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investigações filosóficas sobre o direito de propriedade - Brissot

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Prévia do material em texto

Investigações filosóficas sobre o 
direito de propriedade
 considerado na natureza
 
Jacques Pierre Brissot
Cultura e Barbárie
Desterro, 2015 
PARRHESIA
COLEÇÃO DE ENSAIOS παρρησία
Investigações filosóficas sobre o 
direito de propriedade
 considerado na natureza,
para servir de primeiro capítulo à 
Teoria das Leis, de M. Linguet.
por um jovem filósofo
Título Original
Recherches philosophiques sur le droit de propriété considéré dans la nature, 
pour servir de premier chapitre à la “Théorie des lois” de M. Linguet [1780]
Tradução
Felipe Vicari de Carli
Revisão
Fernando Scheibe e Alexandre Nodari 
Diagramação
Alexandre Nodari 
Conselho Editorial da C&B
Alexandre Nodari, Flávia Cera, Leonardo D’Ávila e Rodrigo Lopes de Barros
Cultura e Barbárie Editora
 
www.culturaebarbarie.org | editora@culturaebarbarie.org
Caixa Postal 5348 - Curitiba/PR - CEP: 80040-981
 B859i Brissot de Warville, J.-P. (Jacques-Pierre), 1754-1793.
 Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade considerado 
 na natureza, para servir de primeiro capitulo à Teoria das Leis, de M. 
 Linguet, por um jovem filósofo / Jacques Pierre Brissot; tradutor Felipe 
 Vicari de Carli. – Desterro [Florianópolis] : Cultura e Barbárie, 2015.
 64p. – (PARRHESIA, Coleção de Ensaios)
 
 Tradução de : Recherches philosophiques sur le droit de propriété 
 considéré dans la nature, pour servir de premier chapitre à la “Théorie 
 dês lois” de M. Linguet [1780].
 ISBN: 978-85-63003-22-5
 
 1. Filosofia moderna ocidental. 2. Filosofia política. I. Título. II. Série. 
 
 CDU: 1
Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071
Sumário
A propriedade originária 
Alexandre Nodari 7
Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade
Jacques Pierre Brissot 11
Nota do autor 13
Prefácio 15
Seção Primeira: 
O que é a propriedade? 
Sua origem; exame da sua extensão, sua definição. 17
Seção II
Por que se é proprietário? 23
Seção III
Quais são os proprietários? 33
Seção IV
Sobre o que o direito de propriedade pode ser exercido? 41
Seção V
Pode-se alienar o direito de propriedade? 55
Conclusão 61
A propriedade originária
Alexandre Nodari
1. Jacques Pierre Brissot, o girondino Brissot de Warville, como mui-
tos outros revolucionários franceses que tanto defenderam o uso 
político guilhotina, acabou morrendo nela em 1793, aos 39 anos de 
idade. Durante a Revolução, advogou arduamente a guerra preven-
tiva para proteger a França das ameaças das monarquias circundantes, 
guerra que caracterizava como sendo em nome da humanidade - algo a 
que estamos assistindo cada vez mais frequentemente. Mas justamente 
onde parece defender mais arduamente um princípio da Revolução, um 
daqueles “direitos naturais e imprescritíveis do homem” da Declaração 
de 1789 – a propriedade – é que Brissot não coincide com ela. Pois as 
Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade, aqui publicadas na 
excelente tradução de Felipe Vicari de Carli, e atribuídas ao girondino 
(na folha de rosto, somos informados apenas que a obra foi composta 
por “um jovem filósofo”), operam uma das críticas mais violentas e bem 
formuladas à forma jurídica da propriedade. Segundo Marx, é dessa obra 
que Proudhon extrai (rouba?) sua famosa formulação – “a propriedade 
é um roubo” –, embora aqui ela apareça de forma levemente diferente: a 
“propriedade exclusiva é um verdadeiro crime na natureza” (p. 31; grifo 
nosso). Essa diferença mínima, contudo, tem o máximo efeito, pois o 
“crime” para Brissot não é a propriedade em si, mas o caráter de exclu-
sividade (de exclusão dos demais como proprietários) que a acompanha 
na “sociedade”. Desse modo, em um paradoxo só aparente, o que ele 
advoga para evitar tal crime é a universalização do direito de proprie-
dade: “O direito de propriedade que a natureza concede ao homem não 
é restringido por nenhum outro limite que o da necessidade satisfeita, 
ele se estende sobre tudo e a todos os seres. Esse direito não é exclusivo, 
é universal. Um francês tem na natureza tanto direito sobre o palácio 
do Mogol, sobre o serralho do Sultão, que o Mogol e o Sultão mesmos” 
(p. 49). Como se vê, universal não deve ser confundido com absoluto – a 
propriedade tem um limite: a satisfação da necessidade (que é, para o 
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LEMOS
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LEMOS
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LEMOS
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autor, variável). Aqui, a aparência de paradoxo se desfaz, dando lugar a 
um princípio vital da teoria de Brissot: na natureza (as condições ideais 
de temperatura e pressão desse livro), “a necessidade é o único título de 
propriedade”, assim como a “sua satisfação é seu único termo” (p. 49). 
Para o autor, a propriedade é tão universal quanto efêmera; abarca a 
tudo e a todos, mas está limitada temporalmente pela necessidade e sua 
satisfação. Dito de outro modo: a propriedade natural não é um estado, é 
uma situação. E por isso, nada, ninguém, nenhum ente externo, nenhum 
Estado pode garanti-la.
2. A “natureza” (o “direito de propriedade considerado na natureza”) evo-
cada por Brissot é tão ficcional quanto sua referencialidade é concreta 
e heteróclita, como sói acontecer com todas as variantes dessa figura na 
filosofia política moderna, de Hobbes a Rousseau: os nativos da Amé-
rica, mas também os da África, do Taiti, etc., aproximados, além disso, 
aos “Autóctones” da Grécia (pré-)antiga. Mas ao contrário do Leviatã, 
essas Investigações não tomam a “natureza” como algo sobre o qual o Estado 
deve se fundar (ou seja, algo que o Estado deve afundar), mas a mobili-
zam justamente para, numa comparação centrífuga, deslocar o Estado 
(atual), mostrar a sua contingência (e a da história). E não é só pelas 
referências positivas ao “selvagem” como modelo em relação ao qual o 
homem da “sociedade” se empalidece (ainda mais) que esse livro lembra 
o clássico ensaio de Montaigne; é também, e especialmente, pela defesa 
do canibalismo. Pois o selvagem de Brissot não é o “bom selvagem” de 
Rousseau; sem papel algum que lhe autorize, ele se apropria do que 
necessita, até mesmo do corpo de seus inimigos. “Esses selvagens creem 
ter tanto direito sobre os cadáveres de seus inimigos quanto os corvos ou 
os vermes”, afirma o autor, que logo assevera a legitimidade de tal pre-
tensão: “por que não se alimentariam disso? (...) Os indivíduos de cada 
espécie podem (...) exercer seu apetite sobre os indivíduos de sua espécie, 
pela mesma razão que podem fazê-lo sobre indivíduos estranhos à sua 
classe” (p. 45-6). E como era de se esperar, sem Rei, nem Lei, o selvagem 
canibal de Brissot tampouco tem Fé: “Ele não precisa de sacerdotes para 
atar seus laços, de templo para consagrá-los. Sua necessidade, eis aí seu 
título; o céu é a testemunha de seu amor, a natureza é seu templo” (p. 27). 
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Desse modo, a comparação entre “natureza” e “sociedade” permite às 
Investigações traçar uma relação inesperada (e totalmente inversa ao teo-
rema hobbesiano) entre o caráter universal da propriedade e a ausência da 
forma-Estado em todas as suas manifestações (da soberaniaao sacerdó-
cio, passando pelos títulos legais de patrimônio): é só quando todos têm 
direito a tudo (no “estado de natureza”) que se pode falar propriamente de 
direito de propriedade.
3. Mas a natureza considerada por Brissot vai mais longe, não se restrin-
gindo à natureza humana. A propriedade universal dessas Investigações 
não é humanamente universal, é universalmente universal: não só também 
os animais, mas até mesmo as plantas (sobre as quais Brissot não está 
convencido de que não sintam ou gozem) têm direito de propriedade. 
Universal, a propriedade é extensível a todos os seres, e extensível nos 
dois sentidos: todos podem ser sujeitos proprietários e também objetos da 
propriedade alheia. Por isso, os animais podem legitimamente ser pro-
prietários de (nosso) corpo humano, e consumi-lo: são antropófagos de 
(e com) pleno direito. A argumentação de Brissot parece girar sempre 
em torno da alimentação, a ponto de, em uma variante da formulação 
já citada, ele afirmar que “O amor é o único título do gozo, como a fome 
é o da propriedade” (p. 27; grifo nosso) Na natureza, tudo é devoração: a 
alimentação (canibal, pois, segundo o autor, ela é o consumo das mes-
mas partículas de que somos feitos) seria algo assim como a expressão da 
termodinâmica, e o direito de propriedade natural, as leis desta. Curio-
samente, Brissot, fazendo uso da propriedade universal que a natureza 
lhe concede, aparece nesse livro ele próprio como um antropófago, ainda 
que em outro sentido, na medida em que se apropria de trechos de diver-
sos autores, às vezes sem nomeá-los (o caso mais emblemático talvez 
sejam as passagens extraídas - copiadas - do clássico ateísta Système de la 
nature, do Barão d’Holbach). 
