Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
);uan~es - \'ol II - Outubro de 1966 9 0 PARADIGMA ANARQUISTA EM EDUCA9A0 1 Silvio GALL02 RESUMO: Este artigo procura explorar as possibilidades de se pensar o arcabouc;:o te6rico do Anarquismo como paradigma para analise da educac;:ao contemporanea. Para tanto , apresenta os princfpios gerais de sua filosofia polftica, tratando-o como um princfpio gerador, mais do que uma doutrina propriamente dita. Em um segundo memento, procura aplicar esses princfpios a quest6es educacionais, defendendo a emergencia e a fecundidade de uma Filosofia da Educac;:ao de cunho libertario. PALAVRAS-CHAVE: Anarquismo; Pedagogia Libertaria; Educac;:ao Contemporanea. 0 Anarquismo vem sendo recuperado, pelo menos ao nfvel das pesquisas academicas, como uma filosofia polftica; tal recuperac;:ao ganhou mais razao de ser com a propalada "crise dos paradigmas" nas ciencias sociais , intensificada com os acontecimentos politicos nos pafses do leste europeu e na ex- Uniao Sovietica , com a queda do socialismo real. Ante a falta de referenciais s61idos para uma analise polftica da realidade cotidiana o Anarquismo vo lta a cena. Quando estudamos o Anarquismo , porem, vemos que seria muito mais correto falarmos em Anarquismos, e nao seriam poucos3 . Como, entao, falarmos em um paradigma anarquista? Muito rapidamente, gostaria de demonstrar aqui que considerar o Anarquismo uma doutrina polftica e um serio problema, tanto pratica quanta conceitualmente. Dada a diversidade de perspectivas assumidas pelos diversos te6ricos e militantes do movimento anarquista hist6rico4 , seria impossfvel agrupa-las todas numa unica doutrina; por outro lado , a forc;:a do Anarquismo estaria justamente no fato de nao caber a ele a solidificac;:ao de princfpios que imp6e a constituic;:ao de uma doutrina. Se ele pode ser uma teoria polftica aglutinadora de largas parcelas do movimento operario europeu, no seculo passado, e se pode ser tambem uma teoria polftica que permite a analise dos fatos sociais contemporaneos , e justamente porque nao se constitui numa doutrina. 1 Comunicat;ao apresentada no ll Congresso lhero-Amaicano de Hist6ria da Educa<;iio Latina-Americana. UNTCAMP, Campinas, II a 15 de setembro de 1994. 1 Departamento de Filosolia e Hist6ria da Educa<;iio - Facu ldade de Educat;iio - 1JNICAlV!P - 130X4-111 - Campinas - Estado de Sao Pau lo - Brasil ' \'er minha dissertat;iio de Mestrado, Educar;:iio Anarquista: par 111110 pedogog10 do risco, UN ICAMP, l'acu ldade de Educa<;iio, 1990, capitulo I , Negatividade e positividode 1110 busca de UJIIa defim~·iio do Anarquismo. pp.4-37. 4 A expressiio movimcnto ananruista hist6rico e util izada pelo pesquisador George Woodcock para designar as at;oes anarqu istas organizadas no conkxto do n1ovin1cnto openlrio europeu desd~ a segunda metade do seculo passado ate a Guerra Civil Espanhola: de acordo com o historiador canadense, ta l mo vimcnto foi impul::ionado pe!as ideias de Proudhon e de Bakunin. Ver, por exemplo . . .Jnorqlllsmo: umo h~.,·t6rio dos ideios e movimentos ,':hertanos. YO!. 2: 0 11/0Villlento, Porto Alegre, L&PM, I n4. 0 PARADIGMA ANARQUISTA Para que entendamos a real dimensao da filosofia polftica do anarquismo, e necessaria que o entendamos como constitufdo por uma atitude, a de negac;:ao de toda e qualquer autoridade e a afirmac;:ao da liberdade. 