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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V PROGRAMA DE MESTRADO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL ALEX TEIXEIRA DE ARAÚJO CATEQUIZAÇÃO, COLONIZAÇÃO E CONFLITOS NA SESMARIA DE JOÃO PEIXOTO VIEGAS NA BAHIA – 1653 –1700. SANTO ANTÔNIO DE JESUS, BA. OUTUBRO - 2015 ALEX TEIXEIRA DE ARAÚJO CATEQUIZAÇÃO, COLONIZAÇÃO E CONFLITOS NA SESMARIA DE JOÃO PEIXOTO VIEGAS NA BAHIA – 1653 –1700. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local do Departamento de Ciências Humanas – Campus V, Santo Antônio de Jesus, da Universidade do Estado da Bahia, como requisito final para obtenção do grau de Mestre em História Regional e Local, sob a orientação da Prof.ª. Dr.ª. Suzana Maria de Sousa Santos Severs. SANTO ANTÔNIO DE JESUS, BA. OUTUBRO - 2015 FICHA CATALOGRÁFICA Sistema de bibliotecas da UNEB Araujo, Alex Teixeira de Catequização, colonização e conflitos na sesmaria de João Peixoto Viegas na Bahia – 1653 - 1700 / Alex Teixeira de Araújo . – Santo Antonio de Jesus, 2015. 109f. Orientador: Profª. Drª. Suzana Maria de Sousa Santos Severs Dissertação (Mestrado em História Regional e Local) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Campus V. 2015. Contém referências e anexos. 1. História. 2. Colonização. 3. João Peixoto Viegas. I. Severs, Suzana Maria de Sousa Santos II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: 981 ALEX TEIXEIRA DE ARAÚJO CATEQUIZAÇÃO, COLONIZAÇÃO E CONFLITOS NA SESMARIA DE JOÃO PEIXOTO VIEGAS NA BAHIA – 1653 –1700 Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local do Departamento de Ciências Humanas – Campus V, Santo Antônio de Jesus, da Universidade do Estado da Bahia, como requisito final para obtenção do grau de Mestre em História Regional e Local, sob a orientação da Prof.ª. Dr.ª. Suzana Maria de Sousa Santos Severs. Banca examinadora ___________________________________________________ Prof.ª. Dr.ª. Suzana Maria de Sousa Santos Severs (Orientadora) Universidade do Estado da Bahia (UNEB) _______________________________________ Prof.º. Dr.º. Fabiano Vilaça dos Santos Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) _______________________________________ Prof.ª. Dr.ª. Cristiana Ferreira Lyrio Ximenes Universidade do Estado da Bahia (UNEB) SANTO ANTÔNIO DE JESUS, BA. OUTUBRO - 2015 AGRADECIMENTOS Fazer os agradecimentos é um dos melhores momentos de um trabalho árduo como esse. De tanto falar em sociabilidades e redes de relações, arrisco dizer que ao longo do curso estabeleci redes de contatos que foram fundamentais para essa gratificante caminhada nos vinte e quatro meses de trabalho. Obtive auxílio e inúmeras contribuições, por meio de indicação de obras para leitura, até sugestão de pesquisa em bancos de documentação. Sem essas contribuições, cumprir essa tarefa teria sido ainda mais angustiante e solitária. Inicio os agradecimentos fazendo referência ao Grande Arquiteto do Universo que me deu sabedoria e luz para fazer progresso pessoal e intelectual nessa importante etapa de minha formação. Nesses momentos o apoio de familiares, amigos e colegas sempre conta muito. Meus pais Maria Bernadete e Albino Araújo são merecedores de menção especial, afinal, sempre acreditaram em mim, incentivando-me a prosseguir sem abandonar os meus objetivos e consolidar minhas vitórias pessoais. Esse momento é dedicado especialmente a vocês, por tudo que fizeram por mim como pais cuidadosos e amorosos e aos meus irmãos (Arlem, Avaneis, Adriane, Anselmo e Erivaldo) que como família estiveram ao meu lado sempre, mesmo indiretamente. Além dos vínculos familiares diretos, estabelecemos vínculos especiais e duradouros com seres iluminados que cruzam os nossos caminhos. Aline Confessor Marques é um presente dos deuses em minha vida e a minha fiel apoiadora e porto seguro. Nossa cumplicidade como casal é também uma parceria profissional e intelectual constante. Seus conselhos e apoio representaram muito, sobretudo, nos momentos que eu perdia a motivação. Mesmo que eu não tenha cumprido a ideia inicial de estudar a vila de São João Batista de Água Fria, não tenho como deixar de agradecer as contribuições da professora Valdete Cunha, apaixonada pela história aguafriense e que me deu as primeiras indicações de documentação. Foi com essa proposta e com as orientações preliminares do professor Fabrício Lyrio dos Santos que elaborei o projeto que me oportunizou ingressar nesse mestrado, sou muito grato a ambos. A professora Suzana Severs faço sinceros agradecimentos, pois ela não hesitou em incentivar-me quando a comuniquei de meu desejo de concorrer como aluno regular do programa e como orientadora, após meu ingresso, não deixou de acreditar em mim, mesmo reconhecendo e apontando