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O desafio do diagnóstico
 A professora francesa Carole Tardif, especialista 
em Psicologia do desenvolvimento típico e atípico e 
diretora do Centro de Pesquisa Psycle, e o psiquiatra 
e pesquisador Bruno Gepter, presidente da Féderá-
tion Autisme Vie Entière, no prefácio do livro “A 
Diferença Invisível”, da também francesa Julie Da-
chez, destacam que, em 1944, o pediatra austría-
co Hans Asperger trouxe à luz as características de 
quatro crianças, às quais nomeou “psicopatas autis-
tas”. O termo, no contexto da época, não continha o 
caráter pejorativo hoje associado à expressão. 
 De acordo com Tardif e Gepter, demorou quase 
quatro décadas para que, em 1981, a psiquiatra 
britânica Lorna Wing, mãe de uma autista, atualizasse 
o trabalho de Asperger e o aproximasse ao de Leo 
Kanner, psiquiatra responsável pela primeira descrição 
do autismo infantil, em 1943. 
 Kanner escreveu que a principal característica 
daqueles jovens dizia respeito à significativa inca-
pacidade, identificada nos primeiros anos de vida, 
de se relacionar com as demais pessoas. A descrição 
de Asperger é mais detalhada e inclui os seguintes 
elementos: “Comprometimento da interação social, 
da comunicação e padrões de comportamento, de 
interesses e de atividades restritos e repetitivos (...). 
Interesses específicos, fixação anormal, brincadeiras 
e movimentos estereotipados e comportamentos 
ritualizados” (PEARCE, 2006). As quatro crianças descri-
tas por Asperger eram meninos, assim como oito dos 
o espectro no feminino
neurodivergentes autismo na contemporaneidade 39
onze pacientes de Leo Kanner. 
 Conforme consta do livro “O cérebro autista”, da 
pesquisadora Temple Grandin, que é autista, o diag-
nóstico da condição neurodivergente emerge de for-
mas distintas ao longo das revisões do “Diagnostic 
and Statistical Manual of Mental Disorders” (DSM), 
o “Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos 
Mentais”. Antes de se tornar um diagnóstico próprio 
da prática psiquiátrica, o comportamento autista era 
visto como sintoma da esquizofrenia. 
 Ao longo dos anos, foram apresentadas novas 
formas de manifestação, para além do autismo clássi-
co, como o Transtorno Invasivo de Desenvolvimento 
- Sem Outra Especificação (TID-SOE) e a Síndrome 
de Asperger, que passou a constar da Classificação 
Estatística Internacional de Doenças e Problemas 
Relacionados com a Saúde (CID) em 1994. Em ambos 
os casos, os sintomas são descritos de forma mais 
branda do que no autismo clássico. 
 Em 2013, com o lançamento do DSM-V, é regis-
trado o Transtorno do Espectro Autista (TEA), englo-
bando suas diversas manifestações.
 Convencionalmente, a estatística revela que o 
TEA ocorre em quatro homens para cada mulher. 
No entanto, essa relação tem sido questionada por 
consequência do subdiagnóstico no sexo feminino, 
especialmente nos casos mais leves, nos quais os 
traços sutis da síndrome são ainda mais camuflados, 
por motivos estruturais e culturais. Em 2012, cien-
tistas do King’s College, de Londres, analisaram os 
diagnósticos de 15 mil pacientes para constatar que 
as meninas precisam apresentar dificuldades com-
portamentais ou intelectuais mais severas para o di-
agnóstico, o que diminui, consideravelmente, a pos-
40 neurodivergentes autismo na contemporaneidade
sibilidade de serem incluídas na extremidade mais 
funcional do Espectro. Em função disso, dados sobre 
a Síndrome de Asperger sugerem proporção ainda 
mais discrepante, de dez homens para cada mulher.
 Tony Attwood, psicólogo clínico considerado o 
maior especialista mundial em Síndrome de Asperger, 
destaca: “As mulheres Aspergers são mais criativas e 
inteligentes na maneira como lidam com as diferenças. 
Elas são muito boas em disfarçar a Síndrome (...). 
Os terapeutas estão percebendo melhor como elas 
fazem isso, utilizando-se de várias estratégias”.7 
Richard Mills, diretor de pesquisa da National Au-
tistic Society (NAS), afirma que não seria surpreen-
dente se a proporção real fosse de dois homens por 
mulher. De acordo com a médica Judith Gould, dire-
tora do Lorna Wing Centre, da NAS, essa diferença 
pode ser ainda menor, de 1,5 para um. 
 Tardif e Gepter consideram que uma das várias 
questões contribuintes para que o diagnóstico do 
TEA seja subestimado no sexo feminino é a maior 
capacidade de empatia emocional presente em 
mulheres, em comparação com homens de manei-
ra geral - inclusive, no que tange às pessoas no Es-
pectro, o que permite, às mulheres, maior facilidade 
de se adaptar ao convívio social, ainda que o esforço 
seja exaustivo e possa contribuir com o surgimento, 
ou a piora, de condições coexistentes - como ansie-
dade, depressão e transtornos alimentares.
 Devido à falta de conhecimento sobre nuances do 
autismo leve no feminino, muitas meninas e mulheres 
recebem diagnósticos equivocados, como Transtor-
no Obsessivo Compulsivo (TOC) e Transtorno do 
Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), a partir 
de critérios mais flexíveis e subjetivos. A professora 
neurodivergentes autismo na contemporaneidade 41
Francesca Happé, do departamento de Neurociência 
Cognitiva do King’s College, de Londres, observa que 
se as meninas da ponta funcional do Espectro não 
estão sendo reconhecidas, também são pouco estu-
dadas. 
 Na acepção de Somer Bishop, professora assis-
tente de Psiquiatria na Universidade da Califórnia, em 
São Francisco, Estados Unidos, uma alternativa para 
a questão são estudos que observem e comparem 
garotas autistas com as que não apresentam o trans-
torno, em vez de simplesmente avaliá-las por meio 
dos instrumentos existentes. Assim, pode-se chegar 
a exemplos mais concretos sobre o modo como o au-
tismo se apresenta nas meninas, além de tornar mais 
simples a identificação de comportamentos específi-
cos das mulheres com autismo.
