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O desafio do diagnóstico A professora francesa Carole Tardif, especialista em Psicologia do desenvolvimento típico e atípico e diretora do Centro de Pesquisa Psycle, e o psiquiatra e pesquisador Bruno Gepter, presidente da Féderá- tion Autisme Vie Entière, no prefácio do livro “A Diferença Invisível”, da também francesa Julie Da- chez, destacam que, em 1944, o pediatra austría- co Hans Asperger trouxe à luz as características de quatro crianças, às quais nomeou “psicopatas autis- tas”. O termo, no contexto da época, não continha o caráter pejorativo hoje associado à expressão. De acordo com Tardif e Gepter, demorou quase quatro décadas para que, em 1981, a psiquiatra britânica Lorna Wing, mãe de uma autista, atualizasse o trabalho de Asperger e o aproximasse ao de Leo Kanner, psiquiatra responsável pela primeira descrição do autismo infantil, em 1943. Kanner escreveu que a principal característica daqueles jovens dizia respeito à significativa inca- pacidade, identificada nos primeiros anos de vida, de se relacionar com as demais pessoas. A descrição de Asperger é mais detalhada e inclui os seguintes elementos: “Comprometimento da interação social, da comunicação e padrões de comportamento, de interesses e de atividades restritos e repetitivos (...). Interesses específicos, fixação anormal, brincadeiras e movimentos estereotipados e comportamentos ritualizados” (PEARCE, 2006). As quatro crianças descri- tas por Asperger eram meninos, assim como oito dos o espectro no feminino neurodivergentes autismo na contemporaneidade 39 onze pacientes de Leo Kanner. Conforme consta do livro “O cérebro autista”, da pesquisadora Temple Grandin, que é autista, o diag- nóstico da condição neurodivergente emerge de for- mas distintas ao longo das revisões do “Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders” (DSM), o “Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais”. Antes de se tornar um diagnóstico próprio da prática psiquiátrica, o comportamento autista era visto como sintoma da esquizofrenia. Ao longo dos anos, foram apresentadas novas formas de manifestação, para além do autismo clássi- co, como o Transtorno Invasivo de Desenvolvimento - Sem Outra Especificação (TID-SOE) e a Síndrome de Asperger, que passou a constar da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) em 1994. Em ambos os casos, os sintomas são descritos de forma mais branda do que no autismo clássico. Em 2013, com o lançamento do DSM-V, é regis- trado o Transtorno do Espectro Autista (TEA), englo- bando suas diversas manifestações. Convencionalmente, a estatística revela que o TEA ocorre em quatro homens para cada mulher. No entanto, essa relação tem sido questionada por consequência do subdiagnóstico no sexo feminino, especialmente nos casos mais leves, nos quais os traços sutis da síndrome são ainda mais camuflados, por motivos estruturais e culturais. Em 2012, cien- tistas do King’s College, de Londres, analisaram os diagnósticos de 15 mil pacientes para constatar que as meninas precisam apresentar dificuldades com- portamentais ou intelectuais mais severas para o di- agnóstico, o que diminui, consideravelmente, a pos- 40 neurodivergentes autismo na contemporaneidade sibilidade de serem incluídas na extremidade mais funcional do Espectro. Em função disso, dados sobre a Síndrome de Asperger sugerem proporção ainda mais discrepante, de dez homens para cada mulher. Tony Attwood, psicólogo clínico considerado o maior especialista mundial em Síndrome de Asperger, destaca: “As mulheres Aspergers são mais criativas e inteligentes na maneira como lidam com as diferenças. Elas são muito boas em disfarçar a Síndrome (...). Os terapeutas estão percebendo melhor como elas fazem isso, utilizando-se de várias estratégias”.7 Richard Mills, diretor de pesquisa da National Au- tistic Society (NAS), afirma que não seria surpreen- dente se a proporção real fosse de dois homens por mulher. De acordo com a médica Judith Gould, dire- tora do Lorna Wing Centre, da NAS, essa diferença pode ser ainda menor, de 1,5 para um. Tardif e Gepter consideram que uma das várias questões contribuintes para que o diagnóstico do TEA seja subestimado no sexo feminino é a maior capacidade de empatia emocional presente em mulheres, em comparação com homens de manei- ra geral - inclusive, no que tange às pessoas no Es- pectro, o que permite, às mulheres, maior facilidade de se adaptar ao convívio social, ainda que o esforço seja exaustivo e possa contribuir com o surgimento, ou a piora, de condições coexistentes - como ansie- dade, depressão e transtornos alimentares. Devido à falta de conhecimento sobre nuances do autismo leve no feminino, muitas meninas e mulheres recebem diagnósticos equivocados, como Transtor- no Obsessivo Compulsivo (TOC) e Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), a partir de critérios mais flexíveis e subjetivos. A professora neurodivergentes autismo na contemporaneidade 41 Francesca Happé, do departamento de Neurociência Cognitiva do King’s College, de Londres, observa que se as meninas da ponta funcional do Espectro não estão sendo reconhecidas, também são pouco estu- dadas. Na acepção de Somer Bishop, professora assis- tente de Psiquiatria na Universidade da Califórnia, em São Francisco, Estados Unidos, uma alternativa para a questão são estudos que observem e comparem garotas autistas com as que não apresentam o trans- torno, em vez de simplesmente avaliá-las por meio dos instrumentos existentes. Assim, pode-se chegar a exemplos mais concretos sobre o modo como o au- tismo se apresenta nas meninas, além de tornar mais simples a identificação de comportamentos específi- cos das mulheres com autismo. Tony Attwood destaca que certos pais relutam em procurar avaliação diagnóstica quando a filha aparenta estar se desenvolvendo razoavelmente bem, e os médicos, por vezes, sentem-se hesitantes perante o compromisso de um laudo, a menos que as capacidades e os comportamentos sejam visivel- mente diferentes do que se espera para jovens da faixa etária da paciente. Afinal, as meninas verbalizam melhor os senti- mentos e não costumam ser agressivas em respos- ta a emoções negativas como raiva e frustração. Catherine Faherty, especialista psicoeducacional, ob- serva que as mulheres manifestam agressividade por meio de sinais passivos ou voltados para o interior. A autora acrescenta que as mulheres são duplamente desafiadas pela expectativa de comportamentos e regras que a sociedade espera que sejam assumidos pelo papel feminino. 