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CAPÍTULO 18 Direitos humanos FERNANDO BOTERO GALERIA NOVA YORK Os principais objetivos deste são: Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal de 19 de fevereiro de 1998. compreender teorias que fundamentaram direitos humanos, identificar situações cotidianas de violação dos direitos humanos, relacionar códigos de direito e conquistas de direitos sociais, distinguir jusnaturalismo de positivismo identificar as três gerações dos direitos humanos, analisar características dos direitos humanos. Sugerimos que ao longo do estudo alguns Abu Ghraib 72 (2005), pintura de Fernando Botero. termos sejam destacados: dignidade, síndrome do pequeno poder, justiça, jusnaturalismo, liberdade, igualdade, positivismo jurídico, liberdade e artista colombiano Fernando Botero, conhecido pelas ro- autonomia individuais, direitos sociais e direitos coletivos. bustas figuras que costuma pintar, é crítico severo do desprezo pelo sofrimento humano. Após a publicação de fotos de tor- Pode-se debater, ainda, atentados turas infligidas por soldados estadunidenses a prisioneiros de terroristas deflagrados na Europa, como a Abu Ghraib, complexo penitenciário próximo de Bagdá (Iraque), resposta às sátiras do jornal político Charlie Hebdo e a série de atentados ocorridos na Botero dedicou uma série inteira de pinturas para documentar cenas França em novembro de 2015, e também a delicada questão dos refugiados sírios. Esses de crueldade. fatos nos fazem pensar na necessidade de para a resolução dos problemas de Ações como a desses soldados nos fazem pensar no conceito de ordem humanitária envolvendo a população civilização. No início da guerra entre Estados Unidos e Iraque (2003), muçulmana, que está exposta a guerras civis e à ação de facções violentas, como Estado vários países do Ocidente enviaram suas tropas ao Oriente Médio. Islâmico. A discussão deve ser cautelosa e problematizada. Uma questão é a urgência Tornou-se comum a errônea e preconceituosa associação de todos de defender fiéis islâmicos submetidos a os árabes ao terrorismo. Porém, as fotos de torturas e essa pintura condições atrozes de vida e outra é condenar as ações de grupos terroristas surgidos em de Botero mostram que também aqueles que se dizem "civilizados" países muçulmanos: não convém confundir as diferentes situações. são capazes de atos bárbaros. 2421 Entre a vigência e O que é homem? [...] É homem um animal a eficácia político, como queria Aristóteles? Um animal falante, como também ele dizia? Um animal de duas patas Apesar dos mais de 70 anos de promulgação sem penas, como afirmava com graça Platão? Um da Declaração Universal dos Direitos Humanos, os animal razoável, como pensavam OS estoicos e depois direitos e as garantias fundamentais estabelecidos OS escolásticos? Um ser que ri (Rabelais), que pensa em seus 30 artigos parecem, ainda hoje, um páli- (Descartes), que julga (Kant), que trabalha (Marx), do ideal a ser conquistado num futuro ainda lon- que cria (Bergson)? Nenhuma dessas respostas, nem gínquo. Basta observar ao redor para constatar que a soma delas, me parece totalmente satisfatória. os direitos humanos são cotidianamente violados André. Apresentação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 125. e uma expressiva parcela da população do planeta vive sem essas garantias, a começar pelo artigo 1° da Declaração: "Todos os seres humanos nascem Não será possível reconhecer nossa natureza livres e iguais em dignidade e em direitos. [...]". sem considerarmos a incompletude humana, a am- Além de desrespeitados, os direitos humanos biguidade dos desejos e a possibilidade aberta de decidir livremente. Posto isso, teremos de concluir são vistos por muitos com enorme desconfiança: para uns não passam de "direitos de bandidos"; que nosso comportamento também não é previsível. para outros, trata-se de uma invenção hipócrita do Podemos acertar, mas também errar. Estamos Ocidente, cujo verdadeiro objetivo não seria garantir disponíveis para construir um mundo melhor, mas direitos, mas expandir valores europeus e liberais, igualmente para persistir nas ações movidas por impondo-os arbitrariamente, sem admitir a diver- egoísmo, inveja e cobiça. Neste último caso, sería- Reprodução proibida. Art. 184 do Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. sidade cultural e as diferentes tradições milenares. mos menos humanos? Os corruptos, os assassinos, os traidores e os fracos não seriam seres humanos? A discussão sobre direitos humanos não pode ser reduzida a esses termos, sob o risco de empobrecê- Ora, ninguém que pertença ao gênero humano -la. Examinemos, então, o amplo leque de conquistas pode ser excluído da noção de humanidade. Seria in- realizadas em boa parte do planeta nos últimos 70 correr em soberba se nos considerássemos superiores anos e no Brasil nas últimas três décadas. Sem es- a alguns, pela inteligência ou riqueza, por pertenci- quecer, claro, os direitos ainda a serem conquistados. mento a uma classe ou religião considerada melhor, ou, então, por não termos cometido nenhum crime. Direitos humanos: para quem? Essas questões remetem ao tema dos direitos humanos. Com base no princípio de que cada pessoa Direitos humanos para todos os seres huma- é única e insubstituível, conclui-se que todos são nos. E o que é o ser humano? Muitos já responde- iguais e dignos de respeito. Ao admitir que todos são ram de forma clássica: "Somos animais igualmente cidadãos e que o exercício da tolerância Mas essa definição pode parecer imprecisa, dada tem como consequência a aceitação das diferenças, a dificuldade de encontrar uma característica é possível reconhecer também o intolerável: a escra- específica e definitiva que nos distinga de todos vidão, a tortura, a submissão doméstica da mulher ao os outros seres. Vejamos o comentário do filósofo homem, a inferiorização de etnias, a violência contra Comte-Sponville: homossexuais, a corrupção, a calúnia etc. LARISSA LEITE/CÁRITAS ARQUIDIOCESANA DE SÃO PAULO Jogadores representando o país de origem na Copa dos Refugiados, realizada em agosto de 2014 na cidade de São o Brasil tem recebido milhares de refugiados e imigrantes, o que cria a necessidade de implementar medidas para garantir sua dignidade no novo país. 243Infográfico Direitos humanos e homoafetividade Embora seja crescente o número de países que adotam leis para condenar a violência e a discriminação praticadas contra