioativos, devido a suas propriedades inibitórias da enzima monoaminaoxidase, que degradam neurotransmissores como a dopamina, a serotonina e a noradrenalina. Outros grupos de pesquisa, por sua vez, sugerem que os constituintes responsáveis pela atividade central sejam os flavonóides. Nesse contexto, o flavonóide crisina tem recebido especial atenção na literatura científica. O derivado γ-pirônico maltol também já foi cogitado como sendo um dos possíveis responsáveis pela atividade central, embora alguns resultados tenham se apresentado contrários a essa teoria. Há ainda grupos que acreditam que nenhum dos fitoconstituintes, atualmente conhecidos em espécies do gênero Passiflora, seja o responsável pelas atividades ansiolíticas e sedativas. Uma teoria a ser considerada é a de que talvez não exista um único componente presente nos extratos que seja o responsável pela atividade central, que se daria em função do sinergismo entre diferentes categorias de compostos. Como pode ser observado, portanto, não existe um consenso entre as várias hipóteses postuladas. O que faz com que os estudos que tentam desvendar não só os componentes bioativos centrais de espécies de Passiflora, como também seus mecanismos de ação, continuem a ser desenvolvidos tanto no Brasil como em diferentes regiões do mundo.MELISSA (Melissa officinalis) Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 29 www.estetus.com.br Melissa officinalis Nome científico A planta conhecida por melissa é, na verdade, a espécie vegetal Melissa officinalis, pertencendo à família das Lamiáceas, plantas conhecidas por serem arbustivas e extremamente ricas em óleos voláteis aromáticos. Existem três subespécies de Melissa officinalis: subespécie officinalis, subespécie inodora e subespécie altissima. No entanto, somente a subespécie officinalis possui valor comercial e o odor característico de limão da erva-cidreira, popularmente conhecida. Nomes populares Frequentemente conhecida como erva-cidreira, essa denominação pode dar margem a confusões, uma vez que em algumas regiões esse mesmo nome pode ser usado para designar três diferentes espécies: a Melissa officinalis, o Cymbopogon citratus e a Lippia alba. Portanto, é importante ressaltar que tais espécies são Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 30 www.estetus.com.br absolutamente diferentes pertencendo, inclusive, a famílias botânicas distintas. Embora a espécie Cymbopogon citratus possa também ser chamada de ervacidreira, o nome mais adequado seria capim-cidreira, ou capim-limão, justamente com o intuito de se distinguir essas duas espécies tão frequentemente confundidas, apesar de muito diferentes. Como a erva-cidreira verdadeira considera-se a espécie Lippia alba, enquanto a denominação melissa é destinada à espécie Melissa officinalis, que também é chamada, em diferentes regiões, de: - melissa; - limão-bálsamo; - bálsamo comum (em regiões de Portugal); - abelha-bálsamo; - lemon balm (em países de língua inglesa). Informações botânicas De aspecto herbáceo ou arbustivo, a espécie Melissa officinalis possui baixa estatura, crescendo no máximo até 1 a 3 pés de altura. Possui haste de formato retangular, com raízes curtas e folhas pecioladas que se dão aos pares. As folhas, em formato de coração, possuem bordos serrilhados e textura macia, conferida por pêlos de superfície, e emitem um forte odor de limão quando partidas ou trituradas. Florescem geralmente de julho a outubro, com flores brancas ou amarelas (em menor ocorrência) que nascem em pequenos feixes nas axilas das folhas. Geralmente, a parte aérea da planta perece no inverno e, em função das raízes serem perenes, volta a germinar no verão. A planta cresce livremente em diferentes tipos de solo e é propagada por sementes, estaquia ou por pedaços de suas raízes replantadas. Recomenda-se seu plantio entre o inverno e o outono. Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 31 www.estetus.com.br Detalhe da flor e da folha de Melissa officinalis Histórico Existem registros que afirmam que o nome “melissa” tenha sido originado do grego melisso, que significa abelha. Isso porque sendo suas flores muito ricas em néctar, muitas vezes são plantadas próximas a áreas de criação de abelhas, que utilizam esse néctar para produção de um tipo valioso de mel. Espécie de origem europeia, a melissa era inicialmente cultivada em países como a Itália, Portugal e Espanha, de onde foram trazidas para o Brasil por ocasião da colonização; atualmente, é uma espécie comum em quase todas as regiões do mundo. Em função da grande beleza de suas flores, geralmente de coloração branca, existe a lenda de que o imperador romano Carlos Magno tenha ordenado o plantio desta espécie em todos os mosteiros, para que tanto a beleza quanto o aroma de suas flores pudessem tornar esses locais ainda mais sublimes. A melissa é uma planta medicinal que tem sido utilizada há mais de 2000 anos em função da crença popular de que promove uma longa vida e favorece a memória, recuperando-a em casos de amnésia. Os historiadores greco-romanos Dioscórides e Plínio já mencionavam a espécie como útil para tratar os sintomas das picadas de cobras ou escorpiões, isso porque a planta possuiria um efeito “calmante” capaz de diminuir as dores causadas por tais ferimentos. Registros de sua história medicinal remetem à Materia Medica dos anos de 50 a 80 a.C.. Acreditase que tenha sido introduzida na Grã- Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 32 www.estetus.com.br Bretanha por volta do século IV, sendo considerada, já naquela época, como uma planta rejuvenescedora e fortalecedora das funções mentais, que também atuava afastando estados melancólicos. Justamente por ser muito empregada pelas mulheres da época como um rejuvenescedor, muitos a consideravam como um verdadeiro elixir da longa vida. Existem evidências de que o amplo uso da melissa na Europa tenha se difundido na Idade Média, tendo sido seu uso medicinal recomendado por Paracelso (1493-1541) como um bálsamo capaz de reavivar o homem e como indicação para qualquer tipo de queixa decorrente de um estado desordenado do sistema nervoso. E foi nessa época que o chá de melissa passou a ser muito utilizado em função de seus benefícios para o cérebro, especificamente para melhorar a memória. Usos populares e efeitos popularmente relatados O uso popular da melissa se faz, predominantemente, em função de suas supostas atividades como calmante, tranquilizante, em casos de nervosismo ou inquietação, para promover o sono ou melhorar a memória, para curar dores de cabeça. Mas além desses efeitos relacionados ao funcionamento cerebral, muitas comunidades utilizam a melissa como carminativo, ou seja, na prevenção ou tratamento de gases intestinais, como febrífugo ou diurético. Além disso, é frequentemente utilizada para fins antiespasmódicos e antimicrobianos. O chá de suas folhas é muito utilizado também, em diferentes regiões, para o tratamento de resfriados ou de excesso de secreção das vias aéreas superiores. No Brasil, o principal uso da melissa é como um remédio caseiro sedativo, calmante ou tranquilizante, utilizado no tratamento de “doença dos nervos”, da hipertensão e de sintomas associados à angústia e à falta de sono. É também frequentemente utilizado como anti-reumático. Dados químicos e farmacológicos A espécie Melissa officinalis é muito conhecida popularmente em função de suas propriedades calmantes e, de acordo com comunidades tradicionais de diferentes Plantas psicoativas – uma abordagem farmacológica 33 www.estetus.com.br regiões do mundo, age promovendo o relaxamento, o bem-estar advindo do alívio da tensão nervosa, combate problemas digestivos associados ao estresse e alivia a insônia, como resultado de sua atividade relaxante. O suíço Paracelso, que viveu entre 1493 e 1541 e que é considerado até hoje um dos pais da medicina, já recomendava o uso de Melissa officinalis para dar ânimo aos homens, além da indicá-la para todas as queixas supostamente causadas por um estado desordenado do sistema nervoso. Muitos herbalistas da época também atribuíam ao chá da melissa não somente efeitos benéficos sobre o cérebro como também efeitos específicos de melhoria da memória. Dados mais atuais sugerem que, além de propriedades espasmolítica e antibacteriana, a melissa poderia agir modulando um grande número de medidas comportamentais. Sendo indicada na maioria das vezes como um sedativo moderado, em distúrbios do sono e na atenuação de sintomas de distúrbios nervosos, incluindo a redução da excitabilidade, da ansiedade e do estresse. Com relação à sua composição química, muitos estudos fitoquímicos têm indicado a presença, tanto em suas folhas como em seu óleo volátil, dos seguintes compostos: monoterpenos (como o citral, considerado um dos constituintes majoritários); ácidos carboxílicos fenólicos (como o ácido rosmarínico); aldeídos monoterpênicos (como o geranial, o citronelal ou o neral); flavonóides (como a luteolina, também conhecida por ser um