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Organizadoras: Marisa Eugênia Melillo Meira Este livro se destina a profissionais Mitsuko Aparecida Makino Antunes e estudantes de cursos de Psicologia e Educação e todos os interessados no debate sobre a construção do pensamento crítico em Psicologia Escolar que podem se constituir em elementos norteadores fundamentais, embora não suficientes, para a adoção de um compromisso social com a cidadania, a ser concretizado Marisa Eugênia Melillo Meira Mitsuko Aparecida Makino Antunes (Orgs.) PSICOLOGIA em propostas de atuação orientadas por finalidades transformadoras. Os textos buscam não apenas denunciar os compromissos ideológicos da Psicologia Escolar, mas ainda apontam novas possibilidades de intervenção que se ESCOLAR: constituem em expressões concretas do pensamento crítico já construído em Psicologia e Educação e que indicam caminhos para que os psicólogos escolares possam ajudar a escola a cumprir sua função social. Os autores, docentes e pesquisadores do do Instituto de Psicologia da USP-SP e do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia da Educação da PUC-SP, buscam evidenciar e colocar em discussão de diferentes maneiras, algumas expressões possíveis de crítica de Psicologia Escolar, IA ESCOLAR: CRÍTICAS PRÁTICAS Departamento de Psicologia da UNESP-Bauru, CRÍTICAS em trajetórias pessoais arcadas pelo compromisso ologia a serviço da ESCOLAR: praticas criticas cial. SALVADOR (IMBUI) Adriana Marcondes Machado 370.15 P969 Elenita de Rício Tanamachi Veruska Rodrigues Galdini ISBN 85-7396-282-8 Wanda Maria Junqueira Aguiar Casa do Psicólogo®Psicologia Escolar: Marisa Eugênia Melillo Meira e Mitsuko Aparecida Makino Antunes Práticas Críticas Organizadoras apresenta um conjunto de textos produzidos por docentes e pesquisadores da PUC-SP, UNESP e USP-SP, resultado do trabalho de reflexão teórico-prática desenvolvido ao longo de trajetórias pessoais e profissionais marcadas pelo PSICOLOGIA ESCOLAR: compromisso de colocar a Psicologia a serviço da PRÁTICAS CRÍTICAS transformação social. Os textos apontam novas possibilidades de intervenção que se constituem em expressões concretas do pensamento crítico já construído AUTORAS em Psicologia e Educação e que indicam caminhos para Adriana Marcondes Machado que os psicólogos escolares Elenita de Rício Tanamachi possam ajudar a escola a Marisa Eugênia Melillo Meira cumprir sua função social. Mitsuko Aparecida Makino Antunes Este livro pode ser um instrumento Veruska Galdini instigante de debate para todos Wanda Maria Junqueira Aguiar aqueles interessados na construção de e propostas de de Educação finalidade EADICON A em educação a distância Biblioteca Casa do Psicólogo®© 2003 Casa do É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer finalidade, SUMÁRIO sem autorização por escrito dos editores. edição 2003 edição 2008 Apresentação 7 Editores Marisa Eugênia Melillo Meira Ingo Bernd Güntert e Silésia Delphino Mitsuko Aparecida Makino Antunes Produção Gráfica Renata Vieira Nunes Capa Willian Eduardo Nahme A Atuação do Psicólogo como Expressão do Pensamento Crítico em Psicologia e Educação 11 Revisão Leila Marco Elenita de Rício Tanamachi Editoração Eletrônica Marisa Eugênia Melillo Meira Valquíria Kloss Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Os psicólogos trabalhando com a escola: intervenção a serviço Psicologia escolar: Práticas críticas / Marisa Eugênia Melillo do quê? 63 Meira e Mitsuko Aparecida Makino Antunes, organizadoras. Adriana Marcondes Machado São Paulo: Casa do 2003. Vários autores. Bibliografia. Intervenção junto a professores da rede pública: potencializando ISBN 85-7396-282-8 a produção de novos sentidos 87 Veruska Galdini 1. Psicologia educacional I. Meira, Marisa Eugênia Melillo. II. Antunes, Mitsuko Aparecida Makino. Wanda Maria Junqueira Aguiar 03-6727 CDD-370.15 Índices para catálogo sistemático: A Psicologia Escolar na implementação do Projeto Político- Psicologia escolar 370.15 Pedagógico da Rede Municipal de Ensino de Guarulhos: construindo um trabalho coletivo 105 Impresso no Brasil Printed in Brazil Mitsuko Aparecida Makino Antunes e colaboradores Reservados todos os direitos de publicação em Língua Portuguesa à Sobre os autores 129 Casa do Psicólogo® Rua Simão Álvares, 1.020 Vila Madalena 05417-020 São Paulo/SP Brasil Tel.: (11) 3034-3600APRESENTAÇÃO A Psicologia da Educação constituiu-se, no início do século, como uma área de conhecimentos que se propunha a estudar questões importantes que interessavam à educação escolar, e, só na década de 1940, tornou-se uma prática profissional, o que propiciou o surgimento do psicólogo escolar, cuja função seria a de resolver pro- blemas escolares. Desde então, a educação tem se constituído no campo profis- sional para uma parcela considerável de psicólogos e, de acordo com pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Psicologia em 1992, depois da clínica (37,2%) e organizacional (29,6%), ela já é a área de atuação no Brasil que mais absorve profissionais (24,4%). No entanto, isso não significa que já tenhamos reunido elemen- tos teórico-metodológicos suficientes e adequados à consolidação de práticas profissionais competentes. Ao contrário, a análise da litera- tura disponível indica que no Brasil a maneira como se conduziu o processo de atuação e produção de conhecimentos na área tem sido alvo de sérias críticas que, principalmente a partir da década de 1980, têm se tornado, cada vez mais, contundentes. Todo esse movimento de crítica, gerado pela reflexão sobre a insuficiência das práticas desenvolvidas em nossos meios, bem como dos quadros conceituais sobre os quais elas vêm se sustentando historicamente, tem oferecido importantes subsídios tanto no senti- do de desvelar os determinantes sociais e históricos que confor- mam o (des)encontro entre a Psicologia e a Educação quanto no sentido de reafirmar a possibilidade da construção de perspectivas mais adequadas.8 MARIA EUGÊNIA MELILLO MEIRA E MITSUKO APARECIDA MAKINO ANTUNES APRESENTAÇÃO 9 A análise do conjunto das principais críticas dirigidas à Psicolo- trabalho de Marisa Eugênia Melillo Meira e Elenita de Rício, gia Escolar parece indicar que ela acabou por se reduzir a uma Psi- ambas da Unesp-Bauru, aponta algumas possibilidades de interven- cologia do Escolar, descomprometida em relação às questões funda- ção, que se constituem em expressões concretas do pensamento crí- mentais da Educação e à necessidade de efetivação de um processo tico já construído em Psicologia e Educação e indicam caminhos de democratização educacional. para que os psicólogos escolares possam ajudar a escola a cumprir Ao se distanciar desse objetivo, os psicólogos têm muitas vezes sua função social de socialização do conhecimento historicamente se limitado a atuar em direção a questões secundárias que, na me- acumulado e contribuir para a formação ética e política dos sujeitos. lhor das hipóteses, são apenas algumas manifestações de problemas Essas reflexões buscam situar o psicólogo escolar como mediador escolares e sociais graves e complexos. no processo de elaboração das condições necessárias para a trans- O processo de culpabilização do aluno, pela via da patologização formação das demandas de queixa escolar e daquelas provenientes dos problemas escolares, tem se fundamentado ao longo de nossa das instituições de ensino, discutindo o referencial teórico-filosófico história em variadas abordagens teóricas, que por diferentes cami- e metodológico que embasa o trabalho desenvolvido em disciplinas nhos, expressam a mesma desconsideração pelas múltiplas determi- teóricas, na supervisão de estágios e em inúmeros projetos de exten- nações da educação. são. O texto ainda apresenta a sistemática de trabalho e as estraté- Acreditamos ser fundamental a denúncia dos compromissos ide- gias utilizadas na intervenção em casos de crianças encaminhadas ológicos da Psicologia Escolar que se expressa claramente em uma para atendimento em função de queixas escolares e em projetos de- tendência histórica de se colocar a serviço, das mais diferentes for- senvolvidos em instituições de ensino. mas, da conservação tanto da estrutura tradicional da escola quanto Wanda Maria Junqueira Aguiar e Veruska Galdini, da PUC-SP, da ordem social na qual ela está inserida. enfocam a intervenção junto a professores da rede pública de ensi- O trabalho que ora apresentamos constitui-se em mais uma ten- no, analisando uma experiência realizada em São Paulo. Destaca os tativa na direção não apenas desta denúncia, mas ainda da constru- pressupostos teórico-metodológicos e as etapas do trabalho, eviden- ção de novas possibilidades de reflexão crítica que possam subsidiar ciando que a Psicologia sócio-histórica pode contribuir para a produ- os psicólogos escolares de forma que eles possam contribuir, de ma- ção de novos sentidos ao trabalho docente, já que possibilita que os neira decisiva, nos mais diferentes campos de atuação, para que se- sujeitos se apropriem e articulem a dimensão histórica, social e jam favorecidos os processos de humanização e reapropriação da institucional; a dimensão subjetiva de sua existência (ou seja, as de- capacidade de pensamento crítico dos indivíduos. terminações que os constituem) e as características específicas da Os autores, docentes e pesquisadores do Departamento de Psi- realidade do professor. Esse é o movimento de potencialização para cologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP-Bauru), do Insti- que o professor construa um projeto profissional criativo. tuto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e da Faculda- O texto de Adriana Marcondes Machado, do Instituto de Psico- de de Psicologia e do Programa de Estudos Pós-graduados em Psico- logia da Universidade de São Paulo (IPUSP), analisa a intervenção logia da Educação da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), bus- do psicólogo junto à escola, buscando destacar como os saberes da cam evidenciar e colocar em discussão algumas expressões possíveis psicologia podem estar a serviço de uma melhor qualidade de ensino de uma prática baseada numa concepção crítica de Psicologia Esco- e aprendizagem. Para a autora, focar essas políticas e essas práticas lar, fundada em um novo compromisso social da Psicologia. implica buscarmos o funcionamento das mesmas na singularidade de10 MARIA EUGÊNIA MELILLO MEIRA E MITSUKO APARECIDA MAKINO ANTUNES cada história escolar, de cada aluno que fracassa, de cada queixa apresentada por um professor. Trata-se de compreender o movi- mento de um campo de forças no qual devemos nos colocar a servi- ço do fortalecimento da aprendizagem e da permanência da criança na escola. A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO Um outro trabalho, organizado por Mitsuko Aparecida Makino Antunes, docente da PUC-SP e assessora da Secretaria Municipal EXPRESSÃO DO PENSAMENTO CRÍTICO EM de Educação de Guarulhos/SP, foi escrito, em verdade, por muitos PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO profissionais desta secretaria, que fizeram um esforço coletivo de socializar sua prática. Com a finalidade de apresentar as possibilida- Elenita de Rício Tanamachi des de atuação da Psicologia Escolar na educação pública, esse tex- Marisa Eugênia Melillo Meira to descreve as ações que têm sido implementadas no âmbito da edu- cação infantil, fundamental, inclusiva de jovens e adultos, em que a Psicologia é um dos fundamentos para a prática educacional e o O objetivo deste texto é o de apontar algumas possibilidades de psicólogo participa coletivamente do processo de construção e im- intervenção concretamente já elaboradas pelas autoras e que se cons- plantação de um projeto político-pedagógico, cuja finalidade é funda- tituem em expressões do pensamento crítico já construído em Psico- mentalmente calcada numa concepção crítica, humanizadora e logia e Educação. transformadora da realidade escolar e social. A palavra-chave deste A Psicologia Escolar é aqui entendida: trabalho é "coletividade": propõe uma ação coletiva para a transfor- Como área de estudo da Psicologia e de atuação/ mação da escola; crê que isso só ocorrerá como produto da ação da formação profissional do psicólogo, que tem no contex- coletividade escolar e foi escrito coletivamente. to educacional escolar ou extra-escolar, mas a ele re- Consideramos que estes trabalhos oferecem contribuições à lacionado foco de sua atenção, e na revisão crítica construção de perspectivas teórico-práticas que se constituam em dos conhecimentos acumulados pela Psicologia como elementos norteadores fundamentais, embora não suficientes, para a ciência, pela Pedagogia e pela Filosofia da Educação, adoção de um compromisso social com a cidadania, a ser concreti- a possibilidade de contribuir para a superação das zado em propostas de atuação orientadas por finalidades indefinições teórico-práticas que ainda se colocam nas transformadoras. relações entre a Psicologia e a Educação (Tanamachi, Marisa Eugênia Melillo Meira 2002, p. 85). Mitsuko Aparecida Makino Antunes São Paulo, setembro de 2003. Desta forma, o que define um psicólogo escolar não é o seu local de trabalho, mas o seu compromisso teórico e prático com as questões da escola. Defendemos que: O melhor lugar para psicólogo escolar é o lugar possível, seja dentro ou fora de uma instituição, desde12 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 13 que ele se coloque dentro da educação e assuma um ampla do que estamos considerando como atuação do psicólogo esco- compromisso teórico e prático com as questões da esco- lar em uma perspectiva crítica, enfocamos, principalmente na segunda la, já que independente do espaço profissional que pos- parte, um exemplo de encaminhamento de ação junto à demanda de sa estar ocupando, ela deve se constituir no foco prin- queixa escolar e, na terceira parte, a metodologia e a sistemática em- cipal de sua reflexão, ou seja, é do trabalho que se de- pregada no trabalho em instituições de ensino. Os fundamentos teóri- senvolve em seu interior que emergem as grandes ques- co-filosóficos são retomados em ambas. tões para as quais deve buscar tanto os recursos explicativos, quanto os recursos metodológicos que pos- sam orientar sua ação (Meira, 2000, p. 36). 1. PRINCIPAIS QUESTÕES TEÓRICO-PRÁTICAS DA Considerando a existência de distintas referências teórico-filo- PSICOLOGIA NA EDUCAÇÃO sóficas e metodológicas iniciaremos o texto com a discussão de al- gumas das principais questões teórico-práticas da Psicologia na edu- Para apresentar as principais questões teórico-práticas da Psi- cação em uma perspectiva crítica. cologia na Educação, iniciamos com a análise das explicações tradi- Para tanto, apresentaremos as questões mais propriamente teó- cionais sobre o fracasso escolar, considerando tanto a realidade edu- ricas da Psicologia na Educação, analisando as explicações tradicio- cacional brasileira quanto a história da Psicologia em relação ao nais sobre o fracasso escolar e as tendências atuais do pensamento movimento de constituição da sociedade, da Educação e da própria crítico em Psicologia Escolar, defendendo que o momento atual exi- Psicologia como ciência. ge uma revisão dos pressupostos teórico-filosóficos e metodológicos sobre o homem em geral, a formação do indivíduo, as concepções de Educação e de Psicologia e a delimitação de um novo sentido Análise crítica das abordagens tradicionais em Psicologia para a Psicologia Escolar. Escolar Em seguida, apresentaremos algumas reflexões enfocando as possibilidades teórico-críticas de intervenção do psicólogo junto à Dados obtidos por pesquisas realizadas sobre o processo de demanda de queixa escolar e em instituições de ensino. escolarização no Brasil¹ revelam ausência de escola para todos, Discutiremos a atuação em Psicologia Escolar, anunciando um evasão ou permanência sem nada aprender (expulsão/exclusão), novo lugar para o psicólogo, buscando delimitar os elementos da ava- índices altos de analfabetismo, mostrando que a impossibilidade de liação e da intervenção, as estratégias mais utilizadas e os resultados constituição da condição humana pela via da educação formal é possíveis. ainda uma realidade em nosso País. Embora considerando que tanto no caso da intervenção junto à Situando a história da Psicologia em relação ao movimento de demanda de queixa escolar, quanto em instituições de ensino as ques- constituição da sociedade, da Educação e da própria Psicologia como tões teórico-práticas envolvidas e as etapas do trabalho sejam as mes- ciência, Maria Helena Patto (1990) aponta-nos como a Psicologia mas, em cada um desses momentos de apresentação no texto tem contribuído para justificar essa realidade educacional. retornamos a elas, ao mesmo tempo que destacamos as especificidades a eles pertinentes. Além disso, para permitir uma compreensão mais IBGE (2001), Otaviano Helene (1997) e Alceu Ferraro (1999).14 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 15 A autora reporta-se ao século XIX para assinalar o momento no cologia em suas relações com a Educação tem sido conduzida por qual a contradição vivida pela burguesia atinge o apogeu, intensifi- finalidades semelhantes. Referenda o status quo da Educação e da cando-se o abismo entre a acumulação de riquezas e as pequenas própria Psicologia como ciência, por meio da ênfase em aspectos conquistas do proletariado que, segregado pela burguesia, já não é particulares dos indivíduos, das famílias ou do meio sociocultural que mais seu aliado. Buscar justificar tal abismo é também uma tarefa caracterizam a maioria de suas explicações. das ciências humanas que nascem e se oficializam nesse período. Neste caso, a única pergunta possível ao psicólogo refere-se a Conforme Patto (1990, p. 17), a burguesia traduz as reivindica- "porque os indivíduos não aprendem", apontando para uma ausência ções das massas em termos assimiláveis pela ordem social existente de compromisso da Psicologia com a condição multideterminada das com o auxílio das ciências. Esse é o caminho mais eficaz para permi- circunstâncias nas quais os indivíduos se humanizam. tir uma participação política, sem que tais reivindicações se tornem ameaças incontroláveis. Desse modo, a Psicologia, para explicar os ajustes da ordem Tendências atuais do pensamento crítico em Psicologia social capitalista em função das exigências dos novos momentos his- Escolar tóricos de sua recomposição, tem transitado entre teorias e aborda- gens que nada mais são do que recursos da Psicologia como ciência A visão tradicional e hegemônica da Psicologia na Educação para a reordenação do status quo da própria sociedade, da Filosofia, acima apresentada, passou a ser sistematicamente denunciada no da Sociologia... Brasil, a partir da década de 1980, momento no qual se consolida Podemos concluir com a autora que, tendo surgido nesse perío- uma postura crítica em relação à identidade e à função social do do, a Psicologia mantém-se até o momento presente, hegemo- psicólogo escolar. Tendo como uma das principais referências o tex- nicamente, reproduzindo essa condição, conforme o quadro a seguir to de Maria Helena Patto (1984), o movimento de crítica pauta-se, permite visualizar². nesse momento, pela constatação e denúncia dos pressupostos teóri- Embora reconhecendo a forma extremamente simplificada de co-práticos da Psicologia e da Educação e pelo diagnóstico e análise apresentação dos dados contidos no quadro³, é possível identificar crítica da história da Psicologia na Educação, enfatizando concep- que a heterogeneidade por ele revelada é apenas aparente. Conside- ções progressistas e o trabalho coletivo, entre outros. ramos ser esta a expressão do pensamento de Patto (1990), quando A década de 1990⁴ assinala um período privilegiado desse mo- afirma que embora por caminhos teórico-práticos diferentes, a Psi- vimento, marcado pela tentativa de descrever, explicitar, construir/ propor respostas que traduzem em ações as tendências apontadas 2 quadro busca sistematizar, ainda que de modo bastante esquemático, alguns dos na década anterior. aspectos que caracterizam, principalmente, as relações entre o movimento teórico/ político, a concepção teórica e a abordagem presente em cada um dos momentos desse Na atualidade, verificamos que, apesar de persistirem as ten- movimento, os procedimentos, os tratamentos, os termos de referência e onde está dências já assinaladas, têm ocorrido várias tentativas de retorno às situada a origem do problema em cada caso. Embora simplificado e inacabado, preferimos o quadro porque nos permite melhor visualizar o desenvolvimento da Psicologia na Educação, em relação com o contexto de nossa sociedade. 