4. Como toda teoria que nega o exclusivismo (humano) da propriedade, a 
de Brissot constitui, portanto, uma crítica ao antropocentrismo e mesmo 
à noção moderna de sujeito, advogando um monismo (ou algo como um 
materialismo selvagem e/ou sensível). Por isso, este não é apenas um livro 
10
sobre o direito de propriedade, nem mesmo só sobre o direito natural: é 
um tratado sobre a matéria, a natureza, a vida e, especialmente, o sensí-
vel, incluindo uma bela teoria (provavelmente de inspiração aristotélica) 
sobre o tato como único sentido. Se “Todos os corpos têm a (...) quali-
dade (...) de abalar e ser abalado alternadamente”, e “o tato não é mais do 
que a aplicação de um corpo sobre outro”, então ele “é a única maneira 
de sentir que temos. Mas há diferentes maneiras de exercê-lo, de acordo 
com as diferentes qualidades dos corpos que causam e recebem esses 
abalos” (p. 38). Poderíamos arriscar dizer, assim, que a universalização 
do direito de propriedade – ao colocar abaixo “essas fossas, esses muros” 
que cercam “parques imensos”, “essas barreiras” que proíbem “o acesso” 
de “patrimônios”, prova de “tirania” e não de “propriedade” (p. 29) – é 
uma universalização da possibilidade do contato. Possuir seria, se estamos 
corretos, fazer contato, afetar e ser afetado: ser proprietário é abrir-se 
ao toque daquilo que se possui, e não negá-lo (objetificá-lo). No limite, 
a universalização proposta por Brissot implicaria a impossibilidade de 
discernir quem é sujeito e quem é objeto na relação de propriedade, ou 
melhor, de se definir a estabilidade (a estatalidade) dessas posições: sendo 
uma situação, e não um estado, a propriedade é sempre instável. 
5. Para encerrar, é possível afirmar que as Investigações filosóficas sobre o 
direito de propriedade inauguram (sem nenhuma originalidade, já que seu 
texto também está composto, como vimos, de apropriações de passagens 
alheias) uma linhagem de crítica à propriedade distinta daquela que dará 
no socialismo (e mesmo no anarquismo de Proudhon), na medida em 
que não visa à sua abolição, e sim à sua universalização. Linhagem torta 
e incerta, de autores que talvez não tenham se lido, que de Brissot vai a 
Max Stirner e seu egoísmo anti-narcisista, desse à monadologia de Gabriel 
Tarde e sua noção de “possessão recíproca”, chegando até, por fim, à 
Antropofagia oswaldiana e sua teoria da “posse contra a propriedade”. 
Em 1780, avant la lettre, Brissot parecia já enunciar aquela máxima do 
Manifesto Antropófago: a de que a Revolução Francesa legaria uma “pobre 
declaração dos direitos do homem”, intuindo, assim, que a verdadeira 
riqueza jurídica está naqueles direitos (antes de - e contra - qualquer 
Estado) que mais tarde seriam chamados de “originários”. 
LEMOS
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LEMOS
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Si ad naturam vives, numquam eris pauper;
si ad opinionem, numquam dives.
[Se vives de acordo com a natureza, jamais serás pobre; 
se de acordo com a opinião, jamais rico.]
 
sêneca, Epist. 16.
.
Nota do autor
Este opúsculo estava composto quando o primeiro volume da Théorie des 
loix [Teoria das leis] me caiu às mãos. Vi com surpresa que seu eloquente 
autor, ao desenvolver com tanta força a origem da propriedade social, não 
havia sequer roçado o capítulo da propriedade natural. Estas investiga-
ções poderão suprir-lhe; se elas não têm o colorido sedutor com que o 
autor dos Anais embeleza todas suas produções, têm ao menos o caráter 
da verdade.
O sistema que se estabelece aqui é estranho; poderá revoltar alguns 
leitores; a boa-fé que o ditou deve desarmá-los.
Prefácio
Fala-se todos os dias de propriedade, sem se conhecer a verdadeira sig-
nificação desta palavra. Mesmo aqueles que se destinam ao estudo do 
homem e de seus direitos, exaltam a todo instante as leis sagradas da pro-
priedade, e ignoram no entanto seus atributos, sua extensão, sua origem. 
Está-se tão acostumado a repetir o que os outros pensaram, que seus 
sistemas, embora ridículos, ainda assim encontram admiradores. O auto-
matismo nunca se cansa; e cumprir a tarefa do homem que pensa oprime 
estes cérebros frágeis que imaginam que não há proveito em raciocinar 
porque há dois ou três séculos alguém o fez. Trata-se de algo que se ve-
rifica todos os dias. Grita-se por toda parte que tudo está esgotado, que 
um pensamento novo é uma quimera, que nos devemos limitar a conferir 
graciosamente uma nova roupagem aos pensamentos daqueles que nos 
precederam. Semelhante absurdo, despejado com confiança, faz desapa-
recer a ousadia de se ser original, para deixar apenas a inerte mania de se 
copiar. Assim, na maioria das ciências, quem leu um autor, leu-os todos. 
Um pintor expõe uma cinquentena de cabeças, e jamais se vê mais do que 
uma. Eis os escritores de nossos dias. Essa doença epidêmica produz um 
desalento em todas as ciências. Não aprofundamos, porque imaginamos 
que tudo já está aí.
É sobretudo na jurisprudência que encontramos o preconceito de 
que se fala aqui. Tão logo alguém cita uma sentença, um autor, o oráculo 
falou. Dixit Calchas, obstupuere Pelasgi [Assim falou Calcas, e os pelasgos se 
maravilharam].
É a destruir esta funesta crendice que todo homem de bem deve apli-
car-se com ardor. Eis o motivo que produziu este opúsculo; ele o será de 
tudo aquilo que virá na sequência.
Este tratado não é longo; mas uma casa pequena abrigava Sócrates. 
Este opúsculo não é feito para todo mundo. Mulheres, não falamos aqui 
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de moda; ignorantes e vaidosos, fechai este livro, ele vos fará dormir; eru-
ditos, aqui há poucas citações; juristas, não se veem aqui vossos precon-
ceitos consagrados; filósofos... o que resta deles? Só há uma única espécie 
a quem este livro poderá ser útil. Lede Lamétrie, ele vos a nomeará.
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17
Seção Primeira
O que é a propriedade? sua origem; exame 
da sua extensão, sua definição.
Não podemos adaptar à propriedade natural a definição que todos nos-
sos jurisconsultos dão deste direito quando considerado em sociedade. 
Estando este último fundado somente sobre o capricho dos primeiros 
legisladores, variável consequentementepor natureza, não é de modo 
algum e não pode constituir o direito imutável, inalienável, da proprie-
dade primitiva, de que a existência dos seres é o título e o fim. Vamos nos 
perder muito menos remontando à origem desse direito que seguindo as 
rotas tortuosas traçadas pelos jurisconsultos.
Há no universo certa quantidade de movimento difundido; é isso o 
que a experiência nos atesta. Os corpos, que são apenas modificações di-
ferentes da matéria, princípio no qual reside esse movimento, têm deste 
uma parte maior ou menor. Não é, em absoluto, em razão da grandeza 
que os corpos gozam do movimento, dado que as pirâmides e os mais 
imensos colossos parecem não o ter. Não é, em absoluto, em razão da 
pequeneza, dado que a mais diáfana, a mais livre partícula de poeira não 
tem dele mais do que um impulso; mas é em razão da organização que o 
movimento e a vida, que é seu sinônimo, são atribuídos. Os corpos mes-
mos não passam de produtos do movimento. Com efeito, sem ele, não 
há nada de mescla, nada de combinação, e, consequentemente, nada de 
corpo. Sem a mistura de ácido vitriólico com flogístico poderíamos ob-
ter enxofre?
Podemos distinguir três espécies de movimento, o essencial, o es-
pontâneo, o acidental ou impelido.
Há movimento essencial difundido na matéria, aplicado a todos os 
corpos, agindo entre eles intrinsecamente, e fazendo parte de sua essên-
LEMOS
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Jacques Pierre Brissot18
cia? Toland o defendeu. Foi refutado. É a sorte de qualquer sistema. Ne-
gar a existência desse movimento numa pedra, nos metais, porque não 
o percebemos, é negar a circulação do sangue e a fermentação interna 
que se faz em todos os fluidos, porque não os vemos. Com semelhante 
raciocínio, todo homem sem microscópio poderá rejeitar a existência 
desses pequenos insetos imperceptíveis a olho nu, de que o ar, os licores e 
todos os elementos formigam; ele poderá rejeitar a existência das enguias 
de Vallisnieri, dos animálculos de Needham. Esse movimento essencial 
não parece restrito unicamente ao reino animal ou ao vegetal; ele abarca 
toda a matéria, penetra em sua menor partícula. É a alma universal dos 
antigos.
A segunda espécie de movimento chama-se espontâneo. Parece-me 
bastante evidente que entre dois caminhos que se apresentam a mim eu 
posso preferir um ao outro, que eu posso escolher livremente tanto pas-
sear quanto repousar. É essa liberdade que forma a essência do movi-
mento de que falamos. Os teólogos e os filósofos alternadamente nos de-
ram e nos tiraram tal liberdade. Collins quis provar que não a tínhamos. 
Era um Zenão negando a existência do movimento. Andemos, ajamos, 
e deixemos os filósofos disputarem. A faculdade desse movimento que 
reside em nós liga-se a partes finas e soltas ou a um ser espiritual? Os 
animais compartilham-na conosco? Terão os vegetais a mesma sorte? Eis 
aí algumas questões que discutimos há muito tempo sem esclarecê-las, e 
que permanecem ainda inconclusas.
O movimento acidental e impelido é aquele que é causado em um 
corpo por um móvel qualquer. Assim é o de um moinho, o de um navio: a 
água, o ar, eis os motores. Esse movimento é acidental porque um corpo 
pode subsistir sem o ter.
Os movimentos essencial e acidental são comuns a todos os corpos. 
Não é todo mundo que concede a mesma ubiquidade para o espontâ-
neo. Qual partido tem razão? Poderíamos responder, com Henri[que] 
IV: ambos; a dúvida sobre uma matéria tão problemática não é, segura-
mente, um erro.
É a reunião em um corpo do movimento essencial e do espontâneo 
que chamamos vida. Diz-se que as plantas vegetam porque elas só têm o 
primeiro.
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19Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade
Portanto, tudo neste universo está dotado da faculdade do movi-
mento; e, desde a menor partícula de matéria até o imenso globo solar, 
todo corpo pode aplicar sucessivamente suas partes sobre as partes de 
um outro corpo, transportar-se e ser transportado de um lugar a outro. 