42 neurodivergentes autismo na contemporaneidade No prefácio do livro “Asperger no feminino”, a norte-americana Jennifer Mcllwee Myers registra que muitas mulheres só recebem o próprio diag- nóstico depois que um parente do sexo masculino teve a mesma identificação médica. Para Myers, a maioria delas só toma conhecimento da importante diferença neurológica após uma situação desastro- sa - ou quase desastrosa -, o que as faz passarem anos ou décadas sem receber a atenção profissional adequada. A psiquiatra e pediatra Raquel Del Monde ob- serva que muitas mulheres com autismo de alto funcionamento apresentam maior facilidade para compreender aspectos-chave da interação social e desenvolvem a habilidade de copiar comportamen- tos socialmente desejáveis, a partir da observação das pessoas. Tudo isso leva, entretanto, a outros di- agnósticos ao longo da vida, como depressão e an- siedade, o que significa um alto custo a pagar pela facilidade de copiar comportamentos. As diferenças entre homens e mulheres não são tão grandes no grau mais severo do transtorno. Raquel Del Monde explica que os critérios para diag- nóstico do Transtorno do Espectro Autista são váli- dos para homens e mulheres. Porém, em função da maiorcapacidade das mulheres para camuflar suas dificuldades, o profissional encarregado da avaliação precisa ter conhecimento profundo do quadro clíni- co, e se mostrar sensível às nuances e sutilezas das formas de apresentação do transtorno. “Tanto homens quanto mulheres autistas desen- volvem estratégias para lidar com as situações sociais a partir da lógica, diferindo de seus pares neurotípi- cos, os quais desenvolvem, intuitivamente, as habi- neurodivergentes autismo na contemporaneidade 43 lidades necessárias. Contudo, resultados obtidos em grupos de treinamento de habilidades sociais, en- volvendo homens e mulheres no Espectro, sugerem que as mulheres aprendem os conceitos com maior rapidez e são mais hábeis ao mimetizar expressões faciais, corporais, aspectos da prosódia e da troca so- cial”, analisa Raquel Del Monde.8 Para a médica, existem evidências de que o fun- cionamento do cérebro feminino difere do mascu- lino em aspectos diversos. Estudos genéticos apon- tam variações que podem ser significativas desde o desenvolvimento embrionário do sistema nervo- so central de meninos e meninas. As mulheres, em geral, tendem a verbalizar mais seus pensamentos e sentimentos, e são bastante atentas às reações das pessoas à sua volta. Afora isso, fatores culturais influ- enciam no desenvolvimento da comunicação social. Os grupos de meninas oferecem mais oportuni- dades de brincadeiras simbólicas (com bonecas, por exemplo) e de modelagem (amigas que “corrigem” determinado comportamento ou dão “dicas” de como agir em diversas situações). “Além disso, a inabili- dade social das meninas é muitas vezes interpretada como timidez, passividade ou inocência, traços mais aceitos como ‘femininos’ na sociedade”, observa Ra- quel Del Monde. A médica ressalta que muitas meninas no Espec- tro desenvolvem interesse pelo mundo da fantasia (princesas, bonecas Barbie) ou por animais, temas nada estranhos ao universo das outras garotas. Para alguns examinadores, esse interesse é interpretado, inclusive, como bom desenvolvimento dos recursos da imaginação e, por isso, contribui com a exclusão do diagnóstico. 44 neurodivergentes autismo na contemporaneidade Para Raquel Del Monde, observa-se, porém, que os relatos das brincadeiras ditas imaginativas, por parte das meninas, indicam uso mais frequente de scripts (roteiros de histórias e filmes) que elas em- pregam para construir seus próprios enredos. Con- tudo, na visão da médica, o que mais contribui para o subdiagnóstico de mulheres autistas é, justamente, a maneira mais sutil e imprecisa das manifestações dos déficits de comunicação social. De acordo com a psiquiatra, o esforço para ca- muflar as dificuldades e agir “como esperado” pode ser gigantesco. As situações enfrentadas na rotina diária demandam, muitas vezes, um nível de alerta constante e grande empenho para se adequar aos diálogos e interações, além de alto nível de autocon- trole, para suprimir comportamentos considerados inadequados. Ao longo do tempo, a tensão contínua pode ocasionar quadros de ansiedade e depressão - que, na verdade, são secundários ao problema real. Muitas mulheres procuram ajuda médica ou psi- cológica apenas quando apresentam tais dificuldades. Sexo X Gênero Para a autista e presidente da Associação Bra- sileira para Ação dos Direitos da Pessoa com Autis- mo (Abraça), Fernanda Santana, a maior parte das diferenças se relaciona a sexo, e não a gênero: “Acho importante esclarecer isso, porque há muita gente dentro do Espectro que desafia gêneros. Muita gen- te! As diferenças neurológicas estão relacionadas ao sexo biológico. Por algum motivo, o autismo em pessoas do sexo