homossexuais, regulamentando seus direitos, muitas sociedades ainda autorizam abusos contra a população LGBT. Em quase toda a Europa, vigoraram leis para punir homossexuais. Atestando a forte ligação entre Igreja e Estado, Portugal, até a primeira metade do século XIX, punia legalmente esse suposto "pecado" com a morte, assim como Brasil até pouco depois de sua independência, ao entrar em vigor Código Penal do Império, de 1830. Com as transformações pelas quais essas sociedades passaram, as leis que perseguiam lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) tornaram-se retrógradas e injustas. Um pouco mais recente é a conquista do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo como decidiu a Justiça de Portugal, em 2010, e a do Brasil, em 2013. Em 2014, leis antidiscriminatórias já existiam em 70 países, a maioria europeus. E embora um número cada vez maior de Estados condene a homofobia e a transfobia, várias sociedades ainda defendem leis que ferem a dignidade da população LGBT, atentando até mesmo contra a vida. Direitos dos gays e lésbicas no mundo* Criminalização, perseguição e restrição Estados Unidos e Cuba Em 2014, os Estados Unidos tinham 14 estados Pena de morte que proibiam casamentos homoafetivos, mas, em 2015, sua Suprema Corte derrubou Penas que variam de 14 anos de prisão esses vetos, alegando inconstitucionalidade. até prisão perpétua Em Cuba, movimento contra a homofobia Penas de até 14 anos de prisão ganhou recentemente apoio do Partido Comunista e do governo. Condenação sem especificação de duração/banimento Incerto: legislação não homofóbica, mas que pode ser usada como tal È importante destacar a diferença Iraque: perseguição por agentes não entre moral e lei. vinculados ao governo. Rússia: "lei anti- Mesmo que as leis sejam Guiana propaganda" (restrição de liberdade de construídas em prol de Único país da América expressão e representação) uma mudança moral do Sul a punir relações positiva, muitas vezes homoafetivas, elas podem contra especificamente Descriminalização e permissão costumes tradicionais de entre homens, uma sociedade sem com penas que Sem legislação específica para responder aos seus anseios podem chegar à homossexuais gerais. Quando a moral, no prisão perpétua. entanto, se transforma, pode União inferior ao casamento acontecer de leis no determinou uma mudança esquecimento, como foi caso do na legislação sem que a União equivalente (ou quase equivalente) dispositivo que vigorou na França mentalidade da população ao casamento até 2014 caracterizando como delito antes se transformasse, tanto uso, por parte das mulheres, de é que no país ainda há esforços Casamento civil homoafetivo legalizado calças compridas. Se levarmos em para refrear as conquistas dos consideração, de outro lado, direitos homoafetivos. Se pensarmos Leis destinadas a lésbicas, gays, bissexuais, por vezes aplicadas às pessoas modo como se deu a aprovação que na India, por exemplo, transexuais e intersexuais. Dados atualizados em maio de 2016. jurídica do casamento civil direitos avançaram para, em seguida, homoafetivo no Brasil, veremos que regredirem, pois costumes não Supremo Tribunal Federal (STF) acompanharam alterações legais, podemos afirmar que direitos Fontes: Adaptado ILGA, LESBIAN AND GAY RIGHTS IN THE Disponível em adquiridos pelos homossexuais não Acesso em 15 mar. 2016; STATE-SPONSORED A world survey of protection and recognition of same-sex Disponível estão completamente garantidos, em 15 mar. 2016; ONU. Nascidos sendo ameaçados constantemente por livres iguals: orientação sexual e identidade de gênero no regime dos direitos humanos, 2012. possíveis retrocessos. 244Questão Domesticar e punir o corpo são formas de exercer poder sobre ele. Leia a passagem abaixo e explique, com base nos dados do infográfico, como poder político controla os corpos. O poder político [...] teria como função reinserir perpetuamente essa relação de força, mediante uma espé- cie de guerra silenciosa, e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem, até nos corpos de uns e de outros. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005. 23. Rússia França e Irlanda Depois de breve período de legalização (1917-1930), pós- A sodomia foi punida na França até 1791, -Revolução Russa, a homossexualidade deixou de ser crime quando foi excluída do Código Penal pelos somente em 1993. Contudo, a instauração da lei antipropaganda revolucionários franceses. No entanto, leis que sinaliza preconceito ainda enfrentado pelos LGBTs russos. puniam homossexuais vigoraram na maior parte da Europa até poucas décadas atrás. A Irlanda, por exemplo, que descriminalizou a homossexualidade apenas em 1993, legalizou casamento homoafetivo em 2015. ILUSTRAÇÕES: GIL TOKIO África, Oriente Médio e Sudoeste Asiático Fortemente influenciados por questões religiosas e pela oposição à cultura ocidental, a maioria dos países africanos, Oriente Médio, com raras exceções, e Sudoeste Asiático criminalizam o relacionamento homoafetivo, punindo-o severa e violentamente. Índia A homossexualidade voltou a ser considerada crime em 2013, apenas quatro anos após ter sido descriminalizada. África do Sul Quênia Ativistas alertam para a desigualdade, Assim como na Tanzânia, em 2013, que impede a garantia de direitos à após cortes no auxílio financeiro maioria da população LGBT, que é negra, internacional para combate à pobre e vulnerável à frequente violência homofobia, aumentou a violência homofóbica, como a de grupos radicais contra a população LGBT. conservadores que chamam estupro de lésbicas de "correção". 