Mas este é o efeito dessa ação e reação perpétua dos corpos uns sobre os 
outros: eles se alteram, eles se destroem; e como os princípios de seu ser 
jamais caem no nada, de seus escombros renasce um outro corpo; ou seja, 
a matéria-prima de uma árvore, após ter perdido esse modo de ser, assu-
me uma outra configuração, e torna-se planta, animal ou pedra. Assim, o 
pasto desaparece entre os dentes do boi, reproduz-se sob a forma da car-
ne, reveste-se com uma outra modalidade no homem que se alimenta do 
boi, e então se dissipa pela evaporação ou de alguma outra forma. Assim, 
extinta a vida no homem, não há mais movimento espontâneo; o signo 
da animalidade desaparece; os princípios que o compõem retornam a seu 
lugar. O ar se une ao ar, a cinza à terra, etc. Foi ao refletir profundamente 
sobre esses efeitos que Pitágoras fabricou seu sistema e estendeu às al-
mas a transmigração dos corpos.
Tudo está, portanto, em movimento neste universo, e sem ele o uni-
verso não pode subsistir. Não tinha Descartes, tão inoportunamente 
censurado pelos teólogos, razão de exclamar: que me sejam dados movi-
mento e matéria, e eu construirei o universo; operarei todos estes efeitos 
surpreendentes, todas estas maravilhas com as quais estais familiariza-
dos?
O movimento supõe a ação e reação dos corpos; a ação supõe a des-
truição; e neste combate perpétuo dos seres, o mais frágil sucumbe ao 
mais forte, é sua presa e o alimenta.
Entre os corpos, uns duram mais, outros, menos. Os limites de sua 
vida são medidos de acordo com sua organização. Ela é firme ou frágil? 
Seu desenvolvimento é lento ou rápido? Eis as causas que produzem nos 
corpos uma resistência mais ou menos prolongada contra sua destruição. 
Uma árvore dura mais que uma flor, um homem mais que um ácaro. Isso 
porque a árvore e o homem são mais bem organizados, desenvolvem-se 
mais lentamente. Trata-se de um efeito tão necessário das leis do movi-
mento quanto a queda de uma pedra, a gravitação da terra em torno do 
sol etc.
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Jacques Pierre Brissot20
Um corpo destruído se reproduz sob uma outra forma; nessa des-
truição nada é perdido, nada é aniquilado: só o acidental mudou.
Assim, a ação e a reação dos corpos produzem estas estranhas meta-
morfoses de forma que vemos a todo instante. Eis a fonte dessa admirá-
vel variedade de fenômenos que impressionam sem parar nossos olhares. 
É nesta sucessão, nesta troca perpétua de modos que o universo encontra 
seu ornamento. É na destruição que ele rejuvenesce... Em sua mão todo-
-poderosa o universo sustém a vida e a morte; cesse ele seu movimento, 
tudo cai na apatia; a natureza fica muda; o caos estende seu véu lúgubre 
sobre ela, e o nada se aproxima...
Todos os seres têm, portanto, necessidade de se mover e, conse-
quentemente, de conservar seu movimento. É um efeito necessário de 
sua existência. Percebemos que não se trata aqui de outra coisa que o 
movimento essencial, e não do espontâneo, que só está por acidente nos 
corpos.
Mas, dado que eles não podem conservar seu movimento sem se apli-
car a outros corpos, que essa aplicação sucessiva, imediata, opera uma 
alteração fatal das partes de uns e de outros; segue-se que a destruição é 
tão necessária quanto a conservação; segue-se que a destruição conduz 
à vida, a vida à destruição. Assim, dois princípios certos e provados: 1º 
Todos os seres devem conservar seu movimento. 2º Não há conservação 
de movimento num corpo sem destruição de outro corpo.
Desses dois princípios resulta um corolário igualmente certo, o de 
que todos os corpos têm direitode se destruírem uns aos outros. Esse é o 
direito que chamamos de propriedade.
Não falarei aqui desse direito relativamente aos metais, nem aos ve-
getais, mas somente quanto aos animais. O movimento essencial e [o] 
espontâneo parece[m] reunido[s] neles. Dissemos que essa reunião cha-
ma-se vida. Todos os animais por sua natureza tendem a se conservar. 
Eles não podem fazê-lo sem destruir outros corpos, sem se alimentar, 
sem os transformar em si mesmos, sem os adaptar à sua forma. Essa é 
sua propriedade; ela deriva da natureza dos seres. Quão falsa é, portan-
to, a opinião de Grotius, erudito demasiadamente preconizado, de que 
LEMOS
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LEMOS
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LEMOS
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21Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade
o direito da natureza não estabeleceu a propriedade!1 Que se consulte a 
própria etimologia da palavra, e se notará ainda mais a exatidão de minha 
definição. Assim, a propriedade é a faculdade que tem o animal de se ser-
vir de toda a matéria para conservar seu movimento. Essa conservação é 
o ponto central de suas necessidades. Essas necessidades são, portanto, 
ao mesmo tempo o fim e o título da propriedade.
Como não desejo surpreender meus leitores por meio de um sofis-
ma ardiloso, vou expor-lhes a verdade toda nua, em um resumo simples 
que contém o encadeamento completo de meus princípios e de minhas 
consequências.
Tudo está em movimento.
Não há movimento sem ação.
Toda ação supõe a aplicação de um corpo sobre um outro.
Toda aplicação causa fricção, alteração de partes do modo.
A alteração do modo causa a sua destruição.
Portanto, a destruição é um efeito necessário do movimento.
Portanto, todos os seres têm necessidade de se entredestruírem.
Portanto, a propriedade não passa da faculdade, em um corpo, de 
destruir um outro corpo para conservar-se a si mesmo.
Que seja dada atenção a esta definição; mil consequências que pare-
cerão monstruosas dela decorrem necessariamente.
Muitos escritores distinguiram três espécies de propriedades, a pes-
soal, a mobiliária, a fundiária. Nota-se bem que não se trata aqui absolu-
tamente da primeira.
A pessoal é a faculdade de agir e de pensar como quiser, de dispor ao 
bel-prazer de seus órgãos e de suas qualidades; como se vê, essa proprie-
dade pessoal não é outra coisa que a liberdade, e não queremos fazer aqui 
um tratado sobre a liberdade, matéria demasiado vasta, em que sem dú-
vida nos extraviaríamos com tantos moralistas. Encontraríamos aí uma 
infinidade de questões que ainda não foram resolvidas, e que provavel-
mente não o serão no longo prazo.
Somos livres ou não? Pode-se obrigar alguém a um tipo de trabalho 
de que ele não gosta? As corveias são justas? Pode-se constranger a forma 
1 O direito da guerra e da paz, tomo primeiro, página 10, tradução de Courtin.
22
de pensar, de agir, de escrever? A escravidão é permitida na natureza? O 
tráfico de negros é injusto? O homem pode alienar sua liberdade? etc. 
etc. etc. Essas questões são vastas, espinhosas; não tocaremos nelas aqui.
Onde Collins se perdeu, poderíamos ter sucesso!
Quanto à propriedade mobiliária, inoportunamente a distinguiram 
da propriedade fundiária. Aquela é um ramo essencial desta, ela consiste 
na propriedade desses objetos que não estão fixos na terra e que podem 
ser deslocados.
Esses mesmos escritores, imbuídos de preconceitos sociais, defini-
ram a propriedade fundiária como o direito de dispor de um lote de terra 
e de seus produtos; até mesmo de aliená-lo. Eles não viram que a nature-
za só permite ao homem cujas necessidades são prementes gozar e dispor 
dos produtos da terra, e sempre na proporção dessas necessidades. Não 
viram que na natureza, quando o homem cessava de ter necessidades, ces-
sava de ser proprietário fundiário; que, consequentemente, ele não podia 
alienar, pois não tinha direito sobre nada. Essa opinião revoltará, eu o 
sei; mas se demonstrações sólidas podem demover o espírito de seus pre-
conceitos, orgulhar-nos-emos de que, após a leitura deste livro, todas as 
dúvidas sobre o assunto terão sido dissipadas.
23
Seção II
Por que se é proprietário?
Encontra-se facilmente a resolução dessa questão em minha definição. 
A propriedade não passa, com efeito, do direito de se servir da matéria, 
ou mesmo do seu uso para satisfazer as necessidades; essa satisfação de 
necessidades é, portanto, o fim e a causa do próprio direito de proprie-
dade. Quantas consequências resultam daí! Vós que as entrevedes, de-
tende-vos... É preciso, antes de explorá-las e de sentir toda a sua força, 
examinar previamente em que consistem essas necessidades.
A necessidade [besoin] é uma dessas palavras que servem para de-
signar ideias abstratas, e consequentemente não significam nada, já que 
abarcam demasiadas significações. Ordinariamente, ela é sinônimo da-
quilo que falta ao homem, e daquilo que lhe é necessário [nécessaire] para 
a realização de algum desígnio, ou para alcançar algum fim.
Mas antes de examinar todas as diferentes acepções deste termo, ve-
jamos qual foi sua origem.
Estando os corpos sempre em movimento, agindo e reagindo uns so-
bre os outros, alteram suas partes, e as perdem continuamente. É preci-
so, portanto, substituí-las continuamente, se quisermos conservar sem-
pre os mesmos movimentos, a mesma modificação. Ora, não podemos 
substituí-las a não ser trocando as partes dissipadas por partes similares. 
Chamamos necessidade esse gasto das partes do animal; e a satisfação da 
necessidade não é mais do que uma recuperação, do que uma nutrição de 
partes semelhantes.
Assim, na origem, a palavra necessidade limitava-se a significar o esgo-
tamento das forças e aquilo que as reparasse. Mas desde então estende-
mos sua significação. Teríamos dificuldades em percorrer todas as acep-
ções que deram em abuso e em tolice; pois, pela mais singular corrupção, 
Jacques Pierre Brissot24
todos, até mesmo o voluptuoso, chamaram de necessidade os objetos de 
seu luxo, de seus caprichos. Não abonemos em absoluto essa mania, e 
não acreditemos que o direito sagrado da propriedade nos seja concedi-
do para irmos de coche quando temos pernas, para comermos o alimento 
de vinte homens quando é suficiente a porção para um só. A ignorância 
e a vaidade puderam consagrar semelhantes erros, e o tempo, por usuca-
pião, conferiu-lhe um ar de verdade. É preciso distinguir as necessidades 
naturais das factícias. Essas últimas são crimes – sim, crimes – pois estão 
contra o voto da natureza.
