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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UERJ CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS – CCS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – IFCH DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR – CDD/BR DEMANDAS DA MODERNIDADE FRENTE AO RETORNO AO CONSERVADORISMO Maurício Marques Soares Filho Rio de Janeiro / RJ 2016 2 MAURÍCIO MARQUES SOARES FILHO CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR – CDD/BR DEMANDAS DA MODERNIDADE FRENTE AO RETORNO AO CONSERVADORISMO Monografia apresentada como exigência para conclusão do curso de graduação em Ciências Sociais, pelo Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH/UERJ, sob a orientação da Professora Cecília Loreto Mariz. Rio de Janeiro / RJ 2016 3 Dedicatória Dedico humildemente este trabalho a todas as mulheres em situação de violência e restrição de direitos. Não se pretende tomar sua voz aqui, apenas repercuti-la, e dentro das limitações deste homem. Não posso deixar de lembrar dos e das religiosos e religiosas, leigos e leigas, que, ligados à denominação que for, assumiram e assumem para si o fardo das lutas e demandas populares e minoritárias: a prática da doação pessoal (e me refiro aqui ao outro, não à sua instituição ou a si mesmo), necessário reconhecer, é para muito poucos. Não posso deixar de mencionar aqui o nome de Arídia Rosa Gomes, que, sem mesmo que o autor se desse conta, foi a inspiração primeira para este trabalho. 4 Agradecimentos À ideia de Deus, sem a qual, literalmente, este trabalho não teria sido escrito. Desnecessário dizer, é completamente irrelevante crer para que se compreenda minimamente e se respeite a importância histórico-social, e também psicológica e pessoal, do conceito de divino. Agradeço todos os mestres e mestras que encontrei nesta Universidade do Estado do Rio de Janeiro e em outros espaços, detentores ou não de diplomas ou títulos, estejam ligados à função ou assumam o papel social que for: desculpem-me se não os cito nominalmente – seria necessária outra monografia para pormenorizar o que e como aprendi com cada um. Devo um agradecimento especial à minha orientadora, pelo suporte, paciência e interesse – todo posicionamento que hoje ou um dia possa ser considerado inadequado, e quaisquer equívocos teórico, metodológico ou imprecisão que aqui tenham permanecido é falta inteiramente minha. À minha família, em especial a Ivane Rosa Gomes Soares e a Gisele Vieira Rocha, por acreditarem sem reservas em mim, e pelo apoio que sei ter sido por vezes difícil. 5 “(...) Universidade como espaço possível de aprofundamento da reflexão sobre uma prática comprometida com as lutas libertárias das classes populares.” Maria José Rosado Fontenelas Nunes “Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa de apagar o caso escrito.” Joaquim Maria Machado de Assis 6 Resumo A presente monografia pretende estudar a relação entre igreja formal e movimento leigo através da atuação de uma Organização Não-Governamental, sem fins lucrativos, que se conecta por meio de sua história à Igreja Católica Apostólica Romana, além de procurar estabelecer possíveis interpretações para esses vínculos. As Católicas pelo Direito de Decidir – CDD sustentam com sua agenda pública a proposta de debate de temas da modernidade articulados a alternativas para a renovação das práticas da Igreja, além de demandas sobre limites de ingerência das religiões sobre o Estado, ecumenismo e garantia de Direitos Humanos, mas com ênfase numa prática e discurso feministas. Palavras-Chave: Catolicismo, Movimentos Sociais, ONG, Feminismo, Direitos Reprodutivos. SOARES FILHO, Maurício Marques. Católicas Pelo Direito de Decidir – CDD/BR: Demandas da Modernidade Frente ao Retorno ao Conservadorismo. Rio de Janeiro / RJ, CCS/IFHC/UERJ. 2016. Monografia. Graduação em Ciências Sociais. Orientadora: Professora Doutora Cecília Loreto Mariz. 7 Abstract This thesis aims to study the relationship between formal religion and lay movement through the action of a non-governmental nonprofit organization, which connects through its own history to the Roman Catholic Church, and seek to establish possible interpretations for these bonds. The Católicas pelo Direito de Decidir - CDD supports with its public agenda the proposed discussion themes articulated modern alternatives to the renewal of the Church's practices, and demands on limits of interference of religion over the state, ecumenism and guarantee human rights, but with a focus on practice and feminist discourse. Keywords: Catholicism, Social Movements, NGOs, Feminism, Reproductive Rights. SOARES FILHO, Maurício Marques. Católicas Pelo Direito de Decidir – CDD/BR: Demandas da Modernidade Frente ao Retorno ao Conservadorismo. Rio de Janeiro / RJ, CCS/IFHC / UERJ. 2016. Monograph. Degree in Social Sciences. Advisor: Professor Cecilia Loreto Mariz. 8 Sumário Introdução ...................................................................................................................... 11 Capítulo 1 – Breve Cronologia do Catolicismo no Brasil ............................................. 14 1.1.A Igreja Católica no Brasil até a Década da Proclamação da República .......... 15 1.2.A Igreja Católica no Brasil até a Década de 1930 ............................................. 19 1.3.A Igreja Católica no Brasil até o início da Década 1960 ................................... 20 Capítulo 2 – As Décadas de 1960 a 1980 ...................................................................... 25 2.1. Entremeios, 1961 a 1968 .................................................................................. 27 2.1.1. Movimento Marcha da Família com Deus Pela Liberdade .................... 38 2.2. Os Anos de 1969 a 1978 ................................................................................... 47 2.3. A Vida Religiosa nos Meios Populares ............................................................ 57 2.3.1. Pastoral ................................................................................................... 59 2.4. A Abertura Política e o Retorno à Democracia ................................................ 62 Capítulo 3 – A Década de 1990 ..................................................................................... 68 3.1. Centralização da Igreja Católica e Ascensão de Outros Atores ....................... 69 3.1.1. O Retorno ao Conservadorismo e Centralização Católicos ................... 69 3.1.2. A ICAR Brasileira Perde Fiéis ............................................................... 74 3.2. O Movimento Social Após a Queda do Muro .................................................. 75 3.2.1. A Situação Político-Econômica Brasileira na década de 1990 .............. 76 3.2.2. Reação da Sociedade Civil ao Declínio da Democracia ........................ 82 3.2.3. Globalização, Movimentos Populares e ONGs ...................................... 86 3.2.4. Bases Legais para a Sociedade Civil Organizada ..................................90 Capítulo 4 – Influências às Católicas Brasileiras .......................................................... 92 4.1. Direito Canônico e o Aborto ............................................................................ 93 4.2. Discussão Secular do Aborto no Mundo Moderno ........................................ 108 4.3. Fundação da Catholics For Free Choice – CFFC ......................................... 110 4.4. Red Latinoamericana de Católicas por el Derecho de Decidir ..................... 118 4.5. O Feminismo no Brasil ................................................................................... 119 4.5.1. Até 1889 ............................................................................................... 120 9 4.5.2. Entre 1890 e 1930 ................................................................................ 122 4.5.3. Entre 1930 e o Golpe ........................................................................... 130 4.5.4. Ditadura Militar: Entre 1964 e 1978 .................................................... 132 4.5.5. Ditadura Militar: Entre 1979 e 1985 .................................................... 135 4.5.6. Retorno à Democracia e a Consolidação de um Novo Modelo ........... 138 Capítulo 5 – As Católicas Pelo Direito de Decidir – CDD/BR .................................. 143 5.1. Formação das Católicas Pelo Direito de Decidir Brasil ................................ 148 5.2. Objetivos e Panorama de Atuação .................................................................. 151 5.2.1. Religião ................................................................................................ 151 5.2.2. Sexo, Gênero e Identidade de Gênero .................................................. 152 5.2.3. Direitos Reprodutivos e Juventude ...................................................... 154 5.3. Posicionamento da Igreja Católica Brasileira ................................................. 156 Capítulo 6 – Formas de Ação das CDD/BR Hoje ........................................................ 158 6.1. Ações de Advocacy ......................................................................................... 158 6.2. Ações nas Redes Sociais ................................................................................ 