feminino parece ser mais ‘discreto’ quando analisamos, unicamente, o comportamento neurodivergentes autismo na contemporaneidade 45 mais evidente. Isso, por meio de generalização bem superficial. Afinal, se olharmos um por um, isso se perde, pois há muita variação”.9 Fernanda observa que, ao longo da história, há mais estudos sobre au- tismo em meninos e homens cisgêneros (termo que define os indivíduos que se identificam com o sexo do nascimento) do que em mulheres. “Existem vári- os mitos e estatísticas esquisitas acerca desse assun- to. E as pessoas repetem aquilo e continuam a fazer referência a estatísticas desatualizadas de propósi- to, de modo a reforçar ideias na mente das pessoas. Temos a questão cultural, pois algumas coisas são aceitas, ou até esperadas, quando se é mulher, e não são aceitas quando se é homem. A forma como tra- tam homens e mulheres é diferente. Alguns compor- tamentos autistas, quando acontecem em meninas, são lidos como timidez, e, em meninos, sinalizam algo de estranho, indesejado etc.”. A presidente da Abraça chama a atenção para o fato de que há “questões biológicas, mesmo, ex- pressas em desenvolvimento e comportamentos diferentes, quando você é autista e o seu sexo é feminino. E temos, é claro, falta de capacitação profissional. Vemos médicos e outros profissionais da área da saúde ou da educação a repetir mitos ou informações incorretas. Esse último fator, em minha opinião, é o mais crítico”. Fernanda Santana também destaca que apre- sentar boas habilidades sociais não é exclusividade das mulheres autistas. Homens autistas também po- dem fazê-lo. “Embora sejam minoria, conheço pes- soas autistas - homens e mulheres - bem extrover- tidas e simpáticas, além de bastante sociais. Não é o meu caso. Infelizmente, deixo muito a desejar nesse 46 neurodivergentes autismo na contemporaneidade quesito, mas considero possível, sim! Tem a ver com a personalidade da pessoa, com a história de vida e tudo mais”. Importante frisar que Fernanda Santana apresenta fala objetiva e voz agradável. A assertividade ao se expressar facilita muito a comunicação com outras pessoas. Jeitos e estilos: a história de Gabriela “Ela é comunicativa até demais! E gosta de con- versar desde muito pequena” - diz a decoradora de interiores Beth Martins, antes de uma gargalhada, ao lembrar que a filha, a estudante de gastronomia Gabriela Martins, sempre foi falante. E realmente! Durante a tarde em que passamos juntos, a jovem de 28 anos percorre, com eloquência e segurança, diversos assuntos. O que há de inusitado na história é que a garota foi diagnosticada, na adolescência, com Síndrome de Asperger, que costuma estar ligada à dificuldade na socialização, e, pelo senso comum, à timidez. Porém, não é o caso de Gabriela, que adora estar com pes- soas e se socializar. “É como descarrego a minha ener- gia”, confessa. Ela, inclusive, considera-se uma amiga “para o que der e vier”, nas adversidades e sofrimentos e nos momentos de diversão e afeto. Gabriela lembra que já cortou relações porque essas pessoas provaram, a ela, que não mereciam seu carinho e sua confiança. E dispara: “Dei a chance, me decepcionei e me afastei de forma cuidadosa, sem ser hostil”. Beth começou a notar que havia algo de diferente, ao perceber a demora da filha para andar e falar. Pro- curou um médico que lhe transmitiu orientações. A neurodivergentes autismo na contemporaneidade 47 mãe notava outras tantas dificuldades e característi- cas diferentes: às vezes, Gabriela gostava de ficar e brincar sozinha; na escola, não abria a merendeira para comer o lanche, que voltava intacto para casa, a menos que a professora abrisse a merendeira dela. “Ela precisava de alguém para dar um start”. Quando a mãe convidava colegas da filha para brincar e conversar, Gabriela, “já maiorzinha”, impli- cava e ia para um canto. Beth é quem acabava tendo que brincar com as meninas, já que as havia convida- do. A mãe ressalta que a filha sempre foi muito or- ganizada. “Todas as Barbie dela tinham os acessórios correspondentes. Se perdesse um sapatinho, ela fi- cava uma fera.” Gabriela estava com quase 15 anosquando fez vários testes. Falaram, então, que ela tinha TDAH. Chegou a tomar medicamentos para concentração. A verdade, contudo, é que ninguém sabia direito o que ela tinha. Não havia tanta informação sobre o autismo, ainda mais no feminino. “Hoje em dia é mui- to bom, porque há muita informação e as pessoas podem se beneficiar disso, o que não foi nosso caso”, lamenta Beth, ao lembrar que “ela era tratada como TDAH, mas eu nunca deixei de fazer testes. Cheguei a levá-la a uns cinco médicos diferentes”. Até que uma diretora da escola recomendou uma médica, que tinha obtido bons resultados com outros alunos. Beth levou Gabriela à profissional, que leu o históri- co da jovem e fez muitas perguntas à mãe, além de entrevistar Gabriela. Beth conta que a partir dali pôde respirar aliviada: “A médica deu o diagnóstico e a vida tem sido mais fácil desde então”. O que Gabriela mais detestava (e ainda detesta) era o bullying, que a fazia sofrer. De resto, com ou sem 48 neurodivergentes autismo na contemporaneidade sofrimento, sempre “encarou” tudo. A garota sai, vai ao balé, nunca permaneceu confinada em casa. “Nas férias, a gente ia para a fazenda dos meus pais, e ela andava a cavalo. Sempre teve vida saudável e boa es- trutura familiar”, conta Beth. Gabriela complementa: “Preciso da ajuda do coordenador e de uma mediadora, mas, até agora, essa pessoa não apareceu. Eu sofri ao estudar sozinha, mas minha coach (uma terapeuta ocupacio- nal) e minha mãe hoje me ajudam em questões da vida diária. Acho que estou lidando melhor com essas questões. Sou indiferente a quem não gosta de mim