4 Para uma análise das tendências atuais do pensamento crítico em Psicologia Escolar, Os dados contidos no quadro foram obtidos por meio da leitura de textos de Maria pode-se consultar textos das autoras, publicados no ano de 2000 no livro Psicologia e Helena Souza Patto (1990), Newton Duarte (1996) e troca de idéias entre as autoras e Educação: desafios teórico-práticos, organizado em conjunto com as professoras Marilene Proença. Marilene Proença e Marisa Rocha.Movimento Concepção Abordagem Procedimentos Tratamento Termo de Origem do Por que a 16 teórico e teórica referência problema criança não político aprende? Darwinismo Teoria do Psicomoteria Testes de Aptidão Educação Criança No indivíduo Hereditariedade social Dom ou das e Personalidade Especial anormal (determinantes (consolidação da Aptidões heredológicos) sociedade Individuais capitalista) Movimento Ambientalismo Clínica Psicodiagnóstico Psicoterapia/ Criança Ambiente Fatores Higienista (Psicanálise X e (observação/ Orientação problema familiar emocionais (família Behaviorismo) Modificação entrevista/história Familiar e desajustado ou controle idealizada) do Comporta- de vida) Escolar Na criança e inadequado do mento Condicionar seus relaciona- comportamento comportamentos mentos adequados e (determinantes eliminar da personalida- inadequados de) ELENITA DE Rício TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA Movimento de Organicismo Organicista Exame Neurológico Medicação/ Criança com Disfunção Fatores Saúde Escolar (alteração na e Terapias de distúrbio de cerebral orgânicos ordem natural Eletroencefalograma reeducação aprendizagem (determinantes da aprendiza- neuropsicológicos) gem por anormalidades neurais) Reivindicações Interacionismo Teoria da privação/ Testes de Educação Criança Determinantes Aspectos de minorias carência cultural Aptidão e Compensatória carente/ sociais e socioculturais raciais e étnicas Personalidade, (merenda/ deficiente culturais (nível nos EUA Psicodiagnóstico estimulação ou diferente sócio-econômi- (acordos de ou Modificação precoce/ co) cooperação de Comporta- antecipação da Brasil X EUA) mento escolaridade / programas especiais para crianças carentes) Mundialização Inatismo, Socioconstrutivista, Aplicação de Aguardar Criança No processo de Não atingiu (Neoliberalismo Ambientalismo, Sociointeracionista, provas para maturação imatura desenvolvimento maturidade Pós- Interacionismo/ Sociointeracionismo avaliar desenvol- física das do indivíduo em suficiente Modernidade) Construtivismo Construtivista, vimento/ funções contato com o Ausência de A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO Construtivismo capacidade da intelectuais meio adequado ambiente Pós-Piagetiano criança Preparação de facilitador Avaliação de ambiente condições do favorável à ambiente aprendizagem 1718 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 19 concepções tradicionais, que acabam sendo incorporadas ao discur- homem se relaciona com a natureza e com os outros homens, crian- so das concepções defendidas pelo movimento de crítica, como seria do as condições para a produção e reprodução da humanidade; o o caso por exemplo das aproximações entre as teorias de Piaget e caráter material e histórico do desenvolvimento humano que per- Vigotski, estudadas por Duarte (1996, 2000). mite compreender as relações de produção como determinantes da Assim compreendidas, essas tendências atuais do pensamento forma e do conteúdo das relações entre os homens e, finalmente, a em Psicologia e Educação, podem reafirmar, neste início de século, o lógica dialética, cujas categorias centrais contradição, totalidade, movimento de recomposição das justificativas da ciência psicológica particularidade..., viabilizam o conhecimento e a interpretação da e pedagógica para a manutenção da realidade educacional no con- realidade, considerando a origem multideterminada e contraditória texto da sociedade mais ampla, quadro semelhante ao já denunciado dos fenômenos, apreendendo-os em sua dinâmica horizontal (sua por Patto (1984). história de desenvolvimento) e vertical (articulação entre aparên- Deixando de se posicionar diante das dimensões ontológica, cia e essência). epistemológica e lógica do conhecimento, o retorno às explicações Como a concepção Materialista Histórico Dialética foi gestada tradicionais, encoberto por meio de uma nova linguagem, prepara o visando à análise crítica da sociedade capitalista, ela veicula, para cenário ideológico propício às mudanças para adaptar o já existente além de um visão de homem e de sociedade, uma concepção ética. ao novo momento histórico social, sem que seja necessário questio- Implica a responsabilidade de se construir uma nova ordem social, nar as finalidades da organização social, da produção do conheci- capaz de assegurar a todos os homens um presente e um futuro mento e dos próprios indivíduos. dignos. Exige compromisso pessoal e com a construção de um co- Neste contexto, a tese aqui defendida refere-se ao rompimento nhecimento científico capaz de contribuir para que o homem se com estas tendências, tanto por meio da explicitação de fundamen- objetive de forma social e consciente, tornando-se, cada vez mais, tos teórico-filosóficos e metodológicos que permitam discutir finali- livre e universal. A finalidade explícita é o compromisso ético-políti- dades histórico-sociais concretas, quanto pela ênfase em referencial com a emancipação humana, estando, portanto, presentes as di- ainda pouco explorado como alternativo à superação dos conheci- mensões ontológica formação do ser dentro de determinadas cir- mentos elaborados pela Psicologia em relação à Educação. cunstâncias sociohistóricas, epistemológica como se conhece esse processo e a dimensão lógica lógica inerente a essa peculiaridade e que precisa ser apropriada. Uma concepção crítica de Psicologia Escolar Nesse sentido, concordamos que a concepção científica sobre o homem em geral, na visão de Marx, pode dar sustentação aos estu- Tomamos como referência teórico-filosófica e metodológica, dos sobre a individualidade/subjetividade, uma tarefa para a Psicolo- o conjunto de elaborações da Psicologia, efetivados a partir do Ma- gia, assumida por Sève (1979), Vigotski (1996), Leontiev (1978), en- terialismo Histórico Dialético, enfocando as categorias que têm im- tre outros. plicações imediatas para a compreensão do processo de humanização No nível da formação da individualidade, enfocamos os funda- dos indivíduos no contexto sociohistórico atual. mentos da concepção histórico-social do ser humano, tal como pro- No nível da análise sobre o homem em geral desenvolvida por põe Leontiev (1978), no texto "O homem e a cultura". Ao explicitar Marx, destacamos o trabalho como atividade vital por meio do qual o o momento de constituição da natureza social do homem, o autor20 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 21 explica como se dá o processo de apropriação das objetivações hu- Ao discutir as finalidades da educação escolar, destaca o cará- mano-genéricas que permite a objetivação do indivíduo, o lugar da ter conservador e ao mesmo tempo contraditório do projeto burguês comunicação e da educação (em geral e escolar) nesse processo, de escola, pensando por contradição tanto as relações da escola com sem deixar de considerar que tudo isso ocorre em uma determinada a sociedade, quanto a função da escola e os temas relativos ao pro- circunstância, no caso, a sociedade capitalista que tem a alienação cesso educativo (conteúdos, métodos, relação professor/aluno). Toma como uma de suas marcas. Como não há unidade no referido pro- o processo de democratização da educação no sentido formal e subs- cesso de apropriação, porque esta forma de organização social é tancial, defendendo a garantia de acesso e permanência na escola, caracterizada por diferenças nas condições de vida (fruto da desi- como uma condição de humanização no sentido da "onilateralidade". gualdade econômica, de classe e de relação com as aquisições O autor permite apresentar, como elementos que garantam a sociohistóricas), a constituição da individualidade está condicionada transformação da escola em instrumento de emancipação: à superação do processo de alienação. a natureza e a especificidade do trabalho da escola, enfatizando Discutindo a alienação econômica e cultural, o autor aponta ele- a seleção e organização dos conteúdos com base no saber universal mentos progressistas e reacionários da cultura intelectual, ou seja, os (clássico/erudito), o movimento de continuidade (com aquilo que o elementos que servem ao desenvolvimento da humanidade e aqueles aluno já sabe) e ruptura (quando o professor apresenta, introduz no- que servem ao interesse das classes no poder. Explicita, finalmente, vos conhecimentos) e a discussão sobre as práticas diárias (o que/ a ruptura entre as gigantescas possibilidades desenvolvidas pelo gê- como/para que fazer, a fim de garantir a transformação a partir da nero humano e a pobreza e estreiteza que cabe aos homens individu- educação escolar); almente como a contradição que caracteriza a sociedade capitalista. a competência técnico-pedagógica do professor para selecio- Defende que essa situação não é eterna porque não o são as rela- nar os conteúdos e os procedimentos de ensino e o compromisso ções socioeconômicas que lhes dão origem, colocando a superação político com os pressupostos e as finalidades de emancipação; dessa realidade como uma possibilidade no contexto atual. o lugar do professor como coordenador da ação educativa e o Concluímos, a partir da análise do autor, que a superação da trabalho coletivo; alienação só se constitui uma possibilidade quando a compreende- a compreensão da escola como um local, ao mesmo tempo, mos por contradição (porque o que os indivíduos precisam para dela conservador e revolucionário que difunde a cultura, que é ao mesmo se libertar está no mesmo contexto que a provoca), quando conside- tempo fictícia e verdadeira. ramos a historicidade dos fatos humanos e quando podemos enten- As práticas pedagógicas imprescindíveis a uma educação esco- der para transformar as circunstâncias. Além disso, é preciso consi- lar emancipatória, enfocadas por Giroux (1986), acrescentam as- derar tanto um processo de educação para permitir a humanização pectos importantes a respeito da natureza ativa da participação dos (que implica compromisso com a superação da alienação), quanto alunos e dos professores no espaço da educação escolar. Propondo uma concepção de Psicologia que possa dar sustentação, no que a o professor como mediador entre os alunos e o conhecimento e o ela compete como ciência, a esse processo de educação. conhecimento como mediação entre os que aprendem, o autor anun- Em relação à Educação, encontramos na Concepção Histórico- cia que as relações em sala de aula devem garantir a aprendizagem crítica de Saviani (2000) a explicitação de finalidades transformadoras para a Educação e para a Psicologia. 5 Para aprofundar essa discussão, ler Manacorda (1989).22 ELENITA DE Rício TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 23 do pensamento crítico. Professores e alunos devem ir além do raci- rar sua emancipação. Trata-se de tomar como tarefa também da ocínio fragmentado, buscando a origem do conhecimento para per- Psicologia o estabelecimento de mediações entre o desenvolvimento mitir a autoria dos próprios atos. Devem aprender porque certos va- histórico-social da humanidade e a vida particular dos indivíduos. lores são imprescindíveis à vida humana, indignando-se diante das E se no momento atual as relações entre os homens têm favore- forças contrarias à qualidade da existência humana, despertando cido a alienação, deve-se ressaltar que estas mediações teóricas não paixão e otimismo em relação às possibilidades de um mundo me- podem apenas explicar como e porque os indivíduos agem ou são de lhor. Conforme Suchodolski (1984), o processo de formação geral e uma ou de outra maneira, mas deverão também buscar responder específica dos indivíduos deve levá-los a responsabilizar-se pela trans- como e porque os indivíduos podem vir a agir ou tornarem-se seres formação da realidade sociohistórica atual. emancipados. Ainda discutindo o espaço específico e possível nas circuns- A concepção de Psicologia de (1996, 1998, 2000, 2001) tâncias atuais da escola no processo de transformação da socieda- enfrenta esse desafio, marcada por princípios que caracterizam a de, Pucci (1995) sinaliza na direção da construção de uma teoria elaboração de estudos da Psicologia, desenvolvidos a partir do Ma- comprometida com a transformação humana e social, destacando: terialismo Histórico Dialético. a educação das consciências, para que os indivíduos possam Entendendo-a como ciência que se propõe a explicar como a par- tomar distância do material a ser interpretado, ao mesmo tempo tir do mundo objetivo (que é histórica e socialmente determinado) se apreendendo no hiato entre um presente e um futuro radicalmente constrói o mundo subjetivo do indivíduo, Vigotski e os demais autores diferentes, as contradições a serem superadas por ação individual citados acima explicitam tanto a concepção e social; que embasa as análises da Psicologia, quanto os procedimentos e as a necessidade de romper com a autoconfiança e a auto-satis- funções de tal conhecimento; não reduzem pensamento e a ação fação do senso comum para resistir/superar o estado estabelecido humana a determinações do psiquismo individual", não partem, por- das coisas, indignando-se com a realidade; tanto, "de um errôneo primado ontológico do indivíduo", mas das rela- o restabelecimento das condições de autonomia, liberdade e ções sociais para chegar à "biografia" do indivíduo e retornar ao soci- consciência dos indivíduos, trabalhando com o conhecimento neces- al; não reduzem o conceito de indivíduo à descrição das característi- sário ao rompimento da consciência domesticada pela via da forma- cas de indivíduos em geral (indivíduos empíricos)⁷ ção cultural; O projeto principal de Vigotski (1996) constituiu-se no estudo a importância da conscientização dos mecanismos subjetivos dos processos de transformação do desenvolvimento humano em da dominação e dos motivos que levam a ela, para que a submissão se torne insuportável e o desejo de viver melhor tome conta dos 6 Aqui fizemos um recorte no interior da Psicologia Soviética, para situar as contribuições indivíduos. de Vigotski, que estudou principalmente aqueles temas que nos permitem aproximar a Psicologia da Educação. Entre outros, poderíamos ainda buscar as contribuições de Neste contexto, consideramos juntamente com Sève (1979), Alexander Romanovich Luria e de Alexei Nicolaevich Leontiev e de outros Duarte (1993) e Vigotski (1996) que cabe à Psicologia oferecer sub- representantes da Psicologia Soviética, tais como Zinchenko, Petroviski, Davidov, Andréeva, conforme indicação de Marta Shuare (1990). sídios para o desenvolvimento de uma concepção científica do indiví- Para análise dos princípios que caracterizam os estudos da Psicologia, desenvolvidos duo, entendido como síntese da história social da humanidade, de a partir do Materialismo Histórico Dialético, consultar as fontes utilizadas para as cujo desenvolvimento deve conscientemente participar para assegu- citações, além dos textos de Lucien Sève Marxismo e a Teoria da Personalidade (1979) e do texto de Newton Duarte A Individualidade para-si (1993).24 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 25 sua dimensão filogenética, histórico-social e ontongenética, buscan- processo de internalização, medeia a ação dos indivíduos. Portan- do chegar até à dimensão micro-genética formação e manifesta- to, para o autor, a comunicação é fator de desenvolvimento. Deve ção de determinado processo psicológico. Priorizou as funções psi- ser clara, precisa, provocar dúvidas e o desejo de iniciar novos cológicas superiores controle consciente do comportamento/aten- processos construtivos. ção/pensamento abstrato/capacidade de planejamento, as mudanças No que se refere à relação aprendizagem/desenvolvimento, ex- qualitativas do comportamento, a educação em geral e escolar e o plica que a aprendizagem (escolar e extra-escolar) possibilita e mo- seu papel no desenvolvimento. A finalidade de seu trabalho era vimenta o processo de desenvolvimento e que ele é dinâmico (não redefinir o método de compreensão do fenômeno humano, para des- gradativo, nem de evolução progressiva ou de acumulação quanti- cobrir o meio pelo qual a natureza social se torna a psicológica dos tativa, como no caso das outras concepções), no qual estágios de indivíduos. relativa estabilidade sucedem períodos de mudanças radicais, com Para tanto, destaca o cérebro como órgão material da atividade ênfase nos momentos de crise. De acordo com a perspectiva mental, que também se adapta às transformações no meio físico e sociohistórica, o desenvolvimento ocorre no nível real (aquilo que o social; o processo de internalização que permite a apropriação de indivíduo já é capaz de fazer só) e por meio da Zona de Desenvol- conceitos, valores e significados, a partir da atividade cognitiva e da vimento Próximo obtida pela diferença entre o que é capaz de consciência em relação à atividade externa; o conceito de mediação, fazer só e aquilo que faz com ajuda e que explica a possibilidade de possível por meio dos sistemas simbólicos que representam a reali- novas aprendizagens. dade (instrumentos e linguagem, que regulam as ações sobre os ob- Nesse caso, a educação escolar deve produzir desenvolvi- jetos e sobre o psiquismo respectivamente). Conclui que os proces- mento que segue a aprendizagem e cria a Zona de Desenvolvi- de funcionamento mental do homem são fornecidos pela cultura mento Próximo. O ensino deve estar voltado para novos conheci- (no plano por meio de instrumentos psicoló- mentos. E a Psicologia deve estudar como os indivíduos elaboram gicos são internalizados (movimento intrapsicológico), produzindo o conceitos, enfatizando as estratégias, os erros, o processo de ge- movimento de individuação (que é singular, mas socialmente neralização. construído). A teoria de Vigotski lembra ainda que a formação da consciên- Estudando principalmente a relação pensamento/linguagem, a cia individual envolve as relações entre pensamento/linguagem, de- relação a consciência e as emoções, senvolvimento/aprendizagem, o significado das mesmas e os afetos o autor supera as concepções inatistas, ambientalistas e interacionistas e emoções que oferecem as condições para sua elaboração. Desse que reforçam a idéia de determinismo prévio (inato ou adquirido), modo, para o autor, o pensamento tem origem na esfera motivacional defendendo a perspectiva sociohistórica ou histórico-cultural para (desejos, necessidades, interesses, afetos...) que explicam o porquê explicar tais temas relativos ao desenvolvimento humano. de sua existência. Toma o pensamento e a linguagem como processos de origem Os aspectos da teoria do autor aqui ressaltados permitem biopsicológica diferentes e desenvolvimento independente, mas que explicitar espaços muito bem delimitados para a Psicologia e para a se relacionam para permitir o funcionamento psicológico superior. Educação, no contexto da constituição histórico-social dos indivídu- A linguagem, impulsionada pela necessidade de comunicação, ex- os. Em ambos os casos, a finalidade seria favorecer os processos de pressa o pensamento e age como organizadora do mesmo e no humanização e a reapropriação da capacidade de pensamento crítico.26 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 27 No que se refere à educação, este objetivo concretiza-se por meio apropriando-se dos bens produzidos pelo conjunto dos homens. da valorização do papel da escola para trabalhar com o que ainda não Que a Psicologia é a ciência que se propõe a explicar como a está formado no aluno (adiantando-se ao seu desenvolvimento), com o partir do mundo objetivo se constrói o mundo subjetivo do indiví- controle das atividades, sempre privilegiando a autonomia, a criatividade, duo, então os processos de subjetivação/objetivação do mundo a automotivação e a diferenciação. Ainda, a ênfase no papel do pro- social pelos indivíduos são o seu objeto de estudo. E a Psicologia fessor como mediador na dinâmica das relações interpessoais e na não pode desconsiderar a dimensão educativa em qualquer de relação da criança com os objetos do conhecimento, ressaltando um suas áreas de estudo/atuação/formação A Psicologia Escolar não lugar importante para a imitação e para o brinquedo. pode ser compreendida como especialidade na formação do psi- Em relação ao espaço da Psicologia, cabe um posicionamento cólogo, embora tenha especificidades. Necessariamente, há que diante das finalidades sociais da Educação e da própria Psicologia se rever a Psicologia na Educação, atribuindo-lhe um novo senti- como ciência, sempre pautado na explicitação e conhecimento dos do, além de um outro lugar ao psicólogo. pressupostos teórico-filosóficos e metodológicos que fundamentam sua ação e reflexão; a redefinição do seu objeto de estudo, enfocando o modo como a atividade dos alunos é determinada pela Educação e 2. A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO JUNTO A DEMANDA DE a descoberta das leis psicológicas que regem esse processo. Cabe, QUEIXA ESCOLAR ainda, a consideração dos determinantes sociais e dos aspectos sub- jetivos inerentes à organização escolar e à definição dos problemas de ensino-aprendizagem, visando a transformação do trabalho da Situamos o psicólogo como mediador no processo de elabora- escola. A atuação do psicólogo deve visar uma multiplicidade de ção das condições necessárias para a superação da queixa escolar, ações, uma vez que a identidade profissional está nas finalidades a uma demanda presente em nosso trabalho. serem atingidas por recursos teóricos e práticas diferenciadas; a Para tanto, defendemos a aprendizagem dos conceitos cotidia- pesquisa não pode se constituir em mera investigação científica, deve nos e científicos como a atividade principal da criança para garantir produzir efeitos, e permitir a participação de todos no processo de o seu processo de humanização, uma vez que ela possibilita e movi- transformação dos resultados em ações concretas para transformar menta o processo de desenvolvimento do pensamento, tendo a lin- a realidade. guagem, a consciência e as emoções como mediadoras desta ação. Podemos então concluir que o referencial aqui apresentado per- Assim, podemos tomar como objeto de estudo/intervenção da Psico- mite o reconhecimento de lugares específicos no interior do proces- logia na Educação, o modo como esta atividade da criança é deter- so de humanização dos indivíduos, à Filosofia cabendo as finalidades minada pela Educação em geral e/ou escolar, além da descoberta (por que e para que tal processo); à Psicologia, a explicação de como das leis psicológicas que regem este processo. a aprendizagem e o desenvolvimento ocorrem e à Educação Escolar, No que compete à ação do psicólogo, propomos a descrição e a efetivação da educação/aprendizagem por meio de recursos peda- análise da relação entre o processo de produção da queixa escolar e gógicos concretamente organizados pelo professor. os processos de subjetivação/objetivação dos indivíduos nele envol- Se estamos considerando que a Educação é o principal pro- vidos, como uma mediação necessária à superação das histórias de cesso por meio do qual os indivíduos se objetivam como humanos, fracasso