 Tony Attwood destaca que certos pais relutam 
em procurar avaliação diagnóstica quando a filha 
aparenta estar se desenvolvendo razoavelmente 
bem, e os médicos, por vezes, sentem-se hesitantes 
perante o compromisso de um laudo, a menos que 
as capacidades e os comportamentos sejam visivel-
mente diferentes do que se espera para jovens da 
faixa etária da paciente. 
 Afinal, as meninas verbalizam melhor os senti-
mentos e não costumam ser agressivas em respos-
ta a emoções negativas como raiva e frustração. 
Catherine Faherty, especialista psicoeducacional, ob-
serva que as mulheres manifestam agressividade por 
meio de sinais passivos ou voltados para o interior. A 
autora acrescenta que as mulheres são duplamente 
desafiadas pela expectativa de comportamentos e 
regras que a sociedade espera que sejam assumidos 
pelo papel feminino.
42 neurodivergentes autismo na contemporaneidade
 No prefácio do livro “Asperger no feminino”, a 
norte-americana Jennifer Mcllwee Myers registra 
que muitas mulheres só recebem o próprio diag-
nóstico depois que um parente do sexo masculino 
teve a mesma identificação médica. Para Myers, a 
maioria delas só toma conhecimento da importante 
diferença neurológica após uma situação desastro-
sa - ou quase desastrosa -, o que as faz passarem 
anos ou décadas sem receber a atenção profissional 
adequada. 
 A psiquiatra e pediatra Raquel Del Monde ob-
serva que muitas mulheres com autismo de alto 
funcionamento apresentam maior facilidade para 
compreender aspectos-chave da interação social e 
desenvolvem a habilidade de copiar comportamen-
tos socialmente desejáveis, a partir da observação 
das pessoas. Tudo isso leva, entretanto, a outros di-
agnósticos ao longo da vida, como depressão e an-
siedade, o que significa um alto custo a pagar pela 
facilidade de copiar comportamentos. 
 As diferenças entre homens e mulheres não 
são tão grandes no grau mais severo do transtorno. 
Raquel Del Monde explica que os critérios para diag-
nóstico do Transtorno do Espectro Autista são váli-
dos para homens e mulheres. Porém, em função da 
maiorcapacidade das mulheres para camuflar suas 
dificuldades, o profissional encarregado da avaliação 
precisa ter conhecimento profundo do quadro clíni-
co, e se mostrar sensível às nuances e sutilezas das 
formas de apresentação do transtorno. 
 “Tanto homens quanto mulheres autistas desen-
volvem estratégias para lidar com as situações sociais 
a partir da lógica, diferindo de seus pares neurotípi-
cos, os quais desenvolvem, intuitivamente, as habi-
neurodivergentes autismo na contemporaneidade 43
lidades necessárias. Contudo, resultados obtidos em 
grupos de treinamento de habilidades sociais, en-
volvendo homens e mulheres no Espectro, sugerem 
que as mulheres aprendem os conceitos com maior 
rapidez e são mais hábeis ao mimetizar expressões 
faciais, corporais, aspectos da prosódia e da troca so-
cial”, analisa Raquel Del Monde.8
 Para a médica, existem evidências de que o fun-
cionamento do cérebro feminino difere do mascu-
lino em aspectos diversos. Estudos genéticos apon-
tam variações que podem ser significativas desde 
o desenvolvimento embrionário do sistema nervo-
so central de meninos e meninas. As mulheres, em 
geral, tendem a verbalizar mais seus pensamentos e 
sentimentos, e são bastante atentas às reações das 
pessoas à sua volta. Afora isso, fatores culturais influ-
enciam no desenvolvimento da comunicação social.
 Os grupos de meninas oferecem mais oportuni-
dades de brincadeiras simbólicas (com bonecas, por 
exemplo) e de modelagem (amigas que “corrigem” 
determinado comportamento ou dão “dicas” de 
como agir em diversas situações). “Além disso, a inabili-
dade social das meninas é muitas vezes interpretada 
como timidez, passividade ou inocência, traços mais 
aceitos como ‘femininos’ na sociedade”, observa Ra-
quel Del Monde.
 A médica ressalta que muitas meninas no Espec-
tro desenvolvem interesse pelo mundo da fantasia 
(princesas, bonecas Barbie) ou por animais, temas 
nada estranhos ao universo das outras garotas. Para 
alguns examinadores, esse interesse é interpretado, 
inclusive, como bom desenvolvimento dos recursos 
da imaginação e, por isso, contribui com a exclusão 
do diagnóstico. 
44 neurodivergentes autismo na contemporaneidade
 Para Raquel Del Monde, observa-se, porém, que 
os relatos das brincadeiras ditas imaginativas, por 
parte das meninas, indicam uso mais frequente de 
scripts (roteiros de histórias e filmes) que elas em-
pregam para construir seus próprios enredos. Con-
tudo, na visão da médica, o que mais contribui para o 
subdiagnóstico de mulheres autistas é, justamente, 
a maneira mais sutil e imprecisa das manifestações 
dos déficits de comunicação social.
 De acordo com a psiquiatra, o esforço para ca-
muflar as dificuldades e agir “como esperado” pode 
ser gigantesco. As situações enfrentadas na rotina 
diária demandam, muitas vezes, um nível de alerta 
constante e grande empenho para se adequar aos 
diálogos e interações, além de alto nível de autocon-
trole, para suprimir comportamentos considerados 
inadequados. Ao longo do tempo, a tensão contínua 
pode ocasionar quadros de ansiedade e depressão 
- que, na verdade, são secundários ao problema 
real. Muitas mulheres procuram ajuda médica ou psi-
cológica apenas quando apresentam tais dificuldades.
 Sexo X Gênero
 Para a autista e presidente da Associação Bra-
sileira para Ação dos Direitos da Pessoa com Autis-
mo (Abraça), Fernanda Santana, a maior parte das 
diferenças se relaciona a sexo, e não a gênero: “Acho 
importante esclarecer isso, porque há muita gente 
dentro do Espectro que desafia gêneros. Muita gen-
te! As diferenças neurológicas estão relacionadas 
ao sexo biológico. Por algum motivo, o autismo em 
pessoas do sexo feminino parece ser mais ‘discreto’ 
quando analisamos, unicamente, o comportamento 
neurodivergentes autismo na contemporaneidade 45
mais evidente. Isso, por meio de generalização bem 
superficial. Afinal, se olharmos um por um, isso se 
perde, pois há muita variação”.9 Fernanda observa 
que, ao longo da história, há mais estudos sobre au-
tismo em meninos e homens cisgêneros (termo que 
define os indivíduos que se identificam com o sexo 
do nascimento) do que em mulheres. “Existem vári-
os mitos e estatísticas esquisitas acerca desse assun-
to. E as pessoas repetem aquilo e continuam a fazer 
referência a estatísticas desatualizadas de propósi-
to, de modo a reforçar ideias na mente das pessoas. 