ou me odeia. Não ligo para o que as pessoas pensam de mim, a não ser que sejam amigos ou parentes de quem gosto muito. Recentemente, tornei-me vítima de fofoca na escola, por causa de algo que fiz erra- do, e finjo que não estou incomodada, pois, assim, as pessoas que fazem isso comigo perdem a graça. É bom que as pessoas não queiram encontrar meu pior lado, que é quando estou furiosa. Ainda assim, sou intolerante a poucas coisas. Preconceito é uma delas. E me importo quando algo ocorre com alguém de quem eu gosto”. A imaginação de Gabriela mantém-se ligada a um mundo fantástico, como em filmes ao estilo de “Crepúsculo”, repleto de “coisas loucas” e diferentes da realidade, segundo ela mesma diz. Trata-se, en- fim, de coisas que poderiam existir, mas não existem: sereias, fadas e seres fantásticos. A jovem estudante faz questão de ressaltar: “Tive amigos imaginários quando era criança, mas só uma vez”. Ela tem muitos interesses específicos, o que a difere da maior parte dos homens no Espectro. Es- ses interesses incluem a moda, o cinema e a música. neurodivergentes autismo na contemporaneidade 49 Filmes e canções são seus focos favoritos. A estu- dante também gosta de artes plásticas e de livros de literatura - muitos dos quais voltados, justamente, à arte. Gabriela se define como “muito artística”: “Tenho outros assuntos de interesse, como Filosofia. Pesquiso sobre praticamente tudo o que você pos- sa imaginar. Sou como uma enciclopédia ambulante. Conheci um homem em Paris que é exatamente as- sim. Tenho muito interesse, ainda, por História. Sou voltada à arte e às Ciências Humanas. Gosto de ler sobre outras culturas, a exemplo da americana - morei nos Estados Unidos - e da britânica”. Autoconhecimento: os caminhos de Selma Assim como acontece com Gabriela, timidez tam- bém não é algo a se imaginar para a jornalista Sel- ma Sueli Silva, sempre alegre e ponderada, em suas opiniões como radialista e youtuber. Ela também é autista. Contudo, como alguém com tal diagnóstico, que afeta a comunicação e a interação social, pode se tornar uma comunicadora de sucesso? Durante o processo de descoberta, Selma pas- sou por rigorosa análise de sua trajetória de vida por parte dos especialistas e pôde descobrir a mulher por trás das estratégias montadas para diminuir o sofrimento. “Percebi que ninguém me conhecia de fato. Olhar para si é muito difícil”, ela registra. O diagnóstico fez muita diferença na vida de Selma: “Já me culpei por muita coisa de que não pre- cisava, já tive reações que considerava inadequadas - como pedir para minha mãe não vir me ver num dia em que me sentia exausta”. A jornalista hoje conhece seus limites e entende 50 neurodivergentes autismo na contemporaneidade por que os tem. Fica mais fácil administrar o cotidi- ano. Sua relação com o filho melhorou. “Sempre fomos parceiros. Mas, agora, nossa parceria é mais profunda. Ele sabe que eu, de fato, o entendo. E ele também me entende e me ensina todos os dias!”. Selma sabe que é admirada por muitos e que também admira muita gente. Gosta das pessoas e faz questão de deixar isso claro, para não ser mal inter- pretada - no que se refere ao seu jeito de ser - pe- los amigos. Ela não se acostumou a receber pessoas em casa, nem vai a encontros e festas. Em 15 anos de trabalho na rádio Itatiaia, foi a uma reunião de fim de ano e a um aniversário da emissora. “Foi estressante e fiquei esgotada”, analisa. Hoje, Selma voltou-se ao ativismo por pessoas autistas e aos projetos com o filho, também autista, como o portal Mundo Asperger. “Não queremos que nenhuma família se sinta sozinha como a gente se sentiu um dia”. Algumas pessoas da família evidenciam traços de autismo leve. A avó e a mãe eram consideradas “fora da curva”, é natural que Selma também o fosse. “Minha mãe sempre foi vista como muito inteligente. Ela nasceu em Crucilândia (MG) e algumas pessoas alertaram minha avó: ‘Essa menina não vai vingar. É muito conversada e inteligente’. O mundo não era feito para quem era ‘fora da curva’ e, por isso, pos- sivelmente, minha mãe iria morrer cedo, na visão da vizinhança da época. Não morreu. Está com setenta e poucos anos e continua muito inteligente, além de - cá entre nós - mostrar algumas invejáveis es- quisitices”. A avó de Selma estudou até o quarto ano primário, mas tinha visão muito à frente de seu tempo, o que a levou a possibilitar o crescimento e o estudo dos neurodivergentes autismo na contemporaneidade 51 filhos. Ela sabia que a educação seria o passaporte para que saíssem da comunidade. “A gente não era melhor do que ninguém, mas aquela vida não era para ninguém, e os filhos dela tinham que construir uma história digna”. Ela lavou roupa para fora, escon- dida do marido, que era mestre de obras e trabalha- va na construção de Brasília. Selma reforça: “Minha avó impulsionou todos os filhos - seis homens e três mulheres - a desenvolverem suas potencialidades”. A jornalista guarda na memória cenas de quando era bem pequena e se desgastava com um grande sen- timento de inadequação. Ela analisava o que aconte- cia à sua volta, sentia-se injustiçada, não conseguia se expressar e era sempre ridicularizada. “Diziam que eu não tinha esportiva. Sabia que não era isso, mas acabei incorporando o rótulo, e vieram outros: ‘nervosinha’, ‘manteiga derretida’, ‘emotiva’. À medi- da que eu crescia, fazia um esforço danado para en- tender o mundo que me cercava. A observação me ajudou muito, porque eu via como as pessoas agiam e copiava o que, na minha percepção, dava certo para eu me sentir menos estranha”. Selma Sueli Silva não se dedicou ao estudo de línguas, por exemplo, devido à falsa crença de que, se não fizesse no tempo certo, não poderia fazer mais. Ela tem