Entre nossas necessidades naturais, encontraremos inicialmente 
aquelas que decorrem essencialmente de nossa natureza, de nossa orga-
nização e aquelas que o clima, que as circunstâncias particulares trazem 
consigo.
Quanto às necessidades do capricho, o número delas é imenso.
necessidades essenciais
Os animais, após terem sido desenvolvidos na matriz que convém aos 
elementos de sua máquina, crescem, fortificam-se, seja ao alimenta-
rem-se de plantas análogas a seu ser, seja ao devorar outros animais, cuja 
substância se mostra própria para conservá-los, ou seja, para reparar o 
gasto contínuo de algumas parcelas de sua própria substância que se des-
prendem a cada instante. Esses mesmos animais alimentam-se, crescem, 
multiplicam-se e fortificam-se com a ajuda do ar, da água, do fogo, da 
terra. A água combinada com o ar entra em todo o seu mecanismo, cujo 
jogo ela facilita; a terra lhes serve de base, ao dar solidez a seu tecido; ela 
é carreada pelo ar e pela água, que a levam às partes do corpo com que ela 
pode se combinar; enfim, o próprio fogo, disfarçado sob uma infinidade 
de formas e de invólucros, é continuamente recebido pelo animal, confe-
rindo-lhe o calor e a vida.
Não sendo o animal nada mais que o resultado de todos esses ele-
mentos, tem, assim, necessidade de alimentar-se deles, de fazer-se pe-
netrar por eles a cada instante, porquea cada instante ele perde algo 
de suas partes elementares. Assim, a primeira necessidade do animal é 
25Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade
a nutrição. Essa necessidade supõe uma outra, a evacuação. Eis aí duas 
necessidades essenciais, que resultam da constituição do animal. As ma-
neiras com que elas operam são infinitas. A expiração, a evaporação, a 
trituração, a digestão, a excreção são os principais canais pelos quais as 
partes de nossa substância se desprendem continuamente, e se dissipam. 
É ao se alimentar de partes sólidas, ao se abeberar de fluidos, é ao inspirar 
um ar puro que o animal repara suas perdas.
O desenvolvimento do animal é um efeito necessário da nutrição. 
Esse desenvolvimento é nele uma adição, às partes de que é composto, de 
partes semelhantes. Podemos ver no eloquente Buffon a descrição dessa 
operação. A verdade não rasga as páginas do seu livro, e o tédio não afasta 
dele o leitor.
As partes de que é formado o animal associam-se às partes seme-
lhantes que se encontram no alimento. Estas as fazem crescer e as desen-
volvem. É uma espécie de inserção, de intussuscepção, da qual podemos 
fazer uma ideia pela imagem de várias camadas de terra engrenadas umas 
nas outras.
O exercício dos membros e dos órgãos do homem conta como neces-
sidade essencial no plano da conservação de sua existência. O exercício 
faz parte de sua natureza e a sustenta. Imagine uma infinidade de cordas, 
de rodas, de polias; é ele que coloca tudo isso em movimento, eu quase 
diria que ele é a alma da máquina.
Ora correndo com rapidez, o animal mal parece roçar a terra; ora 
subindo uma montanha, transpondo os precipícios mais assombrosos, 
ele deseja penetrar em todos os segredos da natureza. A água, o fogo, 
nada o assusta, nada o detém, ele tudo desafia. É por seus exercícios sa-
lutares que o animal fica rijo, conserva seu movimento e prolonga seus 
dias. Permanecendo ele inerte, o sangue circula com menos fluência, os 
humores se acumulam, estagnam; a digestão, a partição, a evaporação, 
tudo sai mal; as molas enferrujam, o jogo da máquina fica desarranjado, e 
logo o ponteiro já não marca as horas.
O exercício dos membros é portanto uma necessidade do animal. É 
isso que favorece seu desenvolvimento, que conserva a natureza em sua 
força, que impede o abastardamento, a degeneração de seus produtos. 
Assim vemos que, em todos os lugares em que os exercícios corporais fo-
Jacques Pierre Brissot26
ram encorajados, os homens adquiriram uma boa compleição. Percorrei 
a história dos gregos e dos romanos. Que fardos enormes carregaram os 
atletas e os soldados! Que força prodigiosa Milo exibiu na arena! Entre 
os selvagens, é pela força que se aceitam o comando e a superioridade.
É no animal já desenvolvido que nasce esta necessidade terrível; por 
vezes a dor, mas no mais delas o prazer dos homens: o amor. Ao som dessa 
palavra, vejo tremer essas moralidades austeras que, não pregando nada 
mais que a aniquilação de todas as nossas faculdades, querem abafar o 
grito da natureza e degradar o prazer mais puro da humanidade. O amor 
é uma necessidade no homem, como o sono e a fome. A natureza orde-
na-lhe imperiosamente satisfazê-lo. Infelizes daqueles que lhe desobe-
decem. A negra melancolia, os remorsos, as enfermidades multiplicadas 
vingam a natureza ultrajada; e, carrascos de sua própria existência, es-
ses infelizes levam uma vida dolorosa, expiam seu crime por uma morte 
precipitada. Eis aí o retrato tão frequente que apresentam essas tristes 
solidões consagradas pelo fanatismo, habitadas pelo desespero, asilos da 
morte onde o prazer é frequentemente invocado pelos gritos e rugidos 
do amor acorrentado, mas onde ele não se deixa nunca ver. Obrigados a 
recorrer a remédios impotentes, essas vítimas infortunadas enganam por 
vezes suas necessidades, mas a ilusão passa como um clarão, e o fogo que 
devora permanece para sempre.
É daí que nascem estes crimes que horrorizam a natureza, que a so-
ciedade proscreve e de que ela necessita. Por exemplo, o celibato, esse 
crime mais colossal que o suicídio, dado que este destrói apenas um ser, 
e o outro destrói uma infinidade; o celibato pode, por suas leis rigorosas, 
acorrentar a natureza, mas não a abafar. Em meio a seus grilhões, o celi-
batário compensa seus sacrifícios. Ele acende sempre a chama do amor, 
mas não na lareira da natureza. O exemplo se espalha, e os retiros dos 
bonzos se povoam de jovens em toda parte.
De outro lado, a união dos dois sexos nas sociedades depende de mil 
convenções. O laço se estreita numa idade tardia por interesse, e nunca 
por amor. Em toda parte vemos o despotismo paternal abafar nos jovens 
os gritos de seus sentidos. Em toda parte o vemos, junto ao fanatismo 
religioso, pintar com as cores mais negras a homenagem legítima que 
presta à natureza o ser virtuoso demais para ser celibatário. Os homens 
27Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade
têm o poder de mudar a seu arbítrio o curso das coisas? Têm eles o direi-
to de reprimir, de apagar as paixões naturais? Não. É uma torrente cuja 
impetuosidade um dique artificial detém por algum tempo, mas que logo 
transborda pelos campos.
Ó, homem! não escutes, portanto, as leis da sociedade; elas são injus-
tas. Segue os votos da natureza, escuta tua necessidade; é o teu único se-
nhor; teu único guia. Sentes acender em tuas veias um fogo secreto com 
o aspecto de um objeto encantador? Sentes em teu ser um tremor, uma 
perturbação? Sentes se levantarem em teu coração movimentos impetu-
osos? Experimentas esses felizes sintomas que te anunciam que tu és um 
homem? ...A natureza falou, este objeto é para ti, goza. Tuas carícias são 
inocentes, teus beijos são puros. O amor é o único título do gozo, como 
a fome é o da propriedade.
Se o homem social ainda pudesse ponderar, eu lhe recomendaria que 
lançasse o olhar sobre o selvagem que não foi corrompido por nossas ins-
tituições. Ele ama? É amado? Ele é esposo, ele é senhor, ele goza. Ele não 
precisa de sacerdotes para atar seus laços, de templo para consagrá-los. 
Sua necessidade, eis aí seu título; o céu é a testemunha de seu amor, a 
natureza é seu templo.
Se quisermos saber quais são as verdadeiras necessidades do homem, 
não é sobre nossas sociedades que devemos lançar os olhares, é sobre o 
homem selvagem; o homem social não tem quase nenhum vestígio da 
natureza. As necessidades do selvagem são muito poucas. Abramos, para 
nos convencer disso, as histórias, seja dos primeiros povos, seja das novas 
descobertas.
Na origem, a Grécia foi habitada pelos Autóctones, que se asseme-
lhavam inteiramente aos selvagens que foram encontrados nas florestas 
da América. As frutas e a carne dos animais eram seu alimento; a pele 
das bestas e a casca das árvores, sua roupa; a cavidade das árvores e uma 
caverna lhe serviam de abrigo. Não tinham mais do que uma vaga ideia 
do Ser supremo. O direito do mais forte era sua lei. Todos os homens 
fugiam de medo reciprocamente uns dos outros. Este é o quadro que 
Tucídides pinta desses primeiros homens.
Don Joseph Cajot, em suas Antiquités de Mets, descreve os primei-
ros belgas como homens ferozes, mais ou menos semelhantes aos nossos 
Jacques Pierre Brissot28
hurões e a nossos iroqueses. Algumas choças formadas com galhos de 
árvores recobertas por argila lhes serviam de abrigo contra a intempérie 
das estações. Muito raramente se as viam contíguas. Cada pai de família 
construía a sua no meio do sítio que os chefes lhe atribuíam.
Os habitantes da Terra do Fogo formam a sociedade menos nume-
rosa que podemos encontrar em todas as partes do mundo. Vivem pre-
cisamente no estado de natureza. Suas cabanas são formadas com galhos 
de árvores. Os selvagens aí habitam em confusão de homens, mulheres, 
crianças. Algumas ervas espalhadas na choça servem-lhes de camas; fa-zem as vezes de vaso as bexigas dos animais. O clima mais rigoroso não os 
impede de andar nus. Os mariscos e os peixes são seu principal alimento. 
Não têm a menor noção de religião, de polícia, etc.2 
Esses exemplos são o suficiente; eles provam que as necessidades do 
homem no estado de natureza são em número muito pequeno. Multi-
plicamo-las extraordinariamente nas sociedades. Mas, ao multiplicá-las, 
não aumentamos o direito primitivo da propriedade, que a natureza res-
tringiu somente às necessidades essenciais, e a algumas necessidades que 
o clima faz nascer.
necessidades de circunstâncias
Um homem é acometido por uma doença. Ele morre sem a quinquina. 