minhas limitações. Ao colega Thiago Krause agradeço imensamente a atenção em responder todos os meus e-mails, disponibilizar-me material para leitura e indicar-me caminhos durante a pesquisa. Sua dissertação e tese foram muito úteis para pensar meu objeto de estudo e elaborar a minha abordagem do tema. Não poderia deixar de mencionar o professor Marco Antônio Nunes da Silva pela documentação da Torre do Tombo gentilmente disponibilizada para mim, por intermédio da professora Suzana Severs e Rosara Lopes Brito por sua gentileza e prestatividade com as transcrições tão complexas que eu tanto solicitei, até em cima da hora. Ingressar no mestrado do Programa de História Regional e Local em Santo Antônio de Jesus oportunizou-me conhecer pessoas de muito bom coração. Aos colegas de turma agradeço pelos momentos agradáveis e proveitosos em vossa companhia com encontros culturais e recreativos promovidos, sempre bem dosados com teorias da História e as últimas do mundo acadêmico pelo nosso querido “Rose News” e Cristina Assis, uma “mãe” que acolheu a todos em sua cidade natal. Helder e Ane, ambos os funcionários da secretaria do Mestrado merecem congratulações porque eficiente e pacientemente estão sempre a postos pra nos atender e ajudar, assim como também a professora Dr.ª Sara Farias, contundente em sua atuação como coordenadora do programa e excelente como professora. Não tinha como deixar de fazer um agradecimento especial as duas colegas de linha de pesquisa e amigas Ana Paula Magalhães e Denise Carvalho Zotollo. Em muitos momentos quando achei que estava perdido as nossas conversas redirecionavam-me ou mostravam que eu estava no caminho certo. Pelo fato de trabalharmos com o período colonial, nossos diálogos rendiam excelentes resultados. Foram importantíssimos todos os momentos de socialização de nossos estudos, pesquisase até das angústias. Obrigado meninas. Para finalizar, sou muito grato às contribuições do estimado amigo Felipe Coutinho pela paciência e pré-disposição em ler meu texto e ajudar-me a ver se estava sendo claro no que propus. RESUMO Essa dissertação estuda a trajetória de João Peixoto Viegas, um comerciante português que imigrou da vila de Viana de Castelo (Portugal) para a Capitania da Bahia em 1640, onde fez carreira administrativa e ascendeu socioeconomicamente, estabelecendo redes de sociabilidades que lhe possibilitaram alcançar os espaços reservados a “nobreza da terra”, como o Senado da Câmara e a Santa Casa de Misericórdia, e envolvendo-se em disputas e conflitos de caráter administrativo e bélico, na defesa de seus interesses. Como resultado de sua ascensão política e econômica e da ação colonizadora desenvolvida em suas sesmarias, sobretudo, a que compreendia as terras de Água Fria, Itapororocas e Jacuipe, com larga utilização de mão de obra dos índios da nação Paiaiá, Viegas envolveu-se em um conflito de interesses com os padres da Companhia de Jesus em torno da administração temporal dos indígenas. Dada sua influencia e participação na vida econômica, social e administrativa na Capitania da Bahia, Viegas foi agraciado pelo então Governador Geral Afonso Furtado do Rio de Mendonça com uma provisão que lhe concedia o direito a administração temporal desses índios da nação Paiaiá, contrariando os interesses dos inacianos. A análise proposta vai além da elaboração de um trabalho de trajetória, circulando também em temas como colonização, catequização, aldeamentos jesuíticos, ascensão social, nobiliarquia, economia colonial, cargos e funções na governança local, além de empreender também um estudo dos impactos políticos e econômicos que a Restauração Portuguesa teve sobre a emergente sociedade baiana no século XVII. Discutimos como a proeminência social e administrativa de Viegas, os serviços prestados a Coroa Portuguesa, aliado ao prestígio político que conseguiu junto às autoridades coloniais e reinóis, possibilitou-lhe acesso a importantes privilégios. Palavras-chave: João Peixoto Viegas. Colonização. Ascensão Social. Conflitos. ABSTRACT This dissertation studies the trajectory of João Peixoto Viegas, a Portuguese merchant who emigrated from Viana de Castelo village (Portugal) to the captaincy of Bahia in 1640, where he made administrative career and ascended socioeconomically, establishing sociability networks that enabled him to reach spaces reserved for the "nobility of the land" as the Senate House and the “Santa Casa de Misericórdia”, and engaging himself in administrative and warlike character of disputes and conflicts in the defense of his interests. As a result of his political and economic rise and colonizing action developed in his allotments, above all, which included the lands of “Água Fria”, “Itapororocas” and “Jacuipe”, with