Temos a questão cultural, pois algumas coisas são 
aceitas, ou até esperadas, quando se é mulher, e não 
são aceitas quando se é homem. A forma como tra-
tam homens e mulheres é diferente. Alguns compor-
tamentos autistas, quando acontecem em meninas, 
são lidos como timidez, e, em meninos, sinalizam 
algo de estranho, indesejado etc.”.
 A presidente da Abraça chama a atenção para 
o fato de que há “questões biológicas, mesmo, ex-
pressas em desenvolvimento e comportamentos 
diferentes, quando você é autista e o seu sexo 
é feminino. E temos, é claro, falta de capacitação 
profissional. Vemos médicos e outros profissionais 
da área da saúde ou da educação a repetir mitos ou 
informações incorretas. Esse último fator, em minha 
opinião, é o mais crítico”.
 Fernanda Santana também destaca que apre-
sentar boas habilidades sociais não é exclusividade 
das mulheres autistas. Homens autistas também po-
dem fazê-lo. “Embora sejam minoria, conheço pes-
soas autistas - homens e mulheres - bem extrover-
tidas e simpáticas, além de bastante sociais. Não é o 
meu caso. Infelizmente, deixo muito a desejar nesse 
46 neurodivergentes autismo na contemporaneidade
quesito, mas considero possível, sim! Tem a ver com 
a personalidade da pessoa, com a história de vida e 
tudo mais”. Importante frisar que Fernanda Santana 
apresenta fala objetiva e voz agradável. A assertividade 
ao se expressar facilita muito a comunicação com 
outras pessoas.
 Jeitos e estilos: a história de Gabriela
 “Ela é comunicativa até demais! E gosta de con-
versar desde muito pequena” - diz a decoradora de 
interiores Beth Martins, antes de uma gargalhada, 
ao lembrar que a filha, a estudante de gastronomia 
Gabriela Martins, sempre foi falante. E realmente! 
Durante a tarde em que passamos juntos, a jovem 
de 28 anos percorre, com eloquência e segurança, 
diversos assuntos. 
 O que há de inusitado na história é que a garota 
foi diagnosticada, na adolescência, com Síndrome de 
Asperger, que costuma estar ligada à dificuldade na 
socialização, e, pelo senso comum, à timidez. Porém, 
não é o caso de Gabriela, que adora estar com pes-
soas e se socializar. “É como descarrego a minha ener-
gia”, confessa.
 Ela, inclusive, considera-se uma amiga “para o 
que der e vier”, nas adversidades e sofrimentos e nos 
momentos de diversão e afeto. Gabriela lembra que 
já cortou relações porque essas pessoas provaram, a 
ela, que não mereciam seu carinho e sua confiança. E 
dispara: “Dei a chance, me decepcionei e me afastei 
de forma cuidadosa, sem ser hostil”.
 Beth começou a notar que havia algo de diferente, 
ao perceber a demora da filha para andar e falar. Pro-
curou um médico que lhe transmitiu orientações. A 
neurodivergentes autismo na contemporaneidade 47
mãe notava outras tantas dificuldades e característi-
cas diferentes: às vezes, Gabriela gostava de ficar e 
brincar sozinha; na escola, não abria a merendeira 
para comer o lanche, que voltava intacto para casa, 
a menos que a professora abrisse a merendeira dela. 
“Ela precisava de alguém para dar um start”.
 Quando a mãe convidava colegas da filha para 
brincar e conversar, Gabriela, “já maiorzinha”, impli-
cava e ia para um canto. Beth é quem acabava tendo 
que brincar com as meninas, já que as havia convida-
do. A mãe ressalta que a filha sempre foi muito or-
ganizada. “Todas as Barbie dela tinham os acessórios 
correspondentes. Se perdesse um sapatinho, ela fi-
cava uma fera.” 
 Gabriela estava com quase 15 anosquando fez 
vários testes. Falaram, então, que ela tinha TDAH. 
Chegou a tomar medicamentos para concentração. 
A verdade, contudo, é que ninguém sabia direito o 
que ela tinha. Não havia tanta informação sobre o 
autismo, ainda mais no feminino. “Hoje em dia é mui-
to bom, porque há muita informação e as pessoas 
podem se beneficiar disso, o que não foi nosso caso”, 
lamenta Beth, ao lembrar que “ela era tratada como 
TDAH, mas eu nunca deixei de fazer testes. Cheguei 
a levá-la a uns cinco médicos diferentes”. Até que 
uma diretora da escola recomendou uma médica, 
que tinha obtido bons resultados com outros alunos. 
Beth levou Gabriela à profissional, que leu o históri-
co da jovem e fez muitas perguntas à mãe, além de 
entrevistar Gabriela. Beth conta que a partir dali 
pôde respirar aliviada: “A médica deu o diagnóstico e 
a vida tem sido mais fácil desde então”.
 O que Gabriela mais detestava (e ainda detesta) 
era o bullying, que a fazia sofrer. De resto, com ou sem 
48 neurodivergentes autismo na contemporaneidade
sofrimento, sempre “encarou” tudo. A garota sai, vai 
ao balé, nunca permaneceu confinada em casa. “Nas 
férias, a gente ia para a fazenda dos meus pais, e ela 
andava a cavalo. Sempre teve vida saudável e boa es-
trutura familiar”, conta Beth.
 Gabriela complementa: “Preciso da ajuda do 
coordenador e de uma mediadora, mas, até agora, 
essa pessoa não apareceu. Eu sofri ao estudar 
sozinha, mas minha coach (uma terapeuta ocupacio-
nal) e minha mãe hoje me ajudam em questões da 
vida diária. Acho que estou lidando melhor com essas 
questões. Sou indiferente a quem não gosta de mim 
ou me odeia. Não ligo para o que as pessoas pensam 
de mim, a não ser que sejam amigos ou parentes de 
quem gosto muito. Recentemente, tornei-me vítima 
de fofoca na escola, por causa de algo que fiz erra-
do, e finjo que não estou incomodada, pois, assim, 
as pessoas que fazem isso comigo perdem a graça. 