escolar.28 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 29 tinha dois anos de idade quando, em con- aula e apesar de copiar muito bem quando quer, não sabe dições precárias de saúde e financeiras de sua família, ler nada. Só vai passar de ano devido à progressão conti- foi levado por sua madrinha para morar na casa dela. nuada..., afirma o encaminhamento feito pela escola. O marido da madrinha e as filhas não queriam a ado- ção, mas esta foi feita à revelia de todos, inclusive dos Entendemos a "queixa" como uma síntese de múltiplas de- pais biológicos. terminações relações familiares, grupos de amigos, contexto Restabelecido, todas as vontades satisfeitas e ouvin- social e escolar, portanto, consideramos que a superação das con- do desde as primeiras artes e desobediências que não dições nas quais a "queixa" é apresentada depende da ação com- poderia ser diferente mesmo, afinal seu futuro é ser um prometida e consciente de todos aqueles com ela envolvidos, catador de papel como pai biológico, chegou a hora mediada pelo psicólogo. de ir para a escola... a mesma na qual também estudam A escola diz que o ideal seria Herbert ir para uma seus irmãos biológicos. classe especial, afinal ele tem "problemas" porque é A mãe adotiva apressa-se em contar sua história para adotivo. médico confirma, receitando medicamentos a direção/coordenação e professores da escola. Trata- considerados adequados para o caso. A mãe adotiva se de uma criança que inspira cuidados... A última birra diz que sem os remédios não dá para "agüentá-lo", ele que ele foi quando estava em consulta médica de bate nela..., nos colegas da escola, não obedece, vai rotina. O médico, amigo da família, recomendou que para a diretoria, não faz o que a professora pede... As consultassem um neurologista porque menino é muito irmãs adotivas dizem que é muito mimo, que ele tem tudo nervoso. A ele foi prescrito calmante e antidepressivo o que elas não tiveram. Junto com o pai adotivo elas que fazem oscilar entre a apatia total e a euforia, de- acham que ele deve voltar a morar com os pais biológi- pendendo do medicamento tomado (dorme tarde, não tem cos. A mãe adotiva e as professoras acham que tudo sono na hora em que todos dormem; na escola fica pros- fica pior quando Herbert encontra com os irmãos e os trado ou bate, briga, não para quieto...). pais biológicos... Quando ele vai brincar na casa dos Logo ao fim do primeiro ano, a escola que já havia amigos, ele briga e tem de voltar para casa. Os pais dos conversado semanalmente com a mãe adotiva, faz en- amigos não querem mais que os filhos brinquem com caminhamento da "queixa" para Centro de Psicolo- Herbert. Na escola, quando tem passeios, os pais já per- gia, para a Psicologia Escolar. guntam se o Herbert vai... Nesse momento, Herbert encontra-se com 8 anos, é agressivo, desobediente, não tem concentração na sala de Escola, professores, pais, amigos, a criança e o próprio psicólo- go precisam compreender que a "queixa" é apenas a aparência, o nível imediato que se caracteriza como uma representação isenta de As análises teórico-práticas da atuação do psicólogo serão acompanhadas, no decorrer análise, cabendo ao psicólogo mediar a compreensão da essência do do texto, de trechos retirados do relatório de um trabalho desenvolvido em 2001 e 2002 pelas estagiárias Aline Luzia Pavan e Célia Regina da Silva do curso de graduação que foi apresentado como "queixa", por meio da investigação/expli- em Psicologia da UNESP-Bauru, respectivamente e supervisionado por Elenita de cação/ação conjunta. Rício Tanamachi. Para evitar identificação, o nome do cliente foi substituído.30 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 31 A professora disse que Herbert tem problemas para Herbert não quer falar, nem vivenciar qualquer situ- aprender porque viveu em precárias condições até 2 anos ação que se assemelhe à escola. Quando os temas refe- de vida. Noutro dia, disse que tem problema porque é rem-se a outras situações de seu dia-a-dia, ele esbofeteia adotado..., é traumatizado por se sentir abandonado os bonecos, xinga a psicóloga, diz que ela não sabe de pelos pais biológicos e é mimado pela mãe adotiva que nada e que não vai fazer nada porque está com sono. tenta compensar as carências... Diz que não sabe ler nem escrever. Outras vezes diz que vai à escola para aprender... Perguntamos sobre os conteúdos escolares, procuramos enten- A psicóloga insiste para que ele faça um desenho, der como são trabalhados na sala de aula e investigamos com a es- conte uma história, leia ou ouça a leitura de um livri- cola (em conversa com professora/coordenadora/diretora e em ob- nho, escreva o seu nome ou alguma letra que conhece, servações na escola) o que acontece quando a professora ensina, o brinque de escolinha. que ensina, quando os alunos aprendem, quando não aprendem. O Embora irritado com esta condição insuportável que que ocorre que às vezes não dá vontade de ensinar, de aprender? O todos (pais, escola, a psicóloga e ele próprio, que não que acontece quando os alunos fazem uma parte do que é solicitado? consegue ver sua realidade de outro modo, já que é im- Quando o aluno é encaminhado ao médico, ao psicólogo?... O que pedido de insistem como sendo a única ocorre quando o professor pede ajuda?... possibilidade... (se conhecessem outras formas de aná- A mãe adotiva disse que a professora não sabe ensi- lise talvez tivessem elementos para romper com essas já nar, que a escola chama os pais toda semana para co- cristalizadas)... Herbert vai à aula, acredita que é lá que brar que façam aquilo que é trabalho da escola... que a irá aprender, quando a professora passa atividades professora deveria ser mais enérgica. Em outro momen- iguais as dos colegas, ele se empenha e participa ao to disse que cobra demais... Ela também acha que o me- menos. Quando a psicóloga diz que ele não precisa fa- nino possui problemas por ser adotivo. "Ele tem proble- zer a atividade, mas que ela vai realizá-la... e joga com ma de cabeça, por isso não aprende", disse em um dos os pais adotivos, ou lê e escreve... ele entra na atividade encontros com a psicóloga... e mostra tudo que já é capaz de fazer... As irmãs adotivas e o pai culpam a mãe adotiva por Herbert adora encontrar os irmãos biológicos. Ele dar atenção demais ao menino. pai já decretou, ele quer ir na casa deles... ver os pais biológicos... A escola vai ser como os pais biológicos, não tem jeito. e os pais adotivos não querem que isso ocorra..., mas não falam sobre isso... A mãe adotiva tem medo de perdê- Fizemos, com a família adotiva, uma lista do que Herbert faz, para lo... A professora acha que desconcentra... Os irmãos destacar que a família só observa aquilo que considera errado, negativo. adotivos e o pai acham que tem de ir e ficar... A psicólo- E se pensamos nos afazeres domésticos já realizados, nas tarefas esco- ga não sabe a hora exata de suas intervenções. Como lares quando ele realiza, nos carinhos feitos a todos...? que faz com contar esta história a todos? Esquece-se que a história que a mãe adotiva o trate de modo diferente do que o faz com as demais poderia ser elaborada por todos, desde que cada um filhas? O que faz o pai adotivo achar que será igual aos pais biológicos? deixasse de entender que esta é tarefa exclusiva dele...32 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 33 Herbert, sem conhecer estas expectativas e análises, só so descobrir por esse meio a verdadeira relação que subjaz quer ficar com todos, quer desfrutar da riqueza de pos- nesses processos por detrás da forma exterior de suas ma- sibilidades que sua condição de vida lhe permite. Impe- nifestações. Desvelar essas relações é a missão que há de dido, irrita-se... A professora desiste, a mãe está cansa- cumprir a análise. da e não sabe mais que fazer. O pai e as irmãs adoti- vas acham que deve voltar para a família biológica. Um Para dar conta desse trabalho, Collares e Moysés (1997) suge- dia a mãe adotiva viajou, ele quis bater numa das irmãs rem que o psicólogo deve olhar não para o que a criança não tem e adotivas, ela ficou brava e ele fugiu e foi parar na casa não sabe, mas para o que ela sabe e gosta de fazer. Assim como da família biológica... indica Meira (2000), o profissional deve articular o processo de ava- liação/intervenção a partir daquilo que todos apresentam como da- A avaliação e a intervenção não podem se pautar por métodos dos concretos, já conhecidos, como entendem e agem nas situações que visem encontrar nos indivíduos a explicação para a "queixa". apresentadas. Não se trata de desfocar a criança, para culpabilizar a família e/ou a Nesse caso, com a criança observamos nas atividades realiza- escola. Mudamos a pergunta, em vez de nos dirigirmos a pessoas ou das durante os encontros, os aspectos que estão relacionados com situações isoladas o que tem efeito paralisador buscamos as nossa investigação, elementos que revelam seu potencial de aprendi- circunstâncias, porque estas podem ser transformadas. zagem quando colocada diante de situações-problema, desafios. Com Se consideramos que a subjetividade só se constitui a partir das a família e a escola, investigamos as concepções, as hipóteses sobre condições concretas de vida dos indivíduos, é a historicidade dos a "queixa", o que fazem para superá-la e quais são suas expectati- fatos apresentados como "queixa" que deverá ser investigada. Tra- vas. Avaliamos e mobilizamos, portanto, as objetivações, os signifi- ta-se de buscarmos, com todos os envolvidos, as ações, os aconteci- cados, os sentidos atribuídos ou a serem atribuídos, visando preparar mentos, as concepções que "produziram" a "queixa" e "motivaram" a apropriação de novas possibilidades. seu encaminhamento, conforme nos indica Machado (2000). A avaliação aqui adquire caráter investigativo e não classifi- A intervenção tem dois eixos principais que não po- catório, do que concluímos que a base de nossa avaliação é o resgate dem ser trabalhados em separado. O primeiro eixo refe- histórico das situações concretas que permitiram a existência da "quei- re-se à relação desenvolvimento/aprendizagen em xa". Identificar as possibilidades concretamente existentes para a Herbert e em todas as pessoas envolvidas, na perspecti- superação dessa condição, constitui-se no desafio da intervenção. va da constituição das condições de humanização pela Conforme Vigotski (Duarte, 2000, p. 87), devemos: via do conhecimento de conteúdos pertencentes tanto à educação escolar, quanto à Psicologia. O segundo eixo Saber descobrir sob o aspecto externo do processo seu refere-se à elaboração de afetos/emoções como motivos conteúdo interno, sua natureza e sua origem. Toda a dificul- compatíveis com a formação da consciência. dade da análise científica radica no fato da essência dos Quando a professora desiste de ensinar Herbert, objetos, isto é, sua autêntica e verdadeira correlação não aprendizagem dele em relação a novos conhecimentos, coincidir diretamente com a forma de suas manifestações fica defasada... Constata-se ausência de mediação da externas e por isso é preciso analisar os processos; é preci- linguagem (verbal e escrita)... Ele não pede, empurra...34 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 35 ele "manda" a psicóloga, ou a mãe e pai escreverem o com Herbert e em outras circunstâncias semelhantes... resultado dos jogos... Ele não utiliza a linguagem como Ele quer contar tudo isso para a família biológica e pede um recurso nas relações cotidianas ou mesmo escola- à psicóloga vai comigo?"... res... As pessoas não conversam com ele, não explicam Todos precisam também entender que a adoção não o que está acontecendo... Ele também não quer escrever é limite, mas uma condição, assim não pode ser causa o que já sabe, precisa aprender que quem sabe uma da não-aprendizagem, da agressividade, do mesmo parte, com ajuda, poderá saber o todo. Precisa ser de- modo que o trabalho do professor, da família e mesmo safiado a ouvir as explicações, precisa ser cobrado... do psicólogo podem ser condições a serem preserva- Necessita entender-se dentro do processo de alfabetiza- das ou superadas. Se tomados como limites, podem ção, pode estabelecer uma outra relação com o seu pro- imobilizar. cesso de aprender a ler, escrever, contar... Pela via do Quais são as possibilidades concretas existentes para conhecimento, os motivos começam a ser compatíveis com a superação dessa história que já não é mais somente a novas possibilidades de aprender... história de Herbert? Mas, a dele em relação à da pro- Um dia a psicóloga deixou o nome dos colegas de fessora, dos pais, da psicóloga em formação... Do que Herbert e o dele próprio na lousa da sala de atendimen- efetivamente não dá para abrir mão? to. Quando ele entrou, ela disse "vou apagar aqui; por Herbert precisa por sua descoberta a serviço da que será que deixaram a lousa assim?... o que será que aprendizagem de conhecimentos úteis a uma vida, cada estavam fazendo? Me ajude aqui!" Ele diz "olha o meu vez mais, autônoma e participativa ele vai fazer 10 nome aqui! Ta cheio de nome...", e reconheceu mais al- anos e só pode sair de casa acompanhado, não pode guns nomes. "Herbert, o que você está fazendo?" "Es- ver os pais biológicos quando quer, não faz as ativida- tou lendo nomes!" "Lembra quando você dizia que não des escolares como os colegas... sabia ler? E agora?" "Agora eu já sei"... A psicóloga A família adotiva precisa reconhecer a legitimidade continua... "Quem sabe ler alguns nomes, pode ler ou- da relação de Herbert com a família biológica e que o tros, pode escrever também. É só ter alguém que ensine; fato de ter duas famílias enriquece sua história. Ele para isto existe a escola, professor, ninguém nasce sa- não precisa escolher uma... Isso deixa todos mais se- bendo..." Avaliando o dia, pergunta: "o que aconteceu guros! Deve ainda entender que a adoção não é cau- de bom hoje?" Herbert apressa-se...: "descobri que sei sadora de dificuldade para aprender... Convencer-se ler e que posso escrever" e a psicóloga diz "quem preci- de que ele é capaz de aprender... que a escola sa saber disso? Vamos pensar como contar e vamos fo- deve ensinar... tografar, desenhar este momento"... No mesmo dia, faz A escola, de posse daquilo que Herbert já é capaz de uma reunião com a família adotiva, na qual Herbert con- fazer, precisa desafiá-lo na direção do que ainda não ta tudo o que ocorreu... Depois, as fotos e desenhos vão sabe realizar só, solicitando-o, passando tarefas, co- para a escola... Todos precisam entender e analisar o brando sua realização, avaliando, oferecendo modelos, que aconteceu para incorporar o fato em sua relação apresentando conceitos, ensinando...36 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 37 O psicólogo, como mediador na efetivação de todos Herbert, motivos para aprender a trabalhar com núme- esses objetivos, deve superar a condição de "resolvedor ros; depois puderam contar isto para os pais e para a de problemas" que espera a aprovação de Herbert professora... fim do ano, a reconciliação entre as famílias, enfim fi- Cada peça do quebra-cabeça era uma casa destruída nais felizes para encerrar caso", para saber que em parte pelo fogo, de modo que para reconstruí-la te- como as finalidades da Psicologia não são as da Edu- ria que utilizá-la adequadamente (conforme as regras cação e nem as das famílias, essa atuação já pode ter se do quebra-cabeça, adequadas para o trabalho com con- encerrado... ceitos numéricos...). O retorno à especificidade da Psicologia, por meio Herbert рихои um tapete com os números do quebra- da intervenção, constitui-se em mais uma etapa de seu cabeça, colocou-os em seqüência e, assim, numerou as trabalho. casas a serem restauradas. Disse que as casas ficavam em uma rua... E como a cena montada não podia ficar Falemos, ainda, sobre as principais estratégias utilizadas: na sala de atendimento, a psicóloga sugeriu que fosse construída com cartolina, para poder guardar... A Temas/situações geradores⁹ de possibilidades de trabalho: con- maquete teria de ser completa e Herbert caprichou... fez dições necessárias para provocar, desafiar as pessoas envolvidas, placas, sinal de trânsito e escreveu "PAE" (pare), tem em busca da superação das condições postas no momento, por meio um posto e escreveu "POT"... e fez o convite para a da "queixa"; geradores, enfim, da atividade principal da criança e da reinauguração da rua, pediu o alfabeto móvel e come- condição de participação de pais, professores e crianças. çou a organizar o convite, escreveu tudo o que já sabia com ajuda da psicóloga, fez todo o convite. Indagado Um dia Herbert entra na sala de atendimento e vai sobre o que faziam, disse "escrevemos". "Então, já sabe em direção a um carrinho de bombeiros lá esquecido... escrever? Vamos fotografar, registrar. que vamos fa- A psicóloga tinha planejado outro encaminhamento para zer?" O menino diz: "vou contar pro meu pai, minha avaliar o conceito de número, mas sabendo de sua rejei- mãe e minha professora". "Como?" "Mandando o con- ção aos conteúdos escolares, substitui a atividade, man- vite de reinauguração da rua para eles". tendo a finalidade prevista. Arremessou o quebra-cabe- ça numérico ao chão, anunciando um incêndio e cha- Jogos coletivos, como estratégias para a compreensão das mando pelo bombeiro... que chegou prontamente. Seus contradições não explicitadas na "queixa" ou para evidenciá-las. olhos brilhavam!... Estava preparada a situação gera- dora de muitas possibilidades... Descobriu, junto com A psicóloga marcou o encontro de Herbert junto com de outra criança atendida por sua colega... e plane- jou um jogo... 9 Parte da fundamentação teórica utilizada para a organização dessa estratégia foi Herbert ensinou o menino a jogar, menino ganhou apropriada do conjunto de elaborações desenvolvidas por Celestin Freinet e Paulo Freire. jogo e ele xingou menino...38 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 39 Dinâmicas que permitam ultrapassar os limites individuais co- de cada um no coletivo tomado como o espaço de manifestação locados pela "queixa". dos diferentes níveis de conhecimento. Em uma dinâmica envolvendo uma volta ao passado, Cada criança seleciona uma atividade que sabe fa- os pais adotivos contaram as suas histórias de vida para zer e que os demais não conhecem... planeja com o a psicóloga e para o Herbert e ele quis saber a dele... e psicólogo os passos para ensinar os colegas e a cada depois quis conversar com os pais biológicos sobre isso... encontro uma delas coordena com a psicóloga os tra- balhos... Herbert fez a lista de material para ensinar a Leitura e discussão de textos e relatórios e planejamento con- fazer pipa (escreveu que já sabia e pediu ajuda em junto de atividades. casa, na escola e para a psicóloga...), foram comprar e arrumar o material, pensou com a psicóloga como A análise e discussão de um texto sobre aprendiza- ensinar aos colegas. No dia da reunião, ele fez passo gem/desenvolvimento, ajuda o pai adotivo entender que a passo, mostrando aos colegas... Olhava o trabalho Herbert não é igual ao pai biológico. "Então, não está de cada Um menino não conseguiu fazer, ele dei- tudo definido quando nasce?" a sua pipa e ajudou menino até dar certo, depois A leitura conjunta dos relatos dos encontros anterio- res e do planejamento do trabalho, após os primeiros voltou para a sua... Depois foram escrever o material para todos guar- encontros, permite a Herbert posicionar-se preci- darem. Herbert põe na lousa... Quando pula letras nas sa ir lá na escola, eu não vou mais porque sou burro mesmo! pai falou que eu vou puxar carroça"... O pai palavras, outro colega vai lá e completa. A lista fica pron- ta... Na avaliação, todos disseram: "o Herbert ensinou e a mãe adotivos não querem marcar reunião com a fa- mília biológica: "Pode tirar isso do planejamento".. a fazer certinho... as pipas subiram... ele sabe fazer..." Ao ver o relatório do encontro qual Herbert leu Grupo de pais: para discutir diferentes formas de ocupar seu e escreveu, a mãe adotiva disse ao pai: "Eu não falei espaço na educação escolar do filho e para se posicionarem em re- que ele esconde jogo?".. lação às questões da escola, da Psicologia, da medicalização e ou- A psicóloga muda o jeito de escrever... faz novo pla- tras tantas que surgem no decorrer do trabalho. nejamento... Redige texto para leitura e discussão. Em outro momento, estavam todos reunidos, em aten- Em uma das reuniões mensais, a atividade inicial dimento conjunto, família biológica, Herbert, a psicólo- era ler um texto em alemão, para entender como os ga, organizando as etapas do trabalho, até onde pode- filhos podem sentir-se em situações variadas na es- ria chegar a intervenção, qual lugar de cada um neste cola ou em casa... quando exige-se a tarefa pronta, processo! quando se pede para fazer o que já for possível... Na avaliação, um pai concluiu: "quando você sabe Grupo de crianças para privilegiar a relação que elas têm com que pode fazer que dá, descobre que já sabe muita o que sabem, gostam, querem fazer, enfatizando os conhecimentos coisa"...40 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 41 Noutra reunião, a mãe conta que o filho não tomava Herbert queria ir à casa da família biológica. A psi- o remédio que o neurologista passou (ela descobriu que cóloga marca reunião na casa da família adotiva para ele jogava no lixo) e concluiu: "ele não podia estar mais discutir a visita. A mãe fala: "se for, tenho medo de que calmo por causa do comprimido (...). Eu não insisti mais não volte"; as irmãs e o pai "é bom que fique";... Herbert para ele tomar". fala: "eu só quero passar o dia com eles, eu gosto de Outro dia, uma mãe disse à mãe de Herbert: "Lá em vocês". A mãe diz: "ele não sabe o caminho". A psicólo- casa eu falo: venha comer! e ponho o prato. Se não vier ga não aceita que a mãe explique, deixando que ele a na hora, fica sem comer e ele não faz mais isso! Não sei conduza; chegam certinho. porque tem de ser diferente para o Herbert! Experimen- Conversam muito, ele brinca com os irmãos biológi- te fazer assim". cos. Todos falam com