162 6.3. Ações de Conscientização Direta e Publicações ............................................ 163 6.3.1. Ações Diretas ....................................................................................... 163 6.3.2. Artigos e Publicações Disponíveis na Rede ......................................... 164 6.4. Financiamento de suas Atividades – as CDD/BR enquanto ONG ................. 175 6.4.1. Convênios com a União ....................................................................... 177 6.5. Uma Questão sobre Modelos ......................................................................... 181 Conclusão .................................................................................................................... 183 Porque Católicas? ............................................................................................ 183 Considerações Finais ....................................................................................... 184 Referências .................................................................................................................. 187 10 Apêndices I. Cessão de Valores às Católicas pelo Direito de Decidir Sociedade Civil pela União através de Convênios ............................................................................................. 197 II. Aborto: Problema de Segurança Pública ou Competência da Saúde Pública? ................... 208 III. Nosso Vizinho ao Sul, O Uruguai ......................................................................... 217 11 Introdução O Catolicismo no Brasil apresentou um dinamismo notório na segunda parte do século XX. Entre as muitas causas que poderiam ser citadas, temos as externas, como as características do papado de João XXIII (1958 – 1963) – que alarmaram alguns dos católicos romanos mais puristas e certamente a todos os intolerantes –, as determinações do Concílio Vaticano II (1962 – 1965), e as Conferências Episcopais Latino Americanas de Medellín (1968) e de Puebla (1979). Entre as influências internas, a Ditadura Militar (1964 – 1985), e o posterior processo de redemocratização, que em sua maior parte foi perfeitamente alinhado às opções econômicas, políticas e sociais características do período posterior às crises capitalistas da década de 1980 e do pós Guerra Fria – a adoção do chamado paradigma econômico Neoliberal e a retração da agência do Estado também como promotor de projetos de inclusão social efetiva, e a quase alienação de seu papel como principal elemento de diálogo ou mediação com o Movimento Social. A proposta de uma Igreja Católica aberta ao povo, que tornasse parte de sua agenda a inclusão social e as lutas populares – o que se materializou nas Comunidades Eclesiais de Base – CEB e na Teologia da Libertação dos anos de 1970 e 80, principalmente – foi progressivamente negada como política oficial, algumas vezes dura e abruptamente, durante o papado João Pulo II (1978 – 2005). Conforme será visto em breve, a opção pelos pobres foi uma alternativa também para a organização popular durante o período de restrições brutais a qualquer oposição oficial ao Regime de Exceção. A iniciativa democrática e inovadora foi desarticulada ou minorada pelo poder de Roma, que optou pelo retorno ao conservadorismo intestino, ao centralismo, e adotou técnicas de propaganda e ações políticas visando manter sua ascendência sobre o pluralismo e opções religiosas em crescimento, além de sua importância geopolítica. As pastorais e a opção pelas causas sociais não morreram de fato com a reavaliação da linha a seguir pela cúpula da Igreja Católica, nem mesmo dentro de sua estrutura. Houve silêncios obsequiosos, houve afastamento e condenação de líderes, houve realinhamento: mas os homens e mulheres, leigos e eclesiásticos, que cresceram nas CEBs, que pensaram suas próprias escolhas e vidas a partir da Teologia da Libertação, muitos deles ingressaram em movimentos sociais que de fato colaboraram para reorganizar a sociedade civil na abertura política, e quando da opção pelo Novo Paradigma Econômico, para adotar novos modelos de ação voltados à mudança. 12 Católicas Pelo Direito de Decidir: Organização Não Governamental. Se pensada sob uma ótica purista, não deveria figurar estritamente entre os movimentos sociais de origem ou cunho meramente religioso: existem organismos laicos católicos, reconhecidos ou não pela Santa Sé, que vêm crescendo em número e importância no Brasil, e o estudo de algum deles seria mais própria nesse caso. Contudo, conforme se conhece suas prioridades e a insistência com que procura fazer notar sua ligação muito específica com a Igreja Católica Romana, afigura-se válido abordar as CDD, não como uma tendência entre as multíplices faces do cristianismo contemporâneo, mas sim como um elemento representativo de organização secular que congrega múltiplas demandas elementares da modernidade e que subjazem aos diversos modos de ser cristão ou cristã. As CDD mantêm ou procuram manter diálogo (que muitas vezes é constituído de monólogos das partes) especialmente com a Igreja Católica, mas também com as diversas denominações cristãs e outras religiões. Apresenta relevante papel diante de questões de sexo e gênero, em especialuma que se afigura mais pungente entre mulheres jovens: direitos sexuais e reprodutivos – e o assunto de discussão sempre mais controverso: a desmistificação, discussão e legalização do aborto. Na introdução do artigo de Alcilene Cavalcante de Oliveira [DE OLIVEIRA, 2009], percebe-se a relevância histórica da Igreja Católica Apostólica Romana – ICAR na formação cultural das populações da América Latina, e como aquela organização infundiu nessas sociedades papéis sociais arquetípicos da mulher como mães e esposas ou, como é logicamente esperado que toda definição carregue em si mesma seu oposto e contrário, da Eva caída. Herança direta foi e ainda é a manutenção das mulheres como cidadãs de segunda classe, com reduzida possibilidade de agência, ou até mesmo coisificadas em sociedades eminentemente machistas. Em paralelo, temos que qualquer mudança social efetiva precise dialogar com as diversas religiões: no Censo de 2010, menos de dez por cento da população declara-se sem religião ou não crente – a despeito da prática e observação efetiva ou não dos ritos e regras solenes pelos demais, infere-se uma necessidade ou tradição de identidade com, ou pertencimento a, aquelas religiões ao menos por costume. Resulta disso que oportunidade de transformação prática depende diretamente do diálogo com as religiões, além de um esforço contínuo para a observância do caráter laico das diversas esferas e poderes estatais, de campanhas de valoração das mulheres e dos novos papéis sociais que elas vêm assumindo, além da conscientização da sociedade em sentido amplo. 13 No presente trabalho buscamos conhecer a história das CDD no Brasil, e delinear suas diretrizes e formas de trabalho e atuação sobre a sociedade, os tópicos que abordam, seus principais objetivos, quem são os atores sociais que as constituem e a elas se alinham. Devemos por necessidade criar molduras para guiar nossa visão, que serão oportunamente apresentadas, mas que sempre se basearão nos tópicos centralmente valorizados no discurso das Católicas. Por fim, tentaremos encontrar respostas a algumas questões fundamentais, como das possíveis motivações imediatas que levaram a opção por uma composição em Organização Não-Governamental (ao invés de movimento laico católico, por exemplo), a temática central de defesa de direitos sexuais e reprodutivos (com ênfase na possível opção – o que imprime um caráter decisão pessoal e agência feminina – pela interrupção de uma gravidez), e a insistência na manutenção de um vínculo especial e com o Catolicismo. A evolução do movimento deverá ser necessariamente observada, como a progressiva agregação de metas, o convite ao ecumenismo e as técnicas de divulgação com a ascensão da internet. Entende-se como necessário traçar um quadro, ainda que com matiz de poucas cores, sobre a religiosidade brasileira após o Concílio Vaticano II (1962 – 1965) até meados da década de 1990. De forma semelhantemente sucinta, se pretende observar a opção por um novo modelo sócio-político-econômico que caracteriza o que chamam de pós-modernidade, modernidade líquida, Neoliberalismo, prevalência do Capitalismo Financeiro e retorno à autogestão do Mercado, ou o nome com o qual se queira batizá- lo, e suas influências sobre as alternativas para a organização de movimentos populares, ou do agora “Terceiro Setor” ou “Sociedade Civil”, em torno de objetivos determinados. Desnecessário dizer, por se tratar de um projeto científico, não se pretende falar aqui pelas Católicas pelo Direito de Decidir, e sim sobre as mesmas. Igualmente, as colocações e afirmações a respeito principalmente da Igreja Católica Apostólica Romana, sua organização e posicionamentos passados e atuais, serão baseados em análises da literatura reconhecida e em seus próprios documentos oficiais. Contudo, é necessário afirmar que não se poderá, por questões óbvias que limitam o espectro da experiência pessoal do autor, dizer que este é um trabalho de caráter feminista – contudo, desde já se deve salientar um compromisso que aqui inevitavelmente será refletido com a garantia da dignidade e dos direitos individuais, e em se reconhecer que somente a atenção às necessidades diferentes pode garantir a igualdade. 