0 proprio ato de transformar essa atitude radical em um corpo de ideias abstratas, eternas e val idas em qualquer situac;:ao seria a negac;:ao do princfpio basico da liberdade. Admitir o Anarquismo como uma doutrina polftica e provocar o seu sepultamento, e negar sua principal forc;:a , a afirmac;:ao da liberdade e a negac;:ao rad ical da dominac;:ao e da explorac;:ao. Devemos, assim , considerar o anarquismo como um princ1p1o gerador, uma atitude basica que pode e deve assumir as mais diversas caracterfsticas particulares, de acordo com as condic;:6es sociais e hist6ricas as quais e submetido. 0 principia gerador anarquista e formado por quatro princfpios basicos de teoria e de ac;:ao: auton omia individual, autogestao social , internacionalismo e ac;:ao direta . Vejamos brevemente cada um deles. autonomia individual: o socialismo libertario ve no indivfduo a celula fundamental de qualquer grupo ou associac;:ao, elemento esse que nao pode ser preterido em nome do grupo. A relac;:ao indivfduo/sociedade, no Anarquismo, e essencialmente dialetica: o indivfduo, enquanto pessoa humana, s6 existe se pertencente a um grupo social - a ideia de um homem isolado da sociedade e absurda -; a sociedade, por sua vez, s6 existe enquanto agrupamento de indivfduos que, ao constituf-la, nao perdem sua condic;:ao de indiv fduos aut6nomos, mas a constroem. A propria ideia de indivfduo s6 e possfvel enquanto constituinte de uma sociedade. A ac;:ao anarquista e essencialmente social, mas baseada em cada um dos indivfduos que comp6em a sociedade, e voltada para cada um deles. autogestao social: em decorrencia do principia de liberdade individual, o Anarquismo e contrario a todo e qualquer poder institucionalizado, contra qualquer autoridade e hierarquizac;:ao e qualquer forma de associac;:ao assim constitufda. Para os anarquistas a gestae da 10 sociedade deve ser direta, fruto dela propria, o que ficou conhecido como autogestao. Radicalmente contn3 rios a democracia representativa, onde determinado numero de representantes e eleito para agir em nome da popula<;:ao, os libertarios propoem uma democracia participativa, onde cada pessoa participe, ativamente, dos destines politicos de sua comunidade. internacionalismo: a constitui<;:ao dos Estados-na<;:ao europeus fo i um empreendimento politico ligado a ascensao e conso lida<;:ao do capitalismo, sendo, portanto, expressao de um processo de domina<;:ao e explora<;:ao; para os anarquistas , e inconcebivel que uma luta polftica pela emancipa<;:ao dos trabalhadores e pela constru<;:ao de uma sociedade libertaria possa se restringir a uma ou a algumas dessas unidades geopolfticas as quais chamamos paises. Oaf a defesa de um internacionalismo da revolu<;:ao, que s6 teria sentido se fosse globalizada. at;ao direta: a tatica de luta anarquista e a da a<;:ao direta; as massas devem construir a revolu<;:ao e gerir o processo como obra delas pr6prias. A a<;:ao direta anarquista traduz-se, principalmente nas atividades de propaganda e educa<;:ao , destinadas a despertar nas massas a consciencia das contradi<;:6es sociais a que estao submetidas, fazendo com que o desejo e a consciencia da necessidade da revolu<;:ao surja em cada um dos indivfduos. Pode-se dizer que a principal fonte da a<;:ao direta foi a da propaganda , atraves dos jornais e revistas, assim como da literatura e do teatro. Outro veio importante foi o da educa<;:ao, propriamente dita - formal ou informal - como veremos adiante. Tomando o Anarquismo como principia gerador ancorado nesses quatro princfpios basicos, podemos falar nele