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1 ALTERAÇÕES POST MORTEM EM CÃES E GATOS: UMA REVISÃO DE 1 LITERATURA 2 3 POST-MORTEM CHANGES IN DOGS AND CATS: A LITERATURE REVIEW 4 5 6 Thabata Luiza Barbosa Lima 1 7 Ana Paola Brendolan 2 8 9 10 Resumo 11 12 O conhecimento das alterações post mortem é fundamental para a determinação do tempo 13 decorrido entre a morte e encontro do cadáver e para evitar o falso diagnóstico sobre a causa 14 da morte do animal visto que, sem conhecê-las, é possível que haja confusão entre as 15 alterações post mortem e ante mortem. Esse reconhecimento dará indícios do que influenciou 16 ou acarretou para o óbito do animal. Entretanto, realizar essa análise nem sempre é fácil e 17 requer experiência do profissional. Por isso, o presente trabalho tem o intuito de descrever as 18 alterações post mortem observáveis em cães e gatos. Quando ocorre a morte do animal, o 19 organismo começar a sofrer uma série de alterações que caracterizam os fenômenos post 20 mortem. Estes fenômenos podem ser classificados em abióticos e transformativos. Os 21 fenômenos abióticos são perda da consciência; desaparecimento dos movimentos e do tônus 22 muscular; ausência dos movimentos respiratórios e dos batimentos cardíacos; perda da ação 23 reflexa a estímulos táteis, térmicos e dolorosos; perda das funções cerebrais; desidratação; 24 algor mortis; rigor mortis; livor mortis; e coagulação do sangue. Já os transformativos são 25 autólise; putrefação; maceração; saponificação; e mumificação. Estes fenômenos têm suas 26 características peculiares que devem ser bem conhecidos a fim de evitar que sejam 27 confundidos com fenômenos ante mortem e que um diagnóstico errôneo seja fornecido. 28 29 Palavras-chave: Alterações. Post mortem. Cão. Gato. 30 31 32 1 INTRODUÇÃO 33 34 35 O estudo e conhecimento das alterações post mortem é importante para evitar o falso 36 diagnóstico sobre a causa da morte do animal visto que, sem conhecê-las, é possível que haja 37 confusão entre as alterações post mortem e ante mortem. Além disso, estudar estas alterações 38 1 Discente do curso de Medicina Veterinária da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Betim. E-mail: thabatavet@hotmail.com 2 Docente do curso de Medicina Veterinária da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Betim. Rua do Rosário 1.081, Bairro Angola, CEP 32.604-115, Betim, Minas Gerais, Brasil. (31) 3319-4444. E-mail: apbrendolan@hotmail.com. 2 é fundamental para o conhecimento ou a determinação do tempo decorrido entre a morte e o 39 exame do cadáver (cronotanatognose) (GARRIDO; NAIA, 2014). 40 Por meio da necropsia, através do exame post mortem, o patologista avalia as 41 prováveis condições que levaram o animal à perda da higidez (BANDARRA; SEQUEIRA, 42 1999a). O conhecimento da patologia animal é fundamental, uma vez que é com base no 43 reconhecimento da anatomia e fisiologia de um animal que o profissional poderá avaliar as 44 mudanças ocorridas que podem dar indícios do que influenciou ou acarretou para o óbito 45 (MARIA, 2010). Além disso, as condições em que ocorreram o óbito devem ser consideradas, 46 dentre elas, o histórico do animal, o local do acontecimento e as características inerentes a 47 cada indivíduo (extremamente distintas de um caso clínico para outro). Estes fatores reforçam 48 a relevância de se deter este conhecimento e a importância de ser capaz de realizar uma 49 análise assertiva e satisfatória (BATISTA et al., 2016). 50 Entretanto, conduzir uma análise de forma criteriosa nem sempre é uma tarefa fácil, 51 uma vez que as alterações post mortem sempre vão estar presentes, em maior ou menor 52 intensidade, na necropsia. Em muitos casos, elas podem ser confundidas com mudanças 53 anatômicas e/ou fisiológicas ocorridas nos animais em decorrência de uma série de fatores ao 54 longo de sua vida (BANDARRA; SEQUEIRA, 1999a). Por isso, o presente trabalho tem o 55 intuito de descrever as alterações post mortem reconhecidas em cães e gatos. Além disso, a 56 pesquisa se justifica ao elencar as alterações observáveis em cães e gatos que podem auxiliar 57 em um exame post mortem adequado e na conclusão de um diagnóstico fidedigno. 