14 Capítulo 1 – Breve Cronologia do Catolicismo no Brasil O primeiro ato oficial da Igreja Católica Apostólica Romana em terras continentais do que viria a se chamar Brasil ocorreu em 26 de abril de 1500, numa praia do sul do atual estado da Bahia, Coroa Vermelha. Uma das duas potências irmãs e verdadeiramente mundiais da Idade Moderna fixou seus estandartes apropriando-se da terra, e Pero Vaz de Caminha informava em sua Carta destinada ao Rei Manuel I que “o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente”. Portugal e Espanha eram as coroas europeias defensoras da fé católica (embora o projeto daquele como Estado Nação entrasse em conflito velado com Roma, em termos políticos e simbólicos, a separação entre Igreja e Estado deu-se oficialmente só em 19111), e o catolicismo esteve desde o início de nossa formação ligado ao poder oficial do Estado. Regressa-se tanto no tempo somente para que se possam firmar duas características principais da Igreja Católica no Brasil entre os séculos XVII e XIX: sua conexão inevitável com o Estado – este age como elemento mediador de sua ação na, e garantia de sua relação de ascendência sobre a, sociedade civil –, e sua relativa independência de Roma2, e como esses fatores se refletiram na formação de uma Vida Religiosa Tradicional [NUNES, 1985]. O objetivo da ICAR sempre pode ser designado universalista, e na Península Ibérica e colônias tratava-se de um projeto de Cristandade, que seja definida como ação social da Igreja mediada pelo Estado, e foi preponderante nessas terras até meados do século XX quando é inevitavelmente substituído por um projeto de Igreja, onde a interferência sobre o corpo da sociedade passa ser direta. A proximidade com o Estado não perde seu fator atrativo até o presente: são óbvias as prerrogativas de uma instituição que adquire influência sobre os Poderes Constituídos e, como consequência, sobre todo o edifício social – ou mesmo que estreite laços com uma condição de classe específica, mas que detenha certo nível de “ascendência” no imaginário social (médicos e advogados, por exemplo). No caso de maior impacto, pode-se impor direta ou indiretamente sobre a sociedade sua própria visão de mundo, seu conjunto de valores éticos e morais, seu simbolismo, sua estética – 1 Decreto com Força de Lei de Separação dos Estados e das Igrejas, de 20 de abril de 1911, parte das reformas associadas à Proclamação da República Portuguesa, em 05 de outubro de 1910. 2 Afirmar que a distância era impeditivo crucial é equivocado: é certo que os Institutos de Vida Consagrada não tinham condições de reportarem-se à Santa Sé com periodicidade constante, mas a Bula Papal que reconhecia oficialmente a Ordem ou Congregação e fixava sua carta de princípios equivalia a um nihil obstat para sua ação ordinária. A ingerência do Estado Português, e depois do poder Imperial Brasileiro sobre o catolicismo no Brasil, valendo-se do Direito de Padroado, foi o que se fez sentir. 15 e garantir sua replicação dentro dos quadros sociais, a sobrevivência ou adaptação de sua estrutura e, por conseguinte a manutenção de seus poderes de influência. Da mesma forma que a associação formal entre a Igreja Católica e o Império do Brasil garantia sua prevalência, hoje a associação entre igrejas e política na esfera do Congresso Nacional (a chamada “Bancada da Bíblia”, ou mesmo “BancadaEvangélica”) intervêm na vida comunitária brasileira, à medida que angaria poder para aprovar ou barrar medidas que julgam de acordo com seus interesses ou valores comuns [VITAL et al., 2012]. Os tópicos dessa seção são baseados na obra de Maria José Fontelas Rosado Nunes, fundadora das Católicas Pelo Direito de Decidir no Brasil, “Vida Religiosa nos Meios Populares”, que apresenta uma leitura da realidade pautada no Materialismo Histórico. Citações serão feitas somente quanto a contribuição vier de outro autor. 1.1. A Igreja Católica no Brasil até a década da Proclamação da República A formação de uma Nação Católica passava então necessariamente pela adoção estatal do catolicismo como religião oficial. “Tolerância [religiosa] é fruto da indiferença. E a indiferença, fruto da ação política”, como afirma Christopher Hill em seu tomo Origens Intelectuais da Revolução Inglesa (São Paulo: Martins Fontes, 1992) e não poderia haver por princípio tolerância franca no Reino Português, bastião que se tornou (junto à Espanha e depois França) para a Igreja de Roma durante o período turbulento da Reforma e Contra Reforma: os interesses de ambos estavam irremediavelmente ligados pelo Direito de Padroado3 instituído ainda no século XIII. A atuação doutrinária principal nas terras a leste da linha realmente imaginária do Tratado de Tordesilhas (firmado entre as Coroas Ibéricas, e validado pelo Papa Júlio II em 1506, tornando sem efeito a Bula Inter Coetera de 1493, subscrita pelo Papa Alexandre VI4) foi, senão de facto ao menos consta como verdade absoluta nos livros didáticos de nossas escolas elementares, levada a cabo inicialmente pela Companhia de Jesus: uma estrutura eclesiástica formalmente reconhecida em 1540 através de Bula Papal Regimini Militantis Ecclesiae por Paulo III – o mesmo que convocou o Concílio 3 Para definição concisa do conceito, vide Glossário “Navegando na História da Educação Brasileira”, online, mantido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR) da UNICAMP, verbete “Padroado” elaborado por Ana Cristina Pereira Lage, disponível no sítio: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_padroado1.htm. 4 A ICAR desempenhava um papel de “árbitro isento” em questões diplomáticas e políticas entre reinos e os nascentes estados nacionais – essa era uma tradição jurídica medieval, tal e qual o Direito Divino dos Reis, que, além de quase imposta pela condição de “grande feudatária da Europa”, era prevista em documentos oficiais da própria Igreja: sustentava-se a si mesma. 16 de Trento (1545-63) sendo, portanto, o “idealizador” da Reforma Católica. A Companhia de Jesus foi fundada por Íñigo López, membro da nobreza rural nascido no Castelo de Loyola na região basca de Azpeitia, (ou Inácio de Loyola, 1491 – 1556, canonizado em 12 de março de 1622) que, treinado como guerreiro e gravemente ferido na perna em batalha, retirou-se para uma vida ascética, contemplativa, de estudos teológicos e exercícios espirituais, dando início a uma congregação a princípio de seis membros em torno de sua figura carismática (nos termos desse período de reafirmação da ortodoxia e de obediência à Sé), que assumiram votos de pobreza e castidade. Enquanto instituição, a Companhia possui caráter missionário, e o fato de não serem uma ordem monástica permite relativa mobilidade a seus membros – somando-se à sujeição total ao Papado estabelecida em seus estatutos, a SJ tornou-se ferramenta ideal para a disseminação da fé, do Catecismo e dos Decretos Papais (base do Direito Canônico de então até 1917) da Contra Reforma, “ad majorem Dei gloriam". Esses homens afeitos à disciplina e à obediência assumiram muitas tarefas dentro da estrutura da ICAR ao longo do tempo – inegavelmente seus principais serviços a ela enquanto Ordem Missionária foram em o de converter à fé católica, doutrinar (“catequizar”), e educar (nas letras latinas, costumes europeus e teologia e moral católicas). Hoje a Societas Jesu está presente em cerca de cento e trinta países. Aquele que se refere à educação é o ponto em que precisamos nos deter. Entre 1549 e 1759 foram fundadas “escolas de ler e escrever em quase todas as povoações e aldeias; (...) 18 estabelecimentos de ensino secundário, entre colégios e seminários, nos principais pontos do Brasil, entre eles: Bahia, São Vicente, Rio de Janeiro, Olinda, Espírito Santo, São Luís, Ilhéus, Recife, Santos, Porto Seguro, Paranaguá, Alcântara, Vigia, Pará, Colônia do Sacramento, Florianópolis e Paraíba”. Merece notoriamente também seu papel ativo na fundação da aldeia de Piratininga, que viria a ser o núcleo de formação da cidade de São Paulo/SP, e ponta de lança para o povoamento do “sertão”. Tal referência é feita, pois o monopólio na prática do ensino certamente foi usado como uma das principais ferramentas de doutrinação para a nascente elite colonial masculina. Os colégios e professores jesuítas eram a mais comum, senão única, maneira de acesso a um ensino mínimo, ainda que voltado a uma formação cristã humanista, preterindo a fabricação do cidadão burguês, que se tornou o objetivo pedagógico português do século XVIII, numa tentativa de adequar o Estado Nação à já estabelecida lógica econômica europeia [SHIGUNOV NETO, 2008]. 