como um paradigma de analise politico-social, pois existiria assim um unico Anarquismo que assumiria diferentes formas e facetas de interpreta<;:ao da realidade e de a<;:ao, de acordo com o memento e as condi<;:oes hist6ricas em que fosse aplicado. E nesse sentido que trataremos, aqui, da aplica<;:ao do paradigma anarquista a teoria da educa<;:ao. A EDUCA<;Ao LIBERT ARIA Os anarquistas sempre deram muita importancia a questao da educa<;:ao ao tratar do problema da transforma<;:ao social: nao apenas a educa<;:ao dita formal, aquela oferecida nas escolas, mas tambem aquela dita informal, realizada pelo conjunto social e daf sua a<;:ao cultural atraves do teatro , da imprensa , seus esfor<;:os de alfabetiza<;:ao e educa<;:ao dos trabalhadores, seja atraves dos sindicatos seJaatraves das associa<;:oes operarias. Foi com rela<;:ao a escola5 , porem, que vimos os maiores desenvolvimentos te6ricos e ' 'io caso brasileiro, sabemos que o Anarquismo aqui chegou por meio dos imigrantes europeus, e toram eks tambem os r~sponsave i s pelas experiencias pedag6gicas libertarias. As primeiras referencias que temos remontam a I R95, com a Revista Nuances- Vol II - Setembro 1996 praticos no sentido da constitui<;:ao de uma educa9ao libertaria. Os esfor<;:os anarquistas nesta area prin cipiam com uma crft ica a educa<;:ao tradicional, oferecida pelo cap italismo, tanto em seu aparelho estatal de educa<;:ao6 quanto nas institui<;:oes privadas - normalmente mantidas e geridas por ordens relig iosas. A principal acusa<;:ao libertaria diz respeito ao carater ideol6gico da educa<;:ao: procuram mostrar que as escolas dedicam-se a reproduzir a estrutura da sociedade de explora<;:ao e domina<;:ao, ensinando os alun os a ocu~arem seus lugares sociais pre-determinados . A educa<;:ao assumia , assim , uma importancia polftica bastante grande, embora ela se encontrasse devidamente mascarada sob uma aparente e pro palada "neutra li dade" Os anarqu istas assumem de vez tal carater politico da educa<;:ao, querendo coloca- la nao mais ao servi<;:o da manuten<;:ao de uma ordem soc ial, mas sim de sua transforma<;:ao, denunciando as injusti<;:as e desmascarando os sistemas de domina<;:ao, despertando nos indivfduos a consciencia da necessidade de uma revolu<;:ao social8 . Metodologicamente, a proposta anarquista de educa<;:ao vai procurar trabalhar com o principia de liberdade, o que abre duas vertentes de compreensao e de a<;:ao diferenciadas: uma que entende que a educa<;:ao deve ser feita atraves da lib erdade e outra que cons idera que educa<;:ao deva ser feita para a liberdade: em outras ti.mda<;ao da t:scola Umiio Openjna. no Rio Gra nde do Sui. seguida pclas experi~ncias da Lscola L1berrcma ( iermmal (Sao Paulo. 1901 ), da Escola Soc1edade I nlernacwnal (Santos. 190-+ ). da Univers1dade Popular (Rio de .Janeiro. 1904). da Escola Nowma (Santos. 1907) (c( Edgar RODRIGL:Es. Os Uherrimos. R.I. Vozes, 19)-<l:<:!62-1G4) e da Escola Socwl da L1ga Opeuiria(Campinas, 1907 - c( Paulo GH!R,-\LDELL! .IlL Educw;:iio e Movunenro Operario. Sl'. C01tez. 19l:<7: 126-127). Na Mcada de dez. sob o impacto da execu~iio. na Espanha em 1909. de Francisco Fener i Guardia, o idealizador da Escuela Moderna de Barcelona e criador do Racwnalis11JO Pedag6g1co (ver o artigo de minha autoria. Educa9iio e Liherdade: a expenencra da Escola Jlfoderna de Barcelona. in PRO- POSIC,::OES. VOL.3. N" 3!9] . UNJC\MP/Cortcz. dez. 1992. pp. 14-23 ). !loresc~ram por a qui muitas Escolas