245Em seguida, opina: 2 Direitos humanos no cotidiano Houve um desvirtuamento do Dia da Mulher. De um dia que marca a luta, a morte das mulheres, Quando se fala em violação dos direitos humanos, virou comemoração. Podemos comemorar essa lei é comum as pessoas a associarem à ação de crimi- do feminicídio, é um avanço. Essa história de cum- nosos ou infratores. No entanto, há ofensas a esses primento, flor, levar para jantar é horrorosa. Ainda direitos praticadas por pessoas comuns de qualquer temos muito que lutar. Os avanços acontecem, segmento social, que muitas vezes nem consideram mas não na velocidade necessária. seus atos reprováveis. Esses desrespeitos podem Idem, ibidem. ocorrer no meio familiar, escolar, universitário, pro- fissional, virtual, em todos os lugares por onde elas De acordo com a mesma lógica do pequeno circulam ou se manifestam. der, constatamos que nem sempre a relação entre A psicologia estuda um tipo de comportamento pais e filhos é serena, fato confirmado por índices denominado síndrome do pequeno poder, que con- relativamente altos de crianças espancadas ou su- siste em exorbitar da autoridade quando se possui jeitas a castigos humilhantes sob a falsa justificativa algum poder sobre pessoas mais fracas ou que de educar com "severidade". Além das ocorrências dependem do agressor por algum motivo. Vamos no próprio lar, os excessos podem acontecer nas es- exemplificar. colas, quando alunos são maltratados e professores sofrem desrespeito e até violência física. Existem Os homens, de modo geral, têm constituição também casos de empresas que exploram mão de física mais forte que mulheres, e muitas delas em obra infantil e outras que empregam em condições diversas circunstâncias dependem de maridos análogas à escravidão. Pela internet, risco mani- ou companheiros, condição que as torna vítimas festa-se sobretudo por meio de redes de pedofilia, frequentes de abusos e de violência explícita. combatidas com a ajuda do Estatuto da Criança e do A Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, conheci- Adolescente (ECA), promulgado em 1990. da como Lei Maria da Penha, criou instrumentos para coibir e punir atos de violência contra mu- E o que dizer de torcidas organizadas que agridem Mais recentemente, a Lei n. 13.104, de criminosamente oponentes como se fossem inimigos? 9 de março de 2015, incluiu o feminicídio no rol Casos como esses se repetem sempre que um grupa- de crimes hediondos. mento mobiliza forças extremas capazes de manifes- tação agressiva. Em crimes de linchamentos, a turba Registramos a seguir trechos de uma entrevista leva cada um dos participantes a perder controle de Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal Lei de 19 de fevereiro de 1998. concedida pela desembargadora Maria Berenice si mesmo, movidos por preconceitos como racismo e Dias (1948), que, em 1973, se tornou a primeira homofobia ou mesmo de caráter religioso. mulher a ser nomeada juíza no Rio Grande do Sul. Ela, entre outras coisas, relata a presença do pre- caso específico do trote universitário conceito contra a mulher nos exames para ingresso na magistratura e no decorrer de seu exercício. Com Outro exemplo marcante é chamado "trote", relação às causas que julgou, comenta: evento que marca o início do ano letivo de cursos universitários e consiste no acolhimento dos nova- tos, os "bichos", pelos "veteranos". que deveria ser "Sempre foi muito barato bater em mulher", um congraçamento torna-se ocasião para ofensas, diz, ao lembrar tempos pré-Maria da Penha. "Esses casos ficavam diluídos no juizado especial humilhações, selvagerias, com efeitos danosos como ao lado de crimes de pequeno potencial ofensi- a desistência dos estudos e até a morte. vo, briga com vizinho, roubo de bicicleta, virava filósofo Theodor Adorno (1903-1969), testemu- cesta nha dos tempos da Alemanha nazista, adverte sobre UOL Notícias Cotidiano. Disponível em . Acesso em 15 mar. 2016. Se no Brasil não tivemos a experiência nefasta do nazismo, recebemos a herança escravocrata Feminicídio: homicídio qualificado contra a mulher por que ainda hoje motiva veteranos de universidades razões da condição de sexo feminino, causado por violência importantes a agirem como senhores de escravos. doméstica e familiar. Assim comenta sociólogo José de Souza Martins: 246Assim Comte-Sponville define a equidade: A via do deboche, da humilhação do outro, pode ser também indicativa de que praticantes desses trotes perfilham e aplaudem que há de pior na so- Virtude que permite aplicar a generalidade da lei à singularidade das situações concretas: é um ciedade em que vivemos. [...] destaco alguns [trotes] que expressam a selvageria da mentalidade reacio- "corretivo da lei", escreve Aristóteles [...], que per- mite salvar espírito desta quando a letra não basta nária e ultradireitista dos que nesse agir mostram-se continuadores da cultura do capitão do mato. Os para tanto. É a justiça aplicada, justiça em situação, calouros de arquitetura da UFBA foram recebidos justiça viva, e a única verdadeiramente justa. por um boneco enforcado, negro, recoberto com André. Dicionário filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 197. seus nomes. O negro vitimado pelo tronco e pela chibata ainda pena no imaginário de gente que, 127 anos depois da Abolição, pensa como pensava Por exemplo, quem tem necessidade especial de senhor de escravos. [...] Tivemos mais de um século locomoção necessita de direitos especiais, como para aprender a respeitar as diferenças como legíti- rampas de acesso para cadeirantes; nos casos de mo direito de cada um e ainda há entre nós quem tributação, imposto proporcional (por exemplo, insista em tratar outro como peça e mercadoria. 5% para todos) seria injusto para os mais pobres em MARTINS, José de Souza. Ritual de moagem. Estado de S. Paulo, comparação com a aplicação progressiva, que eleva São Paulo, 8 mar. 2015. Caderno Aliás, a taxa imposta aos mais ricos. Fazer justiça pressupõe igualmente o cumpri- A lista de ofensas aos diretos humanos não termina mento de obrigações. motorista precisa obede- com esses exemplos, que se espalham de norte a sul, cer às regras de trânsito, em respeito à segurança e seria a tentativa de esgotá-la, mas já serve para de si mesmo e das demais pessoas, passageiros Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. mostrar que as organizações que tratam dos direitos e pedestres. humanos não têm como tarefa apenas "defender Com os exemplos, percebemos que conceito bandidos". Constatamos que intervenções a fim de de justiça não se restringe às relações éticas entre assegurar a dignidade humana podem muito bem se pessoas, mas também estabelece conexões no âm- estender para o território daqueles que se dizem "do bito das instituições políticas. bem" os que não são socialmente marginalizados. 