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119 Inseridos numa miscelânea vocabular que os adjetivava ufanisticamente, os sertanistas paulistas foram representados na historiografia como protagonistas de feitos épicos, supra-humanos. Nessa construção político-ideológica, onde os desfechos dos acontecimentos eclipsam o processo concreto que os efetivou, as atividades físicas dos bandeirantes são mencionadas canhestramente, sob a intangibilidade da representação multifacetada. O herói paulista, além de suas diversas outras virtudes , foi também um homem que deslocou- se por espaços cada vez mais amplos. O homem planaltino comum vivenciou a mobilidade sertaneja, experimentando os revezes oferecidos por tal deslocamento. O desempenho corporal, tão decisivo para que muitas expedições atingissem seus objetivos, foi inserido num alentado rol de pseudo-virtudes, diluindo-se em meio a uma profusão de adjetivações edificantes. Entendemos que o movimento humano foi uma das principais características do bandeirismo. O desempenho físico foi um elemento significativo nas incursões dos sertanistas de São Paulo, tendo sido uma das facetas mais importantes da história das bandeiras. 2. O papel da motricidade bandeirante na mudança da configuração contextual do Brasil Colonial No século XVII, o fortalecimento dos engenhos de açúcar no Nordeste acompanhou a decadência pronunciada da produção açucareira na região de São Vicente, que mais distante do litoral europeu, marginalizou-se pouco a pouco da rota comercial marítima. Os navios provenientes da Metrópole aportavam nas capitanias do Nordeste, cumprindo navegação menos extensa e abastecendo-se satisfatoriamente, mercê da próspera produção canavieira. Diferentemente da aparente solidez dos núcleos populacionais do litoral nordestino, cuja riqueza agrária traduzia -se nos latifúndios e nas casas grandes dos senhores de engenho, a capitania de Martim Afonso de Souza, no Brasil Colonial, caracterizava -se ainda pela imaturidade, pela carência de recursos e pela grande distância que a separava da movimentação mercantil escravista e açucareira. 120 A afixação na terra, o sedentarismo caracterizado pelas populações do Nordeste, tornou-se a configuração da antítese, do antagonismo da situação vivenciada pelos paulistas, especialmente os do planalto de Piratininga. Impedidos de adquirir escravos africanos, devido às contingências contextuais já descritas, os paulistas empreenderam longas marchas mata adentro, visando apresar índios, os negros da terra , para o labor assistencial e para o comércio escravista. As bandeiras de caça ao índio desbravaram florestas desconhecidas rumo ao sertão distante. Sobre a sociedade paulista, escreveu Holanda: Sua vocação estaria no caminho, que convida ao movimento; não na grande propriedade rural, que cria indivíduos sedentários ... A mobilidade dos paulistas estava condicionada, em grande parte, a certa insuficiência do me io em que viviam (HOLANDA, 1990, p. 16). Visando ressaltar os grandes esforços a que se submetiam os sertanistas de São Paulo, Barreiros evocou a óbvia lembrança da jornada pedestre, que era cumprida predominantemente, sob o fator agravante dos pesos extras. Vejamos as palavras de Barreiros: Convém lembrar que se viajava a pé, carregando a bagagem às costas, por ínvios caminhos, representados por trilhas que se contorciam morro abaixo e morro acima, ou por densas florestas de rumos incertos, ou ainda, por campos infndáveis (BARREIROS, 1979, p. 20). Analisemos as intrépidas incursões das bandeiras. Elas percorriam caminhos rústicos, estreitas sendas, traiçoeiras picadas abertas a facão nas matas ínvias. Atravessavam rios, transpunham morrarias, cruzavam planícies, enfrentavam a resistência de grupos indígenas belicosos, expunham-se aos extremos climáticos no âmago da natureza selvagem, experimentavam as inoculações de insetos e répteis peçonhentos, sujeitavam-se aos descalabros de uma dieta inadequada e insuficiente. Para o sucesso das empreitadas, mais do que qualquer outra característica, os paulistas expedicionários eram compelidos a atingir as linhas limítrofes de suas capacidades físicas, que em diversas oportunidades beiravam e até mesmo ultrapassavam a exaustão. O caminhar pela mata, enfrentando as escabrosidades naturais e os relevos acidentados, envergando gibões 30 incômodos, levando às costas mosquetões 31 e alfanjes32, conduzindo ainda pesadas 30 Veste de couro para resistir a flechadas, algumas de couro de anta. 31 Armamento que de tão pesado precisava ser apoiado num tripé, media 1,75m e geralmente era carregado por dois expedicionários. 32 Sabre curto, para combates corpo a corpo. 121 correntes para o apresamento dos negros da terra, víveres rudimentares e outros acessórios ... Razoável exercício físico! Junte-se a isso os esforços corporais nos embates com os índios, o nado improvisado para vadear cursos d’água mais profundos, o trabalho extenuante da derrubada da vegetação visando abrir novas sendas, as fadigas adicionais das atividades de caça e extração de alimentos nativos ... Considerável exercício físico! Passando à larga das menções burlescas considerável exercício físico e razoável exercício físico, penetremos no terreno formalmente racional das constatações objetivas, emanadas das páginas da historiografia, que mostram claramente os ingentes esforços corpóreos dos bandeirantes. Faz-se necessário mencionar a obviedade de que o discurso histórico, em sua totalidade, narra a saga desses expedicionários sob os prismas narrativos múltiplos da busca de pedras preciosas e do aprisionamento e morticínio de indígenas, da expansão dos