extensive use of manpower of the Paiaiá indians Nation, Viegas was involved in a conflict of interests with the priests of “Companhia de Jesus” because of the temporal administration of the natives. To the detriment of his influence and participation in the economic, social and administrative life in Bahia Captaincy, Viegas was awarded by at that time Governor General Afonso Furtado do Rio de Mendonça with a provision that granted him the right of the temporal management of these indians from Paiaiá nation, against the “inacianos” wishes. This analysis goes far beyond the development of a trajectory´s work, but also discusses on issues such as colonization, catechesis, Jesuit settlements, social rise, nobility, colonial economy, positions and functions in local governance, and also undertakes a study of the political and economic impacts that the Portuguese Restoration had on the emerging Bahia´s society in the Seventeenth century. We discussed how the social and administrative prominence of Viegas, his services provided to the Portuguese Crown, coupled with the political prestige that he got by the colonial authorities and “reinóis”, allowed him access to important privileges. Keywords: João Peixoto Viegas. Colonization. Social Rise. Conflicts. LISTA DE FIGURAS E TABELAS Figura 1 Mapa Marcha de povoamento e a urbanização do século XVII................................ 20 Figura 2 Mapa Caminhos principais do sertão baiano – 1640-1750........................................ 22 Figura 3 Mapa Distribuição de Missões Religiosas no interior da Bahia – 1660-1750........... 29 Tabela 1 Local de Nascimento de Comerciantes Baianos Residentes, 1600-1740.................. 39 Figura 4 Mapa Região hidrográfica do Atlântico Leste – Divisão Hidrográfica..................... 53 Figura 5 MapaTerras de João Peixoto Viegas; Terras dos Guedes de Brito; Terras dos D’Ávilas....................................................................................................................................76 Figura 6 Mapa Sesmaria de Itapororocas, Jacuipe e Água Fria............................................... 78 Figura 7 Sertão dos Tocos ....................................................................................................... 84 LISTA DE ABREVIATURAS ABN-RJ Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro AHU Arquivo Histórico Ultramarino ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo APEB Arquivo Público do Estado da Bahia ASCMB Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia CDP - UEFS Centro de Documentação de Pesquisa – Museu Casa do Sertão – UEFS COC Chancelaria da Ordem de Cristo DHAMS Documentos Históricos do Arquivo Municipal de Salvador DH-BN Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro HOC Habilitação da Ordem de Cristo LF Luiza da Fonseca PR Projeto Resgate RIHGB Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.................................................................................................. 11 1 INTRODUÇÃO........................................................................................................ 14 2 JOÃO PEIXOTO VIEGAS: UMA TRAJETÓRIA DE SUCESSO NA BAHIA SEISTECENTISTA................................................................................................. 32 2.1 A restauração portuguesa e a economia colonial no século XVII........................ 32 2.1.1 Sociabilidade e ascensão social de comerciantes na emergente sociedade baiana.... 37 2.1.2 Ascensão social e pureza de sangue a Bahia seiscentista.......................................... 42 2.1.3 Hipergamia e ascensão social.................................................................................... 46 2.2 Entre os currais no sertão e o Senado da Câmara de Salvador.......................... 52 2.3 A economia baiana no final do século XVII no parecer de João Peixoto Viegas 57 3 JOÃO PEIXOTO VIEGAS: ASCENSÃO POLÍTICA, ECONÔMICA E SOCIAL NA BAHIA COLONIAL – SÉCULO XVII.......................................... 65 3.1 Política de mercês na Bahia colonial....................................................................... 68 3.2 O latifúndio na formação da nobreza baiana: a sesmaria.................................... 73 4 JOÃO PEIXOTO VIEGAS E OS JESUÍTAS: A QUESTÃO DA ADMINISTRAÇÃO DOS ÍNDIOS....................................................................... 81 4.1 João Peixoto Viegas e a administração dos Paiaiá................................................ 87 4.2 Os Paiaiá no centro do conflito...............................................................................91 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 97 REFERÊNCIAS...................................................................................................... 