É bom que as pessoas não queiram encontrar meu 
pior lado, que é quando estou furiosa. Ainda assim, 
sou intolerante a poucas coisas. Preconceito é uma 
delas. E me importo quando algo ocorre com alguém 
de quem eu gosto”.
 A imaginação de Gabriela mantém-se ligada a 
um mundo fantástico, como em filmes ao estilo de 
“Crepúsculo”, repleto de “coisas loucas” e diferentes 
da realidade, segundo ela mesma diz. Trata-se, en-
fim, de coisas que poderiam existir, mas não existem: 
sereias, fadas e seres fantásticos. A jovem estudante 
faz questão de ressaltar: “Tive amigos imaginários 
quando era criança, mas só uma vez”. 
 Ela tem muitos interesses específicos, o que a 
difere da maior parte dos homens no Espectro. Es-
ses interesses incluem a moda, o cinema e a música. 
neurodivergentes autismo na contemporaneidade 49
Filmes e canções são seus focos favoritos. A estu-
dante também gosta de artes plásticas e de livros de 
literatura - muitos dos quais voltados, justamente, 
à arte. Gabriela se define como “muito artística”: 
“Tenho outros assuntos de interesse, como Filosofia. 
Pesquiso sobre praticamente tudo o que você pos-
sa imaginar. Sou como uma enciclopédia ambulante. 
Conheci um homem em Paris que é exatamente as-
sim. Tenho muito interesse, ainda, por História. Sou 
voltada à arte e às Ciências Humanas. Gosto de ler 
sobre outras culturas, a exemplo da americana - 
morei nos Estados Unidos - e da britânica”.
 Autoconhecimento: os caminhos de Selma
 Assim como acontece com Gabriela, timidez tam-
bém não é algo a se imaginar para a jornalista Sel-
ma Sueli Silva, sempre alegre e ponderada, em suas 
opiniões como radialista e youtuber. Ela também é 
autista. Contudo, como alguém com tal diagnóstico, 
que afeta a comunicação e a interação social, pode 
se tornar uma comunicadora de sucesso? 
 Durante o processo de descoberta, Selma pas-
sou por rigorosa análise de sua trajetória de vida por 
parte dos especialistas e pôde descobrir a mulher 
por trás das estratégias montadas para diminuir o 
sofrimento. “Percebi que ninguém me conhecia de 
fato. Olhar para si é muito difícil”, ela registra.
 O diagnóstico fez muita diferença na vida de 
Selma: “Já me culpei por muita coisa de que não pre-
cisava, já tive reações que considerava inadequadas 
- como pedir para minha mãe não vir me ver num 
dia em que me sentia exausta”.
 A jornalista hoje conhece seus limites e entende 
50 neurodivergentes autismo na contemporaneidade
por que os tem. Fica mais fácil administrar o cotidi-
ano. Sua relação com o filho melhorou. “Sempre 
fomos parceiros. Mas, agora, nossa parceria é mais 
profunda. Ele sabe que eu, de fato, o entendo. E ele 
também me entende e me ensina todos os dias!”.
 Selma sabe que é admirada por muitos e que 
também admira muita gente. Gosta das pessoas e faz 
questão de deixar isso claro, para não ser mal inter-
pretada - no que se refere ao seu jeito de ser - pe-
los amigos. Ela não se acostumou a receber pessoas 
em casa, nem vai a encontros e festas. Em 15 anos de 
trabalho na rádio Itatiaia, foi a uma reunião de fim de 
ano e a um aniversário da emissora. “Foi estressante 
e fiquei esgotada”, analisa. Hoje, Selma voltou-se ao 
ativismo por pessoas autistas e aos projetos com o 
filho, também autista, como o portal Mundo Asperger. 
“Não queremos que nenhuma família se sinta sozinha 
como a gente se sentiu um dia”.
 Algumas pessoas da família evidenciam traços 
de autismo leve. A avó e a mãe eram consideradas 
“fora da curva”, é natural que Selma também o fosse. 
“Minha mãe sempre foi vista como muito inteligente. 
Ela nasceu em Crucilândia (MG) e algumas pessoas 
alertaram minha avó: ‘Essa menina não vai vingar. É 
muito conversada e inteligente’. O mundo não era 
feito para quem era ‘fora da curva’ e, por isso, pos-
sivelmente, minha mãe iria morrer cedo, na visão da 
vizinhança da época. Não morreu. Está com setenta 
e poucos anos e continua muito inteligente, além 
de - cá entre nós - mostrar algumas invejáveis es-
quisitices”.
 A avó de Selma estudou até o quarto ano primário, 
mas tinha visão muito à frente de seu tempo, o que a 
levou a possibilitar o crescimento e o estudo dos 
neurodivergentes autismo na contemporaneidade 51
filhos. Ela sabia que a educação seria o passaporte 
para que saíssem da comunidade. “A gente não era 
melhor do que ninguém, mas aquela vida não era 
para ninguém, e os filhos dela tinham que construir 
uma história digna”. Ela lavou roupa para fora, escon-
dida do marido, que era mestre de obras e trabalha-
va na construção de Brasília. Selma reforça: “Minha 
avó impulsionou todos os filhos - seis homens e três 
mulheres - a desenvolverem suas potencialidades”.
A jornalista guarda na memória cenas de quando era 
bem pequena e se desgastava com um grande sen-
timento de inadequação. Ela analisava o que aconte-
cia à sua volta, sentia-se injustiçada, não conseguia 
se expressar e era sempre ridicularizada. “Diziam 
que eu não tinha esportiva. Sabia que não era isso, 
mas acabei incorporando o rótulo, e vieram outros: 
‘nervosinha’, ‘manteiga derretida’, ‘emotiva’. À medi-
da que eu crescia, fazia um esforço danado para en-
tender o mundo que me cercava. A observação me 
ajudou muito, porque eu via como as pessoas agiam 
e copiava o que, na minha percepção, dava certo para 
eu me sentir menos estranha”.
 Selma Sueli Silva não se dedicou ao estudo de 
línguas, por exemplo, devido à falsa crença de que, 
se não fizesse no tempo certo, não poderia fazer 
mais. Ela tem dificuldades quanto à noção de tem-
po, espaço e localização, e se perde em shoppings 
e aeroportos. “Não é uma questão de ‘decorar’ o 
caminho. O excesso de informação visual e a péssima 
sinalização me confundem. Faço tudo que tenho que 
fazer, mas a um preço bem alto, tanto física quan-
to mentalmente. Sei que não sou burra, mas a in-
genuidade do autismo já me trouxe sérios riscos, por 
confiar em quem não devia e manter relacionamen-
52 neurodivergentes autismo na contemporaneidade
tosamorosos que não valiam a pena. Não consigo 
guardar raiva. Quando alguém me prejudica, preci-
so escrever para me lembrar disso depois, e não cair, 
várias vezes, na mesma situação”. 