Essa planta lhe é, portanto, necessária.
necessidades de capricho ou de luxo
A lista seria enorme. O luxo, tão preconizado pela maioria dos escritores 
modernos, é somente a arte de inventar novas [necessidades], para satis-
fazê-las sem parar. É por ele que ficamos sempre em dívida com as espe-
ciarias, com o tabaco, com o café, com o chá. Alimentação, vestimentas, 
penteados, casas, móveis, veículos, etc.: refinamos tudo.
2 Hist. des nouvelles découvertes faites dans la mer du Sud [História das novas descobertas 
no mar do Sul], por M. Fréville.
29Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade
Percorrei o universo, e encontrareis em todo lugar necessidades for-
jadas pela fantasia. Desde o humilde casebre do agricultor até o palácio 
dos reis, nada é isento de luxo. Não há nada mais do que graus de in-
tervalo entre esses dois extremos! Comparai nossos camponeses com os 
negros da África, com os selvagens da América. São ainda voluptuosos, 
seus hábitos são fastuosos. Julguemo-los por esses traços. Um cacique in-
dígena se enfeitaria satisfeito com uma camisa preta, furada, abandonada 
por um marinheiro, e se pavonearia diante de seus súditos com esses ri-
cos andrajos.
Soberbos europeus, vós mal baixais a vista sobre esses mortais que 
têm tão poucas necessidades para elevarem-se a vosso nível. Mas eles es-
tão acima de vós! Vós degradais a natureza, e eles a conservam em toda 
a simplicidade.
Que tristes efeitos não resultaram do luxo! Aqui seria preciso uma 
pluma de ferro para descrevê-los, para atemorizar os homens pelo rela-
to horrível dos crimes que o luxo fez cometer. Nós nos apiedamos dos 
lapões, mas nós, mais do que eles, é que somos dignos de pena. Satis-
feitas suas necessidades, eles não desejam mais nada, e nós, miseráveis 
que somos, damos à luz incessantemente novos desejos que nos devoram. 
Poderíamos nos comparar àquele Prometeu cujas entranhas um abutre 
rói sem parar.
Não foi em absoluto para satisfazer essas necessidades criadas pelo 
capricho ou pelo luxo que a natureza nos conferiu o direito da proprie-
dade. Concentrado unicamente nas necessidades naturais, é violar esse 
privilégio, é ultrapassar os limites estendê-lo mais longe.
Homem soberbo, que, do seio da opulência em que nadas, insultas 
com desprezo os miseráveis que despojaste, cessa, portanto, de decorar 
tuas usurpações com o nome de propriedade! Cessa de consagrá-las por 
leis injustas, de espantar com castigos severos os inocentes que protes-
tam contra elas. Sim, essas fossas, esses muros, com que cercas teus par-
ques imensos; essas barreiras que protegem o acesso a teus patrimônios; 
tudo comprova tua tirania, e nada tua propriedade. A natureza não te 
concedeu em absoluto esse direito para que fosses conduzido por um 
séquito fastuoso, para que te embriagasses em suntuosos repastos, para 
ofuscar teus semelhantes pela ostentação insolente de tuas riquezas. Em 
Jacques Pierre Brissot30
tua porta cem infelizes morrem de fome, e tu, saciado de prazeres, tu te 
crês proprietário; tu te enganas: os vinhos que estão em tuas caves, as 
provisões que estão em tuas casas, teus móveis, teu ouro, tudo é deles: 
eles são senhores de tudo. Tu serias um tirano se lhes opusesse algum 
obstáculo; eis a lei da natureza.
Poderíamos duvidar disso quando lançamos o olhar seja sobre os ani-
mais seja sobre os costumes desses selvagens que não têm a infelicidade 
de ser civilizados? Um cavalo que se saciou de pasto permanece senhor 
da pradaria, e impede que seus semelhantes dela se sirvam?
Na maior parte dessas pequenas tribos de selvagens errantes da 
América, as provisões de caça, de pesca, são comunitárias. Sequer as mu-
lheres estão livres disso. Um taitiano acossado pela necessidade do amor 
goza hoje de uma taitiana, e no dia seguinte a vê passar com indiferença 
aos braços de outro. Esse povos jogados numa ilha na extremidade do 
mundo conservaram as noções primitivas do direito de propriedade, in-
teiramente obliteradas na Europa. Convencidos de que o direito termi-
na onde a necessidade cessa, eles se considerariam indignos de existir se 
apropriassem às custas de seus semelhantes coisas de que não têm neces-
sidade. É por isso que eles oferecem com tamanha boa-fé suas mulheres 
a nossos franceses que desembarcam em sua ilha. Na Europa esses costu-
mes parecem bizarros. As mulheres não são sempre dos que têm necessi-
dade delas, mas dos que as compram. Estes querem gozar sozinhos: como 
se um riacho não estivesse destinado a dar de beber ao lobo e ao cordeiro, 
como se as árvores não produzissem seus frutos para todos os homens!
Os taitianos não são os únicos em que se encontraram traços da sim-
plicidade, da igualdade primitiva da natureza. As Índias Orientais são 
habitadas por uma infinidade de povos que conservam os mesmos costu-
mes. Qualquer viajante o atesta.
Em Esparta, quem o creria?, numa nação organizada, tudo era em 
comum. Licurgo tinha lido a natureza, ditou as leis dela a seus concida-
dãos, e realizou em parte o belo sonho de governo de Platão.
No entanto, seria cair em erro crer que na natureza deve haver uma 
igualdade perfeita nas propriedades. Os animais não têm todos a mesma 
quantia de necessidades. Uns são mais fortes, outros mais fracos, estes 
digerem mais prontamente, aqueles têm vários estômagos, e os têm bas-
31Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade
tante grandes. Sendo a alimentação proporcional às necessidades, resulta 
que o direito de propriedade é maior, mais amplo em certos animais. O 
sistema de igualdade de propriedades é assim, por este ângulo, uma qui-
mera que se desejaria em vão realizar entre os homens. Ainda que sejam 
semelhantes em sua organização, esta difere em muitos aspectos. Suas 
necessidades não são as mesmas. Um pitagórico vivia de legumes. Era 
preciso ao atleta voraz uma grande quantidade de carne. Milo comia um 
touro em um dia. Dado, portanto, que as necessidades dos homens di-
ferem, seja em qualidade, seja em quantidade, eles não podem ser igual-
mente proprietários. Assim esse sistema da igualdade das fortunas, que 
certos filósofos quiseram estabelecer, é falso na natureza.
No entanto, podemos dizer que é verdadeiro por outros ângulos. 
Existe, por exemplo, entre nós, especuladores enriquecidos pela pilha-
gem do Estado que possuem fortunas imensas. Existem também cida-
dãos que não têm um vintém de propriedade. Estes últimos têm, entre-
tanto, necessidades, e os outros não as têm certamente em proporção 
a suas riquezas. Duplo abuso, consequentemente. A medida de nossa 
fortuna deve ser a de nossas necessidades; e se quarenta escudos são su-
ficientes para conservar nossa existência, possuir 200 mil escudos é um 
roubo evidente, uma injustiça revoltante. Houve grita contra a pequena 
brochura do Homme aux quarante écus [O homem dos quarenta escudos]. 
Os eruditos disseram: castigat ridendo mores [castigam-se os costumes rindo]. 
O rico prelado, o magnífico especulador clamaram contra essa obra. M. 
Josse, o senhor é ourives.3 O mais belo elogio que se pôde fazer da obra é 
dizer que os sacerdotes quiseram condená-la ao fogo e que os especula-
dores pagaram para que a censurassem.
Nela, o autorpregava grandes verdades. Pregava a igualdade 4 das 
fortunas, pregava contra a propriedade exclusiva. Pois tal propriedade 
exclusiva é um verdadeiro crime na natureza.
3 Nota do tradutor: Frase de L’amour médecin, de Molière: “Vous êtes orfèvre, M. Josse, et 
votre conseil sent son homme qui a envie de se défaire de sa marchandise”. Conselho interessa-
do, como a critica interessada do rico prelado e do especulador.
4 Os antigos legisladores sentiam bem a necessidade da igualdade das fortunas. Era o ob-
jetivo das leis de Sólon, de Licurgo, de Faleas da Calcedônia, de Rômulo. O legislador dos 
espartanos, o fundador de Roma partilharam igualmente as terras entre seus concidadãos. 
Quantas infelicidades, quantas divisões intestinas, quantas querelas domésticas o senado de 
32
Thiago se diz possuidor de um jardim. Tem ele mais direito que Pe-
dro? Não, certamente. Os pais de Thiago, na verdade, transmitiram-lhe 
em sua sucessão esta herança. Mas em virtude de que título eles mesmos 
o possuíam? Remontai tão longe quanto quiserdes, e descobrireis sem-
pre que o primeiro que se diz proprietário não tinha título algum sobre 
o jardim. O Ser supremo deu a terra a todos os homens: ele não disse 
em absoluto a este: tu terás esses arpentos; àquele: goza dessas imensas 
pradarias. Mas ele disse a todos: tendes necessidades; eu vos dou a todos 
o direito de empregar a matéria para satisfazê-las. Ora, essa concessão 
se estende à natureza inteira. Minha propriedade não é em absoluto res-
trita nem a este casebre em que nasci, nem a uma certa região. Posso 
exercê-la em toda parte.
Resulta deste capítulo, primeiro, que nossas necessidades naturais 
são em número pequeno; que nós não somos proprietários a não ser para 
satisfazê-las; por fim, que essa propriedade se estende junto com a pró-
pria necessidade.
Roma teria poupado se tivesse seguido o sábio plano de seu instituidor! Não vereis um único 
tribuno que não tenha proposto leis agrárias e que não se serviu dessa demanda para soprar 
o fogo da discórdia no coração dos cidadãos. Se a partilha tivesse sido aceita seriamente (pois 
os falsos decenviratos não passaram de um jogo em que os plebeus, em vez de serem ludi-
briados por trezentos senadores, foram-no por dez), então os plebeus, permanecendo unidos 
aos patrícios, não teriam derrubado por suas mãos essa república tão formidável ao universo 
enquanto a calma ali reinou.