101 ANEXOS................................................................................................................. 112 11 APRESENTAÇÃO Este trabalho é resultado de uma pesquisa iniciada ainda em 2011, quando, naquela oportunidade, decidi conhecer melhor a história do município onde nasci, Água Fria-Bahia. Em outras oportunidades de minha vida acadêmica que pesquisei sobre o tema, encontrei referências sobre a sua origem no período colonial e apostei que valeria a pena estudar parte dessa história esquecida pelas autoridades políticas e popularizada pelos contadores da história locais. Desde a primeira chance que tive em apresentar essa pesquisa na seleção para o mestrado da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), senti que se tratava de um objeto de estudo que merecia detida atenção. Muitos trabalhos desenvolvidos nesta universidade (como por exemplo, Os povoadores da Região de Feira de Santana de Monsenhor Galvão; Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: agropecuária, escravidão e riqueza em Feira de Santana, 1850-1888 de Luiz Cleber M. Freire, etc.), fazem referência a João Peixoto Viegas, apontando-o como o fundador de Feira de Santana, mas sem nenhum aprofundamento sobre sua trajetória como comerciante, sesmeiro e homem público. Como mestrando da Universidade do Estado da Bahia (UNEB – Campus V), ao longo do percurso da pesquisa, a trajetória do sesmeiro João Peixoto Viegas chamou bastante a minha atenção, sobretudo porque ele foi um grande sertanista no século XVII e recebeu em mercê a sesmaria de Itapororocas, Jacuípe e Água Fria (que hoje correspondem, respectivamente, ao Distrito de Maria Quitéria, em Feira de Santana; Riachão do Jacuípe e Água Fria). Mas, ao mesmo tempo percebi que não havia nenhum trabalho publicado sobre Viegas no Brasil. O estudo mais significativo sobre ele é do professor estadunidense David Grant Smith (The mercantile class of Portugal and Brazil in thes eventeenth century: a socio- economic study of the merchants of Lisbon and Bahia, 1620-1690.), no qual traz importantes dados biográficos sobre o mesmo e sua atividade econômica nos sertões da Bahia. Esta obra supracitada foi-me apresentada pelo professor e pesquisador carioca Thiago Nascimento Krause, que em sua pesquisa de mestrado e doutorado estudou cerca de 250 senhores de engenho de Pernambuco e da Bahia, incluindo entre eles João Peixoto Viegas. Dada às dificuldades de localizar a documentação que me possibilitaria estudar a origem e desenvolvimento da Vila de São João Batista de Água Fria (proposta apresentada na seleção para o mestrado em História Regional e Local) optei por analisar a trajetória de Viegas ao 12 passo que o inseria no contexto da emergente sociedade baiana no século XVII, no Pós- Restauração (1640-1700). No decorrer da pesquisa foi notória a relação de proximidade de Viegas com os homens influentes na Capitania da Bahia como o então Secretário do Estado do Brasil 1 Bernardo Vieira Ravasco; Governadores gerais, a exemplo de Afonso Furtado do Rio de Mendonça. Após voltar sua atenção para a expansão das atividades em direção ao sertão da Bahia, Viegas recebeu apoio das autoridades coloniais locais, possibilitando a aquisição por compra e mercês de terras então habitadas por índios da nação Paiaiá. As relações que estabeleceu com os índios da nação Paiaiá, fazendo uso deles em muitos de seus empreendimentos pelo sertão, foi outro aspecto que chamou a nossa atenção ao consultar a documentação sobre Viegas. Tamanho era seu interesse nos índios Paiaiá que ele pedira ao Governador Geral Afonso Furtado Rio de Mendonça o direito de atuar como administrador temporal dos Paiaiá que estavam em suas terras, com base na Lei de 1611, à administração temporal das aldeias. Em função da complexidade que gravitava em torno da administração dos índios, sobretudo, por que os padres jesuítas e os religiosos de outras ordens atuavam nessas aldeias e agiam como administradores tanto espirituais e temporais dos índios aldeados. A partir desse ponto, focamos parte do trabalho em analisar a reação do padre Antônio Oliveira diante da legitimação de Viegas como administrador desses Paiaiá e da retirada de alguns deles dos aldeamentos, início uma, a partir daí uma disputa entre o Padre inaciano Antônio Oliveira e João Peixoto Viegas. Como parte da análise, utilizo a correspondência desse religioso os direitos sobre os índios retirados por Viegas do aldeamento, sendo-lhe favorável a decisão em 1680, que abriu precedente para outras disputas dessa natureza. João Peixoto Viegas teve importância reconhecida no cenário político, econômico e social da capitania Bahia. Ele veio da vila portuguesa de Viana, local onde nasceu, para esta capitania aos 26 anos