17 Um elemento valorizado na discussão da autora em pauta é papel social dos Conventos no período anterior à República. Sua potencialidade para serem espaços de fuga à tirania do Patriarcalismo “clássico”, que era a norma da sociedade colonial e foi herdada pelo Império, é frustrada: são ferramentas para ameaçar, controlar, conter, manter a respeitabilidade da família extensa. Importante que seja dito: sob certo aspecto o convento (e mesmo que – ou mesmo porque – suas regras pudessem ser relaxadas5) pode ser encarado como um microcosmo reflexo da normativa social vigente, pois a ela apela para a definição dos papéis dentro da sua hierarquia assumidos por essas religiosas, definindo primeiramente quais mulheres estariam “aptas” à vida conventual. Ordens e Congregações acolhiam em suas casas filhas ou agregadas da elite social – não era a vocação o determinante para viabilizar a conversão à vida religiosa durante o período colonial ou imperial, mas o prestígio associado ao nome de família, fatores econômicos e políticos. Após a reforma conventual de meados do século XIX e início do XX, ainda de acordo com o texto de Nunes, esse padrão classista se repete, contudo de forma menos explícita: a aceitação não se restringe mais a membros da elite, mas agora são as letradas, aquelas que “tem estudo” ou “são educadas” que desenvolvem tarefas relacionadas à educação e administração, enquanto às que apresentam carências nesses tópicos é relegado trabalho mais pesado, na cozinha, lavanderia ou faxina – o espaço social do convento reflete, ainda que no âmbito informal ou de maneira não inteiramente propositada, uma realidade de oportunidade de classes, estabelecendo uma hierarquia tácita não só entre os serviços, mas entre as pessoas que os desempenham, e determinando as oportunidades que virão a ter. O prestígio da vida conventual e monástica decresce a partir da segunda metade do século XVIII. Em 1759, o Marques de Pombal determina a expulsão dos jesuítas das terras da colônia: era um grupo disciplinado, coordenado, influente, detinha direitos sobre terras, e fiel às determinações de Roma. As demais Ordens e Congregações instaladas – Franciscanos, Carmelitas, Beneditinos, Mercedários e Capuchinhos –, vistas como elementos estrangeiros, possuidores de poder econômico e propriedades, perderão espaço principalmenteentre 1827 e a proclamação da República, devido a um conjunto de regras que visava reduzir sua capacidade de angariar e formar o noviciado. 5 A autora menciona que em alguns conventos as regras de clausura e normativas quanto a vestimentas, uso de jóias, ou mesmo a alimentação ou possibilidade de criados e escravos pessoais eram ignoradas “em nome de uma compensação dada pela família à enclausurada” – daí estabelecer que ainda que as regras e necessidades da família patriarcal as tenham enviado para a “clausura”, essa poderia ser lassa. 18 Com a Independência, a Igreja Católica é declarada religião oficial do império brasileiro – o fato de Dom Pedro I, e seu sucessor Dom Pedro II, continuarem desempenhando o papel de “Patrono da Igreja”, detendo poder sobre a nomeação de cargos eclesiásticos (cujos salários eram pagos pelos cofres públicos) e sobre a validade de ordenações Papais dentro do território da coroa é característico de um afastamento ou independência relativa da Sé Romana, mas fonte de desagregação interna6. Embora não se possa o afirmar impunemente, devemos tomá-lo como axioma de pesquisa: a Religião Católica no Brasil precisava do Estado Nacional como parceiro para estabelecer-se como credo (senão único, ao menos oficial) de forma a atingir sua meta basilar: simplesmente a “cobertura de todo o território nacional”, conforme Nunes. Ainda que pudesse estar institucionalmente enfraquecida, detinha monopólio sobre responsabilidades civis, que eram paralelas e complementares às estatais como, por exemplo, o cadastro de nascimentos através do batismo, a validação de casamentos – era detentora ainda de autoridade formal. Tal estratégia de vinculação ao Estado de Direito simplesmente não dava espaço para a ascensão de outras religiões a não ser como prática privada (conforme o atesta o artigo 5º da Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824): a Igreja Católica era, ao contrário, validada como pública – incontestável, pois elemento anexo estatal. Suas atribuições adentravam a esfera do poder formal constituído, eram parte dele. Havia ascendência da Igreja sobre a população: suas atribuições civis e certo poder político garantiam-na. Essa é a lógica de uma Religião de Estado. Depois de fé oficial do Império Português, continuou sendo a do Império do Brasil. Essa histórica e quase inevitável estratégia de ação institucional cobrou sua contrapartida: no final do século XIX a Igreja Católica brasileira tinha sua preponderância irremediavelmente conectada à Coroa, e a seus vínculos com as elites agrárias tradicionais e nobiliárquicas, alguns bastantes locais, mas mantidos principalmente através da educação. Parte considerável de seu poder e influência estavam garantidos pelo Império Brasileiro, e este cessa de existir em 1889. 6 O ápice dos atritos entre Roma e o Império Brasileiro dar-se-á na chamada Questão Religiosa, 1870-5. 19 1.2. Igreja Católica no Brasil até a década de 1930 Quando da proclamação da República, em 1889, as atribuições civis da Igreja são progressiva ou abruptamente retomadas pelo agora Estado Político [Marx, 1843]. A Igreja Católica perde o benefício da inabalável prioridade quando o Estado se admite laico. “A relação da Igreja com a sociedade civil havia sido sempre mediada pela sociedade política, em cujo centro estava o Estado”: cabe agora a criação de novas possibilidades de inserção social da ICAR. Continua-se com o objetivo de prevalência em todo o território, a formação de uma Cristandade, e configura-se decisivo a preservação da ordem institucional: mas como uma organização desagregada internamente e agora sem o apadrinhamento formal do Estado tornaria tal possível? A Igreja também busca nas novas classes dominantes, a burguesia rural em ascensão que vêm a substituir a antiga oligarquia nobiliárquica agrária, as garantias de manutenção de seu poder político e doações para sua manutenção enquanto instituição e para a realização de suas obras – é inevitável que venha a adaptar sua ideologia e seu discurso, inclusive o educacional, à nova realidade. A despeito do aparente paradoxo, a desvinculação formal do Estado permitiu que processos de renovação da Vida Religiosa que já estavam em curso desde a metade do século XIX se intensificassem no Brasil: no período da Velha República e posterior, maior número de Ordens e Congregações (muitas delas de caridade e não tanto enclausuradas – o que já implica maior aproximação com “o mundo”, mas não da forma e intensidade que assumiria após a década de 1950) de origem estrangeiras migram ou enviam agentes para fundar representações no Brasil – a despeito da distância em relação à Europa, sede da maioria dessas instituições, e de um histórico afastamento de Roma, é com esses polos que a Igreja Católica brasileira passa a se corresponder, passando deles também a receber recursos. A romanização permite que a Igreja se articule agora como poder civil e político independente do Estado. As novas Ordens e Congregações revitalizam a Vida Religiosa, que deixa de ser somente de reclusão e contemplação (e regalias), e toma rumos apostólicos e certa atividade social no sentido educacional e de assistência aos necessitados (órfãos, velhos, acidentados que não podiam trabalhar, indigentes – aqueles que permaneciam à margem, senão fora, da ordem socioeconômica instituída), essa entendida como a “insubstituível função social” da Igreja, que foi reforçada no 20 período entre o final formal da ordem escravocrata e a admissão na ordem capitalista ocidental após a Revolução de 1930. Nesse interstício, a ICAR assume no Brasil funções assistencialistas e paliativas em relação às necessidades das populações pobres ou marginalizadas, em caráter de “suplência do Estado”. Havia uma compreensão oficial rasa e acrítica da estrutura política, econômica, social como fonte do problema: o compromisso era para com a solidariedade em relação às “vítimas de uma situação”, e não com a mudança dessa: “(...) administrar a pobreza”. Outro ponto a ser salientado é a busca por se disciplinar o catolicismo popular: os movimentos milenaristas do final do século XIX e início do XX, além de marcarem a transição de uma lógica social baseada no patriarcalismo para uma burguesa agrária, salientam a ignorância popular acerca das bases teológicas do Catolicismo. Os bispos e clérigos reformadores vão tentar instruir as massas populares “contra a ignorância, o fanatismo, as superstições, as crenças atrasadas e as práticas imorais”, simultaneamente em que contribuem para a aceitação do novo status quo. As escolas administradas pela Igreja que prestavam serviços para os “menos favorecidos” eram levadas à frente às custas de doações e em geral por Ordens Caritativas, mormente femininas. Interessante observar que esse é um elemento que contribuiu para uma formação cultural básica para mulheres, principalmente nas cidades, e para um “alargamento dos horizontes culturais” dessas. 