Modcmas, tam hem como rcsu Ita do da "''i\o dos trahalhadores no senti do de suprir carencias profundas dcixadas pelo incipienk sistema de instru<;iio ptihlica da Reptihlica Vdha. Tais cxpericncias sao descritas e analisadas nas scguintc.s ohras: - Regina .IOM!NI, U111a Edlica\)iiO Para a Solidanedade. Campinas. l'ontes/UN!Cr\lv!P. 1990: - Paulo GHIRALDELLI JR .. Educar,xlo e Movunenlo Operano. op.cll.: - Fl<ivio LUIZETTO. f'resenr.;a do Anarqws1110 no Bmsil: lUll esludo dos ep1sodio.1 luer6no e edllcacwnal, liS P. Sao Carlos. 1 n4 - tesc de doutorado. () L~n1hremos que OS siskrnas pllhlicos de ensino sao uma inwnyao do capitalismo. Ver, por exemplo, Eliane LOPES. Ongens da in.1·1ru9iio p1iblica. Sl'. Loyola, In I. 7 ,-\s teorias critico-reproduti vistas de Bordicu e Passeron. intluenciadas por A.Jthusser, que ,·icejaram nos anos setenta toram, na verdade, antecipadas pelos anarquistas em quase do is seculos. ' Para os anarquistas a revolu<;iio social deve ser lruto do desejo das massas c de sua a<;ao consciente, dai sua critica a ideia de uma vanguarda que guiasst! as massas e a itnport3ncia da ~duc<H;8.o dessas para que pudessem ei<L' pr6prias organizar c gcrir o processo. ::Ja a .· ras uma tom a a liberdade como meio , a ou: ra como fim. Tomar a liberdade como meio parece-m e um equivoco, pois significa considerar, como Rousseau, que a liberdade seja uma caracterfstica natural do individuo, posi<;:ao ja duramente criticada por Bakunin9 ; por outro !ado, equivale tambem a metodologia das pedagogias nao-diretivas, alicer<;:adas no velho Emflio e conso lidadas nos esfor<;:os escola-novistas , delas diferenciando-se, apenas, nos pressupostos politicos, mas sem conseguir diferentes resultados praticos alem daquela suposta liberdade ind iv idualizada caracteristica das perspectivas liberais. Tomar, de outro modo, a pedagogia libertaria como uma educa<;:ao que tem na liberdade o seu fim, pode levar a resultados bastante diferentes. Se a liberdade, como queria Bakunin e conquistada e construida socialmente, a educac;;ao nao pode partir dela, mas pode chegar a ela. Metodologicamente, a liberdade deixa de ser um principia, o que afasta a pedagogia anarquista das pedagogias nao-diretivas; por mais estranho que possa parecer aos olhos de alguns, a pedagogia anarquista deve partir, isso sim , do princfpio de autoridade10 . A escola nao pode ser um espa<;:o de liberdade em meio a coer<;:ao social; sua a<;:ao se ri a in6cua , pois os efeitos da rela<;:ao do individuo com as demais instancias sociais seria muito ma is forte. Partindo do principia de autoridade, a esco la nao se afasta da sociedade, mas insere-se nela. 0 fato e, porem, que uma ed ucac;; ao anarqu ista coerente com seu intento de critica e transformac;;ao soc ial deve pa rtir da autoridade nao para toma-la como absoluta e intransponivel , mas para supera-la 0 processo pedag6gico de uma constru<;:a o co letiva da liberdade e um processo de des-constru<;:ao paulatina da autoridade. '' ,\ likhail Bakunin. em Deus e o Eswdo, critica a concep<;ao natural isla c individualizante da liberdade em Rousseau. tentando mostrar que homem algum nasce livre, mas que a liherdadc ~ cOI'Itjllisrada coldivam~nk t! conslruida socia lm t!nk. 10 .-\ objc<;<lo de que trahalhariamos com do is pesos e duas medidas, isto ~. atinnando a legitimidade da autoridade na cduca<;ao e sua nao kgitimidade na politica niio seria corrcta: como mostra Hannah Arendt (Entre o Passado e o Fwuro. SP, Perspectiva. 