de idade, atuando aqui como comerciante e estabelecendo redes de sociabilidades, o que lhe possibilitou ascender ao seio da elite colonial no século XVII, fato também favorecido por seu casamento com Joana de Sá, filha de um senhor de engenho. Viegas ocupou funções, recebeu títulos e cargos importantes, sendo estes, respectivamente, 1 A expressão relaciona-se com o campo político-administrativo. O termo “Estado do Brasil” aparece assim definido, no livro que dá razão do Estado do Brasil: “O Estado do Brasil, Províncias de santa Cruz, é a parte oriental do Peru povoada na costa do mar Etiópico, e repartida em partes que se chamam capitanias, que em tal forma foram servidos os passados reis de Portugal de as encarregar, com largas doações, a certos donatários”. Diogo Campos Moreno apud PUNTONI, Pedro. O Estado do Brasil: poder e política na Bahia colonial 1548 -1700. São Paulo: Alameda, 2013. P. 37 13 vereador na Câmara de Salvador; Familiar do Santo Ofício e Cavaleiro da Ordem de Cristo, tesoureiro das avarias do Estado do Brasil, além de atuar na função assistencial de Provedor da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Nesse trabalho discutiremos os aspectos alistados acima, sempre pautando o entendimento do contexto no qual João Peixoto Viegas estava inserido, sem perder de vista que a análise de sua trajetória e as relações que ele estabeleceu com outros homens de destaque na Capitania da Bahia colocou-o em posição de destaque, em meio à nobreza baiana. Trata-se de um trabalho em desenvolvimento, aprimorado com as orientações e o estudo de temas e autores que discutem aspectos similares, no intuito de representar um estudo consciente e balizado de aspectos relevantes da emergente sociedade baiana setecentista. Dessa forma, a apreciação de outros pesquisadores e especialistas sobre o tema tende a enriquecer essa abordagem, produzindo resultados satisfatórios, para trazer significativas contribuições para a historiografia. 14 1 INTRODUÇÃO A Capitania da Bahia esteve entre os mais importantes centros econômicos do Império colonial Português. Não por acaso, a sede do Governo Geral estabeleceu-se nessa capitania com vistas à centralização política e viabilização da colonização. Mais do que um importante polo demográfico na América Portuguesa, dado o seu papel estratégico, Salvador “incluía-se, assim, definitivamente, entre as cidades e vilas notáveis do mundo português neste momento de legitimação da nova dinastia e defesa do reino e império”. 2 Com as atividades econômicas e o “desenvolvimento da exportação do açúcar, do tabaco, dos algodões e ainda do couro e da madeira, a cidade passou de centro simplesmente administrativo a um forte núcleo de homens de negócio.” 3A partir do litoral baiano, do então centro administrativo da colônia, estendendo-se para o sertão, inúmeros agentes colonizadores atuaram em variados empreendimentos que, tanto lhes trariam lucro, como garantiriam a dilatação da colonização. O século XVII insere-se em um contexto amplo, do ponto de vista político e econômico, tanto pela conjuntura envolvendo o fim da União Ibérica (1580), quanto pelos efeitos que a política diplomática lusa teve na América Portuguesa. Na emergente sociedade baiana do século XVII apresentou-se, por um lado, um cenário desafiador ligado à economia e as obrigações fiscais que recaíram sobre a Capitania da Bahia depois de acordos assinados entre Portugal com seus parceiros políticos e com os rivais. Mas também havia, por outro lado, um cenário de oportunidades para os que desejavam e estavam aptos para prestarem serviços a Coroa portuguesa, em troca de benefícios dos mais variados níveis. Assim, a política, a economia e as sociabilidades criadas e reforçadas por redes 4 mercantis de parentescos constituem rico objeto de análise, que será feito a partir do estudo da trajetória do homem de negócio português João Peixoto Viegas. A emergente sociedade baiana no século XVII agregava em seu centro os mais variados interesses, formas de aquisição e manutenção de poder, riqueza e prestígio social, 2 KRAUSER, Thiago Nascimento. "De homens da governança à primeira nobreza: vocabulário social e transformações estamentais na Bahia seiscentista." Revista de História 170 (2014): 201-232. 3 AZEVEDO, Thales de. Povoamento da cidade do Salvador. 2ª Edição. Salvador: Editora Itapuã, 1969. p 167. 4 É conhecido que o conceito de rede pressupõe sempre a existência de relações interpessoais e que estas podem ser segmentadas e analisadas a partir dos suportes que a configuram. Tal perspectiva legítima análises, quer a partir de universos sociais definidos institucionalmente, quer a partir de certas características comuns a conjunto de indivíduos, como serão os casos de amizade, dos laços de dependência, das procurações judiciais, da “criação”, etc. CUNHA, Mafalda Soares da; MONTEIRO, Nuno Gonçalo F. Redes sociais e decisão política no recrutamento dos governantes das conquistas, 1580-1640. Na trama das redes: política e negócios no Império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 117-154, 2010. 