dificuldades quanto à noção de tem- po, espaço e localização, e se perde em shoppings e aeroportos. “Não é uma questão de ‘decorar’ o caminho. O excesso de informação visual e a péssima sinalização me confundem. Faço tudo que tenho que fazer, mas a um preço bem alto, tanto física quan- to mentalmente. Sei que não sou burra, mas a in- genuidade do autismo já me trouxe sérios riscos, por confiar em quem não devia e manter relacionamen- 52 neurodivergentes autismo na contemporaneidade tosamorosos que não valiam a pena. Não consigo guardar raiva. Quando alguém me prejudica, preci- so escrever para me lembrar disso depois, e não cair, várias vezes, na mesma situação”. Selma admite: “Já pus meu filho em situações nas quais outra mãe não poria. Em determinada ocasião, uma empregada bateu nele. Expliquei a ela que não podia e que bater não educa, mas não a des- pedi, porque se até eu que sou mãe perco a paciên- cia, como cobrar isso de outra pessoa? Minha sorte é que, após minha atitude, ela melhorou. Já pensou nas consequências?”. Selma correu risco de vida por causa da rigidez de pensamento. Ela fazia estágio na Central de Abas- tecimento de Minas Gerais (Ceasa) e, certa vez, es- perava, na BR 040, o ônibus da empresa. O colega, que viajava com ela, insistiu para que esperasse pelo transporte um pouco mais longe da rodovia. A jor- nalista teimava em não sair do lugar reservado à es- pera dos usuários. Seu colega explicava que todos esperavam mais atrás, por segurança. Selma respon- dia: “Não faz sentido. É aqui o lugar marcado para que a gente espere. É o certo”. Ele, impaciente, respondia: “‘Tá’ bom! Você será uma morta coberta de razão!”. Aos 28 anos, Selma perdeu o emprego em um pool de escolas, porque a Economia não ia bem e os donos do “cursinho” despediriam todos de uma das unidades da empresa, para recontratar gente com salários menores. Todos aceitaram, exceto ela: “Não fazia sentido continuar trabalhando para os mesmos chefes, fazendo a mesma coisa, com o salário re- duzido”. Selma foi despedida e não conseguiu reti- rar o seguro-desemprego, porque tinha pavor de neurodivergentes autismo na contemporaneidade 53 órgãos públicos - no caso, o Ministério do Trabalho. “Não tinha coragem de pedir a ninguém para ir comi- go. Por isso, perdi o prazo”. Opiniões também são imutáveis: “Recentemente, em um programa de rádio do qual fazia parte, recebi ordens para omitir minhas opiniões quando se tra- tasse de determinado partido político; eu poderia criticar, mas nunca elogiar. Não dei conta. Não pode- ria omitir minha opinião. Não consigo fazer isso. Re- sultado? Fui demitida, mesmo após quinze anos de serviço, audiência em alta e admiração de todos”. Por outro lado, Selma Sueli Silva ressalta a posi- tiva relação com a família: “Fomos educadas para en- frentar os desafios e sair deles melhor do que entra- mos”. Foi o amor imenso pelo ser humano que a levou a se converter à religião humanista do Budismo de Nichiren Daishonin, por meio da ONG Soka Gakkai In- ternacional, que significa “Criação de valores” e luta pela Paz, Cultura e Educação. Por meio da recitação do mantra “Nam Myoho Renge Kyo”, embasada na fé, na prática e no estudo, ela sabe que, como es- creveu o maior pacifista vivo da atualidade, Daisaku Ikeda, o “futuro começa neste instante. Precisamos definir o que deve ser feito neste momento; e como estabelecer uma firme base no exato local em que estamos. É importante vencer aqui e agora!”. Um dos impeditivos para que Selma se perce- besse autista diz respeito à chamada hiperempatia: “Desmaiei, quando uma amiga me contou detalhes de um acidente com outras pessoas. Passo mal ao ver telejornais e desmaio ao ler páginas policiais. Sofro até mesmo com as maldades de um vilão fictício - mesmo sabendo que não é verdade”. Para o ex-marido de Selma, o jornalista, escri- 54 neurodivergentes autismo na contemporaneidade tor e editor Roberto Mendonça, o diagnóstico da companheira não o surpreendeu tanto. Anos antes, enfrentaram a novidade absoluta do diagnóstico do filho. Desde então, Roberto identificava certas características em Selma, mas ele não tinha conhe- cimento técnico para afirmar do que se tratava. Mui- tas brigas, aliás, poderiam ter sido evitadas. Para Roberto, era difícil lidar com a inteligência muito objetiva, a honestidade desconcertante e a im- paciência da esposa. “Ela tem um grau de ansiedade acima da média e pontualidade britânica. Eu tra- balho conforme a inspiração. Minha vida profissional é consequência de minhas características pessoais. É uma vida solta em termos de horário. Selma é bem exigente com relação a isso, além de impaciente e nervosa. Devo considerar, também, meu próprio temperamento, não sei se sou calmo ou muito bem controlado”. O jornalista observa que “Selma sempre foi mui- to alegre, embora ansiosa, nervosa, além de espiri- tuosa. Sempre tivemos boas conversas. Pelas cir- cunstâncias peculiares à Síndrome, Selma era muito metódica e tinha facilidade de organizar as coisas. Se dependesse de mim, a casa seria bagunçada. Ela tinha muito capricho. Dentre outras de suas virtudes, sem- pre cuidou muito bem do filho; sempre foi cuidado- sa, ao extremo, com as necessidades dele”. A arte de conviver Roberto Mendonça tentava ficar calmo quando Selma aparentava estar em crise. “Mesmo que, de- pois, a gente viesse a discutir, eu sempre procurei entender que aquilo era uma característica, uma cir- neurodivergentes autismo na contemporaneidade 55 cunstância pessoal. E que não era minha. Além disso, os dois não podem ficar nervosos ao mesmo tempo”. Às pessoas casadas com autistas, Roberto ressalta a importância do tempo: “A gente precisa ter paciên- cia e esperar que o tempo aprimore a convivência. O ser