 Selma admite: “Já pus meu filho em situações 
nas quais outra mãe não poria. Em determinada 
ocasião, uma empregada bateu nele. Expliquei a ela 
que não podia e que bater não educa, mas não a des-
pedi, porque se até eu que sou mãe perco a paciên-
cia, como cobrar isso de outra pessoa? Minha sorte 
é que, após minha atitude, ela melhorou. Já pensou 
nas consequências?”.
 Selma correu risco de vida por causa da rigidez 
de pensamento. Ela fazia estágio na Central de Abas-
tecimento de Minas Gerais (Ceasa) e, certa vez, es-
perava, na BR 040, o ônibus da empresa. O colega, 
que viajava com ela, insistiu para que esperasse pelo 
transporte um pouco mais longe da rodovia. A jor-
nalista teimava em não sair do lugar reservado à es-
pera dos usuários. Seu colega explicava que todos 
esperavam mais atrás, por segurança. Selma respon-
dia: “Não faz sentido. É aqui o lugar marcado para 
que a gente espere. É o certo”. Ele, impaciente, 
respondia: “‘Tá’ bom! Você será uma morta coberta 
de razão!”.
 Aos 28 anos, Selma perdeu o emprego em um 
pool de escolas, porque a Economia não ia bem e os 
donos do “cursinho” despediriam todos de uma das 
unidades da empresa, para recontratar gente com 
salários menores. Todos aceitaram, exceto ela: “Não 
fazia sentido continuar trabalhando para os mesmos 
chefes, fazendo a mesma coisa, com o salário re-
duzido”. Selma foi despedida e não conseguiu reti-
rar o seguro-desemprego, porque tinha pavor de 
neurodivergentes autismo na contemporaneidade 53
órgãos públicos - no caso, o Ministério do Trabalho. 
“Não tinha coragem de pedir a ninguém para ir comi-
go. Por isso, perdi o prazo”.
 Opiniões também são imutáveis: “Recentemente, 
em um programa de rádio do qual fazia parte, recebi 
ordens para omitir minhas opiniões quando se tra-
tasse de determinado partido político; eu poderia 
criticar, mas nunca elogiar. Não dei conta. Não pode-
ria omitir minha opinião. Não consigo fazer isso. Re-
sultado? Fui demitida, mesmo após quinze anos de 
serviço, audiência em alta e admiração de todos”. 
 Por outro lado, Selma Sueli Silva ressalta a posi-
tiva relação com a família: “Fomos educadas para en-
frentar os desafios e sair deles melhor do que entra-
mos”. Foi o amor imenso pelo ser humano que a levou 
a se converter à religião humanista do Budismo de 
Nichiren Daishonin, por meio da ONG Soka Gakkai In-
ternacional, que significa “Criação de valores” e luta 
pela Paz, Cultura e Educação. Por meio da recitação 
do mantra “Nam Myoho Renge Kyo”, embasada na 
fé, na prática e no estudo, ela sabe que, como es-
creveu o maior pacifista vivo da atualidade, Daisaku 
Ikeda, o “futuro começa neste instante. Precisamos 
definir o que deve ser feito neste momento; e como 
estabelecer uma firme base no exato local em que 
estamos. É importante vencer aqui e agora!”.
 Um dos impeditivos para que Selma se perce-
besse autista diz respeito à chamada hiperempatia: 
“Desmaiei, quando uma amiga me contou detalhes 
de um acidente com outras pessoas. Passo mal ao ver 
telejornais e desmaio ao ler páginas policiais. Sofro 
até mesmo com as maldades de um vilão fictício - 
mesmo sabendo que não é verdade”.
 Para o ex-marido de Selma, o jornalista, escri-
54 neurodivergentes autismo na contemporaneidade
tor e editor Roberto Mendonça, o diagnóstico da 
companheira não o surpreendeu tanto. Anos antes, 
enfrentaram a novidade absoluta do diagnóstico do 
filho. Desde então, Roberto identificava certas 
características em Selma, mas ele não tinha conhe-
cimento técnico para afirmar do que se tratava. Mui-
tas brigas, aliás, poderiam ter sido evitadas.
 Para Roberto, era difícil lidar com a inteligência 
muito objetiva, a honestidade desconcertante e a im-
paciência da esposa. “Ela tem um grau de ansiedade 
acima da média e pontualidade britânica. Eu tra-
balho conforme a inspiração. Minha vida profissional 
é consequência de minhas características pessoais. É 
uma vida solta em termos de horário. Selma é bem 
exigente com relação a isso, além de impaciente e 
nervosa. Devo considerar, também, meu próprio 
temperamento, não sei se sou calmo ou muito bem 
controlado”. 
 O jornalista observa que “Selma sempre foi mui-
to alegre, embora ansiosa, nervosa, além de espiri-
tuosa. Sempre tivemos boas conversas. Pelas cir-
cunstâncias peculiares à Síndrome, Selma era muito 
metódica e tinha facilidade de organizar as coisas. Se 
dependesse de mim, a casa seria bagunçada. Ela tinha 
muito capricho. Dentre outras de suas virtudes, sem-
pre cuidou muito bem do filho; sempre foi cuidado-
sa, ao extremo, com as necessidades dele”.
 A arte de conviver
 Roberto Mendonça tentava ficar calmo quando 
Selma aparentava estar em crise. “Mesmo que, de-
pois, a gente viesse a discutir, eu sempre procurei 
entender que aquilo era uma característica, uma cir-
neurodivergentes autismo na contemporaneidade 55
cunstância pessoal. E que não era minha. Além disso, 
os dois não podem ficar nervosos ao mesmo tempo”.
 Às pessoas casadas com autistas, Roberto ressalta 
a importância do tempo: “A gente precisa ter paciên-
cia e esperar que o tempo aprimore a convivência. O 
ser humano amadurece sempre, em qualquer idade. 
Aos poucos, as crises ficaram mais raras, porque, no 
fundo, ninguém quer brigar ou desagradar. Não é 
agradável para ninguém”.