1979). nndc tennina a educal'iiu come~a a pulitica: a cduca<;iio assume um status pre-politico por cxcelencia, fonnador mesmo da fi1tura a<;iio politica. Assim. so a crian<;a pode e dew sa conduzida durante a infancia, ja nao o pode o adulto, que deYe agir autonomamentc. Perspectiva analoga loi trabalhada por Hakunin. um sccu lo antes, ao atirrnar que: "() principia da autoridade na educa<;iio das crian <;as constitui o ponto de pan ida natural: e legitimo e neces><irio, quando aplicado i1s crian9as de idade baixa, quando sua intelig~ncia nao esta ainda de modo algum d~senvolvida: mas como o desenvolvimento de tudo e da cduca~ao tamh~m. portanto, implica na nega9ao suce>Sil·a do ponto de pa11ida. ~sk principia tkve ser gradualmente diminuido. it medida qu e a educayao e a instruyao das crianyas a1·an~a. para dar Iugar <t sua liberdade ascentknte." (Dws y e/ £,rado . 13arcdona. Jucar. 1979:75). Tais questoes acham-se discutidas e devidamente fimdamentadas em minha tese de doutorado, Autondade e a Constrw;·ao da Lrberdade: o paradigma anarquista em ed11Ca9ao, UNICAMP, 199c ll Tal processo e assumido positivamente pela pedagogia libertaria como uma atividade ideol6gica; posto que nao ha educa<;:ao neutra , que toda educa<;:ao fundamenta-se numa· concep<;:ao de homem e numa concep<;:ao de sociedade, trata-se de definir de qual homem e de qual sociedade estamos falando. Como nao faz sentido pensarmos no individuo livre numa sociedade anarquista , trata-se de educar um homem comprometido naocom a manuten<;:ao da sociedade de explora<;:ao, mas sim com o engajamento na !uta e na construc;;ao de uma nova sociedade. Trata-se, em outras palavras , de criar um indiv iduo "desajustado" para os padroes sociais cap italistas . A educa<;:ao libertaria constitui- se, assim, numa educa<;:ao contra o Estado, alheia , portanto, aos sistemas publicos de ensino. 0 PARADIGMA ANARQUISTA E A EDUCA<;Ao CONTEMPORANEA 0 mote progressista nas discussoes pedag6gicas contemporaneas e a defesa da escola publica A atual Constitui<;:ao brasileira afirma que a educa<;:ao e um "direito do cidadao e um dever do Estado", definindo desde o inicio a responsabilidade do Estado para com a educa<;:ao. Ela e, porem, um empreendimento bastante dispendioso, como sabemos 11 , e por certo esse interesse do Estado nao pode ser gratuito ou meramente filantr6pico. A hist6ria nos mostra que os assim chamados sistemas publicos de ensino sao bastante recentes : conso lidam-se junto com as revolu<;:oes burguesas e parecem querer contribuir para transformar o "sudito" em "cidadao", operando a transi<;:ao politica para as sociedades contemporaneas. Outro fator im portante e a cria<;:ao, atraves de uma educac;;ao "unica", do senti mento de nacionalidade e identi dade nacional , fundamental para a constitui<;:ao do Estado-na <;:ao. Os anarquistas, coerentes com sua critica ao Estado, jamais aceitaram essa educa<;:ao oferecida e gerida por ele; por um !ado, porque o Estado certamente utilizar-se-a deste ve iculo de formac;;ao/informa<;:ao que e a educa<;:ao para disseminar as visoes s6c io-polfticas que !he sao interessantes . Nesse ponto a pedagogia anarquista diverge de outras tendencias progressistas da educa<;:ao, que procuram ver no sistema publico de ensino "brechas" que permitam uma a<;:ao transformadora, subversiva mesmo, que va aos poucos minando por dentro esse sistema estatal e seus interesses. 