muito respeito da família adotiva. No primeiro encontro, as psicólogas contaram quem Na volta, muita coisa para contar e analisar! é o psicólogo, o que ele faz... Uma mãe disse: "naquele que eu ia antes não era assim, aqui é diferente..." Foi Eventos científicos para entender que todos os participantes possível falar de formas diferentes de atuar e de finali- do trabalho contribuem com a elaboração do saber/fazer Psicologia dades para cada uma delas, discutindo as finalidades Escolar. do trabalho que fazemos. Em um congresso na universidade, para fazer o pai- nel do trabalho desenvolvido junto à demanda de "quei- Grupo de professores e reuniões na escola para colocar os escolar", tínhamos fotos dos grupos de crianças e de conhecimentos da Psicologia a serviço do trabalho pedagógico. pais. Precisávamos de autorização para a exposição. Em atividade conjunta, a professora de Herbert fa- Levamos o painel para os grupos de pais e crianças. lou para a psicóloga que chama ele na lousa, para Contamos sobre evento, para que servia e que sem ele não passar vergonha..." A psicóloga perguntou: eles a formação dos psicólogos não se efetiva como jul- "quem quer vir à lousa?" Herbert foi o primeiro... "Es- gamos que deva ser. Uma mãe disse: "anota aí, você creve aí, Herbert... professora". Ele escreve po..., cha- esqueceu de contar aquele dia que eu descobri que mi- ma o colega e pede ajuda e escreve corretamente. Todos nha filha não tinha nascido com problema, mas que se lêem "professora"... alguém tivesse ensinado antes ela teria aprendido, ago- Assim planejam e discutem inúmeras situações. A psi- ra ela sabe". pai adotivo de Herbert disse: "ele quer cóloga prepara texto para explicar a lógica de sua in- ir lá, posso levar?". tervenção... A professora pede para apresentar em reu- Na apresentação do painel, lá estava Herbert, o pai nião. Psicóloga e professora preparam e coordenam a adotivo e a estagiária. Quando começaram a chegar os reunião na escola... observadores, Herbert chamou um grupo de alunos de Psicologia e a supervisora do estágio: "vem cá ver a foto Visitas domiciliares e ao bairro: para investigar e compreender do meu grupo... este aqui sou eu! Sabe por que eu estou a dinâmica familiar e as relações entre o bairro e a escola. aqui?..." E contou a história do trabalho para todos, junto42 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 43 com a psicóloga e o pai. Nos detalhes dizia: "Este aqui buir para a construção de um processo educacional que seja capaz foi o dia que eu descobri que sabia ler e escrever e agora de socializar o conhecimento historicamente acumulado e de contri- que não preciso mais ir no CPA, falo com a psicóloga por buir para a formação ética e política dos sujeitos. carta ou por e-mail, quando dá saudade". Assim, o principal critério para a delimitação das áreas de inter- O envolvimento das pessoas relacionadas às situações de venção mais importantes relaciona-se diretamente com a definição do quanto a atuação da Psicologia pode contribuir para que a escola escolarização em questão, compreendendo-as e transformando-as, é o resultado geral das investigações. cumpra sua função social. Nesta perspectiva, o psicólogo não é um "resolvedor" de problemas, um mero divulgador de teorias e conhe- Os professores apropriam-se de peculiaridades de seu trabalho cimentos psicológicos, mas um profissional que dentro de seus limi- e dos alunos que não haviam compreendido. tes e de sua especificidade, pode ajudar a escola a remover obstácu- Os pais descobrem capacidades e especificidades de seus filhos los que se interpõem entre os sujeitos e o conhecimento e a formar e de sua própria relação familiar. cidadãos por meio da construção de práticas educativas que favore- As crianças apropriam-se de suas possibilidades de aprender. çam processos de humanização e reapropriação da capacidade de O psicólogo define seu lugar nesse processo e organiza novos co- nhecimentos sobre a Psicologia na Educação, quando retorna à teoria. pensamento crítico. Para dar conta dessa tarefa, o psicólogo deve compreender de Consideramos que este trabalho é a expressão concreta do forma mais aprofundada tanto as maneiras pelas quais o trabalho referencial anunciado, pois enfoca as diferentes relações das quais a educativo produz nos indivíduos singulares a humanidade que é produ- criança participa, mobiliza todos os elementos presentes nessas rela- zida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens (Saviani, 1991), ções e põe o psicólogo em condições de mediar, junto com o profes- desempenhando o papel de atividade mediadora entre a esfera da vida sor, a construção do sentido pessoal e social do processo de ensinar cotidiana a as esferas não-cotidianas de objetivação do gênero huma- e de aprender de todos os participantes. no (Duarte, 1995), quanto as funções e a natureza social do desenvol- vimento cognitivo, dos afetos e emoções no processo de humanização desses indivíduos pela via da apropriação da cultura. 3. A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO EM INSTITUIÇÕES DE Esta fundamentação pode tornar o profissional capaz de con- ENSINO tribuir para o processo de desvelamento ideológico de uma série de idéias e concepções cristalizadas e combater em diferentes instân- Tomando como fundamento as categorias do pensamento críti- cias as explicações psicologizantes que buscam re-situar os pro- co e suas expressões nos pressupostos da Pedagogia histórico críti- blemas educacionais como problemas dos próprios alunos. ca e da Psicologia sociohistórica, defendemos que o objeto do psicó- É evidente que cada instituição apresenta necessidades e parti- logo em uma instituição de ensino escolas de educação infantil, cularidades que devem ser compreendidas, respeitadas e trabalha- ensino fundamental e médio; creches; universidades; projetos edu- das. No entanto, parece-nos oportuno apresentar neste texto alguns cacionais ligados a diferentes instituições públicas e privadas; traba- elementos que podem, em alguma medida, contribuir para o delinea- lhos de educação popular, etc - é o encontro entre os sujeitos e a mento de propostas de intervenção fundadas em finalidades educação e a finalidade central de seu trabalho deve ser a de contri- transformadoras.44 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 45 Para facilitar a exposição, apresentaremos estas reflexões or- tes que resultem em melhorias do processo ensino aprendizagem, é ganizadas em três tópicos: fundamentos, metodologia e sistemática fundamental que o psicólogo escolar compreenda e domine tanto os do trabalho em instituições de ensino. referenciais da psicologia, quanto da educação. Existem múltiplas possibilidades de articulação entre teorias de aprendizagem e práticas pedagógicas. Nesse texto, destacamos Principais fundamentos do trabalho em instituições de ensino o tema das relações entre desenvolvimento e aprendizagem em uma perspectiva sociohistórica. Como já evidenciamos anteriormente, independente do espaço Um processo pedagógico qualitativamente superior pode ser social e da área de atuação que o psicólogo escolar esteja ocupando, construído por meio de inúmeros caminhos e, neste sentido, não exis- as bases filosóficas e teóricas nas quais assenta seu trabalho são as te uma definição suficientemente ampla que possa dar conta de to- mesmas, desde que elas lhe garantam a compreensão e a possibilidade das as possibilidades. No entanto, podemos afirmar de maneira geral de intervenção crítica e competente em contextos educativos. e um tanto óbvia, que um bom ensino é aquele que garante uma Entretanto, é preciso destacar que o trabalho em instituições aprendizagem efetiva. Neste sentido, um bom professor é aquele educacionais apresenta certas especificidades que exigem do pro- que dá conta de ensinar seus alunos. fissional o domínio mais aprofundado de algumas mediações teóri- Mas, o que é preciso para que um professor ensine de fato? cas, dentre as quais destacaremos três que nos parecem ser as Poderíamos enumerar uma série de condições tais como: formação mais importantes: a compreensão de possíveis articulações entre adequada, salários dignos, espaços de estudo e reflexão, valorização teorias de aprendizagem e práticas educativas; a análise crítica do social e tantas outras mais. Embora estas sejam questões fundamen- espaço social da sala de aula e a concepção de conhecimento como tais, neste momento, vamos analisar de forma mais detida o valor e a instrumento do vir a ser. importância de uma adequada compreensão do desenvolvimento hu- mano e de suas articulações com a aprendizagem e as relações soci- Articulação entre teorias da aprendizagem e práticas ais, já que não se pode verdadeiramente ensinar se não se considerar pedagógicas como o aluno aprende, ou ainda, porque às vezes ele não aprende. Se a escola é a instância socializadora do conhecimento histo- Conforme aponta Antunes (2000), ao longo de nossa história a ricamente acumulado e se a finalidade da ação docente se concre- Psicologia tornou-se parte constitutiva do pensamento educacional tiza na tarefa de ensinar e ensinar bem, é preciso que o professor brasileiro. selecione tanto os elementos culturais que precisam ser assimila- Isso significa que é possível localizar com maior ou menor grau dos pelos alunos, quanto as formas mais adequadas para atingir de clareza e importância diferentes contribuições da Psicologia, pro- este objetivo. venientes de variadas tendências teóricas, nos processos De acordo com Saviani (1992), os educadores devem nortear constitutivos dos ideários pedagógicos que fundamentam práticas e sua ação a partir de três objetivos fundamentais: a identificação das propostas educacionais no Brasil. formas mais desenvolvidas em que se exprime o saber objetivo soci- E, se é verdade que os conhecimentos psicológicos podem efe- almente produzido; a transformação deste saber objetivo em saber tivamente contribuir para a elaboração de propostas mais consisten- escolar que possa ser assimilado pelo conjunto dos alunos e a garan-46 ELENITA DE Rício TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 47 tia das condições necessárias para que estes não apenas se apropri- restando outra alternativa a não ser esperar que eles fiquem "madu- em do conhecimento, mas ainda elevem seu nível de compreensão ros", para só então cumprir sua função social. sobre a realidade. Consideramos que para rompermos com o maturacionismo é Mas a tarefa docente vai muito mais além, já que após ter defi- preciso transformar a concepção de conhecimento e de como ele nido os conteúdos e delimitado a metodologia e os recursos pedagó- pode ser transmitido pelos professores e apropriado pelos alunos. gicos a serem utilizados, o professor ainda tem de enfrentar um novo Em outras palavras, é preciso compreender de uma nova forma as desafio: o fato de que nem todos aprendem do mesmo modo, no relações entre desenvolvimento e aprendizagem. mesmo momento e ritmo. Além disso, alguns alunos parecem sim- Encontramos esse novo olhar nas contribuições de L.S. Vigotski, plesmente não aprender nada. para quem o principal fato humano é a transmissão e assimilação da Dentre as várias explicações para o não aprender que são cultura. Assim, a aprendizagem é alçada a uma posição de extrema freqüentemente utilizadas nos meios educacionais, a mais conhecida importância, na medida em que se constitui em condição fundamen- é aquela que parte da idéia de que os alunos não aprendem porque tal para o desenvolvimento das características humanas não natu- não estão "prontos". rais, mas formadas historicamente. Uma análise crítica desse tipo de abordagem denominada Vygotsky (1977) concorda que existe uma relação entre um de- maturacionista aponta para pelo menos duas questões principais. terminado nível de desenvolvimento e a capacidade ou competência Em primeiro lugar, a afirmação de imaturidade neurológica, inte- para a aprendizagem de certos conteúdos. No entanto, a grande ino- lectual ou emocional da criança só é possível se tomarmos o adulto vação proposta por ele é a defesa de que não existe um único nível como padrão, o que significa que essas explicações desconsideram de desenvolvimento, mas sim dois: o nível de desenvolvimento atual que o ser humano é histórico e está em um permanente processo e a zona de desenvolvimento próximo (no Brasil também são utiliza- de construção. Conforme apontam Collares e Moysés (1996), o das as expressões potencial e proximal). conceito de imaturidade colocado nesses termos não possui nenhu- O nível de desenvolvimento atual corresponde ao nível de de- ma legitimidade científica, já que, desde o nascimento e ao longo de senvolvimento da criança que foi conseguido como resultado de um toda a sua vida, o ser humano apresenta as características físicas, processo de desenvolvimento já realizado. emocionais e cognitivas adequadas e convenientes a cada momen- O professor atento aos seus alunos pode perceber o nível de to determinado, ou seja, não podemos considerar a criança como desenvolvimento efetivo de seu grupo observando o que cada um é um ser imaturo pelo simples fato de diferenciar-se de um adulto. capaz de realizar de maneira independente, ou seja, o que já é possí- Interessa-nos, outrossim, discutir de forma mais aprofundada a vel em função do desenvolvimento que foi efetivado até o momento. segunda questão, que se relaciona com o pressuposto mais geral que No entanto, essas expressões não são capazes de explicar comple- fundamenta essa forma de compreender as dificuldades de aprendi- tamente o processo de desenvolvimento das crianças. É necessário zagem dos alunos: a idéia de que ela depende diretamente do desen- ainda que se busque apreender a zona de desenvolvimento próximo volvimento. Esta perspectiva considera que determinados alunos que corresponde ao que a criança é capaz de realizar com a ajuda de apresentam dificuldades porque não atingiram o nível de desenvolvi- adultos ou companheiros mais experientes. mento psicointelectual necessário. Assim, o professor não pode en- Trazendo essa discussão para o universo da sala de aula, tais sinar porque estes alunos não têm condições de aprender, não lhe reflexões apontam que fato dos alunos não conseguirem realizar48 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 49 sozinhos determinadas atividades não significa que eles não tenham As diferentes maneiras pelas quais se constrói o encontro entre condições para tanto. Ocorre que, naquele momento, as capacida- professores e alunos trazem conseqüências importantes tanto no que des cognitivas necessárias à realização das tarefas propostas encon- se refere ao processo de transmissão e apropriação dos conheci- tram-se em processo de formação, razão pela qual esses alunos ne- mentos, quanto no que se refere a formação de atitudes e valores. cessitam do auxílio do professor, que pode vir em forma de novas Podemos afirmar, portanto, utilizando a expressão que dá título a explicações, apoio afetivo, atividades diferenciadas, organização de uma das obras mais conhecidas de Vigotski, que a sala de aula é de trabalhos em grupo, jogos, brincadeiras, etc. fato um local de formação social da mente. Para Vigotski, o ensino não deve estar "a reboque" do de- Essa compreensão pode iluminar de diferentes maneiras a aná- senvolvimento. Ao contrário, um processo de aprendizagem ade- lise dos processos psicológicos e pedagógicos que se constroem e se quadamente organizado é capaz de ativar processos de desen- tecem de forma articulada no cotidiano das escolas. Várias questões volvimento. podem decorrer dessa concepção de sala de aula. Podemos desta- É importante ressaltar que essa perspectiva aponta para o res- car as seguintes: gate do papel ativo do professor em relação aos processos de apren- A aprendizagem é um processo. Em função do momento de dizagem e desenvolvimento de todos os alunos, especialmente da- desenvolvimento no qual se encontra, o ser humano compreende e queles que apresentam mais dificuldades. interpreta de diferentes maneiras os fenômenos com os quais se de- O professor que sabe que o desenvolvimento cria potencialidades, fronta, sejam eles de natureza física, social ou psicológica. Em ou- mas que só a aprendizagem as concretiza, é aquele que se volta para tras palavras, quando a criança apresenta uma resposta diferente o futuro, para dar condições para que todos os seus alunos se desen- daquela esperada pelo adulto, não podemos afirmar que ela simples- volvam e que, portanto, busca intervir ativamente nesse processo, mente cometeu um erro. Na verdade, ela apresentou a resposta que não se limitando a esperar que as capacidades necessárias à com- lhe foi possível para aquele momento. Por isso, é fundamental co- preensão de um determinado conceito algum dia "amadureçam". nhecer e respeitar o processo de pensamento infantil como ponto de Esse professor que sabe que seus alunos se desenvolvem à partida do processo educativo; medida em que os ensina e os educa, que poderá contribuir para a A aprendizagem escolar requer articulação entre os concei- reversão dos processos de produção do fracasso escolar. tos cotidianos ou espontâneos aqueles construídos pela experiên- cia de vida e os conceitos científicos aqueles conhecimentos A sala de aula como local de formação social da mente sistematizados que, para serem adquiridos, dependem diretamente do trabalho desenvolvido pela escola; A sala de aula é o lugar onde a educação de fato acontece, já A atividade do indivíduo é condição fundamental para que que é o espaço no qual professores e alunos se encontram e constro- a aprendizagem ocorra. Compreende-se, pois, que o educador não em o processo educativo. "deposita" o saber na cabeça do educando nos moldes da educa- Assim, se a sala de aula constitui-se no espaço privilegiado da ção "bancária", denunciada por Paulo Freire; por outro lado, sabe educação é preciso compreender que existe uma clara correspon- também que não é deixando o educando sozinho que o conheci- dência entre a qualidade do trabalho pedagógico e as práticas e con- mento irá "brotar" de forma espontânea. Resgata-se, assim, o cepções que lhes dão sustentação. papel ativo do professor, pois é ele quem poderá garantir, pela50 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 51 organização intencional de uma proposta de trabalho adequada, numa formação social e numa formação individual específicas, ou as condições necessárias à aprendizagem e ao desenvolvimento seja, embora a essência humana encontre-se no seio do mundo de seus alunos; social, a forma psicológica dessa essência só pode existir numa A aprendizagem depende da socialização. O conhecimento individualidade concreta. Assim, a vida humana constitui-se de atos é construído, transmitido e apropriado necessariamente na relação pessoais que são mediados em todos os níveis, até os mais íntimos, com outros. É fundamental que a escola favoreça o maior número pelo mundo social e, ao mesmo tempo, plenos de sentido dado pela possível de oportunidades de vivência de relações sociais significa- biografia de cada indivíduo. Por isso, é imprescindível que o educa- tivas. Acreditamos que um dos caminhos para garantir algumas dor conheça de fato a realidade dos alunos. É a compreensão das das condições necessárias para o estabelecimento desse tipo de representações e visões de mundo, dos interesses e valores dos relações no contexto de sala de aula é o trabalho em grupo. Embo- alunos, que poderá indicar os pontos de articulação com o conheci- ra a relação entre os alunos seja vista como secundária e até como mento que deve ser apropriado; elemento perturbador do andamento das aulas, as elaborações teó- O conhecimento é também conscientização e instrumento de ricas desenvolvidas por Vigotski indicam que a interação aluno- transformação social. Como ensinou tão bem Paulo Freire (1979), a aluno é fundamental no processo de socialização e desenvolvimen- educação é prática de liberdade, é aproximação crítica da realidade. to cognitivo; A conscientização que o conhecimento possibilita implica necessari- A aprendizagem requer motivação. Só há atividade verdadei- amente ultrapassar a esfera espontânea de apreensão da realidade ra e com sentido se houver motivação. Na medida em que é impos- e, por isso, ela pode colocar os homens no lugar de sujeitos que fa- sível separar processos intelectuais e afetivos, para que a aprendiza- zem e refazem o mundo. Concordamos com Duarte (1995), que o gem ocorra, é preciso que se estabeleça um vínculo que possa levar trabalho desenvolvido na escola tem um papel fundamental no pro- o aluno a dirigir sua atenção para o objeto do conhecimento. Isso não cesso de formação da individualidade humana, já que as práticas significa, em absoluto, criar situações artificiais que provoquem a pedagógicas podem enriquecer os indivíduos pela mediação das motivação de "fora para dentro". Trata-se de pensar em um proces- objetivações genéricas para-si. pedagógico que é motivador porque faz sentido para o aluno, como uma resposta para sua necessidade de compreender melhor sua vida O conhecimento como instrumento do viraser e a vida em sua sociedade; A aprendizagem não se separa da individualidade. O desen- Para pensarmos o conhecimento como instrumento do vir a ser, volvimento é determinado pelas relações sociais, mas cada um dá é preciso, antes de mais nada, rompermos com a idéia da existência um sentido particular a essas vivências. Assim, é preciso estar atento de uma natureza humana fixa, imutável, natural, dada a priori. ao mesmo tempo para as maneiras a partir das quais o desenvolvi- Conforme aponta Bock (2000, p.14), o homem tem sido pensa- mento da espécie humana é determinado pelas condições sociais e do, tanto na ciência quanto no senso comum, a partir dessa idéia de culturais que afetam todos os homens, mas também para o fato de natureza humana, sendo concebido como portador de uma essência que esse processo também comporta uma dimensão de singulari- natural e universal. Assim, se consolida a idéia de que haveria em dade pessoal. Conforme aponta Sève (1989), as relações dos ho- nós