58 59 60 2 REVISÃO DE LITERATURA 61 62 63 2.1 Morte e fenômenos post mortem 64 65 66 A morte “não é um fato instantâneo, mas uma sequência de fenômenos gradativamente 67 processados nos vários órgãos e sistemas de manutenção da vida” (FRANÇA, 2014, p. 535). 68 Estes fenômenos, denominados post mortem ou cadavéricos, são classificados em abióticos e 69 transformativos. Os fenômenos abióticos, como o próprio nome sugere, ocorrem sem a 70 interferência de agentes biológicos. Estas alterações indicam que não há mais vida no animal, 71 3 mas elas não ocasionam em transformações que dificultam a necropsia. Por outro lado, os 72 transformativos sofrem uma interferência considerável desses agentes (FRANÇA, 2017). 73 74 75 2.2.1 Fenômenos cadavéricos abióticos 76 77 78 Os fenômenos cadavéricos abióticos, por sua vez, se subdividem em imediatos e 79 mediatos. Os imediatos são aqueles que se manifestam imediatamente com a morte, sendo 80 indicativos de morte somática ou clínica. Dentre eles, podemos citar a perda da consciência e 81 da sensibilidade; o desaparecimento dos movimentos e do tônus muscular; a ausência dos 82 movimentos respiratórios e dos batimentos cardíacos; a perda da ação reflexa a estímulos 83 táteis, térmicos, dolorosos; e a cessação da respiração, da circulação e da atividade cerebral 84 (BANDARRA; SEQUEIRA, 1999a). A ocorrência e permanência destes fenômenos é que 85 concretiza a morte, uma vez que qualquer um deles pode ocorrer de maneira isolada como 86 consequência da ação de substâncias químicas ou de alterações fisiológicas no organismo 87 (GALLI, 2014). 88 Os fenômenos abióticos mediatos são aqueles que ocorrem em virtude da parada total 89 das atividades metabólicas do organismo, além da prevalência de fenômenos físicos a que 90 todo organismo inerte está sujeito. Eles incluem: desidratação, resfriamento do corpo, 91 manchas de hipóstase, rigidez cadavérica e coagulação do sangue (CALABUIG, 2005). 92 93 94 2.2.1.1 Desidratação cadavérica 95 96 97 A desidratação cadavérica é caracterizada pela perda passiva de líquidos corpóreos, 98 resultando em uma diminuição do peso do cadáver devido ao ressecamento cutâneo e de 99 mucosas (FRANÇA, 2017). Anatomicamente, a desidratação cadavérica é melhor observada 100 nos globos oculares, mucosas externas e na perda de elasticidade cutânea. Nos globos 101 oculares, a desidratação culmina em perda da transparência da córnea, afundamento do globo 102 ocular, decorrente da diminuição da pressão intraocular, e na formação da tela viscosa 103 (CALABUIG, 2005). Na pele, a dessecação e o endurecimento fazem com que o tecido 104 4 apresente um aspecto seco, duro e espesso, semelhante a pergaminho (FRANÇA, 2017; 105 CALABUIG, 2005). O ressecamento da mucosa, por sua vez, resulta em seu escurecimento, o 106 que pode ser confundido com cianose (DOLINAK; MATSHES; LEW, 2005). 107 O processo de dessecação, por sua vez, depende fundamentalmente de fatores 108 ambientais e individuais. Dentre os fatores ambientais que podem influenciar na desidratação 109 cadavérica estão a umidade relativa do ar, a temperatura e a ocorrência de correntes de ar. 110 Além disso, condições individuais como idade, porte e cobertura tegumentar podem 111 influenciar e devem ser consideradas em todo o processo de análise (CALABUIG, 2005). A 112 desidratação não ocorre de maneira rápida e isso deve ser levado em consideração durante a 113 necropsia (CRAVO, 2015), visto que existe a possibilidade de a desidratação observada no 114 animal ser um eventoante mortem. 