núcleos populacionais, do fracasso do Tratado de Tordesilhas, da dilatação das fronteiras e da extração aurífera. Ressaltadas pela historicidade (no sentido literal da palavra: qualidade do que é histórico), estão contidas na historiografia, reiteradas vezes, as variações rítmicas ou cíclicas do que é entendido como progresso, com suas debreagens e deslanches. Conferindo salutar inteligibilidade aos fatos, num sentido mais amplo, o entendimento do desenvolvimento ou progresso insere-se numa perspectiva que oportuniza o deslindar de certos contextos regionais interdependentes. O atraso de São Paulo, em relação ao Nor deste no século XVII, era proeminente. Os sólidos engenhos nordestinos, alicerçados no poder dos grandes senhores de terras e na conveniente teia clientelista, tecida politicamente na cúpula da sociedade, configurava à exatidão as teorias do historiador holandês J. Romein: El progresso realizado en el pasado es suscetible de actuar como un freno, a costa de nuevos progressos. Por la atmósfera de autosatisfacción se oponen obstáculos a nuevos progresos que implicariam un desmonstje de las instituiciones y de los equipos (J. ROMEIN apud CHESNEAUX, 1995, p. 112). Tal atmosfera de auto-satisfação não foi experimentada pelos paulistas, que vivenciavam um cotidiano rudimentar, habitando toscas edificações de taipa, onde não havia camas (os paulistas dormiam em redes) nem banheiros. O atraso de São Paulo foi ilustrado por Holanda: ... A lentidão com que, no Planalto Paulista vão se impor costumes, técnicas ou tradições vindos da Metrópole terá profundas conseqüências: só muito aos poucos, embora com extraordinária consistência, consegue o europeu implantar formas de vida que já lhe eram familiares no Velho Mundo (HOLANDA, 1990, p. 16). 122 Em ¿ Y que és la Hstória?, Prieto cita também a tese de Romein sobre Los llegados tarde da história , que se ajusta, à perfeição, ao progresso atingido por São Paulo, quandodo advento da extração aurífera, encetado pelas bandeiras e posteriormente robustecido pelas monções: ... El progreso viene muchas veces de otros pueblos atrasados, los “llegados tarde” a la história ... La línea general de este argumento es demostrar que el retraso, en ciertas condiciones, es una ventaja que espolea hacia nuevos esfuerzos, mientras que un avance más rápido constituye un freno es la dialética del progresso (PRIETO, 1995, p. 112). Nossa incursão pela análise do progresso visou abrir linhas essenciais para enfocarmos a importância das bandeiras, que eram expedições que partiam de um lugar sem recursos, levando-se em conta os padrões coloniais. Doravante, pretenderemos demonstrar, que o progresso de São Paulo teve sua configuração embrionária nas bandeiras rumo às paragens mais remotas do Centro-Oeste brasileiro. Os nuevos esfuerzos dos bandeirantes impressionaram muita gente, como o padre jesuíta Antônio Ruiz de Montoya (1585-1652), que escreveu que os paulistas, a pé e descalços, andavam mais de dois mil quilômetros por vales e montes como se passeassem pelas ruas de Madri. Para o religioso inaciano, crescido e educado num ambiente civilizado, a extensão de tal marcha denotava capacitação física muito acima da média. O espanto transparece claramente em suas palavras, principalmente quando traça o paralelo comparativo da caminhada sertanista com um simples passeio pelas ruas da capital espanhola. Tal analogia revela seu pasmo, concernente à singularidade do desempenho corporal dos homens rudes que compunham as bandeiras. Enfoquemos brevemente a lexicologia, ressaltando algumas acepções da palavra passeio e do verbo passear, visando coibir detrimento no ato de interpretar a frase do padre Montoya. Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, passeio significa: 1. Ato ou efeito de passear; 2. O percurso de certa extensão de caminho, para exercício ou por divertimento; 5. Distância curta; 7. Aquilo que se conquista sem nenhum esforço, em que se obtém vitória facílima. O verbo passear , ainda segundo o dito dicionário, significa: 1. Ir a algum lugar, ou mover-se, andar a passo, com o fim de entreter-se, divertir-se, tomar ar ou fazer exercício. A fala do jesuíta, indubitavelmente inculca ênfase na performance motora dos paulistas, dando ares de passeio a um percurso de 2000 quilômetros. Ficou claro, em nossa incursão lexicológica, que passeio ou passear não implicam de forma alguma em cansaço 123 físico. Isso entendido, faz-se nítida a intenção do jesuíta em comunicar -se procurando expressar a negação de qualquer fadiga experimentada pelos sertanistas. O assombro do padre Montoya emprestou cromatismos épicos à caminhada dos bandeirantes, pintalgando-a com nuanças que sugerem uma proeza mitológica. Expliquemo-nos melhor: é óbvio que não existem seres humanos que não se cansem ao cumprir 2000 quilômetros de marcha, por lugares florestosos e de relevo acidentado. O cansaço, a fadiga e a exaustão obviamente eram sentidos pelos paulistas, de forma que deve ser levada em consideração certa densidade alegórica nas palavras do jesuíta, que induziram a um entendimento de performance física no mínimo sobrenatural. Por outro lado, é também óbvio o grande desempenho corpóreo-motor dos expedicionários sertanistas, que cumpriram, em outras diversas oportunidades, percursos portentosamente maiores do que este enfocado pelo religioso espanhol. Adiante, abordaremos alguns destes percursos cumpridos pelas bandeiras. No que diz respeito aos reveses enfrentados pelos paulistas, escreveu Holanda: A capacidade de resistir longamente à fome, à sede, ao cansaço; o senso topográfico levado a extremos ... são algumas das imposições