uma semente de homem que vai desabrochando, conforme so- mens com a natureza e entre si desenvolvem-se ao mesmo tempo mos estimulados adequadamente pelo meio cultural e social.52 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 53 Para a autora, a Psicologia não tem sido capaz de falar do fenô- Metodologia de trabalho meno psicológico em sua articulação com a vida, as condições eco- nômicas, sociais e culturais nas quais se inserem os homens. Em suas palavras: Partimos do pressuposto de que a educação transforma o mun- do de forma mediada; por isso entendemos que os processos educa- Fala-se da mãe e do pai sem falar da família como cionais são, antes de mais nada, instrumentos de educação das cons- instituição social marcada historicamente pela apropria- ciências. É fundamental em todos os momentos possíveis contribuir ção dos sujeitos; fala-se da sexualidade sem falar da tra- para a constituição de sujeitos capazes de olhar para o seu cotidiano dição judaico-cristã de repressão à sexualidade; fala-se e relacioná-lo com a realidade num plano mais amplo, de se envolver da identidade das mulheres sem se falar das característi- com ações que tenham como horizonte a transformação social. cas machistas de nossa cultura; fala-se do corpo sem in- Para que a Psicologia possa contribuir com a construção da ci- seri-lo na cultura; fala-se de habilidades e aptidões de um dadania no interior das práticas educativas, dentro e fora da escola, é sujeito sem se falar das suas reais possibilidades de aces- preciso construir metodologias de trabalho fundadas em um movi- so à cultura; fala-se do homem sem falar do trabalho; mento de ação/reflexão/ação, de tal forma que todos os envolvidos fala-se do psicológico sem falar do cultural e do social. possam refletir sobre a própria prática social, buscar elementos teó- Na verdade, não se fala de nada. Faz-se ideologia (Bock, ricos que venham a iluminar essa prática de modo qualitativamente 2001, p. 25). diferente e comprometer-se com o desenvolvimento de projetos que Em uma perspectiva crítica, a visão sociohistórica alerta para traduzam em ações concretas essa nova compreensão crítica sobre si mesmo e sobre a realidade social. o fato de que pensar o homem dessa forma significa naturalizar os fenômenos humanos e desconsiderar todo o processo históri- Com isso, rompe-se com a idéia do psicólogo escolar como um co que determina a constituição do ser humano. Por isso, a par- técnico e se torna possível pensá-lo como um elemento mediador que tir dessa concepção é preciso trabalhar com a idéia de condição junto com educadores, alunos, funcionários, direção, famílias e co- humana, de construção social do psiquismo humano, que nos munidade poderá avaliar criticamente os conteúdos, métodos de en- permita compreender a plasticidade do sistema psicológico hu- sino e as escolhas didáticas que a escola faz como um todo. Assim, ele mano. E a possibilidade permanente de múltiplas transforma- pode participar de um esforço coletivo voltado para a construção de ções do sujeito ao longo de seu processo de desenvolvimento, um processo pedagógico qualitativamente superior, fundamentado em aponta, entre outras coisas, para a importância da intervenção uma compreensão crítica do psiquismo, do desenvolvimento humano e educativa. de suas articulações com a aprendizagem e as relações sociais. Desta forma, podemos compreender o desenvolvimento de for- Este trabalho de mediação só é possível se houver um investi- ma prospectiva, de modo a que possamos estar atentos para a emer- mento contínuo e sistemático na articulação de projetos coletivos gência daquilo que é novo. Conforme ensinou Vigotski (1987), é pre- que viabilizem, de diferentes maneiras, processos de efetiva partici- ciso transformar a direção de nosso olhar para que possamos não pação social no campo da educação, dentro e fora da escola. Isso apenas buscar colher os "frutos" do desenvolvimento, mas sobretu- significa que os possíveis beneficiários dos serviços da Psicologia do saber reconhecer seus "brotos" ou "flores". devem ser, antes de mais nada, sujeitos ativos e não apenas objetos passivos de ações sobre as quais não têm qualquer controle.54 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 55 Embora existam diferenças mais ou menos significativas na ar- emergenciais. Desta forma, os eixos de atuação acabam resultando ticulação dos passos metodológicos que caracterizam os processos de uma imposição externa da direção da instituição ou de uma deci- de intervenção, podemos dizer que, em síntese, existem quatro "mo- são pessoal do profissional, baseada naquilo que ele julga ser mais mentos" principais: adequado ou conveniente. Em qualquer uma das situações não se Reflexão sobre a vida cotidiana da escola em suas mais dife- reúnem as condições necessárias para a construção de uma propos- rentes expressões; ta consistente que possa constituir-se na expressão de uma síntese Análise crítica dessa realidade a partir do recurso a elementos criativa e crítica entre os conhecimentos da Psicologia e as necessi- teóricos disponíveis que permitam compreendê-la como construção dades e possibilidades de cada escola. social historicamente datada, ou seja, como objeto possível da ação Por tudo isso, uma avaliação adequada é a primeira condição humana transformadora; para a articulação de um bom plano de ação, com objetivos, metas e Reflexão e planejamento de ações que podem ser desenvolvi- estratégias definidas. das buscando as transformações desejadas; Para que seja efetivo e realmente leve a uma compreensão ade- Desenvolvimento de projetos que traduzam em ações concre- quada da realidade a ser trabalhada, o processo de avaliação deve tas o compromisso ético, político e profissional com a construção de envolver uma multiplicidade de fatores, trazendo pelo menos o se- processos educacionais humanizadores. guinte conjunto de dados: Relativos à organização da escola: número de turmas (total, por período e série); número de alunos (total, por período e série); Sistemática de trabalho número de professores (total e por série); número de funcionários e descrição de funções e atividades; serviços prestados aos alunos e à Em linhas gerais, a sistemática de trabalho envolve quatro mo- comunidade; esquema de reuniões (de direção e professores, de pro- mentos principais: avaliação da realidade escolar e/ou institucional, fessores; de alunos, de funcionários, de pais, etc); discussão dos resultados preliminares com todos os segmentos da Relativos aos recursos físicos da escola: número e condições instituição educacional, elaboração e de execução do plano de in- das salas de aula; laboratórios; biblioteca (quantidade, qualidade do tervenção. acervo e condições de acesso); salas de reunião; salas de projetos; É evidente que na prática nem sempre esses momentos suce- equipamentos e materiais disponíveis (televisão, computadores, im- dem-se da forma como estão sendo apresentados. No entanto, é pressoras, vídeocassete, filmadora, retro-projetores, máquina foto- importante destacá-los separadamente para que se possa evidenciar gráfica, xerox, projetor de slides, filmes educativos, etc); quadras de o papel e a importância de cada um deles. esporte; jardins e áreas de lazer; Informações sobre o corpo docente: formação dos professo- O processo de avaliação res (básica, graduação, pós-graduação); condições de estudo e re- flexão; salário e condições de trabalho; tempo médio de permanên- Quando um profissional não compreende adequadamente sua cia dos professores na escola; experiências educacionais anteriores; própria realidade de trabalho predominam atividades mais esporádi- O trabalho pedagógico: metodologia utilizada; recursos didáti- cas e assistemáticas, que se limitam a demandas consideradas cos; relação entre professores e alunos; conteúdos trabalhados; tipo56 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 57 de rotina construída em sala de aula; critérios de organização e atri- No que se refere aos procedimentos de avaliação, os dados po- buição das classes; processos de avaliação; dem ser coletados junto a documentos da escola regimentos, regu- A equipe que dirige a escola: formação, tempo de experiência lamentos, atas de reunião, livros de ocorrência, dados estatísticos, e forma de escolha do diretor; número de coordenadores e respecti- fichas de inscrição, históricos escolares, etc.-, direção e coordena- vas funções; ção, professores, alunos, pais e funcionários. Elementos quantitativos sobre a progressão escolar dos alu- Dependendo das possibilidades e condições, os dados podem nos: índices de evasão (total, por série, professor e período); índices ser obtidos diretamente por meio de conversas ou da aplicação de de repetência (total, por série, professor e período); questionários e/ou entrevistas dirigidas. Dados relativos ao nível de organização dos diferentes seg- mentos da escola: Associação de pais e mestres; Conselho de esco- O relatório de avaliação la; Grêmio estudantil; projetos em andamento; nível de participação dos pais (nas organizações formais e não formais); O segundo momento do trabalho é a discussão dos resultados As condições socioeconômicas dos alunos: classe social a que preliminares, de preferência com todos os segmentos organizados da pertence a maioria dos alunos; profissão e nível de instrução dos pais instituição (professores, coordenadores, funcionários, pais, alunos, etc). (geral, por série e período); Para subsidiar essa discussão é importante que o psicólogo pre- A história da escola: ano da fundação; circunstâncias que de- pare e apresente um relatório escrito contendo todos os dados obti- terminaram sua criação; dos no processo de avaliação. Esse relatório pode se constituir em O bairro no qual a escola está inserida: características e histó- um instrumento extremamente rico para estimular a reflexão sobre ria da localidade; recursos físicos, institucionais e de serviços pre- os problemas da realidade institucional, bem como a discussão sobre sentes no bairro; diferentes formas de enfrentamento dessas dificuldades. Dados relativos à compreensão que os diferentes segmentos da Dessa forma, o profissional coloca-se, desde o princípio, como escola e/ou instituição apresentam em relação a seus problemas mais um mediador que pode contribuir, nas questões que lhe são pertinen- fundamentais. Neste campo é preciso responder a questões como: tes, para a abertura de espaços de discussão e de resgate da capaci- quais as "queixas" que se colocam? que tipos de demandas são apre- dade de pensamento crítico, o que pode colocar todos os segmentos sentadas como possíveis objetos de intervenção do profissional?; da escola no lugar de sujeitos ativos. As expectativas dos diferentes segmentos da escola e/ou institui- A discussão do relatório permite que todos possam contribuir para ção em relação ao trabalho do profissional da Psicologia: o que imaginam uma compreensão mais aprofundada sobre sua própria realidade e se sobre a função de um psicólogo na escola e/ou instituição escolar? qual comprometerem, de alguma forma, com as transformações que se fize- seria seu papel em relação às demandas apresentadas? rem necessárias para a melhoria do trabalho desenvolvido pela escola. As possibilidades e os limites que se apresentam em relação Não existe um modelo único de relatório e cada profissional pode ao trabalho da Psicologia: qual o grau de abertura para o desenvolvi- elaborar aquele que lhe parecer mais adequado. Mas algumas ques- mento de projetos de ação? quais os principais limites que se apre- tões importantes devem ser garantidas, tais como: síntese dos princi- sentam? quais seriam os parceiros potenciais para dar início a um pais procedimentos utilizados; apresentação geral dos dados que aponte trabalho coletivo e solidário? para uma compreensão globalizada da realidade; indicações sucintas58 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 59 e precisas das questões que devem ser trabalhadas e como isto po- a construção de relações sociais que propiciem a formação deria ser feito. de vínculos que garantam o máximo desenvolvimento possível das possibilidades humanas de todos os envolvidos; A elaboração do plano de intervenção o desenvolvimento de ações que contribuam para ampliar a participação popular na escola; O terceiro momento do trabalho é a elaboração do plano de a definição de planejamentos e diretrizes educacionais que le- intervenção. vem em conta o nível de desenvolvimento, os interesses e a realida- O plano de intervenção deve constituir-se em uma resposta de dos alunos; às questões levantadas no processo de avaliação. Para tanto, de- a identificação e a remoção dos obstáculos que possam estar vem ser indicados os segmentos que deverão ser envolvidos (di- impedindo os alunos de se apropriarem dos conhecimentos; reção, professores, funcionários, pais, famílias, comunidade) e os a definição de conteúdos e métodos de ensino que não só objetivos que se pretende atingir a curto, médio e longo prazos garantam a apropriação do saber, mas que também expressem o com cada um deles, bem como algumas estratégias que serão objetivo de formação de um ser humano pleno de potencialidades e utilizadas. possibilidades; Não existe um modelo único de plano de intervenção, mas al- a escolha de materiais didáticos que estimulem o pensamento guns itens não podem deixar de ser destacados: objetivo geral do crítico e criativo dos alunos. trabalho; objetivos específicos dos projetos a serem realizados com cada um dos segmentos a curto, médio e longo prazos; principais É evidente que todas estas questões a respeito do trabalho do estratégias a serem utilizadas; condições objetivas necessárias para psicólogo escolar em instituições educacionais não podem ser pen- a realização da intervenção, tais como horários de reunião, materi- sadas de forma desvinculada dos diferentes contextos nos quais ele ais de apoio e de consumo, recursos humanos, etc. se insere. As maneiras pelas quais os psicólogos constroem suas propos- O processo de intervenção tas de trabalho estão sujeitas a uma multiplicidade de fatores que se relacionam, por um lado, aos seus posicionamentos filosóficos, teóri- O quarto momento do trabalho é o processo de intervenção pro- cos e metodológicos e, por outro, a política educacional das institui- priamente dito. ções e as expectativas construídas em relação à ação da Psicologia, Na medida em que cada realidade é única, não se pode definir a que em geral se traduzem por solicitações de trabalho de diagnóstico priori uma forma de intervenção. No entanto, podemos afirmar que e atendimento de casos individuais considerados problemáticos. o psicólogo escolar deve contribuir de diferentes formas para: No entanto, a participação em inúmeros trabalhos e projetos a construção de uma gestão escolar democrática, a partir de de extensão desenvolvidos nos últimos anos, permite-nos afirmar uma organização do trabalho coletiva e solidária; que é possível abrir espaços que podem diminuir os limites e ampli- a melhoria da situação docente e o resgate da autonomia, do ar nossas possibilidades de concretização de uma prática papel dirigente e do valor social do professor; contextualizada e criticamente comprometida com a humanização.60 ELENITA DE TANAMACHI E MARISA EUGÊNIA MELILLO MEIRA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO 61 REFERÊNCIAS BILBLIOGRÁFICAS FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. GIROUX, H. Teoria crítica e resistência em educação. Petrópolis, RJ: Vozes, ANTUNES, M. 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L. (Orgs.). Psicologia e Este artigo pretende apresentar um dos percursos traçados pelo Educação: desafios teórico-práticos. São Paulo: Casa do Psicólo- Serviço de Psicologia eEscolar do Instituto de Psicologia da USP, em go, 2000. trabalhos realizados com escolas públicas de São Paulo, com o obje- TANAMACHI, E. R. Mediações teórico-práticas de uma visão crítica em tivo de problematizar a função estabelecida na relação entre psicólo- Psicologia Escolar. In: TANAMACHI, E. R.; PROENÇA, M.; RO- gos e escolas. O Serviço de Psicologia Escolar é composto por duas CHA, M. L. (Orgs.). Psicologia e Educação: desafios teórico-práti- docentes e quatro psicólogas e tem como objetivos: o atendimento à cos. ed., São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002, p. 73-103. comunidade, o apoio à formação em psicologia (com estágios super- VIGOTSKI, L. S. Teoria e Método em Psicologia. São Paulo: Martins Fon- visionados) e a pesquisa. A apresentação e reflexão a seguir, têm tes, 1996. como referência uma experiência singular engendrada em um cole- VIGOTSKI, L. S. O desenvolvimento psicológico na infância. São Paulo: tivo do qual fazem parte as produções dos vários colegas que atuam Martins Fontes, 1998. no Serviço e as práticas e políticas definidas pelas Secretarias de VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Educação e presentes no cotidiano escolar. Escrevendo na primeira Martins Fontes, 2000. pessoa, pretendo refletir uma prática constituída coletivamente. Trabalho nesse Serviço desde 1986 como psicóloga. Durante esse tempo rea- VIGOSTSKI, L.S. Psicologia Pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2001. lizei as pesquisas de mestrado e doutorado relacionadas aos nossos VYGOTSKY, L. S. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade trabalhos com as escolas. Farei referências a alguns saberes conti- escolar. In: VYGOTSKY, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. (Orgs.). dos nessas pesquisas, pois a pergunta que as motivaram é o objeto Psicologia e Pedagogia I: bases psicológicas da aprendizagem e de reflexão deste artigo: a serviço do quê trabalhamos nas escolas? do desenvolvimento. Lisboa: Estampa, 1977, p. 31-50. Como estratégia para esta apresentação, intercalarei comentários VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, sobre o contrato que fomos estabelecendo com as escolas e os sabe- 1987. res que fomos constituindo. Quando um psicólogo pisa no território escolar (e em outras ins- tituições educativas), intensifica as expectativas e olhares clas- sificatórios e comparativos dos indivíduos tomados isoladamente.64 ADRIANA MARCONDES MACHADO Os PSICÓLOGOS TRABALHANDO COM A ESCOLA: INTERVENÇÃO A SERVIÇO DO QUÊ? 65 Educadores querem saber que as crianças têm", psicólogos que- Analisamos a demanda; como se entende a produção da mes- rem descobrir "porque elas agem da forma como agem". Essas in- ma, de que sofrimento se fala, quais as expectativas, quais as dagações, em muitos trabalhos, têm motivado uma busca por expli- hipóteses para o que acontece. Muitas vezes, os discursos que cações que, na maioria das vezes, tornam as características presen- defendem a busca de igualdade, autonomia, respeito, apresentam tes nas queixas escolares meros atributos individuais dos sujeitos. contradições e armadilhas que devem ser consideradas, pois tor- Como se, por exemplo, a agressão fosse apenas atributo do aluno nam mais invisível o processo de produção da desigualdade. Por que passa a ser considerado "aluno agressivo". isso, reforça-se a necessidade de estabelecermos estratégias que Maria Helena Souza Patto foi uma das criadoras do Serviço de possam dar visibilidade às tensões do cotidiano. Por exemplo, hoje, Psicologia Escolar do IPUSP. Seus livros e aulas alimentaram nossas nos territórios escolares, fala-se da necessidade de lidarmos com indagações (e indignações). Refazendo o percurso histórico, político e as diferenças, com as crianças que apresentam diferenças, que a social, produtor das idéias que culpabilizam o sujeito, o aluno, pelo fra- diversidade na sala de aula é algo positivo para que os alunos casso, Patto denuncia a produção de saberes e práticas que isentam o convivam com as diferenças. Esse discurso mudou em relação sistema político e social da responsabilidade pela produção da desigual- àquele que defendia a homogeneidade. Ao mesmo tempo, ampli- dade social. E, nesses saberes, a Psicologia ganha lugar de destaque ao ando a lente que focaliza o cotidiano escolar, vemos nas práticas se voltar aos indivíduos pretendendo avaliá-los (Patto, 1984 e 1990). que, muitas vezes, a diferença é capturada pelos critérios que Essas formas de poder e de saber encontram-se enraizadas nas categorizam os comportamentos e as pessoas. O processo de di- relações de produção que caracterizam a sociedade capitalista. Con- ferenciação fica abortado quando defendemos, formalmente, que ceitos, técnicas, formas de sujeitos vão sendo engendrados nas prá- cada um é diferente do outro, como se o convívio com as diferen- ticas sociais (Foucault, 1996). Por isso, a necessidade de indagarmos ças não implicasse uma luta, não incomodasse, não exigisse em- sobre o que nossas práticas vão constituindo. Se em alguns momen- bates e mudanças. tos elas possibilitam romper com lugares cristalizados, em outros elas A defesa das singularidades deve estar a serviço de diretrizes e são capturadas de forma a aliviar tensões e contradições presentes princípios comuns. Às vezes aparecem nos grupos de educadores nas práticas educativas, reforçando a idéia de que precisamos ofere- falas tais como: "cada professor faz de seu jeito, cada um é diferente cer atendimentos e projetos para aqueles que "vão ficando para trás" do outro", como se a tarefa de ensinar e de aprender não fosse ou que "vão se comportando inadequadamente", como se isso fosse constituída coletivamente. um acidente que não deveria acontecer. Como veremos, ao discutir nossas montagens e objetivos nos trabalhos com as escolas públicas, existem mudanças nas demandas As montagens iniciais: intervenção junto às crianças e expectativas conforme as produções e diretrizes das políticas edu- portadoras de queixas escolares cacionais. Há dez anos, quando íamos às escolas, as demandas para nós, psicólogos, era, em sua maioria, de atendimento para os alunos. Apresentarei a seguir a montagem (contrato, enquadre e objeti- Hoje, além desse tipo de demanda, também se fazem presentes pe- vo) das intervenções que realizávamos na escolas eúblicas, no início