115 116 117 2.2.1.2 Algor mortis ou resfriamento cadavérico 118 119 120 Organismos homeotérmicos vivos mantêm sua temperatura em decorrência de 121 processos exotérmicos. Por meio da ausência de atividade metabólica, o cadáver não é capaz 122 de manter sua homeostase, de forma que a sua temperatura corpórea tende a se equilibrar com 123 a temperatura ambiente (DOLINAK; MATSHES; LEW, 2005). 124 Estima-se que essa perda de calor seja, em média, 1º C a cada hora (SANTOS et al., 125 2006). No entanto, esses dados são extraídos de humanos, e, em cães e gatos, podem sofrer 126 enormes variações, tendo em vista a grande variedade de raças, que influenciam 127 significativamente no tamanho, na pelagem e outros fatores que interferem na capacidade de o 128 corpo perder calor. No processo de resfriamento, a temperatura corporal cai mais lentamente 129 nas primeiras horas após o óbito, apresentando queda mais acentuada após três horas. A 130 ocorrência de febre, hipotermia ou a causa da morte podem mudar o perfil do processo de 131 resfriamento (NOKES et al., 1992). 132 133 134 2.2.1.3 Livor mortis ou manchas de hipóstase 135 136 137 5 O livor mortis é um mecanismo de hemoconcentração dependente da gravidade, 138 caracterizado pela pele esbranquiçada em determinado sítio anatômico. Ocorre como 139 resultado da deposição de células sanguíneas por meio da ação gravitacional e da compressão 140 do corpo sobre o sangue contido nos vasos sanguíneos (SANNOHE, 2002), levando à 141 deposição de manchas violáceas no sítio diametralmente oposto ao do livor, fenômeno 142 conhecido como hipóstase cadavérica. O diâmetro dos vasos e a viscosidade do sangue 143 interferem no processo de hipóstase (HÉRCULES, 2014). A hipóstase começa a ocorrer cerca 144 de 2 a 4 horas após a morte e, após sua formação completa, as marcas tendem a se fixar, de 145 forma que, independentemente da posição em que o corpo seja colocado, as manchas não se 146 modificam (SPITZ; SPITZ, 2006). O livor mortis e a hipóstase contralateral podem ser 147 observados externamente, na pele e mucosas, e internamente, nas vísceras abdominais e 148 torácicas, ocorrendo de forma mais acentuada nos pulmões, por ser órgão de intensa irrigação. 149 A fixação da hipóstase ocorre em torno de 12 horas após a morte, sendo resultado da 150 ruptura das hemácias que ocasiona em outra alteração post mortem: a embebição dos tecidos 151 pela hemoglobina (FRANÇA, 2017). Entretanto, autores afirmam que essa fixação pode 152 acontecer em períodos mais longos ou mais curtos, sendo influenciada pelas condições do 153 ambiente e do próprio animal (SANNOHE, 2002). 154 A hipóstase pode ser um fenômeno ante mortem, por isso é importante saber 155 diferenciá-la da hipóstase post mortem. Quando ocorre antes da morte, ela é denominada 156 congestão hipostática, condição patológica que resulta em acúmulo de sangue, edema e 157 hipóxia nas partes baixas do corpo, pela ação da gravidade. Esses eventos provocam lesões 158 em indivíduos com hipóstase ante mortem, como pneumonia hipostática e escaras de 159 decúbito, enquanto na hipóstase post mortem não é possível visualizar tais lesões (ALVES et 160 al., 2009; MURAKAMI; PRÓPERO; MONTANHA, 2011). 161 A hipóstase deve ser diferenciada de hemorragia. Na hipóstase, o acúmulo de sangue 162 ocorre inteiramente no interior dos vasos sanguíneos, enquanto na hemorragia ocorre pelo 163 extravasamento de sangue dos vasos sanguíneos para o tecido adjacente, subcutâneo ou 164 cavidades. Na área de hipóstase, o tecido submetido à pressão digital fica de tonalidade mais 165 clara, o que não ocorre nas áreas de hemorragia. 166 167 168 2.2.1.4 Rigor mortis ou rigidez cadavérica 169 170 6 171 A rigidez cadavérica é um fenômeno decorrente do enrijecimento dos músculos, que 172 se configura como uma consequência das alterações bioquímicas que ocorrem no mioplasma 173 (DOLINAK; MATSHES; LEW, 2005). O processo de contração muscular em vida ocorre 174 pela ligação das fibras de actina e miosina presentes nos tecidos musculares, cuja energia para 175 ocorrência é decorrente da quebra da adenosina trifosfato (ATP) em adenosina difosfato 176 (ADP) por meio de mecanismo aeróbio (TSOKOS; BYARD, 2012). 