4 Direito natural: jusnaturalismo 3 Noção de justiça Quando os povos antigos começaram a discutir A defesa dos direitos humanos é relativamente a noção de justiça, distinguiram direito natural e recente, se considerarmos o século XVIII como marco direito positivo: os gregos foram os primeiros a das ideias iluministas que até hoje estão presentes nos indagar se a justiça deriva da natureza ou se nasce da projetos civilizatórios. Vejamos como foi esse percurso. própria lei. Essas primeiras tentativas deram origem A discussão a respeito das relações humanas nos às teorias do jusnaturalismo, para as quais o direito leva a indagar sobre a justiça. Entre seus diversos natural prevalece sobre o direito positivo. direito sentidos, a justiça pode ser compreendida como "dar natural é eterno e imutável, válido em qualquer lugar a cada um que é seu". Embora verdadeira, com e em todos os tempos, é anterior e eticamente su- base nessa primeira afirmação, é possível chegar a perior ao direito positivo; segue uma longa tradição conclusões diferentes do que hoje entendemos por oral, portanto não é escrito. Ao passo que o direito justiça. Por exemplo, na época da aristocracia, os positivo é criado pelo ser humano e instituído pelo nobres eram considerados superiores aos demais, costume ou pela norma escrita. cabendo-lhes, por justiça, um quinhão maior de Na Idade Média, influenciados pelo cristianismo, benefícios e felicidade do que aos demais, que ali os juristas consideravam que o direito natural está estavam para servi-los. A situação era ainda pior em além deste mundo: a verdadeira justiça não é a sociedades escravagistas, nas quais a humanidade do humana, mas a divina; desse modo, os textos legais escravo era reduzida à condição de deveriam harmonizar-se com as normas religiosas. Para que não haja distorções ao se aplicar a ideia de justiça, há situações em que é necessário recorrer E Etimologia à equidade (igualdade): ser justo é realizar a igual Jusnaturalismo. Do latim jus, juris, de onde distribuição de benefícios e obrigações, para que vem natural". todos recebam o que lhes é devido por justiça. 247Teóricos da modernidade a) Thomas Hobbes As ideias de direito, poder e justiça passaram filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) por mudanças na modernidade. Desde o século XVI, deu ao tema do poder o primeiro tratamento ju- iniciou-se o processo de dessacralização das esferas rídico na modernidade. Para ele, o ser humano é do saber (arte, ciência, filosofia, política, direito), que movido por paixões naturais, portanto seu objeti- reivindicavam autonomia em relação aos dogmas vo não é fazer o bem para os outros nem salvar a religiosos, como a noção de estado de direito. própria alma, mas satisfazer seus próprios desejos Com surgimento das monarquias nacionais e e interesses, mesmo que para isso seja necessário o desenvolvimento do capitalismo, outras concep- prejudicar alguém. ções de poder foram elaboradas para ajustar-se aos A premissa hobbesiana não é propriamente novos tempos. Foi importante a reflexão de Nicolau pessimista, mas filosoficamente útil para pensar Maquiavel (1469-1527), que inaugurou o pensa- o tema do poder com realismo, sem ilusões: a mento político moderno ao analisar o tema do poder hipótese do filósofo é que, na ausência de um de modo inédito, recusando interpretações utópicas Estado forte e centralizado, os indivíduos ten- de um ideal do "bom governante" ou justificativas deriam a tratar cada um apenas em benefício de teológicas medievais. Para ele, o poder é forjado nas si mesmo, situação que tornaria a vida de todos relações humanas e, como tal, visa à ação eficaz e precária, violenta, terrível e curta. Por isso, o de- voltada para os acontecimentos políticos. safio consiste em domar esse poder, controlando-o Apresentamos na sequência conceitos de Hobbes, artificialmente. Locke, Rousseau, Kant e Beccaria, responsáveis por direito, encarado até então como atividade elaborar as teorias que favoreceriam a nova percep- ética e prudencial, como fenômeno anterior e inde- ção dos direitos humanos. pendente da noção de Estado, passou a identificar- -se com o próprio Estado, que, na visão hobbesiana, Dessacralização: 0 que deixou de ser sagrado; mesmo deve ser o detentor exclusivo da produção jurídica. que laicização, isto é, tornar laico, não influenciado por Nota-se aqui uma novidade: a construção artificial dogmas religiosos. do Estado, o qual realiza a construção artificial do direito, ao mesmo tempo que se transforma em ins- Para refletir trumento para assegurar a paz. Apenas assim seria possível uma vida tranquila, protegida da agressão Entre os povos da Antiguidade oriental, a justiça baseava-se na "Lei de Talião", cujos princípios eram dos outros. Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. resumidos pela expressão "Olho por olho, dente por Ou seja, culpado por um crime deveria ser b) John Locke condenado à pena equivalente ao dano que causou: Outra contribuição veio do filósofo inglês John cortar a mão de quem rouba, matar quem matou, cas- Locke (1632-1704), um dos teóricos do liberalismo trar quem estupra. Dizer que essa lei significou avanço pode hoje parecer estranho, mas representou a ten- do século XVII. Para ele, a propriedade é "tudo o que tativa de interromper as vinganças desproporcionais pertence" a cada indivíduo, ou seja, sua vida, sua entre as famílias, que faziam liberdade e seus bens. Portanto, mesmo quem não sucessivas vítimas. Atual- possui bens é proprietário de sua vida, de seu cor- mente seria um proce- dimento justificável? Dê po, de seu trabalho e, por consequência, dos frutos sua opinião sobre esse desse empenho. tipo de punição. Essa reflexão representava o novo interesse pela autonomia do sujeito não mais domina- mais conhecido dos documentos jurídicos BRIDGEMAN BRASIL MUSEU DO PARIS do por governos absolutos, no que se opunha a Hobbes -, bem como pela condenação da escra- vidão e da servidão. A concepção de liberdade de Locke, contudo, não era ampla, pois apenas os que Coluna em que está possuíam fortuna tinham condições de usufruir inscrito o Código de Hamurábi (c. 1760 a.C.). plena cidadania e, portanto, de votar ou ser votado. Ressalta-se, desse modo, o elitismo que persistiu mesopotâmicos tem na raiz do liberalismo, já que a liberdade e a igual- como um dos princípios a dade defendidas eram de natureza abstrata, geral chamada "Lei de Talião". e puramente formal. 