humano amadurece sempre, em qualquer idade. Aos poucos, as crises ficaram mais raras, porque, no fundo, ninguém quer brigar ou desagradar. Não é agradável para ninguém”. O jornalista e editor acredita que mulheres au- tistas tendem a dissimular suas dificuldades de co- municação, e se mostram menos introspectivas. Elas podem aparentar ter boas habilidades sociais - na maioria das vezes, com maior facilidade que as dos homens. O cartunista autista Rodrigo Tramonte concorda com Roberto Mendonça. Para ele, as mulheres au- tistas conseguem se adaptar às normas de conduta social de forma mais espontânea e intuitiva. Tanto é que muitas delas se casam e se tornam mães sem le- vantar suspeitas quanto às especificidades de suas condutas. Rodrigo lembra que a maioria delas conta com vasta capacidade de adaptação ao meio, assim como costumam sentir as coisas com intensidade muito mais forte, o que, às vezes, provoca crises nervosas e picos de estresse. Ele observa que, além de sua maior capacidade de adaptação ao meio, as alterações de humor, nas mulheres autistas, costu- mam ser confundidas com as variações hormonais - a exemplo da famosa TPM - que também ocor- rem nas mulheres não autistas, o que contribui com o subdiagnóstico. Selma Sueli Silva acrescenta que, por questões culturais, é maior a cobrança para que a mulher se 56 neurodivergentes autismo na contemporaneidade adapte, aja dentro de determinados padrões e seja meiga, educada e terna. “Isso dificulta o diagnósti- co, porque a mulher autista tende a copiar modelos socialmente aceitos. Mulher e homem têm cérebros estruturalmente diferentes, o que pode facilitar a cópia de modelos sociais, mas, também, acarretar maior sofrimento”. Selma sempre fez um grande esforço para se adequar a situações que envolviam muita gente, na escola e em encontros de família, ou para entender (e se relacionar com) as pessoas. Nem sempre o que elas diziam fazia sentido para ela, e vice-versa. Para não se sentir tão exposta, passou a observar quem julgava ser mais feliz e adequado que ela, e “copia- va” o jeito de ser que considerava importante para se proteger da exposição. “Percebi que todos lidavam melhor com crianças ‘boazinhas’, e tentei ser o que os adultos esperavam de mim”, conta a jornalista, que, com o tempo, dividiu-se em duas: a Sueli ficava em casa; a Selma ia para a escola. “Os dois mundos não podiam se misturar. Há pouco tempo é que não me sinto mais a Selma e a Sueli. Hoje, sou a Selma Sueli Silva”. A Vida que se esconde: os anseios de Myriam Desdea adolescência, a psicóloga Myriam Letí- cia conviveu, calada, com depressão e transtorno de ansiedade. Em 1999, aos 13 anos, ela cursava a séti- ma série e passava pela transição da adolescência. Foi quando surgiram, com mais frequência, as crises de choro. Ela chorava escondida na escola. Em casa, as crises eram de ansiedade e medo. Foi assim, com tudo “guardado”, até o final da adolescência. neurodivergentes autismo na contemporaneidade 57 Como as cobranças sociais são mais intensas com as mulheres, Myriam participava de grupos religio- sos, além de fazer atividades de teatro e música no conservatório. Tudo isso se transformou em impor- tante eixo de apoio. Por outro lado, era a aluna que correspondia às expectativas, aprendia tudo e se revelava quieta. A família não recebeu da parte de Myriam qualquer reclamação, e como ela nunca apresentava notas baixas, foi o bastante para que “funcionasse bem” para aqueles que estavam à sua volta. A angústia e a ansiedade internas não eram perceptíveis às pessoas. Myriam ingressou na faculdade de Psicologia da UFMG em 2004, e reapareceram os sintomas, tanto o quadro depressivo quanto a complexa ansiedade. Ela começou a apresentar dificuldade de aprendiza- gem, o que jamais havia vivido. Não era fácil falar so- bre isso, e, muito menos, pedir ajuda. Não que ela não quisesse... Myriam, simplesmente, não sabia - ou conseguia falar - sobre esses problemas. À épo- ca, já contava com ajuda psicoterapêutica, além de certo desenvolvimento espiritual que trouxe, para a fase adulta, uma vivência religiosa muito mais leve, e essencial à busca do autoconhecimento e do encon- tro com o “outro”. Paradoxalmente, quanto mais se aprofundava nessa busca, mais difícil era entender o que se passava com ela. Myriam concluiu a faculdade em 2008. Em 2009, após mudança de cidade, emprego e estilo de vida, além do início de uma pós-graduação, ela teve a pri- meira crise depressiva mais grave, associada a um quadro de pânico. A Psicoterapia já não era mais su- ficiente: foi preciso iniciar o tratamento psiquiátrico medicamentoso. Foram vários anos com intervalos 58 neurodivergentes autismo na contemporaneidade entre as melhorias e a recorrência do transtorno depressivo e da ansiedade - sintomas que, por um tempo, analisou-se, erroneamente, como de “bipo- laridade”. “Houve época em que cheguei a tomar cinco psi- cotrópicos diferentes ao mesmo tempo. Posso listar doze tipos de medicamentos que tomei em sete anos. Portanto, conheço bastante os efeitos - benéficos, por um lado; terríveis, por outro - de grande parte deles. Não nego tal necessidade, nem descarto seu uso ou questiono sua eficácia. Pelo contrário: sou grata por terem me ajudado a me manter viva. Mas sei bem o que passei em termos de efeitos colaterais dos medicamentos, tanto físicos quanto cognitivos, e, definitivamente, não desejo isso a ninguém”. Devido à depressão e aos efeitos da medicação, Myriam não terminou as quatro diferentes pós-gradu- ações que iniciou. Teve prejuízos nos empregos. Ela ficou três anos sem conseguir sequer ler um livro in- teiro. Durante cinco anos, não conseguiu nem sequer tocar uma nota em seu piano, além de sete anos sem escrever