feitas aos caminhantes, nessas veredas estreitas e rudimentares. Delas aprende o sertanista a abandonar o uso de calçados, a caminhar em “fila índia’, a só contar com as próprias forças durante o trajeto ( HOLANDA, 1990, p. 17). Instadas ao movimento constante, percorrendo regiões até então indevassadas, as bandeiras configuraram-se como agregações de homens, que apresentaram performance corpóreo-motora no mínimo notável. Mitificadas pela aura épica do desbravamento de áreas infreqüentadas, pelo descobrimento de riquezas e pelo apresamento e morticínio de indígenas, as bandeiras são, via de regra, ressaltadas na historiografia pelos resultados de seus feitos ou atos, ou seja, pelos seus efeitos. Evoquemos aqui as palavras de Prieto: ... Son las relaciones causa-efecto, en bloque, las que deben analizarse, ya que son las que nos muestran el proceso histórico y possibilitan su comprensión (PRIETO, 1995, p. 90). Sob o prisma dessa concepção de Prieto, parece tornar -se nítida a percepção de que a historiografia, muitas vezes, debruça-se sobre o desfecho dos fatos. Não raro são preteridos os processos de construção desses fatos, com seus avanços e debreagens. Os meandros da história, por vezes tortuosos, são eclipsados em benefícios dos desenlaces. No caso das bandeiras, as relações causa-efeito foram, em sua literal totalidade, mediadas pelo 124 desempenho físico-motriz. A historiografia, no entanto, não ressalta essa mediação de forma significativa, ofertando versões de resultados finais. Senão, vejamos as ênfases: o aprisionamento dos negros da terra, a expansão populacional, a expansão lindeira, a descoberta das minas auríferas, a busca de pedras preciosas, a destruição de quilombos. Para nós, a obviedade do papel desempenhado pelas atividades físicas à época das bandeiras extrapola as fronteiras da investigação científica, levando-se em conta as grandes evidências de suas implicações. Queremos dizer, com isso, que a proeminente relevância do desempenho físico no período em questão faz-se muito clara, sendo, portanto passível de ser abordada sob uma ótica que lhe confira contornos mais nítidos. O episódio do desmanche do Quilombo dos Palmares nos parece ser ilustrativo, no que diz respeito ao preterimento das atividades físicas nas páginas da história. O protagonismo do Governador de Pernambuco, Cunha Souto, do bandeirante Jorge Velho e do líder palmarino Zumbi, trespassa e domina todo o episódio da destruição do maior núcleo de escravos refugiados do Brasil Colonial. A historiografia salienta essencialmente a batalha travada na Serra da Barriga, em 06 de fevereiro de 1694, quando as tropas de Jorge Velho dizimaram a principal cidadela de Palmares, matando 200 homens e aprisionando outros 509, tendo o líder Zumbi conseguido escapar. Mais ressaltada ainda é a consumação final do esfacelamento do mocambo33 palmarino, em 20 de novembro de 1695, quando o líder bandeirante e seus comandados finalmente emboscaram e mataram o líder negro. O cruento embate se deu na garganta da Serra Dois Irmãos. Zumbi estava acompanhado de vinte negros, remanescentes do confronto na Serra da Barriga. Desses homens, apenas um foi capturado vivo. Após a refrega, o corpo de Zumbi apresentava quinze perfurações de bala e muitos pontaços de lança. Seus algozes ainda esmeraram-se em requintes de crueldade, tirando-lhe um olho, amputando-lhe a mão direita, castrando- lhe e enfiando-lhe o pê nis na boca. A quintescência do tétrico ainda estava por vir: o corpo inanimado foi degolado, sendo a cabeça acondicionada em sal fino e enviada ao Recife, para ser exibida como exemplo aos negros, que julgavam Zumbi imortal. Torna-se aqui oportuno determo-nos, momentaneamente, no que concerne ao espetáculo macabro de um corpo barbaramente mutilado. O corpo de um revoltoso. Um corpo que catalisara os anseios de liberdade dos negros. Um corpo que em vida recusara-se a escravizar -se. Um corpo que em vida fora são e perfeito, mas que ao antagonizar a servidão tombara inerte, trucidado, decapitado.33 A palavra Quilombo ainda não havia sido inventada no século XVII. 125 A cabeça de Zumbi, exposta em praça pública, foi um aviso funesto, um alerta aos cativos africanos. O corpo sente dor ... sente muita dor. As pessoas querem ser livres ... mas não desejam ser imoladas. A barbarização imposta ao corpo do líder palmarino, surtiu efeitos satisfatórios dentro do sistema colonial escravista. Que grande importância teve um corpo mutilado no Brasil de então ... que mórbida eficácia! Em outras palavras, um corpo transfigurado, que pela hediondez de sua configuração, abateu o ânimo latente dos escravos, minando-lhes as intenções de luta pela liberdade. Após a morte de Zumbi, não consta na historiografia outro foco de resistência negra de pr oporções semelhantes. Depois da martirização de Zumbi, não consta nas páginas da história uma tão significativa organização coletiva de escravos. Um corpo martirizado ... um silencioso aviso ... tétrica eficiência! É válido lembrar, que o desmembramento corporal e a degola aparecem na História do Brasil através dos séculos. O sofrimento corporal imposto aos inimigos do status quo sempre foi instrumentalizado, senão vejamos: Zumbi, em 1695; Felipe dos Santos, em 1720; Tiradentes, em 1789 e Lampião, em 1938. As atrocidades cometidas pelos regimes instituídos contra líderes subversores, sempre visaram a exemplificação, que por sua natureza repugnante, invariavelmente surtiu seus ignóbeis efeitos. O degredo ou a prisão, mesmo que perpétuos, não são exemplos tão eficientes ... que assombroso exemplo é o corpo inanimado do subversor, exposto publicamente! Como é