0 que nos mostra a apl icac;;ao dos principios anarquistas a essa analise e que existem limites muito estreitos para uma suposta "gestao democrati ca" da escola publica. Ou, para usar palavras mais fortes mas tambem mais precisas, o Estado "permite" um a cert·a democratiza<;:ao e mesmo uma a<;:ao progressista ate o ponto em que essas a<;:oes nao coloquem em xeque a manuten <;:ao de sua s 11 lsso lica ainda mais evidenciado quando. como .i o nosso caso. o Estado n1io consegue dar conta de cumprir com seu deYer e oferecer escola para todos os cidadiios. 12 instituir;:6es e de seus poder; se este risco chega a ser pressentido, o Estado nao deixa de utilizar de todas as suas armas para neutral izar as ar;:oes "subversivas". E por isso que, na perspectiva anarquista , a (mica educa ~t a o revolucionari a possivel e aquela que da-se fora do contexto definido pelo Estado , sendo esse afastamento mesmo ja uma atitud e revolucionaria. A proposta e que a propria sociedade organize seu sistema de ensino , a margem do Estado e sem a sua ingerencia, definindo ela mesma como aplicar seus recursos e fazendo a gestao direta deles, construindo um sistema de ensino que seja o reflexo de seus interesses e desejos. E o que os anarquistas chamam de autogestao. CONSIDERAc;6ES A MANEIRA DE UMA CONCLUSAO Tomar os principios filosofico- politicos do Anarquismo como referencial para pensar a educar;:ao contemporanea e pais uma empresa de movimento; se podemos, por um lado, sistematizar tais principios a partir dos "classicos" do seculo passado e do infcio deste, traduzindo-os para a contemporaneidade de nossos problemas , nao encontramos , ainda, um "solo firme" para nossas respostas - nao no sentido de que elas nao tenham consistencia, mas sim que apontam sempre para uma realidade em construr;:ao que processa a des-construr;:ao de nosso cotidiano. Se ha um Iugar e um sentido para uma escola anarquista hoje, esse e o do enfrentamento; uma pedagogia libertaria de fato e incompativel com a estrutura do Estado e da sociedade capitalista. Marx ja mostrou que uma sociedade so se transforma quando o modo de produr;:ao que a sustenta ja esgotou todas as suas possibilidades; Deleuze e Guattari mostraram 12 , por outro lado, que o capitalismo apresenta uma "elasticidade", uma capacidade de alargar seu limite de possibilidades. E certo, porem, que sua constante de e/asticidade nao e infinita: para uma escola anarquista hoje trata-se, portanto, de testar essa elasticidade, tensionando-a permanentemente, buscando os pontos de ruptura que possibilitariam a emergencia do novo, atraves do desenvolvimento de consciencias e atos que busquem escapar aos limites do capitalismo. No aspecto da forma~tao individual, Henri Arvon ja afirmava, em 197913 , que para uma sociedade de rapidas transformar;:oes como e a nossa, o projeto educativo anarquista parece ser o que melhor responderia as necessidades de uma educar;:ao de qualidade. 0 desenvolvimento cientifico-tecnologico e especialmente as transforma~t6es geopoliticas nesses ultimos quinze anos vieram a confirmar essa necessidade de uma educar;:ao dinamica e aut6noma, que encontra cada vez maiores possibilidades de realiza~tao com 12 Ver 0 Anti-Edipo: Capitalismo e Esquizofrema, dos autores !ranceses. 1.' \'er £1 Anarquismo en el Srglo XX, Madrid, Taurus. 1979, pag. 160-1 6 1. Revista Nuances - Vol II - Setembro 1996 o suporte da informatica e da multimidia. Nao podemos, entretanto, deixar que a propria perspectiva libertaria da educa~tao seja cooptada pelo capitalismo , neutralizando seu carater politico transformador, levando-a para um ambito de liberdade individual e desembocando num novo escolanovismo, aparelhado pelas novas tecnologias. 