 O jornalista e editor acredita que mulheres au-
tistas tendem a dissimular suas dificuldades de co-
municação, e se mostram menos introspectivas. Elas 
podem aparentar ter boas habilidades sociais - na 
maioria das vezes, com maior facilidade que as dos 
homens. 
 O cartunista autista Rodrigo Tramonte concorda 
com Roberto Mendonça. Para ele, as mulheres au-
tistas conseguem se adaptar às normas de conduta 
social de forma mais espontânea e intuitiva. Tanto é 
que muitas delas se casam e se tornam mães sem le-
vantar suspeitas quanto às especificidades de suas 
condutas. Rodrigo lembra que a maioria delas conta 
com vasta capacidade de adaptação ao meio, assim 
como costumam sentir as coisas com intensidade 
muito mais forte, o que, às vezes, provoca crises 
nervosas e picos de estresse. Ele observa que, além 
de sua maior capacidade de adaptação ao meio, as 
alterações de humor, nas mulheres autistas, costu-
mam ser confundidas com as variações hormonais 
- a exemplo da famosa TPM - que também ocor-
rem nas mulheres não autistas, o que contribui com 
o subdiagnóstico.
 Selma Sueli Silva acrescenta que, por questões 
culturais, é maior a cobrança para que a mulher se 
56 neurodivergentes autismo na contemporaneidade
adapte, aja dentro de determinados padrões e seja 
meiga, educada e terna. “Isso dificulta o diagnósti-
co, porque a mulher autista tende a copiar modelos 
socialmente aceitos. Mulher e homem têm cérebros 
estruturalmente diferentes, o que pode facilitar a 
cópia de modelos sociais, mas, também, acarretar 
maior sofrimento”.
 Selma sempre fez um grande esforço para se 
adequar a situações que envolviam muita gente, na 
escola e em encontros de família, ou para entender 
(e se relacionar com) as pessoas. Nem sempre o que 
elas diziam fazia sentido para ela, e vice-versa. Para 
não se sentir tão exposta, passou a observar quem 
julgava ser mais feliz e adequado que ela, e “copia-
va” o jeito de ser que considerava importante para se 
proteger da exposição. “Percebi que todos lidavam 
melhor com crianças ‘boazinhas’, e tentei ser o que 
os adultos esperavam de mim”, conta a jornalista, 
que, com o tempo, dividiu-se em duas: a Sueli ficava 
em casa; a Selma ia para a escola. “Os dois mundos 
não podiam se misturar. Há pouco tempo é que não 
me sinto mais a Selma e a Sueli. Hoje, sou a Selma 
Sueli Silva”.
 A Vida que se esconde: os anseios de Myriam
 Desdea adolescência, a psicóloga Myriam Letí-
cia conviveu, calada, com depressão e transtorno de 
ansiedade. Em 1999, aos 13 anos, ela cursava a séti-
ma série e passava pela transição da adolescência. 
Foi quando surgiram, com mais frequência, as crises 
de choro. Ela chorava escondida na escola. Em casa, 
as crises eram de ansiedade e medo. Foi assim, com 
tudo “guardado”, até o final da adolescência. 
neurodivergentes autismo na contemporaneidade 57
 Como as cobranças sociais são mais intensas com 
as mulheres, Myriam participava de grupos religio-
sos, além de fazer atividades de teatro e música no 
conservatório. Tudo isso se transformou em impor-
tante eixo de apoio. 
 Por outro lado, era a aluna que correspondia 
às expectativas, aprendia tudo e se revelava quieta. 
A família não recebeu da parte de Myriam qualquer 
reclamação, e como ela nunca apresentava notas 
baixas, foi o bastante para que “funcionasse bem” 
para aqueles que estavam à sua volta. A angústia e a 
ansiedade internas não eram perceptíveis às pessoas. 
Myriam ingressou na faculdade de Psicologia da 
UFMG em 2004, e reapareceram os sintomas, tanto 
o quadro depressivo quanto a complexa ansiedade. 
Ela começou a apresentar dificuldade de aprendiza-
gem, o que jamais havia vivido. Não era fácil falar so-
bre isso, e, muito menos, pedir ajuda. Não que ela 
não quisesse... Myriam, simplesmente, não sabia - 
ou conseguia falar - sobre esses problemas. À épo-
ca, já contava com ajuda psicoterapêutica, além de 
certo desenvolvimento espiritual que trouxe, para a 
fase adulta, uma vivência religiosa muito mais leve, e 
essencial à busca do autoconhecimento e do encon-
tro com o “outro”. Paradoxalmente, quanto mais se 
aprofundava nessa busca, mais difícil era entender o 
que se passava com ela. 
 Myriam concluiu a faculdade em 2008. Em 2009, 
após mudança de cidade, emprego e estilo de vida, 
além do início de uma pós-graduação, ela teve a pri-
meira crise depressiva mais grave, associada a um 
quadro de pânico. A Psicoterapia já não era mais su-
ficiente: foi preciso iniciar o tratamento psiquiátrico 
medicamentoso. Foram vários anos com intervalos 
58 neurodivergentes autismo na contemporaneidade
entre as melhorias e a recorrência do transtorno 
depressivo e da ansiedade - sintomas que, por um 
tempo, analisou-se, erroneamente, como de “bipo-
laridade”. 
 “Houve época em que cheguei a tomar cinco psi-
cotrópicos diferentes ao mesmo tempo. Posso listar 
doze tipos de medicamentos que tomei em sete anos. 
Portanto, conheço bastante os efeitos - benéficos, 
por um lado; terríveis, por outro - de grande parte 
deles. Não nego tal necessidade, nem descarto seu 
uso ou questiono sua eficácia. Pelo contrário: sou 
grata por terem me ajudado a me manter viva. Mas 
sei bem o que passei em termos de efeitos colaterais 
dos medicamentos, tanto físicos quanto cognitivos, 
e, definitivamente, não desejo isso a ninguém”.
 Devido à depressão e aos efeitos da medicação, 
Myriam não terminou as quatro diferentes pós-gradu-
ações que iniciou. Teve prejuízos nos empregos. Ela 
ficou três anos sem conseguir sequer ler um livro in-
teiro. Durante cinco anos, não conseguiu nem sequer 
tocar uma nota em seu piano, além de sete anos sem 
escrever poemas. Não se dedicar às paixões causava-
lhe ainda mais angústia e tristeza. Nessa época, veio 
a suspeita da Síndrome de Asperger (ou espectro 
autista leve), que Myriam rejeitou com grande re-
sistência, por muito tempo, devido à vergonha e ao 
medo de ser ainda mais rotulada e incompreendida 
- como aconteceu com a depressão, tanto em situ-
ações de empregos quanto entre pessoas de seu cír-
culo de relações. 