poemas. Não se dedicar às paixões causava- lhe ainda mais angústia e tristeza. Nessa época, veio a suspeita da Síndrome de Asperger (ou espectro autista leve), que Myriam rejeitou com grande re- sistência, por muito tempo, devido à vergonha e ao medo de ser ainda mais rotulada e incompreendida - como aconteceu com a depressão, tanto em situ- ações de empregos quanto entre pessoas de seu cír- culo de relações. Mas, se a mente da psicóloga a sabotava, por não acreditar que seria boa profissional, em função do transtorno depressivo e ansioso, a armadilha mental estava completa. Ela achou que o mundo fosse jul- neurodivergentes autismo na contemporaneidade 59 gá-la, que ninguém acreditaria nela, nem a levaria a sério. Temeu, enfim, por jamais conseguir emprego. Myriam não queria se vitimizar, nem aceitaria ser vista como “estranha” ou “diferente”. Por isso, tentava agir de modo a camuflar tudo o que sentia, para que não desconfiassem de seu diagnóstico. À época, ela era sócia de um empreendimento virtual, no qual se responsabilizava pela área de marketing e pelos contatos comerciais. Precisava frequentar eventos os mais diversos. Para dar conta de tudo, bebia muito, com o objetivo de se soltar e se social- izar ao modo do que considerava “normal”. Em certo momento, não se reconhecia mais. “Transformei-me no meu avatar. Não fazia, nem buscava nada que me correspondesse de verdade. Eu tinha deixado de fazer tudo de que gostava - e as pessoas nem sabiam do que eu gostava, de fato. Parecia que ninguém sabia quem eu era, ou me conhe- cia. Tudo ficava pior. Quanto mais me escondia, e me camuflava, mais me perdia”. Entre 2011 e 2013, Myriam engordou vinte qui- los. Chegou ao nível 01 de obesidade e quase à au- toestima zero, principalmente, por consequência de seu estado interior. Ao longo de meses, bebeu mais que o necessário. Teve pré-diabetes e síndrome me- tabólica. Apareceram as crises de enxaqueca, a ten- dinite, as doenças autoimunes, a endometriose, a in- tolerância à lactose e a resistência à insulina. Em 2013, ela buscou se desintoxicar dos me- dicamentos, cuidar-se de maneira ampla e integral. De 2014 a 2016, conseguiu manter-se com apenas um medicamento antidepressivo, em dose mínima. Mesmo sem fazer dietas ou exercícios, iniciou o tratamento para resistência à insulina. Emagreceu 60 neurodivergentes autismo na contemporaneidade 26 quilos - dos quais recuperou oito, “sem neuras”, devido ao tratamento hormonal para endometriose e por ter deixado de ingerir antidepressivos. Recentemente, a condição Asperger foi confir- mada por um psiquiatra e por uma neuropsicóloga, de forma a fechar um ciclo de autoconhecimento e aceitação. Myriam considera que os dois profis- sionais são dos poucos que, realmente, estão prepa- rados e atualizados sobre as diferenças entre o TEA leve no feminino e na idade adulta. Agora, finalmente, muita coisa faz sentido para a jovem psicóloga: o constante sentimento de inade- quação e a dificuldade com a comunicação oral; a pro- lixidade; a custosa tentativa de se fazer parecer mais “normal”; a exacerbada observação do comporta- mento alheio para tentar compreender padrões e re- gras sociais, de modo a imitá-los, para agir conforme o esperado, e o bom uso de tudo que aprendeu no teatro a seu favor. Compreendeu, também, a dificul- dade de aprendizagem em relação às abstrações fi- losóficas - as quais, por seu caráter desafiador e in- trigante, assim como a poesia, tornaram-se, para ela, área de vasto interesse. Certa vez, uma prova oral a fez ficar tão nervosa que começou a tremer e a chorar. Além disso, havia a vontade de se aproximar de grupos de pesquisa na faculdade, mas nunca sabia como fazê-lo. As crises nervosas, anteriores às apresentações em grupo ou as tentativas de comunicação travadas e em momen- tos estressantes, agora tinham explicação. Outras muitas características foram explicadas pelo autismo. Que o digam as dificuldades de fazer novos amigos (e o apego extremo a amigos de longa data), o uso da bebida para conseguir socializar-se, neurodivergentes autismo na contemporaneidade 61 frequentar festas e dançar, o apego a detalhes, a dificuldade de síntese e de priorizar tarefas, o per- feccionismo contraproducente, a rígida obediência a regras, a estranha facilidade de memória visual, as pesquisas profundas e o foco obsessivo com assun- tos de interesse próprio. Importante ressaltar tam- bém a desenvoltura para organizar melhor o discur- so por meio de textos escritos ou imagens, a maior facilidade para expressar sentimentos via internet (do que pessoalmente ou por telefone), a hiper-empatia e a sensibilidade em relação a tudo, o fre- quente olhar perdido no vazio por estar absorta nos próprios pensamentos, os “mergulhos em universo paralelo” - conforme descrição do marido de Myri- am -, os entendimentos a posteriori, a demora ao compreender sinais sociais, a facilidade de acreditar nas pessoas e de ser enganada ou manipulada por elas, a vontade de não falar nada em certas situações - para não correr o risco de ser inconveniente -, as recorrentes crises de depressão e ansiedade... A ca- pacidade de camuflar tudo, de maneira que nada se revelasse em mais de três décadas de vida. Nos últimos três anos e meio, Myriam percebeu que a manutenção de sua saúde carecia de cuidados muito mais específicos do que a ingestão de medica- mentos. Ela retomou, aos poucos, a qualidade de vida, associada às saúdes mental e integral, o que inclui autoconhecimento e aceitação. Voltou, então, a fazer coisas de que sempre gostou, e que há tem- pos havia abandonado, na tentativa de se encaixar em padrões sociais. Hoje, ela toca piano, canta, ama ler e escrever crônicas, contos e poesias. Retomou o estudo de língua estrangeira, além de trabalhar com artesanato. 