1.3. A Igreja Católica no Brasil até o início da década 1960 A articulação com as elites civis teria papel fundamental no Programa de Estado da Era Vargas. Após a Revolução de 1930 e da interrupção das práticas políticas adotadas na República Velha, motivada entre outros fatores pela Crise Capitalista Mundial de 1929 (que causa impacto considerável sobre as oligarquias agrário- exportadoras e fortalece uma incipiente tendência ao capitalismo industrial e a um Estado burguês) o governo buscará na Igreja apoio para o avanço de seu programa populista. A Igreja novamenteestabelece um intermediário do poder constituído entre ela e a sociedade: o estudo de Religião passa a ser novamente obrigatório em 1931 nas escolas públicas, e é generalizado na Constituição de 1934; em dez anos à frente, a Igreja Católica possuirá cerca de 60% das instituições de ensino secundário brasileiras. A guisa de exemplo dessa inevitável aproximação do Estado com a Igreja Católica, fortalecida entre as novas elites e com ascendência sobre as massas 21 trabalhadoras nesse período, podemos citar a fundação do Cristo Redentor. Embora fosse ideia acalentada desde 1920 pelo Círculo Católico Brasileiro, foi inaugurado em 1931 como “homenagem ao cristianismo brasileiro”, não sem oposição das Igrejas Batistas, por exemplo, que viam na construção da estátua idolatria, apontando que o dinheiro público empregado na construção poderia ser de melhor uso em obras sociais – como podemos observar no topo do Morro do Corcovado, determinado simbolismo e ideia de cristianismo nacional foi vitorioso [LIBANIO, 1982]. Linhas de governo de populista e nacionalista durante os períodos Vargas, a populista e internacionalista durante o governo JK – de um ou outro modo, a religião configura-se parceiro notável para um consenso interno sobre “o rumo a seguir”, esse caminho sinuoso que resulta num capitalismo dependente, centrado na esfera do dólar. A Religião Católica foi declarada seguida por 99% e 94% da população segundo os censos dos anos 1890 e 1960, respectivamente, e havia ainda seu predomínio sobre o ensino, principalmente o designado como “de qualidade” ou “tradicional” – contudo houvesse instituições de ensino de base protestante, e que eram requisitadas pelos membros dos novos estamentos sociais por se dedicarem a um currículo mormente voltado a tópicos essenciais ao comércio e à indústria, além da malha escolar privada secular e a pública (essa principalmente conforme a retração econômica pós-guerra demande ensino gratuito, e em casos específicos como ensino técnico voltado à indústria). A ICAR mantinha seu ideário institucional alinhado às elites burguesas rurais, e só assume o em definitivo o projeto desenvolvimentista proposto pelos governos da Nova República a partir de meados da década de 1950, quando passa a endossar “as reformas do Estado perante as classes dominantes”. Mas as primeiras pastorais voltadas aos interesses das classes populares já despontam no início dessa década (a despeito de não incluir necessariamente representantes delas). O populismo termina por deixar um “saldo [social] positivo” (a despeito de suas intrínsecas deformidades enquanto programa político-ideológico para a gestão de uma “sociedade madura”): politização das classes trabalhadoras e amplo direito ao voto, organização sindical rural e urbana legalizadas, participação popular em campanhas de impacto nacional, debates sobre reformas de base institucionais, proposição e aprovação de uma Consolidação das Leis Trabalhistas – o proletariado urbano cresce em importância como ator social, seguindo inevitavelmente os passos da burguesia 22 industrial. O Brasil se insere efetivamente na ordem capitalista internacional como um dos caricaturalmente eternos “país[es] em desenvolvimento”. A Igreja Católica possui dois elementos que são complementares e que se alternam em importância com o tempo: o Institucional e o Carismático (ou Carismático Profético). O primeiro se refere à manutenção e ampliação da estrutura da Igreja, o segundo “é tratado como componentes transcendentais ligados à conteúdos de fé”: cada um é predominante conforme as condições sociais se tornam propícias. Entre 1930 e meados de 1950 a predominância é do aspecto institucional da Igreja Católica, que busca firmar sua associação junto ao Estado e estabelecer um vetor de crescimento e de renovação de suas atividades, enfrentando o desafio de abranger novos setores sociais e de adequar seu discurso às novas elites – há, portanto, uma rotinização do carisma, nos termos weberianos [WEBER, 2007]. O aparecimento de novos atores no cenário macro que poderiam ser associados a mudanças sociais drásticas, como o Liberalismo e o Comunismo, e a ascensão de novas religiões e o laicismo, também contribuíram para a opção pelo fortalecimento da autoridade e da disciplina. A despeito da chamada Reforma (“moralizante”) dos Conventos e Monastérios efetivamente entre metade do século XIX e início do XX, e o estabelecimento de diversas Ordens e Congregações nesse mesmo período, a vida no âmbito dessas instituições segue o padrão da Instituição Total7. Existe a delimitação de um espaço delimitado de atuação para cada aspecto da rotina, e o controle estrito dos religiosos. O espaço delimitado por excelência é a clausura. O controle mais evidente é o temporal: cada evento dá-se segundo uma rotina rígida. A adaptação do indivíduo a esse padrão passa necessariamente por um processo de despersonificação que elimina as características dissonantes, e uma reestruturação da pessoa de forma a se ajustar ao modelo padrão. Essas etapas em geral envolvem diversos rituais de iniciação, desde mudança de roupas à adoção de um novo nome, seguidos de uma legitimação da violência sobre a pessoa: o indivíduo deve estar preparado para acatar a ordem instaurada e as normas internas – o final ideal do processo é aquele em que o 7 Erving Goffman caracterizou-as: uma instituição Total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante separados da sociedade mais Ampla por considerar o período de tempo leva uma vida fechada e formalmente administrada: “Manicômios, Prisões e Conventos”, 1961. 23 subjugado crê ter conseguido seguir o exemplo da humildade de Cristo. Então, para atingir tão elevado fim, qualquer violência e repressão legitimam-se a si mesmas, e o discurso ideológico se replica, fechando o ciclo: o noviço ou noviça agora está apto a contrair os votos, que são “contratos” dele com a divindade, mas que, conforme Nunes, reiteram a dicotomia entre o mundo puro dentro dos muros, e o pecado para além da porta – através da manutenção dos votos o religioso carrega também a perfeição dentro de si. Se o adepto se rebela ou não consegue atingir o fim desejado, a estrutura deve garantir que ele é o culpado por sua falha, pois em caso contrário a legitimidade de todo o discurso é contestada. Se me demorei aqui, é porque o tema é tão válido para a vida em clausura como para determinadas realidades corporativas. Percebem-se os mecanismos que mantêm e replicam a hierarquia e a unidade ideológica, garantem a dicotomia que legitimam a existência de uma “aristocracia espiritual” a qual parte dos mais humildes servos do senhor e segue em patamares crescentes até o Papa, que é a “voz de Deus na Terra” e portanto, inconteste. Segundo as entrevistas compiladas pela autora, as antigas membros dessa Vida Religiosa Tradicional – VTR consideravam-se alienadas da realidade do mundo, presas numa rotina repetitiva e de obediência votiva cega, onde o paradoxo entre seus votos de pobreza diante da inexistência do espectro desta no ambiente controlado (trata-se então de um voto de não-posse) era rotineiro a ponto de não ser percebido, possuindo suas condições de religiosas mas em um ambiente onde os papéis femininos são fixados e impõe subserviência a homens alheios ao próprio serviço. O Concílio Vaticano II – CVII, dado entre 1961 e 1965, foi uma tentativa de conceber normas e instrumentalizar a ICAR para sua adaptação à Modernidade. As sociedades vinham se tornando mais complexas desde a adoçãodo modelo capitalista – o Estado laico por princípio, a secularização do mundo (que contesta uma compreensão da esfera comum como lugar do pecado), o desenvolvimento de direitos e do próprio conceito de individualismo, uma estrutura pública de bem-estar social, o pluralismo: esses elementos e tantos outros punham em destaque a defasagem entre a Igreja e a Modernidade, a sua situação anômica. O aggiornamento (atualização, numa tradução livre) e a renovação adaptativa das instituições são as propostas, e a atuação no mundo uma saída possível para a retração dos quadros sacerdotais e votivos – a liturgia é atualizada e adaptada; normas da Vida Religiosa são abrandadas: dá-se mais espaço decisório e participativo à pessoa do religioso e da religiosa, além de certa liberdade de 24 movimento e atitudes – como profissionalizar-se, por exemplo; criam-se alternativas que valorizam o caráter verdadeiramente comunitário e personalista (no sentido da realização pessoal proporcionada) da ação (são as Pequenas Comunidades, que contestam a estrutura total da VRT); o engajamento pastoral reforça-se. 25 Capítulo 2 – As Décadas de 1960 a 1980 No presente capítulo tem-se o objetivo de traçar um quadro geral da atuação da Igreja Católica no Brasil junto à sua população (principalmente sob o ponto de vista de seus setores ligados às CEBs e à Teologia da Libertação), além de suas transformações institucionais, e os reflexos dessas no país, entre o Concílio Vaticano II até meados do Papado de João Paulo II (de nome Karol Józef Wojtyła, polonês, 1920 – 2005). Ademais, se tentará obter, neste e no seguinte, uma perspectiva sócio, política e econômica plausível do cenário brasileiro no que se refere a Movimento Social, seja do ponto de vista da política interna a partir de 1964, seja como reflexo da mudança de paradigma geopolítico que tem início em 1985 – com a aproximação dos Blocos Antagônicos – e que continua em 1989-91, período de desagregação do designado “Socialismo Real” e da perda de referência a uma alternativa ao Capitalismo. Na Introdução deste trabalho, foi referenciada a mudança qualitativa que houve após as diretrizes do CVII na Vida Religiosa, especialmente no Brasil: do fuga mundi para a atuação no mundo, evangelizando e atuando em causas escolhidas, promovendo a caridade – contudo sem especificarmos as propostas ou iniciativas específicas das Congregações, da Conferência dos Religiosos do Brasil – CRB8 (a cúpula de diretores das Congregações, fundada em 1954, contando hoje com mais de 550 Instituições de Vida Consagrada associadas), e da Congregação Nacional de Bispos do Brasil – CNBB9 (fundada ainda em 1952). O impacto foi certamente mais intenso na população de Vida Religiosa feminina, que foi historicamente submetida com maior rigor a regras de conduta e restrições de movimentação. Obviamente, a “abertura” não se deu igualmente em todas as instituições de vida consagrada, e mesmo diante do maior contato com o mundo, não havia necessariamente compreensão profunda dos acontecimentos sociais e políticos brasileiros: o Golpe Civil Militar de 1964 pode ter sido ignorado num primeiro momento por muitos religiosos e religiosas, devido ainda à alienação da vida política e mesmo por negligência ou por influência dos veículos de informação católicos, através dos quais muitas das Comunidades que se informavam. 