 Mas, se a mente da psicóloga a sabotava, por não 
acreditar que seria boa profissional, em função do 
transtorno depressivo e ansioso, a armadilha mental 
estava completa. Ela achou que o mundo fosse jul-
neurodivergentes autismo na contemporaneidade 59
gá-la, que ninguém acreditaria nela, nem a levaria a 
sério. Temeu, enfim, por jamais conseguir emprego. 
 Myriam não queria se vitimizar, nem aceitaria 
ser vista como “estranha” ou “diferente”. Por isso, 
tentava agir de modo a camuflar tudo o que sentia, 
para que não desconfiassem de seu diagnóstico. À 
época, ela era sócia de um empreendimento virtual, 
no qual se responsabilizava pela área de marketing 
e pelos contatos comerciais. Precisava frequentar 
eventos os mais diversos. Para dar conta de tudo, 
bebia muito, com o objetivo de se soltar e se social-
izar ao modo do que considerava “normal”. Em certo 
momento, não se reconhecia mais. 
 “Transformei-me no meu avatar. Não fazia, nem 
buscava nada que me correspondesse de verdade. 
Eu tinha deixado de fazer tudo de que gostava - e 
as pessoas nem sabiam do que eu gostava, de fato. 
Parecia que ninguém sabia quem eu era, ou me conhe-
cia. Tudo ficava pior. Quanto mais me escondia, e me 
camuflava, mais me perdia”.
 Entre 2011 e 2013, Myriam engordou vinte qui-
los. Chegou ao nível 01 de obesidade e quase à au-
toestima zero, principalmente, por consequência de 
seu estado interior. Ao longo de meses, bebeu mais 
que o necessário. Teve pré-diabetes e síndrome me-
tabólica. Apareceram as crises de enxaqueca, a ten-
dinite, as doenças autoimunes, a endometriose, a in-
tolerância à lactose e a resistência à insulina.
 Em 2013, ela buscou se desintoxicar dos me-
dicamentos, cuidar-se de maneira ampla e integral. 
De 2014 a 2016, conseguiu manter-se com apenas 
um medicamento antidepressivo, em dose mínima. 
Mesmo sem fazer dietas ou exercícios, iniciou o 
tratamento para resistência à insulina. Emagreceu 
60 neurodivergentes autismo na contemporaneidade
26 quilos - dos quais recuperou oito, “sem neuras”, 
devido ao tratamento hormonal para endometriose 
e por ter deixado de ingerir antidepressivos.
 Recentemente, a condição Asperger foi confir-
mada por um psiquiatra e por uma neuropsicóloga, 
de forma a fechar um ciclo de autoconhecimento e 
aceitação. Myriam considera que os dois profis-
sionais são dos poucos que, realmente, estão prepa-
rados e atualizados sobre as diferenças entre o TEA 
leve no feminino e na idade adulta. 
 Agora, finalmente, muita coisa faz sentido para 
a jovem psicóloga: o constante sentimento de inade-
quação e a dificuldade com a comunicação oral; a pro-
lixidade; a custosa tentativa de se fazer parecer mais 
“normal”; a exacerbada observação do comporta-
mento alheio para tentar compreender padrões e re-
gras sociais, de modo a imitá-los, para agir conforme 
o esperado, e o bom uso de tudo que aprendeu no 
teatro a seu favor. Compreendeu, também, a dificul-
dade de aprendizagem em relação às abstrações fi-
losóficas - as quais, por seu caráter desafiador e in-
trigante, assim como a poesia, tornaram-se, para ela, 
área de vasto interesse. 
 Certa vez, uma prova oral a fez ficar tão nervosa 
que começou a tremer e a chorar. Além disso, havia 
a vontade de se aproximar de grupos de pesquisa na 
faculdade, mas nunca sabia como fazê-lo. As crises 
nervosas, anteriores às apresentações em grupo ou 
as tentativas de comunicação travadas e em momen-
tos estressantes, agora tinham explicação. 
 Outras muitas características foram explicadas 
pelo autismo. Que o digam as dificuldades de fazer 
novos amigos (e o apego extremo a amigos de longa 
data), o uso da bebida para conseguir socializar-se, 
neurodivergentes autismo na contemporaneidade 61
frequentar festas e dançar, o apego a detalhes, a 
dificuldade de síntese e de priorizar tarefas, o per-
feccionismo contraproducente, a rígida obediência 
a regras, a estranha facilidade de memória visual, as 
pesquisas profundas e o foco obsessivo com assun-
tos de interesse próprio. Importante ressaltar tam-
bém a desenvoltura para organizar melhor o discur-
so por meio de textos escritos ou imagens, a maior 
facilidade para expressar sentimentos via internet 
(do que pessoalmente ou por telefone), a hiper-empatia e a sensibilidade em relação a tudo, o fre-
quente olhar perdido no vazio por estar absorta nos 
próprios pensamentos, os “mergulhos em universo 
paralelo” - conforme descrição do marido de Myri-
am -, os entendimentos a posteriori, a demora ao 
compreender sinais sociais, a facilidade de acreditar 
nas pessoas e de ser enganada ou manipulada por 
elas, a vontade de não falar nada em certas situações 
- para não correr o risco de ser inconveniente -, as 
recorrentes crises de depressão e ansiedade... A ca-
pacidade de camuflar tudo, de maneira que nada se 
revelasse em mais de três décadas de vida. 
 Nos últimos três anos e meio, Myriam percebeu 
que a manutenção de sua saúde carecia de cuidados 
muito mais específicos do que a ingestão de medica-
mentos. Ela retomou, aos poucos, a qualidade de 
vida, associada às saúdes mental e integral, o que 
inclui autoconhecimento e aceitação. Voltou, então, 
a fazer coisas de que sempre gostou, e que há tem-
pos havia abandonado, na tentativa de se encaixar 
em padrões sociais. Hoje, ela toca piano, canta, ama 
ler e escrever crônicas, contos e poesias. Retomou o 
estudo de língua estrangeira, além de trabalhar com 
artesanato. 