0 carater politico da pedagogia libertaria deve ser, constantemente, reafirmado, na tentativa de nao permitir o aparecimento de uma nova massa de excluidos, tanto do fluxo de informay6es quanta das maquinas que permitem 0 acesso a ele. Por outro lado, o desenvolvi mento tecnologico que nos leva cada vez mais rapido rumo a uma "Sociedade Informatica", para utilizarmos a expressao de Adam Schaff, define um horizonte de possibilidades de futuro bastante interessantes; numa sociedade que, pol iticamente, nao se define mais com base nos detentores dos meios de produ~tao, mas sim com base naqueles que tem acesso e controle sobre os meios de informa~tao, encontramos duas possibilidades basicas a realizar;:ao de um totalitarismo absoluto baseado no controle do fluxo de informar;:6es , como o pensado por Orwell em seu 1984 ou por Huxley em seu Admiravel Mundo Novo, ou entao a realizar;:ao da antiga utopia da democracia direta, estando o fluxo de informa~t6es autogerido pelo conjunto da sociedade. Em outras palavras, o desenvolvimento da sociedade informatica parece possibilitar-nos duas sociedades, uma antipoda da outra: a tota litaria. com o Estado absoluto, ou a anarquista. absolutamente sem Estado; a escolha estaria fundada obviamente numa opr;:ao politica que so seria possivel atraves da consciencia e da informa~tao, aparecendo entao a figura da educar;:ao, formal ou informal, no sentido de sustentar tal conscientiza~tao Mas, a possibilidade de trabalho que me parece mais proxima no momenta e o pensar a filosofia da educa~tao no contexto do paradigma anarquista. Setal filosofia da educa~tao pode servir de suporte teorico para a construr;:ao deste projeto de educa~tao que tem por meta a autogestao e a verdadeira democracia que a tecnologia informatica pode, finalmente, tornar possivel atraves de uma rede planetaria que imploda as fronte iras dos Estados-na~tao, ela pode, ainda , servir-nos como ferramenta de analise e critica da sociedade capitalista e da educar;:ao por ela pensada, assim como do sistema de ensino por ela constituido- a sempre ambfgua dualidade dos sistemas publico e privado. No caso especifico do Brasil contemporaneo, ela pode constituir-se num interessante referencial para a discussao e analise dos graves problemas educacionais que enfrentamos, de uma perspectiva bastante singular, como no caso da qualidade do ensino e da publiciza~tao/democratizar;:ao da escola, trazendo contribui~t6es criativas diferentes das usuais. No contexto da polariza~tao da filosofia da educar;:ao brasileira entre a tendencia nc-e-s - \·at II - Outubro de 1966 ~s~- eral privatizadora sucessora das :s'loencias trad icional, escolanovista e tecnicista 13 como expressao ideol6gica da manuten c;;ao do sistema e uma tendencia dialeti ca que, por sua vez, encontra-se dividida em varias propostas de analise 14 e tem sido - erroneamente - pasta em xeque como paradigma devido a crise do assim chamado "socialismo real", tomada como a falencia do metoda dialetico e 0 triunfo do liberalismo - novo ou velho, nao importa - e a instauragao de uma "nova ordem mundial" centrada no paradigma liberal, a tendencia anarquista ou libertaria pode apresentar-se como um novo referencial para a analise, ao mostrar, explicitamente, que como cantou Caetano Veloso, "alguma coisa esta fora da nova ordem mundial ... 