8 Para histórico de atuação e deliberações da instituição, vide em especial a entrada “Sobre a CBR Nacional” no sítio on-line <http://www.crbnacional.org.br/site/>, acessado em 6 de agosto de 2015. 9 As Congregações Nacionais de Bispos são reconhecidas e têm suas instâncias de atuação e decisórias delimitadas na Parte II, Livro II, Seção II, Título II, Capítulo IV do Código de Direito Canônico de 1983. Para a visão institucional da CNBB e de sua atuação, vide sítio on-line <http://www.cnbb.org.br/>, acessado em 6 de agosto de 2015. 26 As Segunda e Terceira Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano, realizadas respectivamente em 1968 em Medellín10 (possuindo por tema “A Igreja na Atual Transformação da América Latina à Luz do Concílio”), Colômbia, e em 1979 em Puebla11 (com a temática proposta “Evangelização no Presente e no Futuro da América Latina”), México, também foram determinantes na formação de uma Vida Religiosa dos Meios Populares: elas oferecem uma concepção realista da situação geopolítica dos países da América Latina, seu “papel designado” no cenário internacional, e os desafios a serem superados: a “salvação” (ou evangelização) aliada a uma concepção de “desenvolvimento” (socioeconômico, visando à melhoria de condições de vida de uma população ou comunidade). Embora elemento central nos apelos a uma intervenção militar que afastasse o “fantasma do comunismo” representado pela Presidência João Goulart, a ICAR dissocia-se ao menos formalmente do Regime a partir de 1968-69, quando o mesmo tende a recrudescer-se12 – até então, supunha-se uma “situação de exceção” para “se manter a ordem”. Passa-se novamente de uma Igreja de Estado para a atuação direta sobre a sociedade civil – há uma tendência a uma opção pelas classes não hegemônicas, as populares. Essa é uma alteração do foco de ação na sociedade da ICAR marcante, pois até então era voltado prioritariamente às elites sociais e/ou ao governo – a busca de sustentação na base da sociedade, no Brasil e em grande parte da América Latina, reflete ao contrário a atuação da Ditadura sobre os trabalhadores urbanos e campesinos: essa pretende esmagar as precedentes formas de organização político-sociais e ideológicas herdadas do período desenvolvimentista, como possíveis fontes de crítica ao sistema vigente ou à opção deste por um capitalismo submisso aos interesses “do centro” e extremamente dependente. Nas palavras de Nunes, a ICAR, ao se comprometer com os movimentos populares urbanos e do campo, “(...) deixa de ser legitimadora das práticas de dominação das classes dominantes, para apoiar a práxis revolucionária dos dominados” (NUNES, 1985). 10 Vide <http://www.celam.org/doc_conferencias/Documento_Conclusivo_Medellin.pdf>, acessado em 6 de agosto de 2015. 11 Vide <http://www.celam.org/doc_conferencias/Documento_Conclusivo_Puebla.pdf>, acessado em 6 de agosto de 2015. 12 O então Presidente formal da República, General Artur Costa e Silva (1899 – 1969) aplica o “Segundo Golpe” com a promulgação do Ato Institucional nº 5, AI-5, redigido em 13 de dezembro de 1968, que recrudesce as práticas de perseguição e contenção, em nome da “Segurança Nacional” e da “Ordem”. Vide texto no sítio on-line < http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=194620>. 27 2.1. Entremeios, 1961 a 1968 É imperativo debruçar-se sobre a atuação da ICAR no período diretamente anterior e posterior ao Golpe: as informações trazidas a público pela Comissão Nacional da Verdade – CNV, e as conclusões a que chegaram seus Grupos de Trabalho impedem qualquer interpretação simplista ou binária da influência da ICAR e outras denominações cristãs nesse processo da história brasileira, que tem por fundo um anticomunismo que reúne em torno de si diversos atores sociais13. A política desenvolvimentista mostra-se esgotada ao fim do governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902 – 1976), em 1960. JK, eleito sob o Partido Social Democrático – PSD e pode-se dizer representante de forças políticas associadas ao getulismo, assume a presidênciado Brasil em 1956 (deve-se mencionar, graças a um “contra-golpe ‘preventivo’ para se garantir a legitimidade democrática” executado pelo recém resignado, mas que retornará a esse cargo durante a transição, Ministro da Guerra do governo Café Filho, General do Exército Henrique Batista Duffles Teixeira Lott (1894 – 1984), sobre setores das Forças Armadas anti-getulistas alinhados aos interesses da União Democrática Nacional – UDN, de base social e ideológica conservadora, contudo internacionalista e partidária de um certo modelo de liberalismo econômico) herdando déficit fiscal dos períodos anteriores, e balança comercial em declínio também graças ao histórico de quedas nos preços do café. Contudo, o político dos “50 anos em 5” vai insistir no modelo de desenvolvimento rápido, implementar seu “Plano de Metas” (baseado em estudos internacionais sobre o país e os pontos frágeis de sua economia, e cujas ações deveriam ser realizadas em cadeia, na qual as anteriores estimulariam as seguintes) diante de perspectiva de inflação e certeza de aumento da dívida pública, além das greves sindicais advindas desses, e consenso político delicado. Encerra seu mandato tendo estabelecido a prevalência da indústria automobilística, e com uma trigésima primeira meta, a construção de uma cidade planejada no Planalto Central, a nova capital do país, inaugurada em 21 de abril de 1960. 13 Vide texto de Celso Castro, “O Anticomunismo nas Forças Armadas”, disponível no sítio on-line <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/AConjunturaRadicalizacao/O_anticomunismo_nas_F FAA>, acessado em 6 de agosto de 2015. Deve ser mencionado que os personagens, fatos históricos e cronologias para o período 1956 – 1989 aqui referidos foram baseados em verbetes do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro da Fundação Getúlio Vargas – DHBB/FGV, disponível on-line no sítio <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo> (consultas a vários verbetes em diversas datas). Citações pormenorizadas se afiguram irrealistas dado o volume de dados, e o conhecimento franco da maior parte deles. 28 JK lidou também com as pressões de aliados internacionais no sentido de permitir observadores do Serviço de Inteligência dos EUA in loco (o que veio a se tornar prática comum e que perdura), e dar uma direção e sentido particulares à economia produtiva brasileira (o que o indispôs com o FMI – posteriormente os EUA vão garantir que as relações sejam normalizadas, e o Fundo fornecerá amplo empréstimo para viabilizar várias das metas de JK). Propõe uma iniciativa chamada Operação Pan-Americana – OPA, que assumidamente pretendia promover, como alternativa a possíveis levantes comunistas e atritos com os EUA, uma série de reformas “(...) práticas, eficazes e positivas (...)” visando o bem estar social e agindo na promoção de um desenvolvimento econômico planejado para comunidades da América Latina: o Presidente dos Estados Unidos eleito para dois mandatos entre 1953 e 1961, Dwight David “Ike” Eisenhower (1890 – 1969) adota a proposta14; John Fitzgerald Kennedy (1917 – 1963), Presidente entre 1961 e a data de seu assassinato, diante do precedente da Revolução Cubana de 1959, se apropria da ideia básica da OPA sob o nome Alliance for Progress, e que assume um caráter assistencialista e financiador (sob critérios duvidosos) de governos simpáticos, além de prever facilidades econômicas para empresas que se instalem na área [BATALHA et al., 2009; VIZENTINI, 1993]. Jânio Quadros da Silva (1917 – 1992) assume em 1961, sob o Partido Trabalhista Nacional – PTN, a Presidência de um Brasil mais urbano, com setores médios relevantes que não se viam mais tanto representados dentro da lógica binária getulismo versus anti-getulismo, atingidos pelo processo inflacionário e ansiosos pelo saneamento da res publica. Seu vice-presidente foi o getulista reeleito João Goulart (1919 – 1976), o Jango, do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB. Jânio, que era formalmente apoiado pela UDN, conquistou determinada autonomia das bases partidárias, manifestando-se ainda em campanha a favor da reforma agrária, de uma política externa plural e mais independente dos EUA, do fortalecimento da indústria nacional e de companhias estatais, do controle da remessa de fundos para o exterior, da “moralização” das práticas públicas e reparação das dívidas e da inflação brasileiras. 