33
Seção III
Quais são os proprietários?
Se basta ter necessidades para ser proprietário, todo indivíduo que tem 
necessidades pode então gozar do direito de propriedade. Não se con-
testará que os homens pertençam a essa espécie. Crescer, conservar-se, 
estender sua existência comunicando-a a outros, são prerrogativas liga-
das a seu ser, e que provariam ao cético mais incrédulo que ele tem ne-
cessidades.
O mesmo vale para os animais, eles são proprietários assim como o 
homem. Essa proposição, que tem o ar de um estranho paradoxo, tor-
na-se certa no primeiro exame que se faz sobre a definição que dei da 
propriedade. Não são os animais, com efeito, como nós, tendo de con-
servar sua existência? Seu corpo não se desenvolve? Não cresce? Não 
experimenta as mesmas variações, as mesmas sensações que as nossas? 
Não têm eles, como nós, esta necessidade, fonte de mil delícias, de se 
unir em conjunto, de confundir em conjunto sua existência, para fazer 
nascer um outro indivíduo semelhante a eles? Organização, necessida-
des, prazeres, sensações, tudo, tudo neles se assemelha a nosso ser; e nós 
desejaríamos privá-los do direito que a natureza lhes deu sobre toda a 
matéria! Homem injusto, cessa de ser tirano! O animal é teu semelhante; 
sim, teu semelhante; esta é uma verdade dura; talvez ele seja até mesmo 
teu superior. Ele o é, se é verdade que os felizes são sábios; ele não sofre 
os males cruéis que tu te crias em tua sociedade. Mais feliz que tu em seu 
estado isolado, ele goza sem amargura dos bens que a natureza lhe ofere-
ce; ele degusta os prazeres que ela prodigaliza a seus pés, e não inveja os 
de seus semelhantes. “Amor e liberdade”, exclama o eloquente Buffon, 
“que benesses! As bestas gozam deles talvez mais que nós. Esses animais 
que chamamos de selvagens, porque não nos são submissos, têm eles ne-
Jacques Pierre Brissot34
cessidade de algo mais para serem felizes? Eles ainda têm a igualdade; 
eles não fazem nem escravos, nem tiranos de seus semelhantes. O indiví-
duo não tem que temer como o homem todo o restante de sua espécie. 
Eles têm entre si a paz, e a guerra só lhes 5 sobrevém de nós...”
Se quiséssemos encontrar a imagem do primeiro modo com que os 
homens exerciam seus direitos de propriedade, ela se apresentará a nós 
nos animais. Ardentes para satisfazer as necessidades que a natureza lhes 
dá, eles não buscam em absoluto dar origem a outras. Contentam-se 
com o que a sorte lhes oferece para se alimentar e para se conservar. Não 
têm a tolice de gastar os produtos da natureza por afetações [apprêts] 
artificiais. O modo de vida dos animais é simples, como são moderados 
os seus apetites, e eles têm o bastante para nunca invejar coisa alguma. 
Satisfeitas suas necessidades, não têm a mania de querer intitularem-se 
proprietários de uma porção de matéria que lhes é inútil. Saciados, dei-
xam o campo livre para aqueles que têm necessidade.
Sentimos aí o quanto o célebre Despréaux tinha de razão em sua sá-
tira sobre o homem, a única porventura filosófica, ao elevar a besta acima 
do homem. Vemos o quanto La Métrie, tão perseguido, tinha de razão ao 
fazer o homem descer à categoria dos animais. Eles são, portanto, nos-
sos semelhantes. Tudo o comprova. Eles são animados. Não nos importa 
pelo quê. Neste particular, eles se assemelham sempre a nós.
Cremos ridicularizar o sistema da alma das bestas ao sustentar que, 
se as bestas tivessem uma alma, deveríamos atribuí-la às plantas, ao ímã. 
O autor do Anti-Lucrécio se serviu desta ideia para sustentar o automa-
tismo de Descartes.6
5 Os autores mais célebres caem em contradições bem ridículas. Basta, para comprová-lo, 
comparar o que diz aqui M. de Buffon com o sistema que ele sustenta no sexto tomo de sua 
Histoire naturelle, para ver sua inconsequência.
“Como”, diz ele, “a igualdade, a felicidade podem ser compartilhadas pelos seres que não 
pensam? Como tais seres podem gozar da liberdade? Ser livre e não ter a liberdade de refletir 
é uma contradição em termos.
Mesmo concedendo que os animais tenham um instinto, palavra que nunca se explicou 
bem, esse instinto pode estar de acordo com a liberdade?”
6 O Anti-Lucrécio foi traduzido por M. de Bougainville. No início dessa tradução se encon-
tra um enorme discurso preliminar em que se ultrajam todos os grandes homens deste sécu-
lo ao se analisar os sistemas dos antigos, no qual se sustenta que os filósofos modernos não 
passam de plagiários malogrados da antiguidade; censura em desuso, de que se serviram os 
escolásticos, com que se louva M. Crevier, ou seja, o autor da vivaz, da picante, da divertida 
35Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade
É certo que há uma cadeia indissolúvel entre todos os seres que co-
brem a superfície do globo. Formados da mesma matéria, a diversidade 
de sua configuração perfaz a sua diferença. Essa atividade que distingue 
principalmente o homem de todos os outros indivíduos parece estar dis-
tribuída a todos, na proporção de sua semelhança com a nossa. Assim os 
animais devem ter uma dose maior de atividade, uma vez que a estru-
tura de sua máquina assemelha-se à nossa. Uma ostra que tem menos 
atividade tem muito pouco sentimento. As plantas devem, portanto, ter 
pouco sentimento, não sendo configuradas como nós. Assim também os 
minerais.
Uma vez, portanto, que os animais têm a mesma organização, as mes-
mas sensações, as mesmas necessidades que nós, eles são proprietários 
como nós;ou seja, eles têm direito de se servir da matéria para conservar 
seu indivíduo.
Creríamos assim que os vegetais são proprietários? É um absurdo, 
dir-se-ia. Lede, e se não crerdes neste absurdo, queimai este livro.
Homens que acreditaram ler na natureza o que não estava ali em ab-
soluto distinguiram diferentes classes para seres que pertencem a uma 
mesma. Colocamos o homem na primeira classe; a besta marchava atrás; 
vinham em seguida os vegetais, e por último os minerais.
Um erudito, filósofo o bastante para esquecer o que havia lido e para 
se limitar a pensar, fez desaparecer esses sonhos da imaginação escolás-
tica de nossos primeiros naturalistas. Ele fez ver que não havia diferença 
essencial alguma entre os seres que cobriam este globo; que no máxi-
mo havia algumas ligeiras nuances de diferença, pelas quais se passava 
de uma espécie a outra. Assim o macaco poderia fazer a nuance entre o 
homem e a besta, a ostra entre o animal e o vegetal, e a planta sensitiva 
entre o vegetal e o animal. Este sistema esclareceu o gênero humano; a 
natureza pareceu mais bela desde que Buffon a livrou das classificações, 
das divisões, subdivisões, pelas quais os escolásticos haviam desfigurados 
suas obras.
Histoire des empereurs, & de la Critique raisonée de l’Esprit des loix [História dos imperadores, 
e da Crítica racional do Espírito das leis]. Spinoza, acusado de ter copiado Estratão de Lâmp-
saco, estava apto a dar lições a seus mestres e a todos os filósofos da Grécia. Ah! que importa 
a um quadro ser uma cópia, se ele supera e faz esquecer o original?
Jacques Pierre Brissot36
Não entrarei em detalhes acerca das semelhanças entre o vegetal e 
o homem. Remeto ao célebre autor que acabo de citar. Mas direi aos 
homens: se vós vos desenvolveis, se conservais vossa existência, é ao in-
gerir um alimento que, inicialmente digerido em vosso estômago, in-
corpora-se, identifica-se convosco, torna-se vós pela intussuscepção das 
partes similares deste alimento. Essa operação é a mesma nos vegetais. 
Os sucos grossos que retiram da terra purificam-se, elaboram-se em suas 
veias. Eles os liberam de suas partes brutas e terrestres, tomam somente 
o espírito que se identifica consigo e serve para desenvolvê-los. A parte 
bruta compõe a massa, a parte óssea da planta; o espírito é essa fina seiva 
tão semelhante a este licor divino, a primeira fonte de nosso ser. As ope-
rações dos vegetais são portanto perfeitamente semelhantes àquelas da 
máquina animal. Diferença em sua configuração exterior; mas sempre e 
em toda parte o mesmo modo de impedir-lhes a destruição.
Poderíamos duvidar dessa similitude perfeita entre vegetais e ani-
mais depois da demonstração feita pelo célebre autor da Théorie du jar-
dinage [Teoria da jardinagem]? As plantas se desenvolvem por gradação, 
como o animal; suas doenças têm as mesmas causas, os mesmos remédios 
que as nossas. Sangrias, cataplasmas, fumigação, emprega-se de tudo.
E de outro lado, se vós dais movimento ao vosso corpo, seja para vos 
afastar de corpos nocivos, seja para vos aproximar de corpos salutares, 
como qualificais essa ação das raízes dos vegetais de se afastar dos lugares 
cuja terra não fornece sucos análogos à sua constituição, essa avidez em 
se estender a todos os terrenos cujos sucos lhes são favoráveis? Como 
chamareis a expansão de suas raízes, de seus ramos? É verdade que per-
correis um maior espaço de terra que uma raiz de árvore, que vós vos 
transportais por onde quiserdes: mas porque a faculdade de se mover dos 
vegetais está limitada a um certo terreno, direis que não têm movimen-
to? Uma ostra então não passará de um vegetal; e quantos entre nós não 
poderiam ser colocados na classe dessas ostras!
É, portanto, certo que os vegetais têm necessidades; e se a necessida-
de é o único título de propriedade que os homens, os animais, indubita-
velmente têm, quem então poderia privá-los do direito de propriedade? 
Se eles têm a faculdade, como os animais, de apetecer os corpos que são 
37Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade
os mais análogos à sua natureza, de se afastar daqueles que os prejudi-
cam, não exercem eles essa propriedade?