didos relacionados a uma concepção de trabalho que entende a ne- de minha experiência como psicóloga do Serviço de Psicologia Es- cessidade de se pensar as práticas educativas. colar (1986), sempre trabalhando com estagiários do 3° ano do Cur-66 ADRIANA MARCONDES MACHADO Os PSICÓLOGOS TRABALHANDO COM A ESCOLA: INTERVENÇÃO A SERVIÇO DO QUÊ? 67 so de Psicologia (do Instituto de Psicologia da USP), matriculados professores. Para nós, era fundamental o caráter optativo dessa mon- em uma disciplina optativa da grade curricular¹⁰. tagem tanto para as crianças como para as professoras. Às vezes, Muitas crianças eram encaminhadas como as famosas crian- algumas das professoras que participavam dos encontros em grupo ças-problema. As queixas em relação a elas eram de problemas de não tinham disponibilidade, muitas vezes, de tempo, para nos ver e, aprendizagem e de comportamento. A maioria dessas queixas era nesses casos, realizávamos o trabalho com essas crianças sem a par- em relação aos alunos das primeiras séries. Nessa época, o índice de ticipação de suas professoras na montagem. repetência e evasão era elevado durante as séries iniciais. Conseguíamos movimentar algumas histórias podemos dizer Conversávamos com a equipe técnica afirmando a possibilidade que algumas queixas eram retiradas, outras não. A expectativa em de realizar um trabalho na escola. As professoras nos eram apresen- relação ao nosso trabalho era de que pudéssemos ajudar os alunos tadas e a conversa girava em torno da seguinte questão: o que pode- de forma isolada e, nossa montagem, embora criticasse isso, não ríamos fazer para ajudar as crianças que "vão ficando para trás?". produzia fissuras nessa expectativa e nesse modelo. Hoje, outra pergunta se coloca: o que fazer com as "crianças que O parecer das professoras relacionava-se à melhora ou não das vão para frente, sem estarem alfabetizadas?" crianças em relação às queixas que haviam sido apresentadas. Por- Propúnhamos encontros em grupos com essas crianças, com a tanto, a expectativa de atendimento individual mantinha-se. Não con- função de: seguíamos intervir na produção das queixas escolares, no caráter conhecê-las melhor, coletivo das práticas educativas. possibilitar espaços de produção que rompessem um lugar Algumas mudanças nas crianças eram percebidas e apresentadas cronificado ocupado pelas crianças, pelas educadoras. Sabemos que essas mudanças tinham relação com: conversar com as professoras tentando introduzir contradi- o fato de algumas crianças conseguirem estabelecer, nos gru- ções no discurso que justificava o encaminhamento. pos realizados dentro da escola, produções diferenciadas daquelas Esses encontros em grupo eram realizados pelos estagiários de presentes nas queixas das professoras; psicologia, cerca de oito vezes, com a participação de seis a oito ao efeito do atendimento dos alunos nas professoras que fica- alunos das escolas. Com as professoras, nos encontrávamos para vam mais aliviadas ao compartilharem suas responsabilidades. escolher quem seriam esses alunos, pois quando chegávamos às es- Nessa época, não definíamos nossos objetivos de forma escrita. colas, era comum nos ser encaminhada uma lista com dezenas de Todo o processo do trabalho era realizado pelos encontros e conver- nomes. Tentávamos estabelecer prioridades, reforçando que aquilo sas. Ora, sabemos que a comunicação entre os profissionais de uma que aprendêssemos com alguns alunos poderia ajudar os professores escola (ou de qualquer instituição) não é apenas um aspecto técnico a pensar em estratégias de trabalho para com outros. do funcionamento da mesma, mas deve ser considerado um indica- Conversávamos com as professoras que tinham crianças aten- dor sobre como e a serviço do quê as relações são estabelecidas. didas por nós no intuito de discutir os acontecimentos nas salas de Era comum chegarmos às escolas e alguma professora ou funcioná- aula e, em alguns momentos, participávamos das reuniões gerais de ria ter esquecido que iríamos realizar o trabalho naquele dia específi- co. Era comum não saberem bem o que estávamos fazendo lá e 10 Durante um semestre, cada psicóloga do Serviço de Psicologia Escolar trabalha com um grupo com cerca de seis estagiários do Curso de Graduação. Os estagiários têm, também não conseguirmos agir sobre esse "não saber" de forma a semanalmente, três atividades de supervisão, com duração de duas horas cada uma produzir alguma mudança em relação a ele. delas: de aula teórica e de trabalho na instituição.68 ADRIANA MARCONDES MACHADO Os PSICÓLOGOS TRABALHANDO COM A ESCOLA: INTERVENÇÃO A SERVIÇO DO QUÊ? 69 Era intensa a expectativa das educadoras de que ocupássemos Com o objetivo de propor para as crianças um lugar diferente do a função de avaliadores das crianças. A famosa pergunta das pro- lugar que ocupavam nas práticas institucionais, em que eram defici- fessoras: que ele tem?", associada à ilusão de que poderíamos entes, realizamos encontros sistemáticos com elas cujas tarefas eram responder a essa pergunta sem nos relacionarmos com o contexto realizar atividades que fossem do interesse deles e refletir sobre a no qual a criança estava inserida, fazia com que as educadoras espe- classe especial. Mas a cronicidade era intensa. Os encontros pareci- rassem, ao fim do processo estabelecido, que afirmássemos quais am constituir um espaço fora que não se conectava com o dentro, alunos eram normais, quais não eram, quais precisariam de atendi- com o instituído. mento individual. Institucionalmente, o lugar histórico e prescrito aos Conhecendo essas crianças, conhecemos uma diversidade de psicólogos estava presente éramos aqueles que poderiam apontar situações: as crianças que precisariam, por exemplo, ir para uma classe especi- Crianças normais (segundo padrões diagnósticos) que esta- al para deficientes mentais leves. Como intervir nas demandas e vam a classe especial e queriam sair de lá; expectativas em relação ao nosso trabalho? Crianças normais (segundo padrões diagnósticos) que esta- vam felizes por estar lá. Não gostavam da sala regular, da qual, por algum motivo, tinham sido encaminhados para a classe especial; Ampliando os olhares com a ajuda das crianças de classe Crianças com comprometimentos físicos e mentais que se sen- especial tiam excluídas. Diferenças desiguais. Essas crianças, mergulhadas em suas dificuldades, lá ficavam; Durante o mestrado, desenvolvi um trabalho com crianças de Crianças com comprometimentos físicos e mentais que gosta- uma Classe Especial de uma escola estadual de São Paulo (Ma- vam daquela sala, daquela professora. Sentiam-se mal fora da clas- chado, 1994). Convém relatar que uma das cenas que motivou esse se especial, pois eram tratados como loucos e esquisitos. meu trabalho, foi conhecer um menino, de 13 anos, chamado Todas essas crianças tinham em comum viver uma prática es- Genivaldo. Quando o conheci, em um dia que fui a uma escola esta- colar que lhes ensinava que elas poderiam a escola so- dual para conversar com a diretora da mesma, ele habilmente se mente nesse lugar no lugar de crianças de classe especial; ensina- apresentou a mim e convenceu-me a pagar-lhe um sanduíche na va também que as crianças que estavam nas classes regulares não cantina. Entregue a seus argumentos afinal ele me disse que paga- deveriam estar com as outras. Como se umas atrapalhassem as ou- ria essa dívida na semana seguinte restou-me perguntar-lhe em tras. Essas produções subjetivas circulavam nas falas das crianças, que série estudava, ao que ele respondeu: "estudo na classe especi- dos pais, dos professores: criança de classe especial, crianças de al". Quando soube que era uma classe especial para deficientes classe regular uma geografia que nos fixa como normais e anor- mentais, concluí que, se Genivaldo era considerado deficiente men- mais. Como temos visto hoje nas escolas, elas têm sido chamadas de tal, eu então deveria ter um diagnóstico bastante comprometedor de crianças de inclusão. minhas capacidades intelectuais. Afinal, tudo o que ele quisera de Percebemos que os encontros em grupo que propúnhamos pou- mim, havia conseguido. interferiam nas práticas cotidianas da escola isso quando não Como o menino fora para essa classe? O que acontecia lá? produziam o efeito inverso de aliviar e isentar essas práticas da que as crianças pensavam sobre tudo isso? responsabilidade pela cristalização do estatuto de deficiente, na me-70 ADRIANA MARCONDES MACHADO Os PSICÓLOGOS TRABALHANDO COM A ESCOLA: INTERVENÇÃO A SERVIÇO DO QUÊ? 71 dida em que, de uma certa forma, essas crianças estavam sendo preencher esse mapa, que foi assim chamado, para assim desvendar atendidas com um trabalho na escola, o que reforçava a idéia de que qual seria o destino de cada uma delas para o ano seguinte. Preten- elas é que precisavam mudar. Aquilo que pretendíamos, só se daria díamos obter informações perdidas, registrar uma história coletiva, se as práticas institucionais fossem alteradas. dando importância ao tempo, ao espaço, às marcas. Na classe espe- Diante dessas questões, a tarefa desses encontros mudou. A cial, o tempo era sempre o mesmo. pergunta inicial que motivava nossos encontros sobre como essas Foi assim que conseguimos pensar em cada história singular vi- crianças tinham ido parar na classe especial e o que pensavam sobre vida pelas crianças, incluir as professoras das classes regulares nes- esse lugar? passou a ser outra: como fortalecer aquilo que havia se processo de cartografar a história e a produção escolar, conside- sido destituído de suas vidas a potência para pensar, entender e rar as idéias e falas dos pais dos alunos em relação a essa história. participar das decisões sobre sua história? Estabelecemos, então, Algumas fissuras foram produzidas, algumas práticas foram altera- um procedimento para responder a uma pergunta que andava ador- das. A pergunta sobre a manutenção ou saída das crianças das clas- mecida no cotidiano do trabalho da classe especial: "a criança per- ses especiais não podia ser respondida apenas pela professora. Ou- manecerá ou sairá da classe especial no ano seguinte?" Essa era tros atores teriam que ser implicados. Era uma tarefa coletiva, que uma pergunta que motivava e estimulava o pensar. precisava ser coletivizada. Percebemos que, para muitos pais e mães, A estratégia era dar importância ao procedimento necessário as perguntas colocadas sobre a classe especial não haviam sido pen- para responder a essa pergunta, respeitando as várias informações, sadas até então. Havia mães que não sabiam que na classe especial versões e sensações que precisariam ser consideradas. Para pen- não se passava de ano, havia alunos que não sabiam há quanto tem- sar se, no ano seguinte, a criança permaneceria ou sairia da classe po estavam lá. especial, era preciso analisar o que era a classe especial (quais as Esse trabalho foi inspirado por muitos outros trabalhos que realidades e significações que produzia), como funcionava (que revelam os processos de subjetivação constituídos em nossas práti- relações estabelecia), por que existia (qual a origem dela). Nor- cas. Na cadeira dos réus, estava sendo colocada uma prática da malmente, a professora da classe especial decidia solitariamente o psicologia que sempre foi cúmplice com essa geografia fragmentada destino de seus alunos e, receosa com a discriminação que seus os trabalhos diagnósticos que desconsideram os processos de alunos pudessem viver em salas regulares, muitas vezes não os subjetivação e falam da criança como se ela fosse responsável indi- encaminhava para elas. O receio das professoras das classes re- vidual por aquilo que expressa e revela. gulares precisava, portanto, ser considerado nesse processo como A nossa função foi sendo legitimada: intervir nas produções co- uma força que, se não trabalhada, agia na direção de impossibilitar tidianas, criando práticas, acontecimentos que permitissem movimen- a ida dessas crianças para as classes regulares. Esse receio, fruto tar aquilo que estava cristalizado, produzindo diferenciações. Deri- também da solidão na qual o professor da classe especial se via em var, apostando em uma deriva que estivesse a serviço de processos seu trabalho com os alunos, depositava nas crianças a impossibili- de subjetivação, e não de assujeitamento. dade de estar nas salas regulares. Houve um momento neste trabalho com as crianças de classe Fizemos um mapa em uma grande cartolina, no qual teríamos especial que meu sentimento era de traição à psicologia, pois nada que preencher informações sobre as histórias escolares, o tempo na mais precisava ser desvendado. Minha formação em Psicologia ha- escola, o nome das professoras. Essa passou a ser nossa tarefa, via ressaltado saberes que nos conduziam a pensar no inconsciente e72 ADRIANA MARCONDES MACHADO Os PSICÓLOGOS TRABALHANDO COM A ESCOLA: INTERVENÇÃO A SERVIÇO DO QUÊ? 73 no sujeito como dados, como a priori, como produto de algo que dos receios, das angústias e das discriminações ficavam longe de estava no passado, como algo a ser desvendado. Talvez, por isso, nosso alcance. E, como depois viemos a saber, era possível intervir fosse tão inovador, para mim, abandonar a busca por significações nessa produção de forma mais efetiva, de agir nos processos de da maneira como eu a fazia, na qual pensava que existiria um sujeito produção. que significava uma certa experiência desta ou daquela forma e que Autores como Foucault e Deleuze foram fundamentais para que para conhecer essas significações, eu teria que pesquisar, desvendar aquilo que chamei de traição pudesse se constituir em novos sabe- esse sujeito. Portanto, pensava que haveria o sujeito, a experiência e res, permitindo que percebêssemos o inconsciente como produção a significação. de realidade e não, como já dissemos, em produto de algo já vivido, Passar do registro da causalidade, para o registro da produção dado e acabado. Agora, precisávamos nos implicar no que chamá- das práticas e dos saberes, implica perceber que esse sujeito (e, por- vamos de campo de forças, de espaço de produção, e agir. Agimos, tanto, eu) já é efeito, se engendra em um processo de produção cons- fizemos o mapa. Constituímos saberes implicando professores, fami- tituído em diferentes campos de forças. O inconsciente designa o liares, crianças. Houve ruptura. próprio espaço de produção e, portanto, não é produto de algo ante- E, muito importante ressaltar, que aquilo que foi sendo definido rior (Naffah Neto, 1985). para a vida escolar das crianças no ano seguinte se permaneceri- Enquanto estávamos no primeiro momento do trabalho, perce- am na classe especial, se iriam para primeira, segunda ou terceira bemos que pesquisar como as crianças entendiam e se posicionavam séries ou melhor, aquilo que poderíamos dizer que era, inicialmente, frente à montagem das classes especiais e tentar, por meio do traba- o objetivo de nosso mapeamento, uma vez constituído, passou a ser lho nos grupos, que elas produzissem novos saberes, intensificava apenas uma ação que exigia um projeto, um processo, para ser mais e mais as impossibilidades das crianças no espaço social e implementada. Cida passaria para a segunda série. Como iríamos político da escola. Eu, juntamente com Denise e Dalva¹¹ (e, portan- implementar isso? Que forças estão em jogo para agirmos nesse to, nós) íamos percebendo saberes, capacidades, jeitos de ser, ma- processo? Qual a professora de classe regular que a terá como alu- neiras de pensar das crianças. Nós (coordenadoras) e elas (crian- na? Como agir na discriminação que os alunos das classes regulares ças) íamos constituindo algo que, a meu ver, era pouco e, além de vivem em relação aos que estudaram nas classes especiais? Como a pouco, reforçava uma crença, como já foi dito, de que essas crianças equipe técnica (diretoria) assume esse trabalho? Que espaços para precisavam de trabalhos com psicólogas, que têm problemas produ- reflexão dos acontecimentos podem existir na escola? zidos exclusivamente por questões individuais. Claro que várias ce- Iniciava-se um questionamento sobre os trabalhos de vários nas nas quais as crianças traziam angústias, receios e discrimina- psicólogos que terminam suas avaliações e intervenções redigin- ções permitiam que esses afetos circulassem de outra forma e reali- do em seus relatórios sugestões e encaminhamentos: "encami- zassem novas produções. Mas da maneira como estava nossa mon- nhar a criança para a classe regular, encaminhar o jovem para tagem de atuação na escola antes de mudarmos nossa pergunta e de terapia, orientar os professores a agirem de forma mais atenciosa criarmos estratégias como a do mapa, forças intensas na produção com seus alunos, encaminhar os pais para Esses en- caminhamentos e necessidades, convenhamos, são bastante peri- gosos, pois corre-se o risco de estarmos, com esses gestos, crian- 11 Denise e Dalva, psicólogas, coordenaram, juntamente comigo, os grupos com as do impotências e culpabilizando os usuários quando os mesmos crianças.74 ADRIANA MARCONDES MACHADO Os PSICÓLOGOS TRABALHANDO COM A ESCOLA: INTERVENÇÃO A SERVIÇO DO QUÊ? 75 não buscam aquilo que foi proposto. Diferentemente disso é criar Sabemos que as práticas, da forma como são estabelecidas, efe- um projeto que afete a produção do fracasso na história singular tuam concepções, paradigmas, princípios. Isso tudo está em jogo dos vários encaminhamentos. quando falamos de práticas. Voltemos às cenas de nossos trabalhos e contratos com as es- Embora conseguíssemos estabelecer relações com as práticas colas públicas. Como havíamos dito, conseguíamos movimentar al- cotidianas, havia um limite produzido por nossa montagem, pela for- gumas histórias escolares, mas esses movimentos pouco mudavam o ma como organizávamos o trabalho: a expectativa dos professores território no qual as queixas eram produzidas. Convém ressaltar que de que pudéssemos desvendar e alterar a mente e o comportamento esse termo "pouco" está relacionado ao fato de termos percebido das crianças continuava grande. O trabalho aceitava essa demanda, que poderíamos afetar mais, dependendo da forma que organizáva- analisava a mesma e ficava, muitas vezes, buscando formas de driblá- mos nosso trabalho e nossa função. la. Mas ela estava lá, presente, intensa e engendrando efeitos. E O contato com as crianças de classe especial nos ajudou a per- sabemos que driblar não tira o desejo do adversário em ter a bola. ceber que não tínhamos mais a função de conhecer melhor as crian- Pelo contrário. ças e de tentar romper algo nelas. Queríamos que elas participassem Embora estivéssemos indo às escolas deixando mais claro os de uma montagem que, essa sim, teria de afetar o território no qual objetivos de intervir nos condicionantes, no processo institucional de habitavam de forma cristalizada. Queríamos uma prática na qual os produção, esse discurso ainda estava distante de algumas práticas casos, as histórias singulares, pudessem servir como inspiradores de que estabelecíamos. algo que não se localizava apenas na criança. Como constituir essa montagem capaz de afetar esse território? Nosso contrato passou a incluir reuniões regulares com o grupo Analisando a produção dos encaminhamentos: o desafio de professores que encaminhava as crianças. Estabelecer uma rela- produzido pela avaliação psicológica. ção entre o que íamos conhecendo e o que acontecia no cotidiano da sala de aula e da escola, era uma condição do trabalho. Estabelecer Durante os anos de 1994/1995, tivemos a oportunidade de ser- essa relação entre esses momentos só era possível nos encontros mos chamadas para realizar um trabalho com 139 alunos encami- com as educadoras. E esses encontros tinham como função refletir nhados para avaliação psicológica, por cerca de 22 escolas públicas a produção daquilo com o que trabalhávamos (a queixa escolar, a estaduais (cada escola podia encaminhar cerca de seis demanda em relação ao serviço, as várias versões), considerando os Aceitar esse convite foi um grande desafio. Tínhamos cerca de oito professores atores importantes dessa engrenagem. meses para realizar as avaliações, que normalmente eram feitas em Conseguíamos estabelecer algumas relações por exemplo, alguns dias por clínicas psicológicas contratadas com verba da Secreta- as professoras contavam da dificuldade que tinham para ter acesso ria de Educação para esses fins. Montamos uma equipe de 15 pessoas. a algumas mães e pais e pensávamos, juntamente com elas, a Como realizar um trabalho no qual se pretende analisar, avaliar, relação entre esse distanciamento e a forma e função das reuni- entender, o que acontece com cada uma das crianças encaminha- ões de pais, nas quais muitas mães se sentiam julgadas e impo- tentes sobre o que fazer com as queixas escolares apresentadas 12 A prática criada para essa demanda e a reflexão em relação à mesma tornou-se o pelos professores. trabalho de minha tese de doutorado, intitulada "Reinventando a Avaliação Psicológica" (Machado, 1996).76 ADRIANA MARCONDES MACHADO Os PSICÓLOGOS TRABALHANDO COM A ESCOLA: INTERVENÇÃO A SERVIÇO DO QUÊ? 77 das? Qual o nosso objeto quando estamos frente a uma demanda de ção com a queixa escolar, como nosso objeto, como processo a ser avaliação psicológica sobre um aluno? O que está sendo avaliado, na pesquisado. Queríamos saber como o encaminhamento havia sido medida em que sabemos que os fenômenos psicológicos, os afetos, constituído, saber o que as pessoas pensavam e falavam sobre o fato as atitudes, são efeitos engendrados em um campo de relações e de de a criança ter sido encaminhada. Entramos em contato com várias forças? Como produzir uma avaliação que aposte em um processo práticas e saberes do cotidiano escolar. de mudança em relação a esses lugares constituídos na queixa esco- Havia professores que nem sabiam que seus alunos haviam lar? Esses eram os desafios. sido encaminhados; havia mães que acreditavam que qualquer ini- Deleuze, escrevendo sobre os estudos de Nietzsche, nomeia bem ciativa da escola é melhor do que ela poderia fazer; havia crianças o desafio que tínhamos: "Não encontraremos nunca o sentido de que