importante o corpo! Ao abordarmos o episódio do desmanche de Palmares, oportunizou-se esta breve incursão reflexiva sobre as implicações de um corpo tr ucidado, exibido como exemplo. Tal evasão foi intencional, objetivando pautar a enormidade da importância do corpo, mesmo que morto, neste significativo fato da História do Brasil. Ainda no que diz respeito à destruição de Palmares, doravante trataremos da notável performance motora de corpo vivos , performance esta efetivada bem antes de 1694 (batalha da Serra da Barriga) e 1695 (massacre dos remanescentes na Serra Dois Irmãos). Em 1687, Domingos Jorge Velho foi contactado pela primeira vez para assumir o comando da luta contra os palmarinos. O contato foi feito pelo então Governador de Pernambuco, João da Cunha Souto Maior. Na época, Jorge Velho estava com sua tropa no Piauí, onde o levara a extraordinária mobilidade dos paulistas caçadores de índios, que se 126 espalhavam pelo Brasil inteiro. Diante do exposto, o arguto mestre-de-campo34 exigiu sesmarias35 em Palmares para ele e seus oficiais, posse de todos os negros capturados, armas, munições e alimentos. O acordo foi feito, sendo firmado através de contrato ratificado pelo Rei de Portugal. Meticuloso e experiente, Jorge Velho optou por engrossar suas tropas arregimentando homens no lugar em que confiava: São Paulo. Para tanto, o mestre-de- campo empreendeu uma espantosa caminhada de seis mil quilômetros, que o levou do Piauí a São Paulo, e de lá novamente ao Nordeste. A impressionante marcha durou um ano, custando 396 baixas às tropas do intrépido sertanista. Em requerimento ao Rei de Portugal, o próprio Jorge Velho escreveu: “... 196 homens morreram de fome ou doença e 200 desertaram dessa caminhada, a mais trabalhosa, faminta, sequiosa e desamparada que até hoje houve no sertão, ou quiçá haverá” ( GRYZINSKI 1995, p. 75). Ao voltar de São Paulo, o mestre-de-campo tinha sob seu comando 1000 homens de arco, 200 de espingarda e 84 brancos com atribuições minoritárias de mando. Tal regimento estava pronto para destruir os aquilombados, quando foi recebida uma contra- ordem emitida pelo Governador Geral do Brasil, Matias da Cunha: desviar a rota e combater os índios rebelados na Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Naquele momento, os caribis (ou tapuias) representavam uma ameaça muito maior do que os palmarinos. Os indígenas haviam matado mais de 100 colonos e dizimado 30 000 cabeças de gado, em reação ao movimento expansionista pastoril, que os desalojava de suas terras. Numa exibição cruenta de sua habilidade predatória, Jorge Velho literalmente destroçou os focos revoltosos tapuios, combatendo-os com incêndios, flechas e balas, durante quatro dias e quatro noites. A torpeza da decapitação foi praticada de forma sistemática durante a peleja. Observemos as palavras efusivas do Governador Geral do Brasil, Matias da Cunha, tecendo louvores ao sertanista paulista: penetrando lá com a sua gente no interior da campanha, queimou as principais aldeias e degolou toda a nação que nelas estava ... pelejou com elas sempre em fogo vivo, além do sem-número de arcos e seta... (GRYZINSKI, 1995, p. 75). 34 Mestre-de-campo era o nome dado na época aos chefes das bandeiras. 35 Terreno inculto ou abandonado, que os reis de Portugal distribuíam a colonos ou cultivadores. 127 A exaltação da torpitude praticada contra os índios teve ainda a part icipação do arcebispo da Bahia, que tempos depois cumprimentou Jorge Velho pessoalmente: “felicito- o por haver Vossa Mercê degolado 260 tapuias” (GRYZINSKI, 1995, p. 75). Não é preciso ter imaginação exacerbada para evocar o cenário onde a luta (ou chacina) se desenvolveu. O que pode ter restado após a contenda, senão ocas enegrecidas pela incineração e uma grande profusão de corpos decapitados? A glorificação da violência no Brasil Colonial faz-se aqui facilmente constatável, através das tendências discursivas altamente elogiosas a Jorge Velho, formuladas por dois homens de grande projeção social. Um deles, encarapitado em alto nicho hierárquico eclesiástico, e o outro, ocupante de cargo político de majoritário escalão. Destacada isoladamente de suas implicações contextuais, a felicitação do arcebispo baiano ao mestre- de-campo configura-se como a antítese de todos os princípios que regem o cristianismo. Ao cumprimentar o responsável pela decapitação coletiva de 260 pessoas, o religioso promove a negação literal do quinto mandamento36 da Lei de Deus. Não pretendemos avançar as linhas limítrofes do controvertido e complexo campo da religião. Tal observação foi tão somente motivada, para que se evidencie que, na sociedade do Brasil Colonial, os fins justificava m os meios. Para que a ordem estabelecida fosse mantida, até mesmo os mais selvagens e cimérios atos eram aprovados sem reservas ou pudores. Na verdade, o arcebispo da Bahia e o Governador Geral do Brasil foram panegiristas explícitos de Domingos Jorge Velho. Na chacina dos tapuios revoltosos, a degola praticada em larga escala antecedeu os eventos modelares de líderes subversivos já mencionados, efetivados posteriormente na história: Zumbi, Felipe dos Santos, Tiradentes e Lampião. Assassinatos perpetrados, corpos destroçados, corpos decapitados. Martírios exemplificados, corpos vivos ... temor disseminado, ideais silenciados. Inebriado pela vitória contra os índios, coroado de glória pelos panegíricos tecidos pelo Governador Geral e pelo Arcebispo baiano, Jorge Velho marchou diretamente para o Quilombo dos Palmares, comandando suas tropas com o mais exaltado dos brios. As batalhas que então se seguiram (Serra da Barriga e Serra Dois Irmãos), já foram abordadas anteriormente, quando mencionamos a predominância do protagonismo, sempre presente nos anais historiográficos. Corroborando em síntese, observamos que o episódio do desmanche do Quilombo dos Palmares é narrado sobre três pináculos salientados: 36 NãoMatarás. 