Mas os vegetais não gozam, exclamar-se-á. Ah! quem vos disse isso, 
homem presunçoso, que ousais falar quando ignorais tudo? Quem vos 
disse que essa rosa que murcha sob um hálito empestado, que desabrocha 
aos raios de sol, que essa planta extraordinária que se retira ao aproxi-
mar-se uma mão imprudente não sente nada, não goza de nada? Se seu 
gozo escapa a vossa visão grosseira, por que falais que elas não o têm? 
Falai então também que não há vermes em vossa semente; falai que as 
moléculas orgânicas de Buffon não passam de quimeras; falai que não há 
habitantes nesses globos imensos que giram sobre vossas cabeças, porque 
vossos olhos, vossos olhos frágeis, não percebem nem vermes, nem mo-
léculas, nem homens.
Vou ainda mais longe, e quero provar-vos que as plantas podem go-
zar. Analisemos o gozo. Não gozamos a não ser pelos sentidos.
Os sentidos estão nos corpos, partes de matéria a tal ponto modi-
ficadas que podem receber os diversos choques dos corpos exteriores, 
análogos a seu modo de ser, e comunicá-los ao princípio ativo que reside 
em si. Parece, para melhor aprofundar as coisas, que há apenas um senti-
do geral na natureza: o tato. Todos os demais sentidos não passam nunca 
de um tato diferentemente qualificado.
Se eu vejo, se escuto, se saboreio, se cheiro, é porque os glóbulos de 
luz, as ondulações do ar, as desigualdades das superfícies dos corpos, os 
vapores que deles se exalam, atingem, chocam, abalam essas partes de 
matéria a que demos o nome de olho, ouvido, paladar e olfato. Todas 
essas operações não se dão senão pelos abalos causados a meu indivíduo. 
É sempre um corpo que se aplica sobre outro, e todo mundo sabe que o 
tato não é mais do que a aplicação de um corpo sobre outro.
Assim, para falar corretamente, o tato é a única maneira de sentir 
que temos. Mas há diferentes maneiras de exercê-lo, de acordo com as 
diferentes qualidades dos corpos que causam e recebem esses abalos. 
Nomeamos e qualificamos diferentemente as partes do corpo que rece-
bem diferentemente esses choques exteriores; daí a origem dessa distin-
ção de órgãos, entre olhos, ouvidos e olfato.
Jacques Pierre Brissot38
A partir da definição dos sentidos que acabamos de dar, sentimos 
que é preciso distinguir em toda sensação o abalo causado pelo corpo 
exterior, o sentimento que o princípio ativo a quem ele é comunicado 
extrai dele, e a reflexão sobre esse sentimento.
Todos os corpos têm a primeira qualidade, a de abalar e ser abalado 
alternadamente. Poucos são dotados da segunda. Buscaríamos por mui-
to tempo com a lanterna de Diógenes aqueles que exercem a terceira 
faculdade.
Os vegetais terão, portanto, a faculdade de receber e de dar choques. 
Esses choques serão análogos a suas qualidades. A doce sensação que 
causa a meu olfato o perfume agradável que se exala da rosa não é a que 
eu experimento ao comer uma maçã, ou qualquer outra fruta deliciosa. 
Eles têm, portanto, o tato.
Mas esses vegetais têm um princípio ativo, que reside em si, que pos-
sa sentir os choques que eles recebem, e dirigir sua máquina?
Esta questão pareceria se ligar àquela famosa disputa tantas vezes 
animada; [a] saber, se a matéria pode pensar. Sobre este ponto, o sábio 
Locke não forneceu conclusões em um tom dogmático e incisivo, mas 
propôs suas dúvidas em tom socrático. Seus raciocínios pareceram tão 
vigorosos que seus críticos argumentaram contra ele cum fuste & conviciis 
[com um bastão e ruidosamente]. Era o método dos bravos scotistas e dos 
tomistas. Seus descendentes o herdaram. Não entrarei nesta querela. 
Depois de Locke não restou mais nada para se debater. Seria de desejar, 
pela honra de Voltaire, que este não tivesse querido restolharnesta ques-
tão depois daquele ilustre filósofo.
Como quer que seja, assumindo que os vegetais não têm nenhum 
princípio pensante, têm eles um sensitivo?
Não nos posicionaremos sobre essa matéria delicada. O sentido ín-
timo pode apenas nos convencer da existência de tal princípio em nós. 
Mas esse sentido não é nada no que tange aos outros corpos. E os senti-
dos exteriores são grosseiros demais para penetrar em seu interior, para 
apreender aí alguns princípios, caso existam. Estaremos sempre nas tre-
vas enquanto a natureza não nos der melhores instrumentos. Evitemos, 
portanto, decidir, e limitemo-nos a acreditar que pode existir algum 
princípio sensitivo nos vegetais. Sua conformação e a espécie de sensi-
39Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade
bilidade que manifestam as plantas e as flores são indícios. Mas julgar a 
partir de indícios é estar louco.
Como não bastasse, se chegássemos a adquirir a certeza de que os ve-
getais não gozam à nossa maneira, não seria preciso concluir daí que eles 
não têm espécie alguma de gozo. A natureza não segue apenas um cami-
nho, não se serve apenas de um só recurso, não sujeita todos os corpos a 
uma única lei. Se os vegetais têm no exterior uma organização diferente 
da nossa, por que não teriam assim um gozo distinto e particular?
Que diríamos de um ignorante que sustentasse que a geração dos 
seres segue em todas as espécies a mesma lei; quem sustentaria que os 
insetos se repovoam à nossa maneira, ou que não se repovoam em abso-
luto? Não riríamos de seu erro, e não o desfabularíamos revelando-lhe 
os singulares mistérios da geração dos peixes, dos insetos, das plantas, 
dos metais?
Não é tão fácil desfabular os homens sobre a impossibilidade da 
existência de um princípio sensitivo nos vegetais. Estamos ainda numa 
ignorância demasiadamente profunda sobre a natureza dos princípios 
ativos, pensantes, sensitivos; nós ignoramos os limites colocados pela na-
tureza, seus jogos, suas bizarrices; e não há ainda nenhum Leeuwenhoek, 
nenhum Malpighi que, nesta parte, tenha abordado a natureza sobre este 
fato, tenha revelado suas operações, seguido suas diferentes combina-
ções. Até essas descobertas, é preciso suspender nosso juízo.
O autor de uma viagem à ilha de França [Maurício] forneceu um 
sistema bastante engenhoso sobre os vegetais que, em sendo verdadeiro, 
favoreceria em muito a opinião que avançamos. Ele afirmou que todos 
eram habitados; que as flores, as frutas eram a obra de uma infinidade de 
pequenos animais; que a casca das árvores era o abrigo das células em que 
eles trabalhavam. O autor apoiou esse sistema com raciocínios sedutores 
e resolveu mui espirituosamente as objeções que pareciam destruí-lo.
Seguindo essa opinião, ficaria menos surpreso quem nos visse sus-
tentar que os vegetais partilham com o homem e os animais o direito de 
propriedade. Com efeito, os seres, que têm seu laboratório nos vegetais, 
que se encarregam de construí-los, e fazê-los crescer, de aperfeiçoá-los, 
de defender seus frutos, seus grãos, de enviar suas colônias para povo-
ar outros lugares; esses seres, digo, são suscetíveis às necessidades como 
40
todos os outros animais. Tendo, com efeito, uma forma, e dependendo 
essa forma ou modificação, para ser conservada, de meios que nós mes-
mos empregamos para conservar e propagar nossa existência, esses inse-
tos têm direito de se alimentar, de se desenvolver, de propagar. Eles têm 
portanto direito, por isso mesmo, a tudo aquilo que existe sobre a terra, a 
tudo o que pode se assimilar a sua natureza. Têm direito, portanto, sobre 
nós. Esses vermes hediondos que se arrastam sobre nossos orgulhosos 
cadáveres dão-nos provas de seu direito de propriedade; e essas lições 
são muito frequentemente e muito vivamente repetidas para que seja 
possível contestá-las.
41
Seção IV
Sobre o que o direito de propriedade
pode ser exercido?
Tudo é oprimido se não oprime. 
Tudo combate sobre a terra e tudo é combatido, 
O mais forte é tirano, o mais fraco é vítima.
Epístola de M. de S. L. 7
Gentes cheias de preconceito, que gritais sem parar contra o paradoxo 
quando a verdade se apresenta a vós sob o rosto da novidade, redobrai 
aqui vosso clamor. Vós me tratareis como homem abominável, pernicio-
so. Não importa, serei verdadeiro. Não faço senão deduzir aqui as conse-
quências de minha definição da propriedade.
Sobre o que este direito pode ser exercido? Sobre tudo. Sim, o ho-
mem, os animais, todos os corpos na natureza têm direito sobre tudo. 
Têm direito uns sobre os outros. O homem tem direito sobre o boi, o boi 
sobre o pasto, o pasto sobre o homem. É um combate de propriedades, 
que pareceria tender à destruição da natureza, mas que a vivifica, renova-
-a, ao destruir suas formas.
Essa verdade dá origem aqui a questões bem importantes, e que não 
foram bem resolvidas, porque não temos regras certas para determiná-
-las.
Os homens devem se alimentar simplesmente de vegetais? Podem se 
alimentar da carne dos animais? Podem se alimentar de seus semelhan-
tes? Os animais, os vegetais têm os mesmos direitos sobre nós? Até onde 
se estende a propriedade dos seres? Qual é o termo que lhes marcou a 
natureza?
7 N.T.: Marquês de Saint-Lambert. Original: “Tout est opprimé s’il n’opprime./ Tout combat 
sur la terre, & tout est combattu, / Le plus fort est tyran, le plus foible est victime.”
Jacques Pierre Brissot42
Não tenho outra asserção para resolver essas questões, que parecem 
tão problemáticas; e essa asserção é ditada pela própria natureza: Os seres 
têm direito de se alimentar de toda matéria própria a satisfazer suas necessi-
dades.
Aprofundemos este princípio. As consequências assustarão porven-
tura; mas devem elas alarmar, quando conduzem à verdade, quando in-
vertem os preconceitos?