nos falavam que o mais importante para ir bem na escola, era qualquer coisa (fenômeno humano, biológico ou mesmo físico), se ter "fé em Deus". não conhecermos qual é a força que se apropria da coisa, que a Depois de cerca de quatro meses, tínhamos vários registros de explora, que nela se exprime" (Deleuze, p. 8). Nesse texto, a própria conversas, observações, conhecimentos. Definimos que, em cada idéia de coisa vai deixando de ser um substantivo singular, passa a encaminhamento, tínhamos de desvendar aquelas práticas institu- ser plural uma pluralidade de forças em ação. "A história de uma cionais que estariam relacionadas à produção dos mesmos. coisa, em geral, é a sucessão das forças que dela se apoderam, e a Por exemplo, algumas crianças que freqüentavam as classes coexistência das forças que lutam para dela se apoderar" (ibid. p. 9). especiais faziam parte das crianças, já mencionadas anteriormente, "A própria coisa não é neutra, e encontra-se mais ou menos em cujas professoras achavam que elas estavam bem e que precisariam afinidade com a força que atualmente dela se apodera" (ibid. p. 10). de um relatório psicológico que mostrasse que poderiam freqüentar próprio objeto é força, expressão de (ibid. p. 13). as classes regulares, pois tinham receio que fossem discriminadas e Portanto, aquilo que temos como objeto, por exemplo, a queriam algo que "provasse" que elas teriam condições de estar nas agressividade presente em algumas crianças, é a aparição de uma salas regulares. Como dissemos, o desconhecimento das professo- força que domina. Convém lembrar que Foucault (1987b) postula o ras das classes regulares com relação a essas crianças vindas das poder como uma ação sobre outra ação, como o conjunto de relações classes especiais e a solidão das educadoras das classes especiais, de forças que produz realidade. É a relação da força com a força. motivavam esses encaminhamentos. Ora, o receio de discriminação Tínhamos de estar atentos às forças que se apoderavam da de- e a solidão são produções que impediam o acesso das crianças às manda que pedia avaliações psicológicas de crianças encaminhadas salas regulares e que motivavam o pedido de avaliação psicológica. pelas escolas públicas, como se as explicações para o fracasso se Como intervir nessas produções? Que práticas estabelecer para que esgotassem no indivíduo encaminhado para avaliação psicológica. Por- as professoras das classes regulares pudessem conhecer as crian- tanto, tínhamos de nos tornar forças que imprimiam outras direções. ças que freqüentavam as classes especiais? O que fazer para que as Fomos às escolas, entramos em contato com várias professo- professoras das classes especiais estivessem efetivamente inseridas ras, com mães e pais, e com as crianças, pesquisamos os bastidores no trabalho coletivo do ensino fundamental? Quando passamos a ter de cada encaminhamento, as várias versões sobre as histórias esco- essas questões como desafio, a necessidade inicial das professoras lares, problematizamos as expectativas dos profissionais das esco- de classe especial, de um relatório que avaliasse positivamente as las. Colocamos a própria produção do encaminhamento e sua rela- crianças, perdeu o sentido. Pois, esse relatório de nada afetaria o78 ADRIANA MARCONDES MACHADO Os PSICÓLOGOS TRABALHANDO COM A ESCOLA: INTERVENÇÃO A SERVIÇO DO QUÊ? 79 receio, a solidão e outras questões que motivavam o encaminhamen- mentos. Vejamos um exemplo para melhor podermos definir esse to dessas crianças. novo desenho para nossas inserções. Paulo, um menino, de 12 anos, Aprendemos a estar atentos para as práticas cotidianas que iam que estava cursando a terceira série e se recusava a fazer as lições, se revelando. Os encontros de professoras têm servido para discutir nos foi encaminhado. Fomos, então, buscar informações sobre a pro- coletivamente os acontecimentos da escola? As reuniões de pais se dução desse encaminhamento perguntando a várias pessoas envol- propõem a ser um espaço de socialização das práticas escolares? vidas na história de Paulo o que pensavam e quais eram suas hipóte- Como é feita a avaliação do processo escolar das crianças? ses para esse encaminhamento. Foi assim que entramos em contato Esse movimento foi revelador. Os saberes a respeito das práti- com muitas práticas, idéias e relações, tais como: um projeto de clas- cas institucionais que íamos conhecendo pelos encaminhamentos se de aceleração, no qual professores eram formados para ensinar permitiram-nos constituir perguntas e critérios importantes que alunos com defasagem série-idade que depois voltavam para as sa- devem ser considerados quando um aluno é encaminhado para las regulares; professores, como já mencionamos, que não discutem um especialista. Por exemplo, a solidão das professoras que bus- formas de trabalhar com Paulo em suas reuniões; o encaminhamen- cavam o diagnóstico de especialistas como uma estratégia para to para especialistas com a ilusão de que os mesmos poderiam dizer justificar o fracasso escolar de seus alunos constituiu questões o que a criança verdadeiramente tem, independentemente do funci- sobre o funcionamento das reuniões de professoras. Questões que onamento das relações e das práticas; o pipoqueiro, que gostava de só poderiam ser constituídas no interior do interesse pela produção Paulo e contava com sua ajuda para vender pipocas; o cansaço e daquilo que estávamos conhecendo. Conhecíamos a solidão, a falta desânimo das professoras com relação às atitudes de Paulo, que de interlocução, a busca de intervenções individuais para questões sempre as agredia, etc. que são coletivas. Interessava-nos saber como essas produções de Estamos falando, portanto, de várias relações e personagens, práticas e de processos de subjetivação iam sendo engendrados. que se constituem nesse campo. Utilizamos o reflexivo constituir- Por isso, nem professores, nem alunos, nem a relação professor- se, engendrar-se -, em vez de constituir ou engendrar o campo, pois aluno estavam em nosso foco como causas individuais do fracasso queremos mostrar que algo vai se constituindo na relação e no en- escolar e do encaminhamento. contro das forças. Os projetos pedagógicos e seus efeitos, o encami- Com esse trabalho, definimos que aquilo que avaliamos não é o nhamento para especialistas, a falta de discussões entre as professo- funcionamento do sujeito encaminhado (afinal, criticávamos tanto esse ras, o pipoqueiro que gostava de Paulo, o desânimo das professo- tipo de trabalho que centra seu foco em um indivíduo), mas sim esse ras..., nada disso será entendido como causa do que vem depois. campo de forças, no qual se engendra o encaminhamento do aluno Mas como campo no qual se produzem as questões subjetivas. para que um especialista realize a avaliação psicológica. Avaliar um Esse campo não é uma causa externa daquilo que se produz. campo de forças é uma expressão que nos convida a pensar um Pensar esse campo de forças é um grande passo em relação à visão outro desenho para nossa inserção. Não mais "avaliar o sujeito", que justifica os acontecimentos tendo como causa algo localizado "avaliar alguém". Como ficaria o desenho de nossa inserção ao agir- apenas no corpo do sujeito, pois, pesquisando esse espaço de produ- mos no campo de forças? ção, temos acesso não mais a causas meramente individuais ou pro- "Avaliar um campo de forças" implica em conhecer essas for- venientes da relação professor-aluno, mas às várias práticas nas quais ças. Forças dão-se em movimento, podemos conhecê-las nos movi- o encaminhamento fora engendrado. Passamos a falar da sensação80 ADRIANA MARCONDES MACHADO Os PSICÓLOGOS TRABALHANDO COM A ESCOLA: INTERVENÇÃO A SERVIÇO DO QUÊ? 81 de incapacidade da criança, da depositação do saber dos professo- que "avaliar um campo de forças", "avaliar a produção do encami- res em especialistas, da aflição das mães, pois seus filhos não apren- nhamento ou da queixa escolar", implica em afetarmos essas forças diam, da necessidade de um projeto pedagógico para os alunos com e, com isso, sabermos da possibilidade de alterar, ou não, seu rumo. comprometimentos, da montagem das classes, da atribuição de aulas Darei um exemplo. Uma professora de uma Escola Municipal aos professores, do funcionamento do recreio, da rotina, da partici- de Ensino Infantil (EMEI) queria conversar sobre as dificuldades de pação dos pais nos fóruns de poder da escola, das decisões políticas uma certa criança, um menino de 5 anos, que sempre ficava fora das sobre a educação, etc. brincadeiras e comia sozinho. No parque, ele sentava e olhava o que Precisamos esclarecer que a expressão "campo de forças" está, as outras pessoas faziam, não participava das brincadeiras mesmo aqui, sendo utilizada como espaços de produção de práticas e de que viessem chamá-lo. Não desenhava, colocava o lápis na boca. processos de subjetivação. Os acontecimentos não são causas do Está há quatro meses na escola. Durante esse tempo, percebeu-se que vem depois, são engendrados nesse campo. que ele tem circulado mais à vontade pela instituição e a professora Como diz Foucault: "Se a interpretação não pode nunca acabar, conseguiu entender melhor algumas de suas colocações. isto quer simplesmente significar que não há nada a interpretar. Não A escola, inicialmente, queria um diagnóstico dele. Após uma há nada absolutamente primário a interpretar, porque, no fundo, tudo conversa sobre as hipóteses que teriam para a necessidade de um é interpretação, cada símbolo é em si mesmo não a coisa que se diagnóstico, a demanda mudou queriam ajuda para pensar como oferece à interpretação, mas a interpretação de outros símbolos" trabalhar com esse menino na sala de aula. Uma vez explicitada (Foucault, 1987, p. 22). essa demanda, muitas professoras deram sugestões e a coordenado- Aquilo que elegemos como uma questão a ser avaliada, está lá, ra resolveu participar um pouco da aula para ajudar a pensar como sendo engendrada existente. Não vem depois dessas forças, mas é fazer. A demanda havia sido formulada com um conteúdo bastante constituído NELAS. Insistimos nessa discussão, pois ela foi funda- tradicional, mas, o fato de eu e as professoras estarmos interessadas mental para as mudanças que foram ocorrendo no rumo do trabalho. em pensar as produções dessa criança e as práticas educativas na Pensemos, portanto, em vários espaços cujas forças se articu- EMEI possibilitou outros caminhos. lam e se encontram os campos de forças se cruzam e se afetam. Portanto, poderemos avaliar a possibilidade de alterar aquilo que Poderíamos, como psicólogas, participar desse campo diagnos- aparece inicialmente como demanda, se intervier nesse campo. É ticando as crianças. Isso, sem dúvida, imprimiria um movimento no nesse embate que se constituem nossos saberes. qual a patologização, a culpabilização das vítimas e a isenção das Para não cairmos na armadilha de apenas aumentarmos o es- práticas sociais na produção das desigualdades e dos sintomas, seri- pectro de causas em relação às questões que antes pareciam relacio- am intensificadas. Sabemos que nesses campos de forças está in- nadas apenas ao funcionamento individual do sujeito, temos de bus- tensamente presente uma psicologia que avalia e diagnostica como car o funcionamento das práticas nas quais o fracasso se engendra, se a mesma estivesse fora do campo. Essa ilusão, de estar fora, dando nomes, produzindo marcas. sustenta muitos diagnósticos e Estamos falando de um trabalho que, ao entender e se inserir Voltemos, então, ao desenho de nossa inserção na escola. nesse campo de forças em movimento, busca conectar-se com o Se as forças, as ações, contêm nelas aquilo que se engendra, se que pode romper a cristalização presente nos processos de ensino e no encontro dessas forças produzem-se efeitos, então podemos falar de aprendizagem82 ADRIANA MARCONDES MACHADO Os PSICÓLOGOS TRABALHANDO COM A ESCOLA: INTERVENÇÃO A SERVIÇO DO QUÊ? 83 Neste trabalho com a avaliação psicológica, aprendemos a agir nesse Indisciplinar, assujeitar, são forças. Os verbos no infinitivo, as ações, campo e a avaliar a possibilidade de movimento conforme nossas ações. são forças. Como já dissemos, segundo Foucault, o poder é relação de Alguns encaminhamentos de alunos referiam-se a situações que esta- força de uma ação sobre outra ação; portanto, temos agido naquilo vam bastante cronificadas a campos densos. Mas a maioria deles reve- que domina, criando dispositivos que recuperem a potência de forças e lou intensas mudanças, pois conseguíamos intervir no cotidiano escolar. intensidades que estão submetidas às formas instituídas. Entender os gestos de alguns alunos, como atitudes de indisciplina que necessitam ser disciplinadas, é uma ação, uma força (já efeitos de outras forças, Participando da luta e criando com as demandas como vimos) que somente poderá ser afetada no embate. Vejamos um exemplo. Chegamos a uma escola e a grande quei- Passamos a ir às escolas com um outro contrato. Em uma das xa era a indisciplina da série. Fomos conhecer as hipóteses em escolas que fomos durante o ano de 2001 e 2002, redigimos o seguinte relação à produção da indisciplina, a história dessas classes, os pro- objetivo: "Nosso trabalho em instituições educativas visa a melhoria do jetos, os interesses dos alunos, a rotina, o funcionamento das horas atendimento a crianças e adolescentes. Para isso, problematizamos as de discussão pedagógica das professoras... Um tema sempre pre- observações e preocupações trazidas pelos educadores em relação sente, mas nunca trabalhado com os alunos era o fato de a série aos seus alunos e refletimos estratégias de ações que considerem o ser o último ano naquela escola. processo de produção das concepções e das práticas Convidamos os alunos interessados a participar de um grupo Esse fazer ter acesso à produção histórica das concepções e cujo tema seria a questão da despedida, problematizamos com alu- das práticas -, é efetuado buscando as possibilidades de ruptura com nos e professores o tema da indisciplina, reunimo-nos com pais para o que está instituído. refletir esse momento tão intenso de ruptura. O trabalho deu-se pela Interessa-nos que as ações e os saberes conquistados durante o nos- produção de jornais, despedidas, curiosidades, lembranças. so trabalho, possam ajudar os profissionais da instituição a criarem formas A pergunta que precisava ser convocada era o que acontecia, de agir na produção daquilo que trazem como sintoma isolado. Agir na nessa escola que algo que deveria estar previsto nos projetos da produção, que é coletiva, requer intervir no funcionamento institucional. escola, não estava sendo realizado? Afinal, as professoras valorizam Temos buscado as forças que estão presentes nas queixas for- a necessidade de se criar formas para expressão do que ocorre com muladas pelas professoras, por exemplo, com relação aos alunos os alunos. Sabiam que esse não-dito, em relação à despedida, pode- indisciplinados e aos seus pais e mães que, segundo as professoras, ria interferir nas atitudes dos alunos. Mas as professoras delegavam não ajudam da maneira como os profissionais da escola gostariam. a outros grupos (a nós) o trabalho de refletir com seus alunos os Nós propomos, em relação a essas temáticas acima, discutir a pro- receios em relação ao processo de escolarização. Como fortalecer dução do indisciplinar, pensar a relação essa potência capturada, das educadoras, em intervir no cotidiano? Quais e como são os embates nesse coletivo? 13 Essa temática, a justificativa de que a grande causa dos problemas da criança está relacionada ao que acontece na família e em casa, tem sido bastante freqüente em nossos trabalhos. Denunciar, criticar e orientar pais produz afastamento. Temos agido Serviço de Psicologia Escolar que denominamos "Plantão no qual eu e de forma a potencializar as possibilidades dos profissionais da escola para com a Yara Sayão nos encontramos mensalmente com grupos de profissionais (educadores ou crianças e com as mudanças das práticas institucionais. Muitas estratégias e ações para psicólogos que trabalham na educação) de uma mesma instituição e, conjuntamente, problematizar essa temática têm sido desenvolvidas em um tipo de atendimento do aprofundamos a reflexão sobre cada uma das situações trazidas pelos profissionais.84 ADRIANA MARCONDES MACHADO Os PSICÓLOGOS TRABALHANDO COM A ESCOLA: INTERVENÇÃO A SERVIÇO DO QUÊ? 85 Essa é nossa função: problematizar, junto aos profissionais da NAFFAH NETO, A. O Inconsciente: um estudo crítico. São Paulo, SP, Ed. instituição, as concepções, as práticas e as políticas presentes na Ática, 1985. singularidade de cada caso, de cada história, de cada discurso. Por- PATTO, M. H. S. A Produção do Fracasso Escolar. São Paulo, SP, T.A tanto, o trabalho se refere ao funcionamento institucional. As ques- Queiroz, 1990. tões com as quais trabalhamos são engendradas no coletivo e exi- gem a criação de redes. Por exemplo, a presença de crianças com Psicologia e Ideologia: uma introdução crítica à Psicolo- gia Escolar. São Paulo, SP, T.A Queiroz, 1984. comprometimentos graves no cotidiano da instituição e, portanto, a construção de práticas inclusivas, necessitam da participação dos profissionais da área da saúde. A rede complexa na qual a demanda é formulada faz parte de nosso trabalho inspirando-nos a criar dispositivos, ações, para rom- per, criar rupturas em processos que são nossos velhos conhecidos: processos que produzem os sujeitos como portadores de falta! Pelo contrário, vemos o excesso, o transbordamento de coisas que não cabem na instituição da forma como ela está instituída. Bus- ca-se esse alargamento, no embate. REFERÊNCIAS BILBLIOGRÁFICAS DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia Portugal, Editora RES. FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto C. M. Machado e Eduardo J. Moraes, Rio de Janeiro, RJ, Ed. Nau, 1996. Nietzsche, Freud e Marx Theatrum Philosoficum. Tradução de Jorge Lima Barreto, São Paulo, SP, Ed. Princípio, 1987 Vigiar e Punir. Tradução de Lígia Ponde Vassalo. Petrópolis, Ed. Vozes, 1987b. MACHADO, A.M. Crianças de Classe Especial: efeitos do encontro da saúde com a educação. São Paulo, SP, Ed. Casa do Psicólogo, 1994. Reinventando a Avaliação Psicológica. Tese de Doutorado, IPUSP, SP, 1996.INTERVENÇÃO JUNTO A PROFESSORES DA REDE PÚBLICA: POTENCIALIZANDO A PRODUÇÃO DE NOVOS SENTIDOS Veruska Galdini Wanda Maria Junqueira Aguiar "Não, não tenho caminho novo. O que tenho de novo é o jeito de caminhar. Aprendi (o caminho me ensinou) a caminhar cantando como convém a mim e aos que vão comigo. Pois já não vou mais sozinho". Trecho de "A vida verdadeira" Thiago de Mello O objetivo central deste artigo é apresentar algumas reflexões sobre o tema formação de professores. Para isso, tomamos como base nossa experiência em estágios realizados na área de psicologia educacional na Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Iniciamos nossa discussão apresentando os pressupostos teóri- cos e metodológicos que fundamentam nosso fazer-agir em educa- ção no trabalho junto a professores.88 VERUSKA GALDINI E WANDA MARIA JUNQUEIRA AGUIAR INTERVENÇÃO JUNTO A PROFESSORES DA REDE PÚBLICA... 89 Ao escolhermos o tema formação de professores, não podemos assim com explicações fundadas numa presumida e invariável "na- fazê-lo sem a clareza de que qualquer pratica que vise à atuação tureza humana". sobre a realidade escolar, implica uma profunda reflexão sobre as Por outro lado, também evitamos posições que não apreendam o concepções de homem, escola, educação, assim como sobre as rela- caráter ativo, cheio de possibilidades do trabalho docente. Da mesma ções que constituem a trama institucional. maneira que a escola é, ao mesmo tempo, conservadora e inovadora, Pretendemos desmistificar a idéia de que a discussão sobre as que não é um oásis, nem é um beco sem saída, o professor, entendido estratégias de formação, sejam elas quais forem (em serviço, em como ser histórico e social, tem a possibilidade tanto de simplesmente grupos, cursos, reciclagem, etc.), possam, por si só, avançar e supe- reproduzir concepções e práticas, como de transformá-las. rar os impasses que temos encontrado nessa área, ou seja, que a Tendo como objetivo a intervenção junto a professores, é funda- discussão sobre quais as melhores técnicas e estratégias de forma- mental resgatarmos a possibilidade do seu papel ativo, capaz de pro- ção, bastam para que promovamos um avanço qualidade da atuação duzir conhecimento, de refletir, de criar situações de aprendizagem, dos professores. de ter uma práxis. O debate sobre a opção da técnica a ser utilizada é relevante; no Apontamos, assim, uma concepção de professor que não seja entanto é parcialmente reducionista se não for precedido de uma guiada pela racionalidade técnica, mas que indique a possibilidade reflexão sobre seus pressupostos teóricos e metodológicos. desse profissional constituir-se como investigador dos fenômenos com Assim, quando falamos em formação de professores, não podemos os quais trabalha, refletindo criticamente sobre o ensino e o contexto nos esquecer, como primeiro pressuposto, que a escola, local onde a ativi- social de sua realização. dade docente acontece, é um espaço institucional e de mediação social. É necessária a clareza de que ele não pode ser reduzido a um A escola revela, nas suas formas de ser, relações sociais e polí- "trabalhador braçal", deixando para os técnicos da escola o trabalho ticas, conteúdos de classe, valores, ideologia, serão constitutivos das de pensar as situações de aprendizagem. Como bem aponta Ildeu práticas dos professores. Essas mesmas condições institucionais são, Coelho (1983), o fato de se caracterizar os docentes como "simples" na sua singularidade, constituídas também pela ação dos professores professores e não como especialistas em educação, vem reforçar e outros profissionais que aí trabalham, convivem, se relacionam. sua subordinação à burocracia escolar, bem como a desqualificação As formas de relação, de produção de conhecimento, utilização de seu trabalho. Evidentemente não podemos ser ingênuos e acredi- do espaço, etc. existentes numa instituição escolar são sem dúvida tar que a fragmentação do trabalho é um fato meramente técnico. únicas, resultado do entrelaçamento de um conjunto de fatores que Aliás, a grande ênfase nos métodos e nas técnicas não é de modo numa realidade especifica adquirem forma própria, pela singularida- algum inocente, não é natural, pelo contrário, é um fato eminente- de e historicidade dos indivíduos que a compõe. mente sociopolítico, inclusive necessário a dominação. Em outras palavras, apesar de cada escola ter sua unicidade, a Na perspectiva de considerar a condição de sujeito do profes- partir de singularidades que produzem seus próprios sentidos, ela tem sor, é urgente pensá-lo como totalidade, incluindo aí suas condições como elemento constitutivo a realidade social. de vida, de trabalho, salário, etc. Dessa forma, ao compreendermos a relação professor/institui- E evidencia-se, assim, o quanto pensar numa intervenção junto ção/sociedade dialeticamente, evitamos o perigo de olhar o profes- a professores significa pensar a totalidade institucional e, mais do sor como naturalmente bom ou mau, como a-histórico, rompendo que isso, refletir sobre a própria sociedade.90 VERUSKA GALDINI E WANDA MARIA JUNQUEIRA AGUIAR INTERVENÇÃO JUNTO A PROFESSORES DA REDE PÚBLICA... 