15 disputados por grupos e indivíduos que haviam dedicado anos de suas vidas aos interesses da Coroa portuguesa, sobretudo, com participação efetiva nas lutas contra os invasores dos territórios ou por aqueles que faziam parte de redes de sociabilidades, capazes de lhe conferir oportunidades vantajosas, mesmo não sendo filhos da “nobreza da terra”. Pode-se falar que, na conjuntura política na América Portuguesa do século XVII, principalmente com a participação dessa “nobreza da terra” na libertação do Nordeste açucareiro do domínio holandês, gerou-se uma demanda por privilégios e honrarias como recompensa pelos serviços prestados e recursos investidos no empreendimento colonial. Além da elite agrária local residente, houve um número significativo de comerciantes, que não faziam parte dessa elite, que, com a subida de D. João IV ao poder, imigraram do reino em busca de maiores oportunidades na nova conjuntura política na América Portuguesa. A Capitania da Bahia foi um espaço fértil para ascensão desses indivíduos, dada a possibilidade de maior integração com as elites locais, pois o meio social nessa capitania “servia como espaço comum e integrador de seus habitantes mais destacados”, 5 entre eles os comerciantes oriundos do reino, favorecidos pelo status de fidalgo e, sobretudo, pelos recursos financeiros que traziam consigo. João Peixoto Viegas foi um desses homens que imigrou para a Capitania da Bahia em 1640 e, por meio de recursos próprios e múltiplas sociabilidades estabelecidas na América Portuguesa, ascendeu social e politicamente ao longo de sua vida. Mesmo sendo filho bastardo de um abade, D. Fernão Peixoto Viegas, residente na vila portuguesa de Viana do Castela, ele chegou à capitania com foro de fidalgo, já “que os fidalgos tinham essa qualidade social por nascimento” 6 , mesmo os filhos bastardos como Viegas obtinham esse estatuto uma vez reconhecida a paternidade, com concordância régia, reforçando a origem herdada de fidalguia. 7 O Tribunal do Santo Ofício de Lisboa ao conferir o cargo de Familiar do Santo Ofício a Viegas ratificou a informação de que ele era bastardo, porém considerado “filho legítimo por filiação confirmada por S. M.” 8 Como muitos dos homens de negócio que atuaram na capitania da Bahia, João Peixoto Viegas acumulou cargos, funções e privilégios que o colocaram no patamar de rico e influente 5 KRAUSE, Thiago Nascimento. Ordens Militares e Poder Local: elites coloniais, câmaras municipais e fiscalidade no Brasil seiscentista. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; DE SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá (Ed.). Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI-XVIII. 2012. 6 COSENTINO, Francisco Carlos. Fidalgos portugueses no governo geral do Estado do Brasil, 1640-1702. Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro, v. 173, p. 15-43, 2012. 7 MAGALHÃES, Joaquim Romero Apud COSENTINO, Francisco Carlos. Fidalgos portugueses no governo geral do Estado do Brasil, 1640-1702. Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro, v. 173, p. 15- 43, 2012. 8 ANTT, COC. Habilitações do Santo Ofício. “João,” maço 5, nº 194, fls. 3-30. 16 cidadão nessa capitania. Desde seu vantajoso casamento com a filha do rico senhor de engenho Cosme de Sá Peixoto (em1650), até seu ingresso no Senado da Câmara da Bahia (1664), ele fortaleceu relações com a elite local por meio de redes de poder estabelecidas com importantes personagens no cenário político ultramarino, como o Secretário Geral do Estado do Brasil Bernardo Vieira Ravasco, o Governador Geral Afonso Furtado do Rio de Mendonça, o vereador e sertanista Antônio Guedes de Brito, dentre outras personalidades locais. Essas redes de poder “para além de pressuporem somente relações clientelares e políticas”, envolviam “parentesco, bem como relações econômicas, e tinham nos oficiais régios importantes, senão fundamentais, elementos de estruturação”. 9 Levando em consideração as múltiplas oportunidades que influentes homens de negócio comerciantes tiveram no cenário econômico baiano para o período da segunda metade do século XVII, sabemos que havia outras importantes formas de consolidar a posição social em meio à elite local. Dentre elas podemos citar o ingresso tanto em ordens militares, a exemplo da Ordem dos Cavaleiros de Cristo e nos quadros da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, nas quais Viegas ingressou. Sabemos que nesta última ele teve atuação destacada entre os irmãos de maior condição financeira quando atuou como Provedor dessa irmandade em 1683, 10 como membro tanto da elite política, como da aristocracia rural, já que o mesmo à época estava entre os maiores senhores de terras no sertão da capitania da Bahia. Russell- Wood informa-nos que a “aristocracia rural financiava a Misericórdia no século XVII e monopolizava o cargo de Provedor.” 