248c) Jean-Jacques Rousseau e) Cesare Beccaria No século XVIII, as noções de liberdade e igual- jurista italiano Cesare Beccaria (1738-1794), em dade avançaram com a original concepção política sua obra Dos delitos e das penas, aplica ideias ilumi- firmada na vontade geral (do povo), elaborada nistas ao direito. autor manifesta-se contra as penas pelo "cidadão de Genebra" (Suíça) Jean-Jacques tão comuns na história humana: tortura, infâmia, julga- Rousseau (1712-1778). Aspectos avançados do seu mento secreto, suplício. Declara-se também contra a pensamento decorrem do entendimento de que cada pena de morte e a vingança. Aclamado pelos filósofos cidadão pode transferir sua liberdade e seus bens enciclopedistas quando esteve na França, ao voltar à sua apenas para a comunidade (interpretada como um terra, Milão, sofreu acusação de heresia. É significativo corpo único) da qual ele faz parte. conceito-chave refletir sobre como as ideias demoram para frutificar de vontade geral sustenta a ideia de soberania popu- devido à intolerância e a preconceitos arraigados. lar que não se aliena -, da qual participam igual- É preciso lembrar que, durante o século XVII e mente todos os cidadãos e não apenas os mais ricos, parte do XVIII, a burguesia ainda não havia conquis- o que assegura a liberdade de cada um. tado o poder político e lutava contra as pressões de Que conclusão podemos tirar de teorias tão regimes absolutistas, como era o caso da França, da diversificadas? Espanha e de Portugal. Na modernidade discutiu-se um rol crescente Pensadores do século XVIII, especialmente liberais de direitos considerados naturais e inatos, univer- e iluministas, entendiam que os homens gozavam de sais e atemporais, a começar pelos direitos à vida direitos naturais, universais e absolutos. Esse teor é e à segurança (Thomas Hobbes), até chegarmos evidente na Declaração de Independência dos Estados aos direitos à liberdade (John Locke) e à igualdade Unidos (1776) e na Declaração dos Direitos do Ho- Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. (Jean-Jacques Rousseau). mem e do Cidadão (1789), da França pós-revolucio- d) Immanuel Kant nária. Essas declarações e inúmeros outros discursos e documentos marcaram a ascensão definitiva da As teorias examinadas teciam os conceitos sobre a formação do Estado moderno, bem como os de burguesia. Reflexos dessas ideias se fizeram sentir no liberdade e autonomia do cidadão. A expressão mais Brasil em várias tentativas de independência. clara dessa busca ocorreu com o pensamento do filósofo Immanuel Kant (1724-1804), expoente 5 Positivismo jurídico: do alemão, ao defender a dignidade hu- crítica ao jusnaturalismo mana, como se constata no seguinte trecho: Na passagem do século XVIII para o XIX, instalou- -se uma nova fase política e jurídica, quando diversos Todo ser humano tem um direito legítimo ao países, sob a influência do pensamento iluminista, respeito de seus semelhantes e está, por sua vez, obrigado a respeitar todos demais. A humanidade promulgaram sua Constituição. Foi nesse período ela mesma é uma dignidade, pois ser humano que os três Poderes Executivo, Legislativo e Ju- não pode ser usado meramente como um meio por diciário conquistaram autonomia, substituindo a qualquer ser humano (quer por outros, quer, inclu- antiga ordem, na qual o rei detinha em suas mãos o sive, por si mesmo), mas deve sempre ser usado ao controle dos três Poderes. mesmo tempo como um fim. [...] Mas exatamente Todo cidadão, mesmo sem título de nobreza, porque ele não pode ceder a si mesmo por preço poderia reivindicar participação em um dos três Po- algum (o que entraria em conflito com seu dever deres, com a ressalva de que aquele que integrasse de autoestima), tampouco pode agir em oposição à igualmente necessária autoestima dos outros, como um deles ficaria impedido de participar dos outros seres humanos, isto é, ele se encontra na obrigação dois. Desse modo, concretizava-se a proposta de de reconhecer, de um modo prático, a dignidade da divisão dos Poderes concebida por Montesquieu humanidade em todo outro ser humano. [...] Con- (1689-1755) na primeira metade do século XVIII. tudo, não posso negar todo respeito sequer a um Além da Constituição, alguns países promulgaram homem corrupto como um ser humano, não posso códigos de direito, que hierarquicamente estavam suprimir ao menos respeito que lhe cabe em sua submetidos ao primeiro documento a Constituição qualidade como ser humano, ainda que através de ou Carta Magna. seus atos ele se torne indigno desse respeito. KANT, Immanuel. A metafisica dos costumes. Bauru: Edipro, 2003. p. 306-307. Inato: que nasce com indivíduo; portanto, que é natural no ser humano. 249Na França, o Código Civil de 1804, também co- Logo após essas atrocidades, em 1948, na nhecido como Código de Napoleão, representou uma recém-criada Assembleia Geral da Organização novidade jurídica significativa. Antes desse Código, ao das Nações Unidas (ONU), os Estados-membros avaliar um caso, os juízes invocavam costumes e valo- assinaram a Declaração Universal dos Direitos res morais da época, dispositivos legais de códigos an- Humanos, documento que representou um ver- tigos e obsoletos, como o Código de Justiniano (século dadeiro marco. VI d.C.), e o que entendiam ser as normas de direito Embora as decisões da ONU não tenham a mes- natural. Por consequência, direito vigente tornou-se ma força que as normas jurídicas instituídas inter- confuso, uma vez que o juiz não tinha elementos que namente em cada país, as nações participantes da fundamentassem sua decisão. Com a promulgação do Assembleia firmaram consenso e inspiraram outros Código de Napoleão, o juiz deveria julgar sempre com tratados de direitos humanos. Sua novidade con- base na lei registrada em documento. sistiu em expressar, pela primeira vez, a proteção Constituía-se, então, a liberdade política ou li- dos direitos humanos em documento de alcan- berdade positiva, garantida por leis. ce internacional. Desde 1948, portanto, a proteção dos direitos Elaboração teórica do direito positivo humanos deixou de ser matéria de exclusivo in- Com a promulgação de constituições e códigos, teresse interno de um Estado para se tornar tema o jurista assumiu novos desafios, porque a noção de interesse de grande parte da comunidade in- de direito natural tornou-se estranha ao mundo ternacional. Aprendemos com o século XX que jurídico e ilegítima como fundamento de decisão: Estado, por meio de governos autoritários, pode esboçava-se, assim, a substituição do direito natural converter-se no grande violador dos direitos de (jusnaturalismo) pelo direito positivo, dando origem seus próprios cidadãos. à teoria do positivismo jurídico. Desenvolveu-se, assim, um novo sistema jurídi- No século XX, o filósofo e jurista austríaco Hans CO internacional de proteção dos direitos humanos, Kelsen (1881-1973) propôs a forma mais elaborada Estados deficientes ou omissos em seu dever de do positivismo jurídico, ao sustentar que a norma proteger esses direitos passaram a ser juridica- de direito positivo pode ser válida mesmo que seja mente responsabilizados pelo direito internacional. injusta. Ele justifica sua posição afirmando que a Sabemos muito bem que acordos e leis não alteram justiça é um valor relativo: por mudar de acordo costumes nem preconceitos em um passe de com tempo e o espaço, não pode ser usada como mágica, mas não há como negar que provocam critério adequado para fundamentar a validade da mudanças, ainda que lentas. Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. norma jurídica. Com Kelsen configurou-se a ciência do direito, como descrição do direito como ele é, e não como ele deveria ser em relação à justiça. As três gerações dos Em outras palavras, Kelsen separa moral e direito: direitos humanos como os valores morais são relativos, o aborto pode Vejamos como os relatos feitos até aqui com- ser justo para uns e injusto para outros, mas, na me- põem a descrição de três gerações (ou dimensões) dida em que a sua proibição torna-se a lei vigente, dos direitos humanos. é válida como norma jurídica. A primeira geração dos direitos humanos ocorreu na época da Revolução Francesa, com as novas ideias 6 Declaração Universal dos de liberdade e autonomia individuais, lentamente Direitos Humanos gestadas desde século XVII. No século seguinte, as ideias iluministas ampliaram as reivindicações com No século mundo sofreu os horrores de base na autonomia do sujeito e na garantia de sua duas guerras mundiais e a Alemanha foi palco da dignidade. Essas foram as conquistas que examina- extrema barbárie do governo totalitário nazista mos até o século XVIII. contra milhões de seres humanos, confinados e executados em campos de extermínio. A segunda geração dos direitos humanos teve início no século XIX, período em que a Europa fer- vilhava ideias anarquistas, comunistas e socialistas. Positivo: no contexto, que é existente de fato, estabelecido; Elas criticavam os ideais liberais e denunciavam no direito, a lei instituída, que se opõe à lei natural. Não confundir com sentido de "fatos concretos", como no como enganosa a alegação de que o povo teria positivismo de Auguste Comte. participação na política. 250Para os revolucionários, a suposta liberdade bur- a) Universalização guesa só era possível à custa da miséria da classe Os direitos humanos são universalizáveis, mas operária, muitas vezes submetida a condições cruéis e não são universais, pois não são eternos, imutáveis, desumanas de trabalho e sem acesso a nenhum dos três cósmicos nem religiosos, como se acreditou ao longo Poderes. Contra a liberdade burguesa, reivindicavam da história. Ao contrário: direitos humanos são a igualdade material e social de todos indivíduos. valores históricos. Trata-se de invenção humana em A questão que tomava corpo era, portanto, o constante processo de construção e reconstrução. confronto entre liberdade e igualdade. As lutas que Os direitos humanos são universalizáveis em deter- adentraram o século XX exigiram do Estado assegu- minada época, após debate e consenso; portanto, rar a todo e qualquer cidadão direitos econômicos, resultam da convenção de países que integram a sociais e culturais, entre eles, o acesso gratuito e de ONU em determinado período. qualidade à educação e à saúde, além de fomentar o desenvolvimento cultural e artístico. Vários direitos b) Indivisibilidade sociais foram incorporados nos documentos, por Os direitos humanos conquistados nas três ge- exemplo: limitação da jornada de trabalho, garantias rações são indivisíveis: cada um desses direitos não contra o desemprego, proteção da maternidade, se supera nem se exclui. Os direitos humanos, por estabelecimento de idade mínima para trabalhos serem indivisíveis, acumulam-se e são fortalecidos. industriais e noturnos etc. Em outras palavras, os direitos civis e políti- A ampliação do conceito de cidadania teve em vista próprios do discurso liberal da cidadania direito de participação ativa no exercício dos Pode- (direitos de primeira geração), devem ser conju- res estatais (Legislativo, Executivo, Judiciário). E mais, gados aos direitos econômicos, sociais e cultu- a liberdade de usufruir uma gama de direitos, como rais, que defendem a igualdade (direitos de segun- Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. liberdade de pensamento, de expressão, culto religioso, da geração). associação e iniciativa comercial, entre outros e que, Atualmente reivindica-se, também, direito à portanto, deveriam ser respeitados pelo Estado. paz, à preservação do ambiente e do patrimônio da A terceira geração dos direitos humanos nasceu humanidade etc. Como vimos, são direitos de ter- no século XX, com ênfase nos direitos coletivos. Assim ceira geração, que não pertencem a este ou àquele explica a socióloga Maria Victoria Benevides Soares: indivíduo, mas ao gênero humano. c) Participação Referem-se esses [direitos coletivos] à defesa A democratização da política interna dos países ecológica, à paz, ao desenvolvimento, à autodeter- não apenas facilita como possibilita e estimula minação dos povos, à partilha do patrimônio cientí- fico, cultural e tecnológico. Direitos sem fronteiras, a participação da sociedade civil no palco da ditos de "solidariedade Assim sendo, política internacional. Um dos objetivos desse testes nucleares, devastação florestal, poluição engajamento é, sem dúvida, o aperfeiçoamento industrial e contaminação de fontes de água potá- de mecanismos de proteção internacional dos vel, além do controle exclusivo sobre patentes de direitos humanos. remédios e das ameaças das nações ricas aos povos status do indivíduo modificou-se na Nova que se movimentam em fluxos migratórios (por Ordem Internacional. Os Estados assumiram a obri- motivos políticos ou econômicos), por exemplo, gação de garantir o respeito aos direitos humanos independentemente de onde ocorram, constituem dentro de seu território. Porém, se falharem nessa ameaças aos direitos atuais e das gerações futuras. tarefa, o indivíduo que tiver seus direitos violados Maria Victoria Benevides. Cidadania e direitos humanos. In: CARVALHO, José Sérgio (Org.). Educação, cidadania e direitos poderá recorrer a organismos internacionais para se humanos. Petrópolis: Vozes, 2004. 