128 Pináculo 1: um núcleo de escravos prófugos, liderados por Zumbi, um homem radical, com anseios intransigentes de liberdade. Pináculo 2: um sistema ainda rigidamente escravista, que, afrontado pela ameaça palmarina, faz-se representar pelo Governador pernambucano Cunha Souto, contratando os serviços de um sertanista com grande experiência em morticínio, visando a extinção do mocambo. Pináculo 3: um bandeirante tenaz, um comandante sanguinário – Domingos Jorge Velho – que, em troca de benesses, aniquila o Quilombo dos Palmares. Nota-se, nitidamente, que este prisma narrativo – que é o que consta na historiografia – enfoca primeiramente as partes envolvidas de forma fragmentária para, em seguida, partir em busca da objetivação final, da consumação do fato em pauta. Entendemos ser isto nada mais nada menos que a Histoire Événementielle (História dos Acontecimentos), tão desdenhosamente criticada pelo historiador alemão Karl Lamprecht, ainda no início do século XX, portanto, antes que Lucien Febvre e Marc Bloch viessem também a rechassá-la duramente. A histó ria brasileira, mormente nos livros didáticos, denota uma grande gama de elementos do paradigma tradicional ou rankeano. No episódio da destruição do mocambo palmarino, são pautadas em ênfase as refregas entre os comandados de Zumbi e as tropas de Jorge Ve lho, ou seja, são relatados os acontecimentos. Fernand Braudel, em Mediterranean, rejeita a história dos acontecimentos, como não mais que a espuma nas ondas do mar da história. Entendemos a derrocada final de Palmares tão somente como as espumas das ondas de um fato extenso, multifacetado e complexo, onde facetas de importante relevância jazem no mais recôndito fundo do mar , mergulhadas no ostracismo. A queda do núcleo palmarino, da mesma forma que outros episódios vultosos do bandeirismo, parece-nos estar na superfície do oceano da história, encimando e obscurecendo elementos estruturais importantes, no que tange à mobilidade sertão adentro. Senão vejamos: desde os primórdios da Vila de Piratininga, acossados por um viver marcado por necessidades variadas, os paulistas empreenderam incursões sertanejas à cata de índios. Lembremo-nos que estas primeiras expedições ocorreram ainda no início da segunda metade do século XVI, logo após a afixação dos iniciadores do povoado planáltico. Já a campanha palmarina de Jorge Velho teve seu fecho na última década do século XVII, em 1695, portanto quase no alvorecer dos oitocentos. Cronologicamente, aproximadamente cento e cincoenta anos separam as marchas sertanejas iniciais da empreitada contra o núcleo de escravos instalado na Serra da Barriga. Pretendemos dizer 129 com isso, ao evocar este considerável espaço de tempo, que o deslocamento corporal através da jornada a pé, constitui-se aqui (no episódio de Palmares) como conseqüência de elementos estruturais provindos do modus vivendi do planalto de São Paulo. Observemos o que escreveu Braudel: La larga duración es la historia interminable e indesgastable de las estruturas. Para el historiador una estrutura no es solamente arquitectura, ensamblaje. Es permanencia; com frecuencia, más que secular (el tiempo es estructura) (BRAUDEL apud PRIETO, 1995, p. 96). Ao empurrar os primeiros sertanistas para o interior do continente, a miséria planáltica contribuiu para a instalação de um modo de vida específico, onde a formação de bandeiras e as jornadas a pé passaram a integrar o cotidiano dos moradores. Brancos, índios e mamelucos partiam para regiões cada vez mais longínquas, visando o apresamento dos negros da terra ou o encontro de jazidas minerais. A Câmara de São Paulo, enquanto poder político constituído, por sua vez, apoiava de forma nítida as expedições bandeirantistas. Desta forma, uma vez fazendo parte dos hábitos da população, e ainda alicerçadas pela oficialidade formal do poder constituído, as incursões florestais configuraram-se como iniciativas apoiadas por elementos estruturais 37, considerando-se aqui como elementos estruturais a aquiescência e icentivo dado às expedições pelo poder político paulista. Entendendo ainda que el tiempo es estructura, como observou Prie to, podemos considerar a própria marcha de Jorge Velho como elemento estrutural propriamente dito, uma vez que o caminhar agreste era costume más que secular entre os paulistas. Natural de Santana do Parnaíba, Jorge Velho cresceu e viveu no universo bandeirantista do século XVII, absorvendo os conceitos e referências daquela sociedade onde o sertanismo era praticado não apenas como necessidade de subsistência, mas também como alternativa para a obtenção de prestígio social. Até mesmo a ancestralidade de Jorge Velho aponta para os dois elementos étnicos constantes nas bandeiras, ou seja, o europeu e o índio brasileiro. Quanto a isso, escreveu Holanda em Raízes do Brasil: ... Domingos Jorge Velho, o vencedor dos Palmares e desbravador do Piauí. Na ascendência do grande régulo parnaibano o elemento português predomina francamente, embora, para acompanhar a regra, não isento de mestiçagem com o gentio, pois se não falham os genealogistas, foi tetraneto, por um lado, da filha de Piquerobi e, por outro, da tapuia anônima de Pedro Afonso (HOLANDA, 1981, p. 91). 37 Refiro-me aqui não à estrutura de longo tempo, mas à estrutura específica da sociedade do planalto. 