11 Isso evidencia o quanto a ação dessa aristocracia foi fundamental no processo de colonização e nos negócios na América Portuguesa. Detentora de muitos recursos e capaz de ampliar as fronteiras da colonização para as regiões interioranas da capitania, essa aristocracia teve relevante atuação no cenário colonial baiano. Assistiu-se na segunda metade do século XVII a um avanço da colonização para as regiões do interior da capitania da Bahia, também como forma de criar alternativas para revés econômico vivido no Pós-Restauraçãoportuguesa e expulsão dos holandeses das zonas produtoras de açúcar (1654). Nesse contexto, a política dos aldeamentos jesuíticos, criada e fortalecida a partir da instalação do Governo Geral, as doações de sesmarias, aliada a atuação dos capitães da conquista no sertão, o incentivo a conquista de novos territórios e controle sobre os povos indígenas e a questão em torno da administração desses povos indígenas 9 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida; DOS SANTOS, Marília Nogueira. Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português. Topoi, v. 5, n. 8, p. 96-137, 2004. 10 ASCMB, Livro segundo das eleições das mesas e juntas, 1667-1726, fls. 26r-26v. 11 RUSSELL-WOOD, Anthony John Russell; DUARTE, Sérgio. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia: 1550-1755. 1981, p. 90. 17 constituem nosso foco de análise. Daremos ênfase a atuação de João Peixoto Viegas, seu poderio econômico, prestígio social e cabedais adquiridos na capitania da Bahia, envolvendo- se em uma disputa com os padres da Companhia de Jesus pelo controle dos índios da nação Paiaiá nos aldeamentos que estavam em suas terras. Analisaremos pontos relacionados com o deslocamento efetivo dessa ocupação que se concentrou, a priori, no litoral e que, sobretudo, no período posterior a Restauração Portuguesa, vai dilatar-se para as regiões sertanejas. Para melhor empreendermos nossa abordagem acerca da ocupação das regiões sertanejas precisamos fazer algumas considerações sobre a carga de significados que os significantes sertão e região encerram e extrapolam. Sendo assim, região e sertão são dois conceitos e significantes muito usados quando estudamos a expansão da colonização, sobretudo no século XVII. Por isso, é importante ressaltar que a noção de região é polissémica, pois a mesma está carregada de ressignificações, que historicamente lhe fora atribuídas pelos diferentes sujeitos sociais e políticos. Assim, “pode-se falar tanto de uma região no sistema internacional, como de uma região dentro do estado nacional ou dentro de uma das unidades do sistema federativo”. 12 Mas, essa noção de região pode ser suplantada para outros limites deixando de coincidir com as fronteiras políticas e administrativas, juridicamente definidas. Segundo Erivaldo Fagundes Neves “o sertão, do mesmo modo que região, afirma-se pelos seus antecedentes socioantropológicos, que expressam poder de evocação de imagens, sentimentos, raciocínios e sentidos construídos ao longo das experiências históricas”. 13 Os conceitos múltiplos em torno do significante sertão o acompanham de longa data, pois desde o século XIV que os portugueses usavam essa expressão para designar, por exemplo, as áreas situadas dentro de Portugal, porém distantes de Lisboa. Quando trazemos o termo sertão para o estudo do período colonial, veremos que essa expressão “tanto designou quaisquer espaços amplos, longínquos, desconhecidos, desabitados ou pouco habitados”, mas também ao longo do tempo e com seus usos e reinterpretações na colônia “adquiriu uma significação nova, específica, estritamente vinculada ao ponto de observação, a localização onde se encontra o enunciante, ao emitir seu conceito”, 14 ou seja, quem falava ou relatava a partir do litoral apresenta aquele como sendo o espaço da alteridade, o espaço do outro, da barbárie. 12 SILVA, Vera Alice Cardoso. História e Região: reconhecendo e construindo espaços. In: SILVA, Marcos A. (Coord.). República em Migalhas: história regional e Local. São Paulo: Marco Zero, 1990, p. 43. 13 NEVES, Erivaldo Fagundes. MIGUEL. Antonieta (Org.). Caminhos do sertão: ocupação territorial, sistema viário e intercâmbios coloniais dos sertões da Bahia. Salvador: Arcádia, 2007, p. 16. 14 AMADO, Janaína. Região, Sertão e Nação. Revista Estudos Históricos, v. 8, n. 15, p. 145-152, 1995. 