177 Assim, o rigor mortis se inicia com a cessação do bombeamento de íons de cálcio para 178 o interior do retículo sarcoplasmático que, devido à ausência de ATP, aumenta a concentração 179 de cálcio no citosol. Este íon se liga a proteína troponina C e induz a mudança conformacional 180 da tropomiosina. Como não há ATP para desfazer este complexo, os músculos tornam-se 181 rígidos (HALL, 2011). Além disso, a redução do conteúdo de ATP e o aumento do ácido 182 láctico intracelular, que diminui o pH, minimizam a elasticidade e plasticidade muscular 183 (TSOKOS; BYARD, 2012). 184 Apesar de o processo ter início logo após a morte, a rigidez cadavérica só é perceptível 185 após algumas horas, ocorrendo de forma progressiva. Na carcaça, a rigidez se instala em 186 sentido crânio-caudal, ocorrendo primeiro nos músculos da pálpebra, na cabeça, pescoço, 187 membro anteriores, corpo, membros posteriores e finalmente na cauda. Ela atinge o pico 188 máximo em cerca de 12 horas e desaparece entre 24 a 48 horas depois, dependendo das 189 condições ambientais as quais o cadáver está sujeito. No processo, os músculos involuntários 190 entram em rigor antes dos voluntários, por conterem menores reservas de glicogênio, devido à 191 atividade constante (DOLINAK; MATSHES; LEW, 2005; TSOKOS; BYARD, 2012; 192 FRANÇA, 2017). 193 Outro aspecto importante a se salientar é a confusão que pode haver entre rigidez 194 muscular e articular. No caso, é importante evidenciar que as estruturas ósseas e cartilaginosas 195 não estão envolvidas no mecanismo de formação do enrijecimento post mortem (SPITZ; 196 FISHER, 2006). Componentes associados às condições mórbidas ou à ocorrência da morte 197 podem influenciar diretamente no processo de rigidez cadavérica. É bem estabelecido que 198 fatores como infecções, alta temperatura ambiente, intenso trabalho muscular e quadros 199 convulsivos podem acelerar esse processo. Em contrapartida, animais caquéticos e baixa 200 temperatura ambiente podem retardar o processo (CALABUIG, 2005). 201 Devido à baixa reserva energética, o coração é o primeiro órgão a entrar em rigor 202 mortis. Essa rigidez culmina na expulsão do sangue do seu interior, de maneira completa em 203 7 relação ao ventrículo esquerdo e parcial no ventrículo direito. Por isso, espera-se encontrar 204 sangue coagulado no ventrículo direito e ausência de coágulos no esquerdo quando realizado 205 o exame macroscópico do órgão. Caso esse achado não seja observado, há um indício da 206 ocorrência de processos degenerativos de miocárdio no animal ainda em vida, como 207 insuficiência cardíaca (BANDARRA; SEQUEIRA, 1999a). 208 209 210 2.2.1.5 Coagulação do sangue 211 212 213 A coagulação sanguínea é outro fenômeno importante devido a sua possibilidade de 214 ocorrência em vida e post mortem. Os coágulos podem ser classificados em cruóricos e 215 lardáceos. Os cruóricos possuem coloração vermelha e são caracterizados pela predominância 216 de hemácias, enquanto os lardáceos possuem uma coloração branco amarelado, o que indica a 217 predominância de leucócitos e plaquetas (MARIA, 2010). 218 Nos fenômenos de coagulação post mortem, predominam os coágulos cruóricos, os 219 quais, na falta de uma análise criteriosa e atenta, podem ser confundidos com trombos. 220 Macroscopicamente, os trombos estão aderidos à superfície de inserção, são opacos, friáveis e 221 de superfície irregular. Os coágulos, por outro lado, destacam-se facilmente, são brilhantes e 222 de superfície regular (BANDARRA; SEQUEIRA, 1999a).223 É fundamental compreender que o processo de coagulação não acontece em todo o 224 sangue do animal. A coagulação está altamente associada à hipóstase, visto que, quando mais 225 lenta a coagulação sanguínea, maior a formação das manchas e vice-versa. Assim, é válido 226 compreender se o animal possui alguma condição ante mortem como anemia, deficiência de 227 plaquetas e insuficiência hepática, condições estas que interferem com a coagulabilidade do 228 sangue. A presença de sangue mal coagulado no cadáver é sempre sinal de uma doença ante 229 mortem, que deverá ser investigada mais profundamente (MENDONÇA, 2004; GOMES et 230 al., 2008). 