62 neurodivergentes autismo na contemporaneidade A longa jornada Na trajetória de Myriam Letícia, também a es- piritualidade a ajudou a se recuperar, de forma mais leve, livre e holística. Sua vida, afinal, estava sen- do reescrita em todas as áreas. A psicóloga mudou hábitos alimentares, retomou o gosto pelo estudo e voltou a investigar áreas de interesse. Desse modo, interessou-se por várias novas áreas de conhecimen- to. Hoje, faz acupuntura contra as dores de coluna, que ainda teimam em aparecer, e se entrega a outros tantos exercícios físicos. Aderiu a práticas de medi- tação, ioga, homeopatia, fitoterapia, reiki e aroma- terapia - inclusive, como formação pessoal. Em meio a tantas mudanças, há nove meses, ela deixou de consumir o último psicofármaco, e está muito bem sem o medicamento. Agora, toma ape- nas uma vitamina para os cabelos (que caíram de- mais, devido ao tratamento hormonal) e o remédio para resistência à insulina. O corpo ainda mantém o restante dos hormônios injetados para o tratamen- to de endometriose, mas ela espera não necessitar mais deles. Às vezes, tem picos agudos de ansiedade, diante de novos desafios e experiências. “Sei que a jornada não acabou, e o quanto ela é longa. Venho, há, aproximadamente, 18 anos, em caminho de recorrência a transtornos depressivos e de ansiedade, junto de doenças físicas. Aprendi, com a experiência, que a depressão é uma sombra a nos perseguir, como algo que está sempre à espreita, pronta para nos pegar de surpresa. Tenho aprendido a ficar atenta. Sei que há muito caminho pela frente, e que, talvez, haja ainda muitas quedas. Não estou pronta, e nunca estarei. Mas, a cada novo passo neurodivergentes autismo na contemporaneidade 63 consciente, intuições surgem e a estrada me parece um pouco mais leve, e cada vez com mais sentido”. A mulher que temia os rótulos não existe mais. “Já não tenho mais medo de assumir esse pedaço de mim, simplesmente, porque não tenho mais medo da armadilha capacitista da minha mente. Nada disso me faz ser menos pessoa, ou pior psicóloga”. Justamente por exercer a Psicologia, Myriam Letí- cia agradece por ser quem é. E tem orgulho de cada espinho que a constitui, porque sentir isso na pele fez dela uma profissional mais humana, sensível e empática. Hoje, trabalha com o público infanto-juve- nil, mantendo vívidas as lembranças do quanto uma criança, ou um adolescente, é capaz de sentir, sem que as pessoas notem. E o quanto seus sentimentos e vivências podem ser subestimados. O obstáculo das relações: os medos de Maya A vida dela sempre foi complicada. Até hoje, não trabalha nem cultiva relacionamentos profundos de namoro e amizade. Por isso, depende da mãe. Maya Rubinger também descobriu o diagnóstico depois de adulta. Ela sabia que algo estava errado, e se via mui- to parecida com o pai. Ao se identificar com o filme “Temple Grandin”, procurou grupos de ajuda na in- ternet, até descobrir seu diagnóstico formal, por meio de um psiquiatra. Foi quando percebeu traços autistas no pai e na mãe. Maya Rubinger não passou por intervenções médicas e terapêuticas para uma vida mais indepen- dente. Antes do diagnóstico, a questão do trabalho era o principal fato que a fazia se sentir diferente, as- sim como a falta de tato com as pessoas. Ela tinha di- 64 neurodivergentes autismo na contemporaneidade ficuldade de manter relacionamentos, da amizade ao namoro, e está solteira há bastante tempo, após um casamento de três anos. A admiração que o marido sentia por ela amparou a convivência. “Ele era muito tolerante, eu não era uma pessoa fácil de lidar”. O que mais preocupa Maya é sua dependência da mãe, que se encontra em idade avançada. Por isso, retomou um projeto antigo, o blog “Memórias de Xawdoon”, por meio do qual mostra habilidades com a fotografia e a literatura. A fotógrafa pondera que é difícil conhecer pes- soas em sua idade. A maioria das pessoas, princi- palmente os homens, já está casada e com filhos. Ainda assim, Maya tem feito amizades e reconhece que depende dela a possibilidade de manter as boas relações. Nesse sentido, a psicoterapia é muito im- portante. Desde os dez anos de idade, ela se trata com psiquiatras. Com um ano, já tomava sedativos. Passou por diagnósticos errados, como bipolaridade, e ficava sedada, mas a causa não era tratada. Depois do laudo de autismo, Maya sente que a vida começa a andar, e agora compreende como as coisas funcio- nam. Após o diagnóstico, tem agido nas causas de suas dificuldades: “Tenho uma fobia social horroro- sa. A ansiedade é meu maior problema, bem como a insônia”. O blog de Maya tem o mesmo nome do livro de poesias escrito por ela de 1992 a 1996. Anos depois, ela concluiu outra obra, que acabou por picotar e jogar fora. Sofreu com o bloqueio criativo por quase vinte anos. Após o diagnóstico, tem escrito novas narrativas, que melhor espelham seu momento atual. “Se você sente que tem alguma coisa diferente, al- guma coisa errada, a vida permanece travada, não neurodivergentes autismo na contemporaneidade 65 anda, vá atrás, pois a pior coisa que a gente pode fazer conosco é não saber quem a gente é”. Hoje, Maya escreve uma nova história. O subdiagnóstico em mulheres autistas ainda é preocupante. Por isso, várias delas se engajaram no ativismo pela causa. Tal subgrupo - em um grupo já marginalizado - busca visibilidade. Elas rejeitam o azul como cor do autismo, entendendo que reforçam a visão estereotipada, assim como os mitos e estig- mas impregnados dessa simbologia. Aos poucos, o tema surge e ocupa mais espaço nas discussões, o que tende a fomentar o engajamento e pesquisa nos próximos anos. 66 neurodivergentes autismo na contemporaneidade