61. defender do próprio Estado em que nasceu. Basta verificar a atuação dos defensores dos direitos humanos durante as ditaduras na Améri- 8 Características dos direitos ca do Sul. Naquela época, eram atendidas víti- humanos mas de detenção arbitrária, tortura e assassinato, atos realizados por agentes do regime. As vítimas A ordem internacional a partir de 1948 apre- pertenciam à classe média, como advogados, jor- senta algumas inovações, como os conceitos de nalistas, estudantes e religiosos, além de campo- universalização, indivisibilidade e participação, neses, indígenas e operários que atuavam em mo- características dos direitos humanos. vimentos sindicais. 251Comissão Nacional da Verdade 9 Democracia e direitos humanos É verdade que o acesso a organismos de defesa dos direitos humanos, como a Comissão Interame- Com a recuperação da ordem democrática, as ricana de Direitos Humanos (CIDH), é ainda tímido atuações a favor dos direitos humanos de civis se ex- e deficiente. Mas é possível constatar avanços, pois pandiram, exigindo soluções jurídicas para violências durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), por de vários tipos. Não só para aquelas praticadas pela exemplo, o acesso era bem mais difícil do que nos polícia, mas também para as que ocorrem em outros últimos anos, quando o Estado brasileiro cumpriu setores da sociedade civil, como as relacionadas a decisão da CIDH de esclarecer os crimes contra a racismo, trabalho infantil e escravo, educação, saú- humanidade praticados por militares com o apoio de, meio ambiente, presos políticos, desigualdade de outras instituições civis. de gênero e tantas outras. Com essa intenção, em maio de 2012 foi insta- Hoje, quando alguém expressa em rede social, blog lada a Comissão Nacional da Verdade (CNV), cujas ou jornal alguma opinião contrária ao governo, quando atividades focavam resgatar a memória histórica uma pessoa sem recursos exige da prefeitura de sua do país, bem como o direito daqueles que des- cidade os remédios necessários para o tratamento de conheciam o paradeiro dos corpos de familiares sua doença, quando alguém escolhe livremente a pro- assassinados pelo regime. Após inúmeros relatos fissão que exerce, a cidade onde mora, a religião que professa, a escola que frequenta, ou acusa uma fábri- de testemunhas, sobreviventes e agentes públicos ca de poluir os rios, esse alguém em todos os casos age envolvidos que se dispuseram a falar, documento de acordo com os direitos humanos ou os reivindica. apresentado em dezembro de 2014, além de analisar o conteúdo das entrevistas, contabilizou número Podemos emitir nossa opinião política para apoiar de mortos e desaparecidos. ou divergir. Tivemos acesso ao sufrágio universal, à emancipação feminina, à garantia dos direitos das No entanto, apesar de ainda persistirem muitas minorias (negros, indígenas, homossexuais, pessoas lacunas, também não foi possível encaminhar os com deficiência). A criminalização da tortura e da relatórios para julgamento nas instâncias jurídicas violência contra a mulher também tem sido alcan- competentes, devido à Lei da Anistia assinada em çada com muito esforço. Todos esses são exemplos 1979, em pleno regime ditatorial, que concedeu do longo percurso de construção da justiça social. perdão para ambos os lados Estado e seus oposi- No entanto, ainda há muito, muito mesmo, a ser tores. Na contramão do que fizeram outros países conquistado alguns temas, como a criminalização da Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. da América do Sul, que julgaram e puniram militares homofobia, ainda exigem persistentes lutas para que responsáveis por violações dos direitos humanos encontrem amparo jurídico. E o principal empecilho é durante a ditadura militar. quase sempre a incapacidade de superar preconceitos. MARCOS ARCOVERDE/ESTADÃO CONTEÚDO Após a morte, no Complexo do Alemão, do menino Eduardo de Jesus Ferreira, manifestantes protestam na cidade do Rio de Janeiro, 2015. Investiga-se que Eduardo tenha sido baleado por um policial. A tragédia expõe a urgência de debater a violência e 252 uso da força, inclusive pelo Estado.Leitura complementar que é racismo? "Ao questionarmos sobre problema do racismo, 'de um modo discursivo', a violência, segun- deveríamos talvez nos obrigar a fazer referência a dois do Wieviorka, é O seu rosto material, seu movimento tipos dissímiles de perguntas; a primeira, e a mais exterior, a sua força visível, a sua ação última e final. [...] habitual delas, seria a seguinte: 'O que é racismo?'; Aos poucos que nos vamos afastando de uma a segunda, radicalmente diferente da primeira e concepção sociológica do racismo, voltamos à nossa ainda em aparência mal formulada gramaticalmente segunda pergunta, muito menos habitual: 'quem é deveria ser esta outra: 'Quem é racismo?'. racismo?'. [...] Em relação à primeira das perguntas, [o sociólo- Na aula de 7 de janeiro de 1976, Foucault con- go francês] Michel Wieviorka revela a existência de sidera que racismo é a condição de aceitabilidade diversas expressões que representam, numa escala da matança, numa sociedade na qual a norma, a progressiva, diferentes graus do 'perigo do fenôme- regularidade, a homogeneidade constituem as suas no' racista; essas formas ou expressões visíveis em principais funções sociais. [...] que racismo se manifesta seriam: preconceito, Assim, a questão da raça foi absorvida pelo Estado a segregação, a discriminação e a violência racial. como uma estratégia discursiva constituída por téc- Vejamos, ainda que de modo muito superficial, qual nicas médicas e normalizadoras. O Estado começou seria significado dado pelo autor a cada uma dessas a mudar aquilo que tinha sido sentido plural das palavras e/ou níveis do 'perigo' racista. raças pelo sentido singular de raça. E em virtude desse O preconceito conferiria aos seus portadores, efeito discursivo, é que ao final do século XIX aparece aos seus donos, isto é, aos membros de um grupo já racismo de Estado, um racismo que é, ao mesmo dominante, uma forma de serem conscientes das suas tempo, de natureza biológica e centralizadora. Para posições de privilégio e hierarquia. Segundo autor, Foucault, há dois exemplos bem claros do racismo de trata-se de uma forma rudimentar de xenofobia ligada Estado durante século XX: racismo nazista, expresso à defesa de uma identidade coletiva e/ou comunitária: na proteção biológica da raça; e racismo soviético, preconceito é assim colocado, assim estabelecido e que, em oposição ao anterior, consiste já não em uma assim determinado no discurso para não 'ferir' e para transformação dramática da ideia de 'raças' pela ideia 'proteger' as identidades consideradas apropriadas, de 'raça', mas em uma mudança silenciosa, pausada, quer dizer, as identidades próprias, isto é, as identida- pensada em seus mínimos detalhes e, por isso, de ordem des (inventadas, produzidas, fabricadas como) normais. cientificista. Mas em ambos casos há alguns elemen- A segregação é um conceito que se formula em tos em comum que permitem responder à nossa questão certo modo em sua ligação com uma ideia específica anteriormente formulada 'De quem é racismo?': da espacialidade relacional entre 'eu' e 'outro', a) é Estado quem é racista; racismo pertence ao entre 'nós' e 'eles'. O indivíduo ou grupo que Estado; é considerado objeto do racismo, quer dizer, 'o b) ter direito à morte, ter poder da morte: essa é outro' e 'eles', acaba sendo confinado em espaços a fundamentação do racismo." 