231 232 233 2.2.2 Fenômenos cadavéricos transformativos 234 235 236 8 Os fenômenos cadavéricos transformativos, por sua vez, são classificados em 237 destrutivos e conservadores. Os destrutivos são aqueles que promovem a completa destruição 238 do cadáver, enquanto os conservadores mantêm, apesar das modificações transformativas, as 239 características gerais do cadáver (BANDARRA; SEQUEIRA, 1999a). 240 241 242 2.2.2.1 Fenômenos cadavéricos destrutivos 243 244 245 Os fenômenos cadavéricos destrutivos caracterizam um conjunto de alterações que 246 conduzem à decomposição do cadáver. Dentre eles estão a autólise, a putrefação e a 247 maceração (GALLI, 2014). 248 249 250 2.2.2.1.1 Autólise 251 252 253 A autólise é caracterizada por um processo enzimático que ocorre após a morte e 254 culmina em uma autodigestão tissular. O processo tem início poucas horas post mortem e à 255 medida que as células e os tecidos vão morrendo, há liberação de enzimas contidas em 256 organelas celulares que, ao serem liberadas, dão início ao processo digestivo. Por isso, a 257 autólise é mais acentuada em tecidos ricos em enzimas, como no trato digestivo e no pâncreas 258 (FÁVERO, 1973). 259 A autólise é minimizada ou cessada com a diminuição da temperatura, a ausência de 260 água ou pelo uso de agentes fixadores como o formol, glutaraldeído e formaldeído. O tecido 261 que sofreu autólise apresenta, a olho nu, mudanças na coloração e na textura. Entretanto, a 262 análise micróscopica revela alterações citoplasmáticas e nucleares em todo o órgão, resultante 263 do processo de anóxia, o que possibilita diferenciá-los de outros fenômenos, como a necrose 264 de coagulação (ARMANI, 2007). 265 266 267 2.2.2.1.2 Putrefação 268 269 9 270 A putrefação ocorre em decorrência da ação de microrganismos aeróbios, anaeróbios e 271 anaeróbios facultativos presentes em diferentes órgãos do animal, mas principalmente na 272 porção inicial do intestino grosso (FÁVERO, 1973). Essa porção é na qual mais se acumulam 273 gases, determinando o aparecimento incipiente da mancha verde abdominal (PATITÓ, 2003). 274 A mesma, com o passar do tempo difunde por todo o tronco, cabeça e membros, atribuindo 275 uma coloração bastante escura aos tecidos do cadáver (SCHMITT, 2006). 276 Geralmente, esse processo de putrefação se inicia em regiões centrais do organismo, 277 podendo ter sua progressão modificada em função de algumas condições. Essas condições 278 foram categorizadas por Bandarra e Sequeira (1999b) como extrínsecas e intrínsecas e as 279 principais delas sumarizadas no quadro 1. 280 281 Quadro 1: Principais condições extrínsecas e intrínsecas que influenciam a ocorrência de putrefação. 282 Extrínsecas Intrínsecas Condição Influência Condição Influência Temperatura Ambiente Temperaturas inferiores a 0ºC conservam o cadáver. Temperaturas superiores a 25°C aceleram a putrefação. Sangria Possui efeito retardante, visto que o sangue tem condições ideias para a replicação das bactérias. Grau de umidade Graus de umidade altos aceleram o processo de putrefação até alcançar níveis elevados, retardando o processo. Doenças desidratantes Retardam a putrefação porque diminuem a quantidade de água no organismo. Morte rápida Favorece o processo em virtude da massa sanguínea disponível. Higiene dos locais Quanto maior a higiene,zação, menos contaminação ambiental e putrefação mais retardada. Doenças toxêmicas e septicêmicas Aceleram a putrefação se acompanhadas de graves alterações regressivas do parênquima dos órgãos e dos líquidos orgânicos. Cobertura Tegumentar Pelos, penas, lã e camada de gordura aceleram a putrefação por dificultar a dissipação do calor. 