130 Jorge Velho, possuía, portanto, sangue mameluco, assim como uma enorme parcela dos bandeirantes. Contudo, isso não é o fator principal que pretendemos enfocar no momento. Queremos sobretudo evidenciar que este mestre-de-campo foi produto de sua própria época, um homem de seu tempo, que absorveu os determinismos da estrutura social em que estava inserido. Nessa estrutura social, como primitiva contingência histórica impulsionada pela miserabilidade, despontavam as extensas marchas sertanejas, que com o escoar do tempo (long duré), configuraram-se, elas próprias, como elementos estruturais, presentes na mentalidade do povo paulista e na cúpula de seu poder político. Jornadear pelas matas, seja apresando autóctones ou buscando minérios preciosos, era algo tão profundamente assimilado pelos paulistas, que em algumas ocasiões o altiplano vicentino ficava com uma notável parcela de sua população ausente. Sobre isso, vejamos as palavras de Taunay: Nada mais expressivo do que certos tópicos de atas de vereança como por exemplo, a de 20 de fevereiro de 1666, onde se fala da notificação feita a ‘alguns capitães que vão para o sertão’ ou a de 29 de novembro do mesmo ano, em que o escrivão municipal nos conta que ‘a maior parte dos moradores desta vila estava no Sertão’ (TAUNAY, 1951, p. 109). Em 1666, grande parte do povo de São Paulo estava no sertão. Em outras palavras, grande parte do povo de São Paulo estava em atividade física no sertão, experimentando as fadigas corporais no meio selvagem. Sessenta e quatro anos antes, 1602 portanto, ainda no prorromper do século XVII, já havia sido verificado um considerável esvaziamento populacional no planalto de Piratininga. Nessa oportunidade, diversos homens de significativa importância política deixaram seus postos de trabalho para palmilhar as matas. Vejamos as palavras de Azevedo: Praticamente, a vila ficou despejada de seus moradores, como então se dizia. Quase todos os oficiais da câmara – Baltazar Gonçalves, vereador, Ascenso Ribeiro e Henrique da Cunha, juízes ordinários, e Jorge de Barros Fajardo, procurador do conselho – deixaram os seus cargos para listar -se na tropa do capitão Nicolau Barreto. Tanto assim que a 08 de setembro de 1602 se realizavam eleições para a substitu içãodos ausentes (AZEVEDO, 1971, p. 17). Entendemos que isso sugere que a formação de bandeiras, e conseqüentemente o caminhar pelo sertão, inseria -se numa perspectiva de evidentes implicações estruturais, uma vez que não poucos homens revestidos da oficialidade do poder – e por conseguinte 131 ocupantes de não baixos patamares na estratificação social do planalto – não apenas eram cordatos com a organização de expedições, como também participavam, eles próprios, dos avanços a pé pelo interior da América. Homens de funções burocráticas, que se lançavam à mobilidade em paragens selváticas. As marchas continente adentro, sejam elas consideradas primitivamente como contingências históricas, ou como propriamente – num tempo posterior – desdobramentos de elementos estruturais, são por nós também entendidas, em termos nítidos e simples, como desempenho corporal intenso. O bandeirismo foi um histórico fenômeno de irrefragável movimentação corpórea, a despeito de trazer consigo várias facetas, como já o dissemos. Entendemos já ter abordado algumas destas facetas, como a contingência histórica e os elementos estruturais. Fizemos isso, buscando um entendimento mais eficaz no tocante à campanha de Jorge Velho ante o núcleo de Palmares. Nesse episódio do bandeirismo avultou-se sobremaneira uma importante particularidade ou faceta, e que também é a que postulamos: as atividades físicas. Salientamos, no entanto, que parece-nos evidente que não se trata apenas de uma questão de postulado, já que o rendimento corpóreo-motor efetivamente desempenhou um papel muito aparente, no mínimo majoritário, no que concerne a Palmares. Observemos portanto: um grupo de homens incultos e rudes caminhando pela mata, liderado por um mestre-de-campo acostumado à dura mobilidade sertaneja. Um grupo de homens vencendo os mais escabrosos acidentes geográficos e as mais espessas brenhas. Um grupo de homens reduzido pelas baixas, chegando a São Paulo, tendo partido do Piauí. Um grupo de homens que, engrossado por novos arregimentados, regressa ao Nor deste, recebe uma contra-ordem e estende a marcha até o Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. Um grupo de homens que, após combater os tapuios por quatro dias nos extremos do Nordeste, marcha até a Serra da Barriga, para dizimar os negros aquilombados! Um percurso certamente exaustivo de seis mil quilômetros, adicionado aos esforços das pelejas. Tudo isso em um ano ... Que ano sedentário para Jorge Velho e seus comandados! Caminhar, caminhar, caminhar ... Passar noites e noites, em cercos38 aos núcleos adversários. Combater, combater, combater ... Empunhando mosquetes, facões, lanças, flechas e alfanjes. Razoável esforço físico! 38 O cerco à cidadela de Zumbi, na Serra da Barriga, durou 21 dias; e o confronto com os índios tapuios durou 4 dias e 4 noites. 