14 O Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, instituição supranacional não pertencente à estrutura do Fundo Monetário Internacional – FMI ou do Banco Mundial, foi criado em 1959 nominalmente com o propósito de financiar iniciativas relacionadas aos objetivos nominais da OPA. Analistas indicam que o peso do voto dos EUA dentro do Conselho do BID prejudica a equidade decisória ou forma tendências quanto a políticas a serem implementadas. Fonte, sítio on-line <http://www.gpeari.min-financas.pt/relacoes-internacionais/relacoes-multilaterais/instituicoes- financeiras-internacionais/bancos-regionais-de-desenvolvimento/bid/o-que-e-o-bid>, consulta em 06 de agosto de 2015. 29 Em aproximadamente sete meses, Jânio desenvolveu um projeto de política nacional e internacional independentes, objetivando uma reestruturação administrativa, e flertava com mudanças econômico-estruturais que se prometiam de impacto. Se se tem dele um ícone do “sujeito desajeitado”, “mistura de Lênin com Carlitos”, se as “reformas moralizantes” de início de mandato se aproximam do cômico sob olhos atuais, deve-se lembrar de que Quadros falava a uma audiência que ansiava pelo inusitado, pelo inovador e pelo novo (ela própria recente, em vários sentidos, mas herdeira de determinadas tradições), e prometia como seu carro chefe a transformação do modus operandi de toda uma classe de profissionais afeitos ao clientelismo, politicagem e acostumados à condição de privilegiados sociais. Quando acenam que as pretensões desse político (que chegou num período de quinze anos de vereador à presidente, sem nem mesmo manifestar claro alinhamento formal às potências internacionais ou às famílias políticas tradicionais, além de manter relações dúbias com os movimentos sociais) podem ir além de reformas superficiais ou “controláveis”, há uma crise institucional. Dissenso com o Congresso – aventaram um possível plano do presidente para submeter as casas do Legislativo: atribuem a ele a pecha de golpista. Quem conduziria o processo é o “nobre” jornalista, político e assassino de reputações profissional preferido da UDN, Carlos Frederico Werneck de Lacerda (1914 – 1977). Jânio Quadros, em ato de repúdio, apresenta Carta-Renúncia em 25 de agosto de 1961, dia seguinte às acusações proferidas no espaço de mídia cativo e de alcance nacional à disposição de Lacerda. São inúmeras as interpretações do ato: que contava que a Carta nunca seria entregue ao, ou considerada documento válido pelo Legislativo; que esperava formar um núcleo de apoio coeso ao anunciá-la; que contaria com a mobilização das Forças Armadas para garantir a legalidade de seu mandato; que a população, dada sua suposta popularidade, o reconduziria à presidência através da mobilização – em todos os possíveis casos, angariaria maior liberdade de ação, e até talvez objetivasse a retração ou dissolução do Congresso, exceto se a inércia desses setores e os interesses políticos tradicionais fossem determinantes. E foi o que houve. Refugia-se na vida privada proclamando que (as sempre presentes) “forças terríveis” e a falta de consenso político possível sob sua chefia do Executivo inviabilizavam seu programa de governo.Supostamente teria optado por sacrificar seu mandato, concedido pelo povo, em nome da “garantia do processo democrático”. 30 Jânio será um dos três presidentes cujos direitos políticos serão cassados na instauração do Regime (acompanham-no JK e Jango). Retorna à vida pública surpreendendo ao eleger-se Prefeito de São Paulo/SP em 1985, dessa vez pelo PTB, mas que agora tinha contornos conservadores e elitistas inconfundíveis. As medidas “chamativas” de caráter duvidoso, mas também repressivas e autoritárias, somadas a dissensões com o funcionalismo público, marcam seu governo (houve também iniciativas de reestruturação e modernização urbana). Encerra o mandato com baixa aprovação popular e sob acusações de corrupção. Apoia Collor (cujas práticas identifica com as suas próprias) em 1989, e retira-se permanentemente da vida pública em 1990. Após a renúncia de Jânio Quadros, a normalidade da democracia brasileira é mais uma vez perturbada por quadros “salvadores da pátria”. Jango passou quase a integridade de seus dois mandatos de vice-presidente no período pós-Vargas (governos JK e Quadros, de 1956 a 1961) em missões diplomáticas no exterior, manobra necessária para se apaziguar possíveis elementos de contraposição: sua presença era fonte constante de atrito com as Forças Armadas e camadas conservadoras desde a época de Ministro do Trabalho de Vargas em 1953 – 1954 (ou mesmo antes, quando envolvido em escândalo de financiamento peronista à candidatura Vargas15 em 1950), que na ocasião articulou-se com quadros do Partido Comunista e sindicatos para fomentar uma política trabalhista-nacionalista (sua proposta para a duplicação do salário mínimo causou alvoroço entre o alto comando do Exército, que via nela, ao menos assim o foi declarado no Manifesto ou Memorial dos Coronéis de 1954, possível causa e motivo dos cortes no orçamento e contingente dessa Força, então e no futuro imediato). Encontrava-se em missão político-comercial ao Leste Europeu e República Popular da China em 1961, enquanto no Brasil elementos militares e da UDN traçavam planos para evitar sua chegada à Presidência: os então ministros das Forças Armadas, Marechal Odílio Denys (1892 – 1985), Almirante Sílvio Heck (1905 – 1988) e Brigadeiro Gabriel Grün Moss (1904 – 1989), posicionaram-se imediata e formalmente contrários à posse. 15 A título de curiosidade, manchete de 16 de agosto de 1956 do Jornal Tribuna da Imprensa (sítio on- line visitado em 31 de dezembro de 2015), associado à UDN através da pessoa de Carlos Lacerda: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_01&PagFis=29884&Pesq=>, consulta em 6 de agosto de 2015. 31 O General Lott, no dia seguinte à renúncia, subscreve manifesto público (“às forças vivas da nação, às forças da produção e do pensamento, aos estudantes e aos intelectuais, aos operários e ao povo em geral”16) em defesa da legalidade constitucional - no que se segue foi preso sob a autoridade do Exército. Imediatamente após a vacância da Presidência e posicionamento dos Ministros Militares, setores das Forças Armadas, políticos (principalmente do PTB) e populares, com base prática no Rio Grande do Sul e capitaneados pelo então governador desse estado e cunhado de Jango, Leonel de Moura Brizola (1922 – 2004), articularam-se numa Campanha da Legalidade e pressionaram fortemente o Congresso Nacional no sentido de manter a normalidade sucessória. E assim foi feito, não sem ressalvas: Jango, filiado ao PTB17, ao invés de ter a aeronave que o trazia da China abatida em voo (como foi proposto na chamada Operação Mosquito), é empossado em 08 de setembro de 1961 sob os termos da Medida Provisória nº 04 de 02 de setembro desse ano, que estabelecia um regime parlamentarista de governo. Esse deveria durar até plebiscito agendado para o início de 1965. Contudo, a UDN e o PSD tinham sofrido retração no número de parlamentares ou de apoiadores, sendo a maior parte das Casas formada por alinhados ao PTB. O objetivo de Goulart, dada sua base forte no Parlamento, foi adiantar a votação pela volta ao Presidencialismo: uma campanha com esse objetivo teve início já em 1962. O resultado da ação dos diferentes apoiadores (e.g., Lott prestou declaração favorável ao retorno ao regime Presidencialista ao Jornal do Brasil em setembro de 1962) foi a realização da consulta pública já em seis de janeiro de 1963, quando 90% da 16 Citação, a partir do documento original, disponível no sítio <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/ dicionarios/verbete-biografico/henrique-batista-duffles-teixeira-lott>, acessado em 31 de dezembro de 2015. 17 O Partido Trabalhista Brasileiro – PTB foi criado em 15 de maio 1945 ante a queda do Estado Novo para cooptar as então nascentes forças sócio-políticas que provinham das fábricas e aquelas geradas pelo crescimento econômico e que não se sentiam representadas pelas outras duas principais legendas, o Partido Social Democrático – PSD e a União Democrática Nacional – UDN, mas permaneciam fortemente ligadas à imagem de “pai dos pobres” e “benemérito dos trabalhadores” de Vargas. Tratava-se groso modo de uma “linha de defesa” dos poderes políticos vigentes contra o fortalecimento do Partido Comunista, que voltara então à legalidade, e como um veículo “privilegiado” para as petições dos trabalhadores e sindicatos. Getúlio Vargas permanece ligado ao PTB até sua morte, e o PTB permanece ligado à figura de Getúlio até sua extinção pelo Regime Militar, em 1965. João Goulart, “considerado protegido de Vargas”, ocupa a presidência do PTB de 1952 até o Golpe de 1964: durante esse período reorganiza o partido (então fragmentado por dissensões internas), busca ativamente apoio e base nos sindicatos, e chega a tentar empreender a organização formal e programática de um trabalhismo brasileiro, que chegou a proclamar objetivos nucleares liberais em termos sociais e nacionalistas no quesito econômico (algumas propostas, é necessário salientar, até a atualidade aguardando implementação – como uma Reforma Agrária com planejamento sério, por exemplo, e outras eternas Reformas de Base). Fonte: sítio on-line <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/partido-trabalhista- brasileiro-1945-1965>, acessado em 31 de dezembro de 2015. 