283 Fonte: Bandarra e Sequeira (1999b). 284 285 Dessa forma, é notável que o processo de putrefação também aconteça em velocidades 286 diferentes dependendo da condição ambiental e de fatores do próprio animal. 287 Sistematicamente, o desenvolvimento do processo é dividido em quatro períodos: coloração, 288 gasoso, coliquativo e esqueletização (SCHMITT; CUNHA; PINHEIRO, 2006). O período de 289 coloração é caracterizado pelo surgimento de manchas esverdeadas no corpo do animal 290 (PATITÓ, 2003), fenômeno conhecido por pseudomelanose. Essa cor é resultante da presença 291 de sulfametahemoglobina, um composto oriundo da reação entre o gás sulfídrico produzido 292 10 no metabolismo das bactérias associado a hemoglobina liberada pelo processo de hemólise 293 (CALABUIG, 2005). 294 O segundo período, denominado gasoso, enfisematoso ou deformante, caracteriza-se 295 por um acentuado grau de timpanismo abdominal. Os gases produzidos podem infiltrar 296 também no tecido subcutâneo, caracterizando um processo de enfisema. Ambos processos 297 modificam progressivamente a fisionomia e a forma do corpo do animal. Quando eles 298 ocorrem de modo muito intenso, pode-se observar a ocorrência de prolapso de reto e de 299 vagina. Além disso, pode ocorrer extravasamento de fluidos devido a pressão exercida pelos 300 gases produzidos (CALABUIG, 2005; CROCE; CROCE JÚNIOR, 2012). 301 A produção gasosa começa a diminuir de maneira concomitante a ocorrência do 302 período coliquativo. Este período é caracterizado pelo amolecimento e desintegração dos 303 tecidos, que se transformam em uma massa disforme, pastosa e escura. Nesse momento, os 304 odores característicos da putrefação atingem maior intensidade (PRADO, 1972). 305 Por fim, o período de esqueletização ocorre quando a maioria das partes moles do 306 cadáver sofreu coliquação, restando apenas a estrutura óssea (GALLI, 2014). Dependendo das 307 condições em que o cadáver se encontra ao passar pelo processo de putrefação, existe ainda a 308 possiblidade de nele se instalarem insetos que podem acelerar o processo de decomposição 309 dos tecidos. A presença desses insetos, geralmente das famílias Calliphoridae, Muscidae e 310 Sarcophagidae, tem grande importância para a estimativa do tempo de morte (OLIVEIRA-311 COSTA, 2008; CROCE; CROCE JÚNIOR, 2012). 312 313 314 2.2.2.1.3 Maceração 315 316 317 A maceração compreende uma sucessão da putrefação em que os tecidos moles se 318 destacam dos ossos. Esse processo pode ocorrer quando o cadáver fica em meio aquoso 319 estagnado contaminado (GARRIDO; RODRIGUES, 2012) sofrendo ação bacteriana ou 320 quando um concepto morto permanece no útero da mãe a partir do quinto mês de gestação 321 (PRADO, 1972). 322 323 324 2.2.2.2 Fenômenos cadavéricos conservadores 325 11 326 327 Os fenômenos cadavéricos transformativos conservadores incluem, como o próprio 328 nome diz, a conservação das formas macroscópicas e/ou anatômicas devido à ocorrência de 329 processos biológicos ou físico-químicos, naturais ou artificiais (VANRELL, 2016), e incluem 330 a saponificação e a mumificação. 331 332 333 2.2.2.2.1 Saponificação 334 335 336 A saponificação é um processo conservador. Ocorre de forma espontânea e se 337 caracteriza pela transformação do cadáver em substância de consistência untuosa, mole e 338 quebradiça,de tonalidade amarelo escura, com aparência de cera ou sabão (BANDARRA; 339 SEQUEIRA, 1999b). Biologicamente, isso ocorre quando certas enzimas bacterianas 340 hidrolisam as gorduras neutras, dando origem aos ácidos graxos, os quais em contato com 341 elementos minerais da argila se transformam em ésteres, concebendo as características 342 supracitadas ao material (FRANÇA, 2017). Por isso, a obesidade (GOMES, 2004) e um 343 ambiente com solo argiloso e úmido facilitam a ocorrência do processo de saponificação 344 (PATITÓ, 2003). 