132 Para nós, a performance corporal foi fator importante para que o desmoronamento do mocambo de Palmares se consumasse. Nos preparativos para os combates, as atividades de recrutamento - que foram seletivas e buscaram os homens de guerra mais aptos (os paulistas) - propiciaram uma marcha que passou por vários estados brasileiros. Vale ressaltar, que a nutrição inadequada e insuficiente foi um dos percalços significativos dessa caminhada verdadeiramente notável. Somemos a isso as doenças tropicais, a natureza selvagem, o peso dos víveres e equipamentos, os dispêndios energéticos com as atividades de coleta e caça ... Racionalmente, acreditamos ter sido essa empreitada um feito físico de envergadura impressionante, tendo também, corroboremos ainda uma vez mais, sido evidentemente decisivo, e não merecedor de estar submergido, muitas braças abaixo da espuma nas ondas do mar da história, como escreveu Fernand Braudel. Se o jesuíta Ruiz de Montoya expressou seu assombro com uma marcha bandeirante de dois mil quilômetros, – como se passeassem na ruas de Madri – o que diria ele da caminhada de Domingos Jorge Velho, que cobriu o triplo dessa extensão? Mencionemos outro passeio : entre 1648 e 1651, a bandeira de Antônio Raposo Tavares percorreu de dez a doze mil quilômetros, a pé e de canoa, de São Paulo ao Paraguai, e de lá até Mato Grosso, Amazonas e Pará. Como se expressaria o civilizado padre sobre essa marcha sertaneja, que cobriu talvez o sêxtuplo da extensão daquela que o assombrou? Não sabemos o que diria Montoya, porém vejamos o que escreveu Monteiro: Em 1651, após uma longa marcha pelos sertões, alguns remanescentes da grande expedição do mestre-de-campo Antonio Raposo Tavares chegaram a Belém do Pará, tão castigados por doenças, fome e ataques de índios que, segundo o Padre Antonio Vieira, ‘os que restavam mais pareciam desenterrados que vivos’. No entanto, acrescentava o mesmo padre, a viagem ‘verdadeiramente foi uma das mais notáveis que até hoje se tem feito no mundo’: durante três anos e dois meses os integrantes da tropa haviam realizado um ‘grande rodeio’ pelo interior do continente, embora nem mesmo soubessem por onde andavam. Perdidos na imensidão da América, só descobriram que haviam descido o grande rio Amazonas quando sua precárias e improvisadas embarcações alcançaram o entreposto militar do Gurupá, na foz do Xingu, sendo disto informados pelos estarrecidos soldados do forte (MONTEIRO, 1994, p. 07). Observemos agora, sobre a mesma bandeira, as palavras de Cortesão: A maior e mais árdua de quantas expedições ... se realizaram em toda a América, não só até sua data, mas ainda até aos começos do século XIX. Pondo de parte o trajeto andino e considerando apenas o percurso fluvial, do Tietê ao Paraguai, e daí por terra ao Guapaí, e, baixando por ele, o Mamoré, o Madeira e o Amazonas até Belém, esse vasto périplo 133 mede 10 000 quilômetros ... se lhe acrescentarmos a travessia do Chaco, as explorações desde os morros chiquitanos para oriente e os desvios e flutuações da grande aventura na região andina, ela terá excedido, por certo e de muito, os 12 000 quilômetros (CORTESÃO, 1958, p. 400). Pela peculiaridade da bandeira de Raposo Tavares, que além de marchar utilizou-se da navegação, oportuniza-se aqui a citação das palavras de Holanda, aludindo aos devassadores do sertão: Sóbrios, tenazes, afeitos à fadiga (...) A energia física, necessária a muitos destes empreendimentos, dispensava de ordinário qualquer ajuda, a não ser em face de obstáculos mais poderosos. Assim, diante dos rios maiores, rios de canoa, como se chamavam, era forçoso interromper a marcha a pé. E também não faltavam ocasiões em que os rios, deixando de ser um estorvo para o caminhante, se transformavam eles próprios em caminhos – ‘os caminhos que andam’ (HOLANDA, 1990, p. 18). Doravante, buscando nossas considerações derradeiras no que diz respeito à intensa mobilidade do bandeirantismo no Brasil, mencionaremos as expedições que marcaram o crepúsculo das grandes marchas a pé, antes do advento das monções. Em 1718, a bandeira de Pascoal Moreira Cabral descobriu ouro no rio Coxipó- Mirim, no centro geográfico de Mato Grosso. Em 1722, portanto quatro anos depois, os índios meleiros de Miguel Sutil encontraram o ouro de aluvião, que brotava à flor da terra, no local onde nasceria a Vila de Cuiabá. Também em 1722, Bartolomeu Bueno da Silva (filho) experimentava o sofrimento da fome, em um remota chapada goiana, assistindo à morte de quarenta de seus homens, por inanição absoluta. Três anos depois, em 1725, o próprio Bueno da Silva (filho) liderando a última bandeira típica de que se tem notícia 39, descobria minas auríferas em Goiás. A descoberta ensejou um grande afluxo populacional para o Planalto Central, propiciando a aberturade um caminho terrestre para Goiás, mais tarde prolongado em mil quilômetros até Cuiabá. Iniciou-se assim, o que alguns autores chamam de ciclo do muar: as expedições partiam de São Paulo com mulas carregadas, passando por Goiás e por fim chegando à Mato Grosso, onde as mercadorias transportadas eram comercializadas. Por essa época, as monções, expedições sertanistas que se utilizavam da navegação fluvial, robusteciam-se e tornavam-se prioritariamente a alternativa de locomoção rumo a Cuiabá. As monções partiam do Planalto Paulista pelo rio Tietê, transpondo 113 (cento e treze) cachoeiras, antes de chegar ao seu destino final, o Arraial do Ouro de Aluvião. 39 FILHO, S., Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas, p. 04. 