0 que tentei aqui foi tao somente traze- la para a luz das discussoes, buscando sua viabilidade. 14 Ver a obra de Moacir Gadotti, Pensamento Pedag6gico Brasileiro, SP, Atica, J98g, 2' ed., que historiciza e conceitualiza as varias tendencias pedag6gicas brasileiras que buscam seu referencial no metoda dialetico. I ~ Revista Nuances - Vol II - Setembro 1996 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. SP: Perspectiva, 1979. ARVON , Henri. El anarquismo en el siglo veinte. Madrid: Taurus, 1979. COLECTIVO PAIDEIA. lntento de educaci6n antiautoritaria y psicomotriz en preescolar. Merida: Editorial Josefa Martin Luengo , 1978- 79. PAIDEIA: una escuela libre. Madrid: Ziggurat, 1985. Critica a una escuela autoqestionaria dentro de un sistema no autogestionario. La Samb/ea, Boletin de Ia Asociaci6n Pedag6gica "PAIDEIA", n.15. DiAZ, Carlos. Escritos sobre pedaooo1a politica. Alcoy Editoria l Marfil , 1977. El Manifiesto libertario de Ia ensenanza. Madrid: Ediciones de Ia Piqueta , 1978. e GARCIA, Felix Ensayo de pedagogia ut6pica. Madrid Ediciones Zero, 1975. FERRER i GUARDIA, Francese. La escuela moderna - p6stuma explicaci6n y alcance de Ia ensenanza racionalista. Barcelona: Ediciones Solidaridad, 1912. GALLO, Silvio. Educacao anarguista um paradigma para hoje. Piracicaba: UNIMEP, 1995. Pedagoqia do risco: experiencias anarquistas em educacao. Campinas Papirus, 1995. __ . Educagao e liberdade: a experiencia da escola moderna de Barcelona. PRO- POSICOES Revista quadrimestral da Faculdade de Educagao da UNICAMP, v. 3, n. 3, p.14-23, dez 1992. Politecnia e educagao: a contribuigao --anarquista, PRO-POSIC6ES: Revista Quadrimestral da Faculdade de Educagao da UNICAMP, Campinas, vo1.4, n.3, p.34-46,nov. 1993. . Ferrer i Guardia e a Pedagogia Racional --uma educagao para a liberdade, EDUCACIO i HISTORIA, Revista d'historia de l'educaci6, Barcelona, n.1, p.41-4, 1994. ILLICH, Ivan. Educagao e desenvolvimento. A IDEIA, Lisboa , n.38-39, 1985. et al. Educacao e liberdade. Sao Paulo lmaginario, 1990 JOMINI, Regina C.M Uma educacao para a solidariedade. Campinas: Pontes/UNICAMP, 1990. LUENGO, Josefa Martin . Desde nuestra escuela paideia . M6stoles Ediciones Madre Tierra, 1990. LUIZETTO, Flavio Venancio. Presenca do anarquismo no Brasil: um estudo dos epis6dios libertario e educacional. Sao Carlos, 1984, Tese (doutorado) - Universidade de Sao Paulo. . Cultura e educagao libertaria no Brasil no --inicio do seculo XX, EOUCACJi.O E SOC/EOAOE SP/Campinas, Cortez/CEDES, n° 12. __ . 0 Movimento Anarquista em Sao Paulo a experiencia da Escola Moderna n° 01 ( 1912 - 1919), EDUCACAO E SOCIEDADE, SP/Campinas, Cortez/CEDES, n° 24. MORIYON, Felix Garcia (org.). Educacao libertaria. Porto Alegre Artes Medicas , 1989. PALACIOS, Jesus. La cuesti6n escolar: criticas y alternativas. Barcelona: Laia , s. d. RAYNAUD, Jean, AMBAUVES, Guy. L'education libertaire. Paris: Am is de Spartacus, 1978 SOLA, Pere. Las escuelas racionalistas em Cataluna ( 1909 - 1939). 2. ed., Barcelona Tusquets Editor, 1978. TOMASI, Tina. ldeologie libertarie e formazione umana. Firenze: La Nuova ltalia Editrice, 1973. Breviario del pensamiento educativo libertario. Cali: Ediciones Madre Tierra, 1988. TRAGTENBERG, Mauricio. Francisco Ferrer e a pedagogia libertaria. EDUCACAO E SOCIEDADE, Campinas , n.1 . VIZZINI, Beniamino. La pedagogia libertaria come antipedagogia. UMANITA NOVA, Livorno, v.69, n.15 , 6 maggio 1989.
Compartilhar