345 346 347 2.2.2.2.2 Mumificação 348 349 350 A mumificação é um processo transformativo conservador do cadáver que pode 351 ocorrer de modo natural ou artificial (PRADO, 1972; DEL-CAMPO, 2009). Para a ocorrência 352 natural, são necessárias condições especiais que garantam a desidratação rápida, a fim de 353 minimizar a ação microbiana responsável pela putrefação. O cadáver exposto em regiões de 354 clima quente perde água rapidamente, sofrendo intenso dessecamento (GENNARD, 2012). 355 Os processos artificiais, submetem o cadáver a técnicas especiais de conservação que 356 podem mimetizar o processo natural ou por meio do uso de técnicas como o embalsamento, 357 amplamente e historicamente utilizado por incas e egípcios (CROCE; CROCE JÚNIOR, 358 12 2012). O cadáver mumificado apresenta características como redução do peso; pele dura, 359 seca, enrugada e de tonalidade enegrecida; menor volume cranial; traços fisionômicos da face 360 discretamente preservados e dentes e anexos cutâneos bem conservados (BANDARRA; 361 SEQUEIRA, 1999b). 362 363 364 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS 365 366 367 O estudo e o reconhecimento de alterações post mortem são fundamentais para 368 determinação do tempo decorrido após a morte e para um diagnóstico anatomopatológico 369 assertivo. Para que esse processo seja efetivo, é fundamental que o médico veterinário 370 reconheça estas alterações e saiba diferencia-las de alterações ante mortem. Por isso, é 371 importante a realização de uma análise cadavérica criteriosa e o conhecimento de 372 características inerentes ao animal e da compreensão do ambiente onde ocorreu a morte. 373 Inúmeros fatores podem influenciar no aparecimento precoce ou tardio destas alterações, e 374 todos, em conjunto, devem ser analisados para que se possa conhecer o tempo de morte e para 375 que se tenha uma melhor compreensão das alterações post mortem. Nesse cenário, o 376 conhecimento anatomopatológico é crucial, visto que é por meio dele que será possível 377 compreender os fenômenos observados e diferenciá-los de outros ante mortem que ocorram 378 de forma similar, minimizando a possibilidade de um falso diagnóstico. 379 380 381 Abstract 382 383 Knowledge of post-mortem changes is essential for determining the time elapsed between 384 death and finding the corpse and to avoid a false diagnosis about the cause of death of the 385 animal since, without knowing them, it is possible that there is confusion between the changes 386 post mortem and ante mortem. This recognition will give evidence of what influenced or 387 caused the animal's death. However, performing this analysis is not always easy. Therefore, 388 the present work aims to describe the post mortem changes observed in dogs and cats. When 389 the animal's death occurs, the organism begins to undergo a series of changes that characterize 390 post-mortem phenomena. These phenomena can be classified as abiotic and transformative. 391 Abiotic phenomena are loss of consciousness; disappearance of movements and muscle tone; 392 absence of respiratory movements and heartbeat; loss of reflex action to tactile, thermal and 393 painful stimuli; loss of brain functions; dehydration; algorithm mortis; rigor mortis; livor 394 mortis; and blood clotting. Transformative phenomena are autolysis; putrefaction; maceration; 395 saponification; and mummification. These phenomena have their peculiar characteristics that 396 13 must be well known in order to avoid being confused with ante-mortem phenomena and that 397 an erroneous diagnosis is provided. 398 399 Keywords: Changes. Post-mortem. Dog. Cat. 400 401 402 REFERÊNCIAS 403 404 DEL-CAMPO, Eduardo Roberto Alcântara. Medicina Legal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 405 406 407 ALVES, Flávio. R., et al. Imagem radiográfica da cavidade torácica de cães Golden Retriever 408 acometidos pela Distrofia Muscular. 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