134 Muitas dessas quedas d’águas eram perigosas, catadupas vertiginosas, repletas de pedras avolumadas e cobertas de limo. Nesses pontos, que não eram raros, “fazia-se necessário passar por terra, arrastando as canoas ou guindando-as com cordas, no que se gastava muito tempo e trabalho” (HOLANDA, 1990, p. 76). Em alusão específica a certo trecho do caminho, onde as quedas são quase ininterruptas, próximo à Barra do Orelha de Onça, Holanda escreveu: ... uma série de rochedos, de cerca de dez metros de altura, que cortam transversalmente o rio. Neste ponto era indispensável esvaziar completamente as canoas e transportar a carga por terra, num varadouro de quinhentos metros ... Os trabalhos eram efetuados sobre o barranco íngreme da margem oriental, à custa de grande esforço, e ainda hoje não se apagou de todo o sulco ali deixado pelos serviços de varação durante mais de um século (HOLANDA , 1990, p. 80). Parecem ser bem nítidos os grandes esforços corporais realizados pelos monçoeiros, que também combatiam a resistência dos índios Payaguás, Caiapós e Guaicurus, silvícolas de grande ânimo guerreiro e famosos pelo seu porte físico avantajado e desempenho motriz acima da média. As monções setecentistas desempenharam um papel importantíssimo para a nova configuração político-demográfica do Brasil Colonia l, posto que ensejaram uma nova movimentação mercantil, distante do Nordeste, região que retinha o poder econômico na época. A descoberta do ouro pelas bandeiras – pouco antes das monções – em Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais, provocou aos poucos um deslocamento populacional muito grande para essas regiões. Vejamos as palavras de Ellis: Localizado o ouro, terminavam as entradas, substituídas pelo povoamento propriamente dito em torno das lavras, dos arraiais e das vilas, atraído pelos interesses que a mineração proporcionava e que inauguram na história do Brasil uma nova época ( ELLIS, 1989, p. 296). Cerca de oitocentas mil pessoas deslocaram-se da Metrópole atraídas pelo ouro brasileiro, e dentro da própria Colônia, houve um imenso movimento migratório , em que as populações do Nordeste e do Extremo Sul dirigiram-se para as proximidades das minas auríferas, mormente as de Minas Gerais. Destarte, em outras palavras, o eixo populacional do Brasil transferiu-se do Nordeste para o Sudeste e Centro-Oeste. Com o tempo, o próprio centro político da 135 Colônia aproximou-se da região mineira, com a transferência da capital, de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763. Sobre a estreita relação entre densidade populacional e poder político, escreveu Vilar: “... A demografia é um fenômeno fundamental e influi no destino político dos diferentes países” (Vilar apud Dáléssio, 1998, p. 36). Atualmente, vivemos a herança desse deslocamento populacional ocorrido no século XVIII, traduzido na densamente povoada região Sude ste. Observemos o que escreveu Volpato: “os bandeirantes devassaram o sertão e descobriram riquezas, que foram o móvel da fixação do povoamento nas regiões mais centrais do continente” (VOLPATO, 1985, p. 101). Simulando neste momento ignorar o desbravamento encetado pelo bandeirismo, formulamos as seguintes perguntas: O deslocamento demográfico, político e mercantil no Brasil-Colônia ocorreu em conseqüência do ouro ... Mas quem descobriu o almejado metal? E de que forma aconteceu a descoberta? O ouro esta va no quintal das casas de seus descobridores? Terá sido encontrado num regato próximo, onde era coletada a água para o consumo? À guiza de resposta à nossa ignorância hipotética ou virtual, entendemos ser lícito, além de óbvio, afirmar que todas essas t ransformações - política, mercantil e demográfica - tiveram suas configurações embrionárias na extrema mobilidade dos componentes das bandeiras, que trouxeram à luz as minas auríferas, que jaziam desconhecidas nas mais inospitaleiras regiões dos sertões. Fadiga, exaustão extrema, fome, doença e combates com silvícolas propiciaram uma situação germinal, que atingiria sua culminância na verdadeira metamorfose demográfico-política, observada na configuração contextual do Brasil Colonial. Entendemos ser ilibada a afirmação de que, a intensa migração para as regiões mineiras teve como causa primordial as marchas bandeirantes. Em outras palavras, acreditamos que a acentuada mudança na configuração contextual do Brasil Colônia ocorreu em conseqüência do bandeirantismo. Acrescentamos ainda, em apêndice, que a herança dessa transformação é atualmente por nós vivenciada, como o atesta a densa demografia da região Sudeste. Entendemos ter sido a espantosa mobilidade dos bandeirantes uma das causas principais (senão a causa das causas, causa causorum) da transferência do poder político colonial, da Bahia para o Rio de Janeiro. Numa só frase, as caminhadas sertanejas dos bandeirantes mudaram a face do país e os ecos dessa mudança reverberam até hoje. O que 136 é o progresso de São Paulo atualmente senão um de “los llegados tarde a la historia?” (PRIETO, 1995, p. 112). Embora evidente, o papel do desempenho corporal carece de contornos mais nítidos na historiografia, que lhe confiram a justa e merecida relevância. O historiador Edward Hallet Carr, citado por Prieto, ironiza a ausência de estudo das causas, que invariavelmente traduz-se num entendimento simplista e dissociado dos fatores determinantes mais profundos, abaixo da superfície dos fatos históricos. Observemos suas ácidas palavras: ... puede leerse o escribirse acerca de los acontecimientos del passado sin tratar de saber por qué ocurrieron, o decir sólo que la Segunda Guerra Mundial tuvo lugar porque Hitler la queria, lo que es perfectamente cierto, pero no explica nada. Pero no entonces debe uno abstenerse de cometer la idiotez de llamar -se estudiante de historia o historiador ... El estudio de la historia es un estudio de causas, ... (CARR apud PRIETO, 1995, p. 85-6). Causa entre causas, causa das causas ou causa causorum ... No palmilhar a mata virgem, no apresar índios, no vadear corredeiras ameaçadoras, no dispersar mocambos, no transpor morrarias, no trazer à luz o ouro, os bandeirantes causaram muita coisa. Porém, o aspecto de rendimento físico de seus feitos jaz escondido nos anais da história, quase tão oculto quanto o ouro que encontraram nos mais recônditos grotões do Brasil.