91 Outra questão que não podemos deixar de lado é a clareza de da gestão coletiva da vida escolar? Como potencializar o professor, que tanto as propostas de trabalho junto a professores, como as prá- entendido como elemento fundamental nesse processo, para ser su- ticas por eles exercidas, têm como elemento constitutivo concep- jeito dessas tarefas? ções, nem sempre explicitadas, do que é educação, do que se espera Há aí uma questão a ser enfrentada, ou seja, a dificuldade de se da escola, do aluno. Concordamos com Vigotski quando afirma que realizar um trabalho de formação de professores, que realmente acar- "(...) toda teoria da educação apresenta as suas próprias exigências rete mudanças nas suas formas de agir/pensar e sentir, mudanças ao mestre" (2001, p. 446). essas que, a nosso ver, só serão possíveis num contexto de É importante deixar claro que partimos do princípio da necessidade ressignificação da totalidade Institucional, de apropriação de suas de dar um novo sentido e função à escola, colocando-a a serviço da contradições e possibilidades de superação. A literatura mostra uma maioria da população, num trabalho crítico e transformador, imprimindo infinidade de experiências de cursos, reciclagens, etc, mas que acar- novos rumos à prática educativa e, por que não, à coletividade escolar. retam poucas transformações efetivas nas práticas docentes. que Estamos nosso rumo, nossa ética. Entendemos, como ocorre? O que leva ou não a transformação? Vigotski, que "(...) não se trata simplesmente de educação, mas de Quando falamos em mudança e transformação é importante fi- refundição do homem" (2000, p. 458). car claro que são múltiplos os aspectos determinantes, incluindo não Envolver-se efetivamente com essa perspectiva significa pres- só a história de vida e profissional do professor, como a realidade supor que as dimensões política e técnica são sempre mediadas pela institucional escolar e social. Assim, as mudanças estão sendo pen- ética. Significa, como nos lembra Cortella "(...) paixão pela sadas como sendo gestadas num determinado espaço institucional, inconformidade de as coisas serem como são, paixão pela derrota da social, histórico, por sujeitos concretos. desesperança, paixão pela idéia de, procurando tornar as pessoas Diante disso, apontamos nosso objetivo que sem dúvida é um melhores, melhorar a si mesmos ou mesma, paixão em suma, pelo recorte, muito próprio da psicologia, que se constitui numa das múlti- futuro" (1998, p. 157). plas possibilidades de trabalho a ser realizado, ou seja, a realização Nossa luta é pela busca de uma maior qualidade do trabalho de um trabalho de intervenção que possibilite a reflexão, re-significa- docente, entendendo-a como qualidade social e histórica. Então, não ção e, assim, a produção de novos sentidos sobre a "vivência de ser podemos jamais escamotear as relações entre educação e política, professor". educação e poder, não podemos compreender a qualidade, a compe- Os novos sentidos produzidos devem se constituir a partir de um tência, como tendo um valor em si, universal, independentes das con- esforço que rompa o cotidiano, desmistifique velhas concepções, dições sociais que as produzem. Como nos lembra Nosella, "Compe- aprofunde compreensões rasteiras, ultrapasse a aparência. Para isso, tência ou incompetência são qualificações atribuídas no interior de torna-se fundamental a reflexão sobre o cotidiano. Muitas vezes causa uma visão de cultura historicamente determinada, pois existe o com- estranheza o fato de prevalecer nas práticas docentes uma certa petente e o incompetente para certa concepção de cultura, como imediaticidade. Os professores falam de ações realizadas que se existe o competente e o incompetente para uma nova concepção de contrapõem ao que havia sido planejado, ou ao discurso oficial, ou cultura" (1983, p. 92). mesmo ao que dizem acreditar. O que se observa é um jogo cotidia- Como gerar a crítica pretendida, a resistência às concepções no que se assemelha a um pulular de ações desconexas. É justamen- mercantilizadas e burocratizadas do conhecimento, a problematização te nesse momento que temos de nos perguntar. O que o fazer (e o92 VERUSKA GALDINI E WANDA MARIA JUNQUEIRA AGUIAR INTERVENÇÃO JUNTO A PROFESSORES DA REDE PÚBLICA... 93 fazer-se) cotidiano do professor indica? Ele pode ser simplesmente realidade é contraditória. Não podemos sucumbir à idéia de que o negado? Será que ele não anuncia algo importante, sintomático, con- professor é mensageiro de conteúdos vazios", de que ele simples- traditório? Heller fala de um cotidiano alienado, que prima pela repe- mente ocupa um lugar na linha de montagem da escola. Não pode- tição, mas que ao mesmo tempo é espaço das contradições, "caldo mos decretar o fim das possibilidades de criação. As condições de de fervura para as sadias alienação estão presentes no cotidiano, mas as condições de supera- No esforço de penetrar no cotidiano, de desvendar suas contradi- ção também. Assim, como afirma Vigotski, as possibilidades de ima- ções, suas determinações, é fundamental que o professor tenha clare- ginar, sonhar, criar, devem ser exploradas, estimuladas. za de que a luta pela competência não se dá somente no plano indivi- Pensamos numa intervenção que, alavancada nas contradições, dual, pela busca de técnicas milagrosas. Mas é fundamental compreen- possa supera-las, indicando novos caminhos, novas formas de apre- der que a ação competente da escola é seu trabalho coletivo. ensão do mundo. Uma intervenção que considere o ser humano como Sabemos que essa é uma tarefa árdua. Como estabelecer um uma sentimentalidade inteligente, ser que é afetado e que afeta, que processo de interrogação explícita e ilimitada no espaço cotidiano de se implica. Pensamos um professor que inevitavelmente deixe mar- trabalho docente? Como produzir novos sentidos? Como possibilitar cas, que se veja como mais um dos determinantes constitutivos des- ao professor ser um investigador em aula? Como sair do lamento e se aluno e vice-versa. partir para construção de um projeto que tenha como norte a gestão É necessário que, na reflexão sobre a prática da atividade do- coletiva do sentido escolar? cente, o professor não se exclua, que olhe para a relação professor- Deve-se, pois, retomar o conceito de re-significação. Seria aluno, entendendo-a como algo que jamais poderá ser compreendi- simplista afirmarmos que, para atingirmos nosso objetivo, re-signifi- do, isolando cada um dos seus elementos ( professor-aluno). Tal re- car, produzir novos sentidos bastaria que os professores se apropri- lação, nessa perspectiva, é constituída por um movimento no qual, assem de suas determinações. Temos de considerar a dialética obje- apesar de professor- aluno, serem dois elementos distintos, um deve tividade/subjetividade. Como aponta Aguiar, "nesse processo de ser visto como constitutivo do outro, um não é sem o outro, só poden- objetivação/subjetivação que é único, social e histórico a realida- do ser entendidos nessa relação. E não só é importante a compreen- de social encontra múltiplas formas de ser configurada, com a possi- são de que essa relação, professor aluno, também medeia a reali- bilidade de que tal configuração ocorra sem desconstruir velhas con- dade institucional e a própria realidade social-histórica. Só assim será cepções e emoções calcadas em preconceitos, visões ideologizadas, possível a criação de um vínculo com o aluno concreto, qualificando fragmentadas, etc." (2000, p. 180). Aí se coloca nosso desafio. Sa- a relação professor X aluno, de modo a permitir implicação, apropri- bemos que muitas vezes, no seu cotidiano, o professor não se apro- ação e produção por parte de ambos. pria de suas experiências, não valoriza as nuances, os desafios, os Colocados os pressupostos orientadores de nosso trabalho, apre- questionamentos colocados pelos alunos, pela própria realidade. Pa- sentaremos, a seguir, o desenvolvimento de nossa prática. Como for- rece estar imune ao novo, aos choques. O que presenciamos é um ma de apresentação aglutinamos os encontros que tiveram objetivos empobrecimento da experiência, é a prevalência da mesmice, a falta semelhantes, passando a denominar tais agrupamentos de módulos. de perspectivas, o beco sem saída". A divisão em módulos explicita uma ênfase dada em alguns objetivos As dificuldades são muitas, as condições sociais, institucionais em determinado momento; o que não impede que esses mesmos são dificultadoras da mudança, mas não podemos esquecer que a objetivos permeiem outros momentos do processo.94 VERUSKA GALDINI E WANDA MARIA JUNQUEIRA AGUIAR INTERVENÇÃO JUNTO A PROFESSORES DA REDE PÚBLICA... 95 Relataremos um exemplo do desenvolvimento de nossa prática muros permeiam toda a escola, dentro e fora. A vigilância é perma- em uma escola específica. Foram realizados dez encontros com du- nente e feita por policiais femininas que recebem auxílio de viaturas ração de uma hora cada um, com um grupo aberto que contou com a policiais; a sensação é de um risco iminente e de uma tentativa de- participação de 12 professores em média. sesperada de evitar que a violência adentre a escola. Também há grades nos corredores internos e em todos os espaços de circulação, além de trancas nas salas de aula. ESPAÇO INSTITUCIONAL Os murais são utilizados para divulgar as regras da escola, car- tazes sobre prevenção a doenças, promoção de saúde, preservação Falamos, anteriormente, que o primeiro pressuposto para cui- do meio ambiente e de concursos promovidos para professores. O darmos da formação de professores refere-se à concepção de que a mural, aparentemente, não é utilizado pelo aluno como espaço de escola é o local onde a atividade docente acontece, onde são veicu- divulgação. lados os pressupostos teóricos e metodológicos orientadores do pen- Nas entrevistas e conversas que fizemos, procuramos identifi- sar e agir das pessoas que constroem o espaço institucional. A pri- car como são as relações interpessoais na escola e para retratá-las meira pergunta que levamos conosco na primeira visita foi: como é aqui escolhemos algumas palavras que se repetem nos discursos, esta escola, como é seu espaço físico, suas inter-relações e sua filo- são elas: ordem, respeito, autoridade, medo, rigidez, disciplina, sofia, qual é sua proposta pedagógica? indisciplina, rigor, conteúdo, hierarquia. Para responder as perguntas acima, elaboramos ações estraté- Investigamos também a proposta pedagógica da escola e pude- gicas, tais como, observação, entrevistas com professores, funcioná- mos sintetizar que os profissionais que compõem essa escola pro- rios em geral, coordenadores pedagógicos e diretores. põem a formação de cidadãos capazes de competir no mercado de Observamos o cotidiano da escola. Ficamos como turistas visitan- trabalho e preparados para o vestibular por meio de padrões rígidos do uma cidade desconhecida: passeamos pelo pátio da escola no horá- de ensino, da disciplina, da hierarquia e do respeito, bem como do rio de recreio, pela secretaria, conversamos despreocupadamente com conteúdo ensinado e da cobrança do aprendizado. as pessoas circulando por ali, olhamos os detalhes que compunham o Buscamos nas entrevistas e conversas informações sobre as ambiente: quadro de avisos, cadeiras, mesas, muros, grades, sirene. famílias que matriculam seus filhos nessa escola: como elas pensam Vimos que essa escola possui uma grande área construída, com a educação? Segundo os educadores, elas concordam com a pro- as salas de secretaria e direção, as classes, o pátio e a cantina bas- posta pedagógica e procuram a escola exatamente por esse motivo. tante espaçosos e iluminados, mesmo à noite. A escola é bem con- Como nos foi dito, os pais escolhem a escola por ser "forte", "puxa- servada, com paredes, carteiras e salas sempre limpas e em boas da", "exigente nos conteúdos", "disciplinadora". condições de uso. Nas paredes, há placas com homenagens à escola Na opinião dos entrevistados, o único problema citado nas con- e o busto do fundador recepciona os visitantes, além do porteiro que versas e entrevistas foi a indisciplina, que tem como solução uma só permite a entrada de alunos uniformizados ou adultos devidamen- postura mais rigorosa e disciplinadora. te autorizados. Com as entrevistas e as conversas pudemos conhecer os pres- A porta de entrada é voltada para um parque arborizado, mas supostos filosóficos, a ideologia, os valores que constituem as rela- utilizado para uso e tráfico de drogas, estupro, assaltos, etc. Grades e ções sociais e políticas vividas naquele espaço institucional. Conhe-96 VERUSKA GALDINI E WANDA MARIA JUNQUEIRA AGUIAR INTERVENÇÃO JUNTO A PROFESSORES DA REDE PÚBLICA... 97 cer e analisar o pensamento por trás da ação cotidiana é fundamen- O que pretendemos com o acolhimento é gerar movimentos no tal para podermos criar as estratégias de ação e as ações estratégi- plano da subjetividade e isso requer um espaço propiciador de apro- cas que utilizaremos, para sabermos como e quais são as transfor- priação de si mesmo, de autoconhecimento para que o professor se mações possíveis dentro daquele espaço institucional, que tem rela- veja implicado. Concordamos com Chaui que afirma que "Somente ções específicas, cotidiano singular, pensamentos, valores e conheci- quando o desejo de pensar é vivido e sentido como um afeto que mentos constituídos e que serão constitutivos do pensar e agir dos aumenta nosso ser e nosso agir é que podemos avaliar todo o mal professores dessa instituição. que nos vem de não saber" (p. 1983, p. 57). Nesse processo, percebemos como interessante a realização de atividades nas quais eles possam se colocar, expressando suas neces- ACOLHIMENTO E RESPONSABILIDADE sidades, problemas, expectativas, percepção de si mesmo (coisas que gostariam que acontecesse na sua vida, tanto relativo a vida profissi- No primeiro momento do grupo com os professores, duas ques- onal, como de modo geral). Esse momento é muito propicio para tões se destacaram para serem enfrentadas: a necessidade de aco- conhecermos o grupo, para começarmos a criar um espaço acolhe- lhimento e de responsabilização do professor. dor, espaço este que deve ser visto como possibilitador de manifesta- No que se refere à primeira questão, foi fundamental que mos- ção de idéias e expressões de afetividade. Por isso, o acolhimento, trássemos disponíveis para ouvi-los, não porque somos "bonzinhos", sem nunca esquecer que ele, o professor, é responsável por seus atos, mas porque temos a clareza de que a realidade é complexa, que a que ele é sujeito e que tem a possibilidade de interferir, atuar. atividade docente (especialmente nas escolas públicas) é atravessada Uma das estratégias utilizadas para atingir tal objetivo foi pedir aos por uma multiplicidade de fatores que marcam e constituem formas de professores que desenhassem uma árvore, representando como eles se ser/pensar e sentir dos professores. Sendo assim, para potencializarmos vêem na vida, colocando nos galhos características pessoais positivas e a ação do professor, precisamos escutar e conhecer o que esse ele nas raízes características que poderiam ser melhoradas, algo que ainda sente, como explica os fatos que vive, quais são os pressupostos que não é do jeito que gostariam. Pedimos uma segunda árvore, represen- orientam sua ação, para explicitarmos as contradições vividas e, en- tando essas características, especificamente para a vida profissional. tão, construirmos juntos as alternativas possíveis. Nossa prática tem mostrado que, diante das dificuldades vividas Os trabalhos realizados junto a professores mostram o quanto (ser professor da escola pública), o educador, muitas vezes, se são múltiplos e contraditórios os sentimentos vividos por eles, ou despotencializa, não se vê como sujeito capaz de interferir na reali- seja, culpa, medo, raiva, impotência, desânimo são sentimentos que dade, não acreditando que deixa rastros na sua prática. Esse movi- os acompanham no dia-a-dia. Precisamos então tocar nesses sen- mento acaba o levando a se excluir da relação professor/aluno, como timentos para que sejam superados e para que outros ocupem seu se isso fosse possível! (questão abordada no próximo item). É ne- lugar, como a criatividade, a paixão, a potência, a reflexão. Busca- cessário, incentivarmos o professor a fazer um movimento em busca mos atingir esse objetivo criando um espaço de acolhimento dos dos motivos, dos nexos entre seu presente, seus motivos, desejos e limites, das dificuldades, do ruim, para conhecermos também o que necessidades, sua história de vida e a sociedade na qual está inseri- os constitui, como esses aspectos surgem e se mantêm e, então, do. Para que, ao olhar para sua prática e para si, possa enxergar-se como transformá-los. não como ser natural, mas como histórico e social.98 VERUSKA GALDINI E WANDA MARIA JUNQUEIRA AGUIAR INTERVENÇÃO JUNTO A PROFESSORES DA REDE PÚBLICA... 99 É fundamental ao professor a apropriação dos determinantes vocando dispersão nos outros alunos. Ela descreve essa situação que o constitui, a clareza de que muitas vezes suas certezas são como uma afronta pessoal, sentindo-se desafiada, pois ele negou- baseadas em dados da aparência, mas também é fundamental que se a desligar o walkman e a sair da sala, como solicitado por ela. A produza a potência de agir, que reconheça seu poder de constituição professora contou que se sentiu desrespeitada, impotente e com de si mesmo, do aluno e do próprio espaço educativo. medo do aluno, pois este "era um homem maior do que eu!". Sua atitude foi ignorá-lo. A proposta feita para o grupo de professores APROPRIAÇÃO DO ALUNO foi de discutir a situação considerando a multiplicidade de determi- nações (esse aluno e essa escola são construídos sociohisto- Consideramos fundamental estimular o professor a olhar para o ricamente), o que nos fez reconsiderar a particularidade da situa- aluno concreto, de "carne e osso". Para isso, talvez seja necessário ção e perceber a necessidade de aproximarmo-nos desse aluno e recuperar suas histórias como alunos, a própria história da evolução orientá-lo. No encontro seguinte, a professora relata que ao reviver dos modos de vida, dos valores, da juventude. É muito comum o uma situação semelhante com o mesmo aluno, procurou conversar saudosismo em relação à formação moral que se tinha, à qualidade com ele sobre o que estava escutando, mostrando interesse por do ensino, etc. Em última instância, estamos propondo que o profes- aquilo que o interessava. Na avaliação final dos encontros, essa sor se torne um investigador das questões que constituem e atraves- professora relata que a tentativa de aproximação permitiu que se sam sua prática docente, participando desta forma, do processo de estabelecesse amizade e respeito entre os dois e ela pôde conver- produção de saberes sobre seu próprio trabalho. sar com o aluno como se sentia diante da situação e esse pode Essas questões devem ser tratadas de modo a favorecer ao pro- compreender o que significava para ela o uso do aparelho durante fessor uma reflexão que o leve a apropriar-se da dinâmica constitutiva a aula. Durante vários encontros, os professores relataram diver- da realidade educacional atual, da realidade dos alunos e jovens de sos casos em que a demonstração de empatia interpessoal hoje. É necessário que o professor questione-se: quem é este jovem? (construída no caso a partir de um conhecimento dos processos de Que escola é esta? Quais necessidades os motivam? Qual sua histó- constituição dos sujeitos envolvidos) produz transformações nas ria? Quais suas percepções sobre si e sobre o mundo? relações e nas pessoas. É necessário fazer com o professor um exercício de reflexividade sobre o aluno da nossa cultura, do nosso momento, que vive outras necessidades, outros interesses e atribui sentidos diferentes a atitu- APROPRIAÇÃO DA DIALÉTICA PROFESSOR/ALUNO des e objetos (o uso do famoso boné, por exemplo!). O professor precisa estar disposto a re-conhecer seus alunos Outra questão a ser trabalhada com os professores é a neces- para negociar seus desejos. Por exemplo, em uma das discussões sidade de compreenderem a relação que estabelecem com os alu- de casos trazidos pelos professores para o grupo, fica claro como a nos como uma relação de mediação, na qual professor e aluno são diferença de atitude da professora pode evitar o desgaste desne- constitutivos da relação. Não dá para imaginar um dos elementos cessário no cotidiano. Uma professora comenta sobre um aluno com menor poder de interferência. Ele, professor, tem de se perce- que escuta walkman durante a aula. Segundo a professora, o alu- ber como elemento constitutivo das práticas, percepções e senti- no ouvia um jogo de futebol, fazendo comentários em VOZ alta, pro- mentos dos alunos.