'próprios' que não poderão ser abandonados a não SKLIAR, Carlos. A materialidade da morte e eufemismo da ser em condições tanto ambíguas quanto restritivas. tolerância. In: GALLO, Silvio: SOUZA, Regina Maria de (Orgs.). A discriminação, por sua vez, é um tipo de tratamen- Educação do preconceito: ensaios sobre poder e resistência. Campinas: Editora Alinea, 2004. 75-78. to diferencialista, quer dizer, uma produção específica de alteridade, que penaliza aquilo que no Ocidente foi e é nomeado, ainda hoje, com eufemismo de 'mino- Dissímile: dessemelhante; diverso. rias'. A operação de discriminação consiste, primeiro, na Alteridade: Condição do que é outro, do que é distinto. diminuição, na redução do outro e também a relação do outro com 'seus' outros e, em segundo lugar, em dotar todos esses outros, assim 'diminuídos', de uma única possibilidade de interpretação dos seus valores e Questões das suas normas. A uma minoria, a qualquer minoria, 1. Qual é a relação entre preconceito e lhe é dado para si própria um referente idêntico de repre- identidade coletiva? sentações: haveria assim uma única forma fixa permitida 2. Em cidades brasileiras onde a maioria possível de se pensar, de se olhar, de se perceber, de se da população se autodeclara negra ou julgar, de se nomear etc. interior desse grupo. parda, existem bairros (geralmente A violência racial não seria outra coisa que fato de considerados "nobres") habitados tornar intencionais e explícitas todas as três expressões por mais de 90% de brancos. Que anteriores. Enquanto preconceito, a segregação e a conceito se aplica a essa realidade? discriminação permaneceriam em estado 'latente', 'nãoATIVIDADES poder autoritário. Por outro lado, no registro social, Revendo capítulo observa-se que as lutas não se concentram apenas na Qual é a diferença entre jusnaturalismo e positivismo defesa de certos direitos ou sua conservação, mas são 1 jurídico? lutas para conquistar próprio direito à cidadania e O que mudou no conceito de poder, desde a Idade constituir-se como sujeito social [...]. 2 Moderna? CHAUI, Marilena. Direitos humanos e medo. In: FESTER, Antonio Carlos (Org.). Direitos humanos e... São Paulo: Brasiliense: 3 Que importância tiveram Rousseau e Kant para a ins- Comissão Justiça e Paz de São Paulo, 1989. p. 34-35. tauração dos direitos dos indivíduos? 4 Identifique as três gerações de direitos humanos, localizando-as no tempo e conforme suas caracte- a) Quais são dois registros principais das lutas pelos direitos populares mais recentes? Nomeie rísticas principais. suas características esquematicamente. 5 Por que na divisão dos Poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário "aquele que integra um dos Poderes fica b) Com um colega, identifiquem movimentos atuais que exemplificam os dois tipos de registro. impedido de fazer parte dos outros dois"? Qual é a van- tagem disso para a democracia? 9 Analise a tirinha abaixo e atenda às questões. Aplicando os conceitos Quando vejo 6 No século XVIII, o jurista italiano Cesare Beccaria condenou as penas cruéis e a tortura, abrindo a dis- vida e obra terêncio horto alguém bradar DAHMER contra direitos humanos cussão a respeito dos direitos humanos. Em que medida esse tema ainda é atual? 7 A Lei Maria da Penha criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Configura-se, assim, como uma ação que tem em vista a violência de gênero. Art. Toda mulher, independentemente de imagino contra classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, um cão os direitos nível educacional, idade e religião, goza dos direitos latindo dos animais. fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Reprodução do Código Penal Lei de 19 de fevereiro de Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/ Acesso em 15 mar. 2016. Vida e obra de Terêncio Horto (2015), tirinha de André Dahmer. Com base nesse texto, atenda às questões. a) Qual é a crítica do cartunista André Dahmer? a) Pesquise sobre significado do nome "Lei Maria b) Analisando o caso do uso de animais em pesqui- da Penha". sas científicas, comente sobre paralelo entre b) Que motivos sociais e históricos justificariam direitos humanos e direitos dos animais. essa Lei? c) que a Lei identifica como violência psicológica? Dissertação Comente por que esse tipo de violência nem sem- pre é reconhecido como tal. 10 Com base na definição dada pelo Alto Comissariado 8 Leia a citação e atenda às questões. das Nações Unidas para os Direitos Humanos, redija uma dissertação que apresente seu ponto de vista sobre a questão dos refugiados. [...] representação, liberdade e participação têm sido a tônica das reivindicações democráticas que amplia- ram a questão da cidadania, fazendo-a passar do plano Ninguém é refugiado por gosto ou opção. Ser refu- giado significa mais do que ser estrangeiro. Significa político institucional ao da sociedade como um todo. viver no exílio e depender de outros para satisfazer Quando se examina largo espectro das lutas popula- necessidades básicas como a alimentação, o vestuário res, nos últimos anos, pode-se observar que a novidade e a habitação. dessas lutas se localiza em dois registros principais. Por ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA os DIREITOS um lado, no registro político, a luta não é pela tomada HUMANOS. Direitos humanos e refugiados. Disponível em do poder identificado com poder do Estado, mas é luta pelo direito de se organizar politicamente e de participar Acesso em 29 fev. 2016. das decisões, rompendo a verticalidade hierárquica do 254

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