32 população votante anui à volta de uma República Presidencialista. Até o final desse período de República Parlamentarista, houve de fato três Gabinetes que tiveram por Primeiros Ministros: Tancredo Neves (filiado ao PSD, que renuncia em junho de 1962 por ser contrário ao programa de governo), Francisco de Paula Brochado da Rocha (vinculado ao PTB, renuncia em setembro de 1962 diante da negativa do Congresso de votar as Reformas de Base), e Hermes Lima (também representante do PTB, sua gestão perdura até, e garante a, realização do plebiscito de 1963). O processo de escolha era por indicação por parte da Presidência de um nome, que em seguida era submetido pelo ao Congresso para votação – certamente permitiu maior controle do Executivo pelas Casas Legislativas, mas só enquanto setores de oposição nelas foram maioria ou bem articulados. Ainda em maio de 1962, Jango já havia oficializado como programáticas de seu governo medidas menos “conciliatórias” interpartidárias (como as iniciais, que incluíram ampla divisão das pastas ministeriais entre os diversos partidos, de certa forma em detrimento ao PTB), e fortemente voltadas a reformas de base social (a ala radical do PTB era representada por Brizola, que teve papel de destaque na mudança de rumo do governo Goulart). Nas eleiçõesde outubro de 1962, para governadores e renovação de parte do Congresso, a UDN foi a grande perdedora, saindo fortalecido em números o PTB. Contudo, o PSD e a UDN buscaram formar alianças, e juntos garantiam 54% do Congresso e os governos dos principais Estados. Com o retorno do Presidencialismo, Goulart reforça o papel do PTB dentro do governo, buscando um consenso junto ao PSD que não prejudicasse o protagonismo do primeiro. Contudo, na prática da política fazendária, as dissidências internas do Partido Trabalhista Brasileiro se acentuavam: todo um grupo de ministros caiu devido a medidas francamente alinhadas a interesses estrangeiros sob denúncia de Brizola, que crescia como figura e representava o PTB radical. Jango, temeroso ou previdente, retorna a uma política de alianças com o PSD, provocando embates com o próprio partido. Congressistas dão novo fôlego à Frente Parlamentar Nacionalista – FPN (multipartidária, foi criada em 1956 para denunciar medidas que favorecessem o capital estrangeiro em detrimento do Brasil, ou que fossem contra o interesse do país ou entendidas como antinacionalista), e a Ação Democrática Parlamentar – ADP (fundada em 1961 durante o governo Quadros) prossegue suas ações em defesa dos interesses da UDN e setores do PSD. Surgem as Frente de Mobilização Popular – FMP (movimento 33 fundado em 1962 por Leonel Brizola que se dedicava a arregimentar forças sociais e políticas para pressionar ativamente pelas Reformas de Base) e a Frente Progressista de Apoio às Reformas de Base (organizada em 1963 pelo ex-Ministro da Fazenda de Jango, San Thiago Dantas, era composta por elementos moderados e voltada a garantir a legitimidade das ações dos poder constituído e prevenir atentados a esse por opositores): ambas disputavam posições de poder ou o apoio da Presidência, causando inevitáveis fricções dentro do PTB. Brizola, que se tornava figura notável, e as dissensões internas do PTB poderiam ameaçar a posição de Goulart dentro do partido e mesmo a governabilidade, já comprometida pela situação de recessão econômica e inflação crescente que herdou e ainda não havia logrado sanear – contudo, conforme o programa assumido e dada a proeminência que a ala radical manifestou, o Presidente decide empenhar-se na reorganização de sua base fragmentada nos setores de esquerda e populares, através de comícios e anunciando ações de real impacto. Para tanto implementa medidas, já aprovadas pelo Congresso, de cunho nacionalista ou voltadas à distribuição de renda, como a regulamentação da Lei de Remessas de Lucros para o Exterior e projetos para a Reforma Agrária. As soluções de compromisso com o PSD foram se deteriorando, e mesmo a união das diversas frentes do PTB, movimentos sociais e populares em torno da figura de Jango não seria suficiente para conter um intento que que crescia, organizava-se e tomava corpo abertamente ainda em 1963 entre seus opositores. Numa sexta feira 13 de março de 1964, participa do chamado Comício da Central do Brasil, na Guanabara. Esse teve ampla divulgação pública e na mídia televisiva, e reuniu no palanque políticos, militares e personalidades alinhadas, e sob ele lideranças sindicais, de entidades de classe e de movimentos sociais de relevo, trabalhadores, estudantes, servidores públicos civis e militares. Reitera seu compromisso com as Reformas de Base 18 , com um Estado democrático, com a liberdade sindical, a concessão plena de direitos políticos (votar e se candidatar a cargos 18 São as reformas agrária, bancária, administrativa, universitária e eleitoral, que Goulart pretendia levar a cabo no Congresso ainda naquele ano de 1964. Durante o Comício, por ocasião da fala de outros convidados, assina no Palácio da Guanabara um Decreto criando a Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA), limite constitucional para suas ações nesse sentido, mas franca demonstração de compromisso. Pode-se “contrapô-las” às reformas modernizantes que eram o objetivo das novas classes empresariais, ortodoxas mas não tradicionais, e fortemente comprometidas com o capital internacional. Vide <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/comicio-das-reformas>, acesso em 31 de dezembro de 2015. 34 públicos) a analfabetos e militares de baixa patente, anistia a civis e militares que estivessem respondendo a processos por crimes políticos ou por atividades sindicais. Embora outros estivessem programados, a importância desse comício era crucial: a abertura dos trabalhos do Legislativo Nacional dar-se-ia dali a três dias – elementos do Congresso vinham desde o início de seu mandato impondo dificuldades às votações propostas, e uma demonstração de amplo apoio era necessária para convencê-los a fazer concessões: ademais, em seu discurso salienta a ação de democratas de uma anti- democracia que impediam o progresso das medidas reformadoras e nacionalistas. Essa era uma figura a qual certamente muitos parlamentares não gostariam de se ver associados. Uma série de movimentações, legais e ilegais, simbólicas ou efetivas, populares ou de grupos específicos, espontâneas ou articuladas com antecedência, tomam corpo durante março de 1964. No dia 26 desse mês o governo se abstém de punir centenas de marinheiros que participaram de um levante contramedidas restritivas de associação impostas pela Força e se refugiaram no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. Em 30 de março, discursa Goulart no Automóvel Clube no evento de comemoração do aniversário de criação da Associação de Subtenentes e Sargentos da Polícia – ASSP: abre-se uma brecha para o convencimento de que Jango se tratava de um “subversivo”, que Goulart havia cooptado os seguimentos subalternos das Forças Armadas, que estava em andamento a instauração de uma “ditadura comunista”, e outras conjecturas mais imaginativas. O levante militar, que consistiu na movimentação de tropas e articulação entre comandos, ocorre entre 31 de março e 1º de abril, essa data formalmente designada como do Golpe de Estado, pois consiste na declaração do Congresso de vacância da Presidência, e manifestação de reconhecimento e apoio dos EUA ao novo governo. João Goulart abandona a Capital Federal e segue para o Rio Grande do Sul. A despeito de ter angariado a adesão de diversos setores (entre os militares havia diversos comandos legalistas) e possuir base para ação no sul do país, Goulart prevê que sua resistência desencadearia uma guerra civil – manifestações e greve geral em seu nome não surtiram efeito prático. De Porto Alegre – RS, parte para asilo político no Uruguai, onde chega em 4 de abril. Falece na Argentina, em 6 de dezembro de 1976, vitimado por um ataque cardíaco conforme a versão oficial. Em ambos países se dedicou à 35 criação de gado (sua família era de estancieiros do Rio Grande do Sul), e foi convidado a prestar consulta em assuntos político-econômicos a seus respectivos governos, mas permanecia em articulação com grupos no Brasil19. Encerrou a vida acreditando que brevemente retornaria ao país. Seus restos mortais foram sepultados em São Borja – RS, sem as honrarias costumeiramente atribuídas, sob censura da imprensa, mas com a presença de simpatizantes e antagonistas. O Golpe foi em sua superfície uma resposta à aproximação do governo a grupos que representariam o “perigo vermelho” (que caracteristicamente parecia amedrontar de modo mais vigoroso os setores médios tradicionalistas) e a propostas de políticas econômicas socializantes (embora, se nomeadas em voz alta, dificilmente se distingam de medidas de caráter perfeitamente liberal voltadas ao dinamismo
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