62 neurodivergentes autismo na contemporaneidade
 A longa jornada 
 Na trajetória de Myriam Letícia, também a es-
piritualidade a ajudou a se recuperar, de forma mais 
leve, livre e holística. Sua vida, afinal, estava sen-
do reescrita em todas as áreas. A psicóloga mudou 
hábitos alimentares, retomou o gosto pelo estudo e 
voltou a investigar áreas de interesse. Desse modo, 
interessou-se por várias novas áreas de conhecimen-
to. Hoje, faz acupuntura contra as dores de coluna, 
que ainda teimam em aparecer, e se entrega a outros 
tantos exercícios físicos. Aderiu a práticas de medi-
tação, ioga, homeopatia, fitoterapia, reiki e aroma-
terapia - inclusive, como formação pessoal.
 Em meio a tantas mudanças, há nove meses, ela 
deixou de consumir o último psicofármaco, e está 
muito bem sem o medicamento. Agora, toma ape-
nas uma vitamina para os cabelos (que caíram de-
mais, devido ao tratamento hormonal) e o remédio 
para resistência à insulina. O corpo ainda mantém o 
restante dos hormônios injetados para o tratamen-
to de endometriose, mas ela espera não necessitar 
mais deles. Às vezes, tem picos agudos de ansiedade, 
diante de novos desafios e experiências. 
 “Sei que a jornada não acabou, e o quanto ela 
é longa. Venho, há, aproximadamente, 18 anos, em 
caminho de recorrência a transtornos depressivos e 
de ansiedade, junto de doenças físicas. Aprendi, com 
a experiência, que a depressão é uma sombra a nos 
perseguir, como algo que está sempre à espreita, 
pronta para nos pegar de surpresa. Tenho aprendido 
a ficar atenta. Sei que há muito caminho pela frente, 
e que, talvez, haja ainda muitas quedas. Não estou 
pronta, e nunca estarei. Mas, a cada novo passo 
neurodivergentes autismo na contemporaneidade 63
consciente, intuições surgem e a estrada me parece 
um pouco mais leve, e cada vez com mais sentido”.
 A mulher que temia os rótulos não existe mais. 
“Já não tenho mais medo de assumir esse pedaço de 
mim, simplesmente, porque não tenho mais medo 
da armadilha capacitista da minha mente. Nada disso 
me faz ser menos pessoa, ou pior psicóloga”.
 Justamente por exercer a Psicologia, Myriam Letí-
cia agradece por ser quem é. E tem orgulho de cada 
espinho que a constitui, porque sentir isso na pele 
fez dela uma profissional mais humana, sensível e 
empática. Hoje, trabalha com o público infanto-juve-
nil, mantendo vívidas as lembranças do quanto uma 
criança, ou um adolescente, é capaz de sentir, sem 
que as pessoas notem. E o quanto seus sentimentos 
e vivências podem ser subestimados.
 O obstáculo das relações: os medos de Maya
 A vida dela sempre foi complicada. Até hoje, não 
trabalha nem cultiva relacionamentos profundos de 
namoro e amizade. Por isso, depende da mãe. Maya 
Rubinger também descobriu o diagnóstico depois de 
adulta. Ela sabia que algo estava errado, e se via mui-
to parecida com o pai. Ao se identificar com o filme 
“Temple Grandin”, procurou grupos de ajuda na in-
ternet, até descobrir seu diagnóstico formal, por 
meio de um psiquiatra. Foi quando percebeu traços 
autistas no pai e na mãe.
 Maya Rubinger não passou por intervenções 
médicas e terapêuticas para uma vida mais indepen-
dente. Antes do diagnóstico, a questão do trabalho 
era o principal fato que a fazia se sentir diferente, as-
sim como a falta de tato com as pessoas. Ela tinha di-
64 neurodivergentes autismo na contemporaneidade
ficuldade de manter relacionamentos, da amizade ao 
namoro, e está solteira há bastante tempo, após um 
casamento de três anos. A admiração que o marido 
sentia por ela amparou a convivência. “Ele era muito 
tolerante, eu não era uma pessoa fácil de lidar”.
 O que mais preocupa Maya é sua dependência 
da mãe, que se encontra em idade avançada. Por 
isso, retomou um projeto antigo, o blog “Memórias 
de Xawdoon”, por meio do qual mostra habilidades 
com a fotografia e a literatura. 
 A fotógrafa pondera que é difícil conhecer pes-
soas em sua idade. A maioria das pessoas, princi-
palmente os homens, já está casada e com filhos. 
Ainda assim, Maya tem feito amizades e reconhece 
que depende dela a possibilidade de manter as boas 
relações. Nesse sentido, a psicoterapia é muito im-
portante. Desde os dez anos de idade, ela se trata 
com psiquiatras. Com um ano, já tomava sedativos. 
Passou por diagnósticos errados, como bipolaridade, 
e ficava sedada, mas a causa não era tratada. Depois 
do laudo de autismo, Maya sente que a vida começa 
a andar, e agora compreende como as coisas funcio-
nam. Após o diagnóstico, tem agido nas causas de 
suas dificuldades: “Tenho uma fobia social horroro-
sa. A ansiedade é meu maior problema, bem como 
a insônia”. 
 O blog de Maya tem o mesmo nome do livro de 
poesias escrito por ela de 1992 a 1996. Anos depois, 
ela concluiu outra obra, que acabou por picotar e 
jogar fora. Sofreu com o bloqueio criativo por quase 
vinte anos. Após o diagnóstico, tem escrito novas 
narrativas, que melhor espelham seu momento atual.
“Se você sente que tem alguma coisa diferente, al-
guma coisa errada, a vida permanece travada, não 
neurodivergentes autismo na contemporaneidade 65
anda, vá atrás, pois a pior coisa que a gente pode fazer 
conosco é não saber quem a gente é”. Hoje, Maya 
escreve uma nova história.
 O subdiagnóstico em mulheres autistas ainda é 
preocupante. Por isso, várias delas se engajaram no 
ativismo pela causa. Tal subgrupo - em um grupo 
já marginalizado - busca visibilidade. Elas rejeitam o 
azul como cor do autismo, entendendo que reforçam 
a visão estereotipada, assim como os mitos e estig-
mas impregnados dessa simbologia. Aos poucos, o 
tema surge e ocupa mais espaço nas discussões, o 
que tende a fomentar o engajamento e pesquisa nos 
próximos anos.
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