Filósofos austeros quiseram limitar o direito de propriedade dos ho-
mens aos vegetais, e a tudo o que não tinha vida. O furor de se distinguir, 
de se fazer um nome, uma seita, inflama Pitágoras; ele prega uma moral 
extraordinária; ele deslumbra por seus sofismas, seduz por seu exemplo, 
e assim que o universo é povoado por uma multidão de seus discípulos 
que, semelhantes a nossos monges ou aos faquires orientais, juram não 
mais se alimentar que de vegetais, proclamam o anátema contra os ho-
mens sensatos que faziam os animais servirem a suas necessidades. Essa 
seita se estende por toda parte, e por toda parte vemos uns frenéticos 
sacrificar seus prazeres e seus direitos em favor da observação rigorosa 
da dieta pitagórica.
Tentou-se justificar por razões físicas e morais essa abnegação cega 
ao direito de propriedade do homem, que se estende sobre os animais. 
Afirmou-se que ele conservaria sua força, prolongaria e tornaria seus 
dias mais serenos e mais risonhos se ele se limitasse aos vegetais. Cita-
ram-se os pais da idade de ouro; o Sócrates de nossos dias ergueu sua voz 
e trovejou contra os homens que bebiam do sangue e saciavam-se da car-
ne dos animais degolados. Não nos deixemos seduzir por sua eloquência; 
abramos o livro da natureza, é somente ele que deve nos guiar.
A experiência e a ciência da análise ensinaram aos observadores que 
o homem não poderia jamais subsistir com simples vegetais; que mesmo 
o trigo e as plantas mais substanciais não poderiam, a não ser debilmente, 
retardar o deperecimento de sua frágil máquina. Esses desertos famo-
sos da Tebaida, e os de nossos dias, que Madame de Sévigné chamava de 
hospitais de loucos, oferecem uma prova convincente disso. As vítimas 
infelizes que se dedicam cegamente à sobriedade austera veem apagar ra-
pidamente a chama pálida e languescente de seus dias. E se é verdade que 
nas Índias os sectários rígidos de Brahma prolongam o curso de sua vida 
43Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade
mesmo em meio à dieta pitagórica, isso sedeve a um favor de seu clima 
muito quente, em que os vegetais são suficientemente substanciais para 
dispensá-los de se alimentarem da carne dos animais. Reportemo-nos à 
organização do homem comparada com a dos animais.
Tendo os bois quatro estômagos que podem conter uma grande 
quantidade de pasto que lastreia seu corpo, tal quantidade contém uma 
porção de moléculas orgânicas suficiente para fazer crescer e desenvolver 
esse boi. Mas tendo o homem apenas um estômago, que contém somente 
uma pequena quantidade de alimento, é completamente necessário que 
esse alimento compense em qualidade o que perde em quantidade. Ora, 
está demonstrado que a carne dos animais contém infinitamente mais 
moléculas orgânicas que as plantas. Portanto, o homem pode e deve se 
alimentar de carne, até mesmo preferencialmente ao vegetal.
Ah! se os animais não se destruíssem, não se devorassem reciproca-
mente, que desordem se introduziria sobre a superfície desse universo! 
Há na natureza insetos que pululam ao infinito, como os pulgões, os quais 
é preciso necessariamente destruir, se não quisermos ser destruídos por 
eles. Este raciocínio pode se aplicar a todos os animais, tanto os nocivos 
quanto os úteis. Se deixássemos multiplicarem-se os arenques no mar, se 
nenhum peixe carnívoro se alimentasse deles, se nenhum pescador não 
os fisgasse, esses arenques, cujo número cresceria ao infinito, não encon-
trando alimento o suficiente, pereceriam e corromperiam tudo. A natu-
reza supriu sabiamente este inconveniente. A maioria dos peixes faz dos 
arenques seu alimento. A imensa quantidade desses animais que escapam 
à voracidade de seus confrades aquáticos vem se oferecer em nossas or-
las às redes dos pescadores, e serve de alimento a províncias inteiras. Há 
uma justa compensação entre a propagação e a depopulação. A natureza 
não falta jamais a si mesma.
É, portanto, obedecer a essas ordens sagradas banquetear-se com a 
carne dos animais.
Mesmo o brâmane, que crê se furtar à lei geral, ao se alimentar so-
mente de plantas e de frutas, é ainda assim um animal carniceiro. Pois 
quantos seres animados as plantas e os vegetais guardam em seu seio! 
Quantos milhões de animálculos cobrem os legumes e as ervas que lhes 
Jacques Pierre Brissot44
servem de alimento! É preciso, portanto, que todo ser animado se ali-
mente de seres animados, ou que ele pereça. É a lei irrevogável do forte.
Mas se o carneiro tem o direito de engolir milhares de insetos que 
povoam os pastos das pradarias, se o lobo pode devorar o carneiro, se 
o homem tem a faculdade de poder se alimentar de outros animais, por 
que o carneiro, o lobo e o homem não teriam igualmente o direito de 
submeter seus semelhantes a seu apetite?
Alguém creria evitar este argumento objetando que todos os seres 
sentem uma repugnância invencível a dilacerar, a devorar os da sua es-
pécie. Para responder a semelhante objeção, levaria aquele que a fez às 
florestas; mostrar-lhe-ia o lobo abeberando-se do sangue do lobo, sa-
ciando-se com sua carne; mostrar-lhe-ia mil animais, como os ratos, os 
camundongos, os ouriços, exercendo seu apetite sobre seus semelhantes, 
sobre seus filhotes; mostrar-lhe-ia nas pradarias uma infinidade de inse-
tos, no mar milhares de peixes, que vivem dos seres de sua classe; condu-
zir-lhe-ia aos antropófagos; e aí, espectador desses festins de carne hu-
mana, em que a própria alegria preside, eu lhe perguntaria o que é feito 
nesses seres dessa pretensa repugnância pela carne de seus semelhantes; 
perguntar-lhe-ia por que a natureza não é nada uniforme em suas insti-
tuições, por que em um clima ela inspira o que ela desaprova em outro; 
eu o conduziria enfim aos caraíbas, que não sentem repugnância alguma 
ao devorar os membros ainda palpitantes de suas crianças, que eles en-
gordaram. Se é à educação que esses selvagens devem a terrível felicidade 
de não ficarem enojados com semelhante alimento, para que servem en-
tão esses princípios inatos da natureza? Se um ligeiro momento de erro 
pode apagar sua marca, de que nos importava tê-los? Ou melhor, não 
seria à educação que nós deveríamos esta aversão pela carne de nossos 
semelhantes; enquanto esses selvagens antropófagos, que não são em ab-
soluto estragados por nossas instituições sociais, não fazem senão seguir 
o impulso da natureza? Uma outra observação me confirma essa ideia, 
porventura demasiado verdadeira. Nesses momentos horríveis, em que, 
entregues a uma fome cruel, sitiados reduzidos ao desespero lançam-se, 
para retardar os passos da morte, sobre cadáveres, disputam-nos entre si, 
dilaceram-nos com voracidade; o que é feito então dessa aversão que a 
natureza, diz-se, gravou em nossos corações por essa espécie de alimen-
45Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade
to? Não é a natureza que se cala; é a voz da educação; é o preconceito 
que desaparece. O homem, de volta aos seus direitos primitivos, se isola, 
concentra tudo em si mesmo, não vê mais do que a si mesmo, e sacrifica 
tudo por suas necessidades. É o homem social transformado em homem 
natural, em selvagem.8 
Aqueles que me lerão ficarão revoltados, não tenho dúvida: eu fu-
giria deles se não o ficassem. Mas estejamos avisados, é a natureza que 
eu pinto; não é a partir do espírito de nossas sociedades que eu reflito. 
Eu parecerei esquisito; mas quão mais não devemos parecê-lo aos olhos 
dos selvagens quando eles nos veem enterrar os cadáveres sangrentos de 
nossos inimigos ao invés de comê-los. O discurso proferido por aquela 
mulher selvagem a um grande rei, não era ele sensato; e não tinha ela 
razão de disputar com os vermes o cérebro delicado de um homem?
Na Nova Zelândia, onde se encontram antropófagos, um navegador 
perguntava a um neozelandês bastante idoso o que ele fazia com a cabe-
ça, ao comer um homem. Nós comemos seu cérebro, disse o velho; se o 
senhor está curioso para experimentar, amanhã eu quero presentear-lhe 
um.9
Esses selvagens creem ter tanto direito sobre os cadáveres de seus 
inimigos quanto os corvos ou os vermes. Os navegadores que aí penetra-
ram viram sete de seus inimigos sendo por eles assados no espeto.
Ah! por que não se alimentariam disso? Qual é a razão por que nós 
comemos os animais? É porque eles estão cheios de moléculas orgâni-
cas que se assimilam perfeitamente às partes de nosso corpo, servem a 
nossa nutrição, ao crescimento, à propagação da espécie. Ora, um lobo 
encontrará em um lobo, o homem no homem, essas moléculas orgânicas 
8 Ao ler no excelente romance de Cleveland suas aventuras trágicas entre os selvagens da 
América, o coração mais bárbaro se amoleceria. Que pavor gela a alma quando o vemos cair 
com sua querida Fanny nas mãos dos Rouintons, esses terríveis antropófagos! Aí então de-
ploramos os males da humanidade que geme sob a Europa civilizada, martirizada sobre as 
fogueiras dos antropófagos, e em toda parte sofredora.
Molhei o papel com minhas lágrimas quando cheguei nesse lugar assustador em que 
Cleveland, ao ver uma chama se erguer, imagina que os Rouintons queimam sua filha e vão 
devorá-la. Ao me transportar a esses horríveis desertos, ao me colocar em seu lugar, tremi, 
repeti o voto de Nero. Era um tributo que meu coração pagava à humanidade; mas a verdade 
arrancou de meu espírito as ressalvas sobre o antropofagismo no estado natural.
9 Histoire de nouvelles découvertes dans la mer du Sud [História das novas descobertas no 
mar do Sul], 1776, por M. Fréville.
Jacques Pierre Brissot46
que sozinhas podem sustentar a economia animal. Os indivíduos de cada 
espécie podem então exercer seu apetite sobre os indivíduos de sua es-
pécie, pela mesma razão que podem fazê-lo sobre indivíduos estranhos 
à sua classe. Conhecemos o axioma já muito batido, ubi eadem ratio, ibi 
idem jus tenendum [para a mesma razão, emprega-se igual direito]. Foi o bom 
senso que o determinou.
Que

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