18 Cronistas, religiosos, bandeirantes, historiadores, antropólogos, geógrafos e literatos dentre tantos outros, (re)elaboraram conceituações sobre esse espaço em diferentes momentos da história. Márcio Roberto Santos subdivide em cinco categorias os sentidos que a documentação do período colonial, produzida por seus diversos autores e com variados objetivos, alude ao sertão, a saber, 1) espaço natural (sertões ásperos e agrestes, secos, mas também de terras férteis e ricas de jazidas); 2) espaço geográfico (“sertão da Bahia”, interior da capitania da Bahia, terras dilatadas); 3) espaço administrativo (administração militar do território, patentes militares); 4) espaço político (ausência de controle governamental); por fim, 5) espaço econômico (lavoura, criação de gado, minas do recôncavo). 15 Quando analisamos as diversas visões ou conceitos elaborados no sertão e sobre ele, percebemos que estes se relacionam diretamente com a presença dos luso-brasílicos nesse espaço, concordamos com a ideia de que o (re)povoamento 16 do sertão como lugar físico era acompanhado também pela “passagem do sertão simbólico do plano do vazio e desconhecido para um espaço “cheio”, preenchido pela colônia e pela civilização”. 17 Ao concordar com esse posicionamento, faz-se necessário realçar que o uso dos termos sertão e espaço ultrapassam as noções geográficas e administrativas, perpassando também aqui o campo do simbólico e colocam o sertão como lugar plural. Em Certeau, por exemplo, um lugar é a ordem na qual são distribuídos os elementos nas relações de coexistência, enquanto o espaço é um lugar praticado. 18 Os relatos de religiosos, sertanistas e outros agentes da colonização transformaram os lugares em espaços e vice-versa. Por isso, o significante sertão aqui ora encerra a noção de espaço geográfico e administrativo, ora a extrapola sendo usado também no sentido de um espaço construído e engendrado nas relações entre colonizadores e colonizados. O sertão torna-se, além do litoral e do recôncavo, um espaço de trânsitos, de trocas e de conflitos. A documentação colonial revela muitas imprecisões sobre essa parte do território, o que se evidencia, por exemplo, no ato de concessão de sesmarias e ao definir os limites destas. Como supracitado, trata-se de um espaço construído sob olhares e personagens diversificados, logo, não há uma imagem unânime acerca dele. Sobre as visões acerca do espaço sertanejo Erivaldo Fagundes Neves afirma: 15 SANTOS, Márcio Roberto Alves dos. Fronteiras do sertão baiano: 1640-1750. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010, p. 350-354. 16 O uso do termo (re)povoamento leva em consideração que antes da chegada dos europeus a América esta era habitada por diversos grupos nativos e que a vinda de europeus e africanos e a dizimação progressiva dos povos indígenas constitui um processo de (re)povoamento, guardadas as devidas proporções desse processo. 17 POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, tupi e tapuia no Brasil Colonial. Bauru São Paulo SP. Edusc, p. 200. 18 Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, Vozes (1990) p. 202-203. 19 O sentido de sertão se expressaria na dupla ideia espacial de interior e social de deserto, região pouco povoada, que transcenderia qualquer delimitação precisa. O imaginário de sertão, construído por viajantes, missionários e cronistas, mais do que oposição ao litoral, se constituíra em contraste com a ideia de região colonial. Por muito tempo a conotação de deserto e de tudo que se encontra distante da civilização permeara o pensamento social brasileiro. 19 Os colonizadores desconheciam o que o historiador Capistrano de Abreu chamou de “sertão de dentro”. 20 Mesmo que sertanistas já soubessem da existência dessas terras para alémdo litoral e da cidade do Salvador, esse era ainda um lugar pouco explorado, dentre outras razões pelo temor em relação aos indígenas, tidos como bravos, bem como pela dificuldade de adentrar o terreno irregular e a inóspita vegetação de caatinga. Além disso, sabemos que o foco da ocupação nos primeiros anos da colonização concentrou-se nas regiões litorâneas. Claro que ao longo do século XVII, sobretudo com a Restauração Portuguesa, 21 esse cenário tido como lugar da barbárie, do distanciamento e tido como desconhecido foi cedendo espaço aos muitos relatos dos sertanistas e religiosos que, paulatina e significativamente, foram ocupando esses espaços sertanejos. Para Kátia Mattoso “a busca do ouro, da prata e de pedras preciosas, as expedições militares para exterminar os índios e a condução do gado foram de algum modo, responsáveis pela ocupação do interior baiano”. 22 O avanço da colonização para as regiões interioranas fortaleceu-se ainda mais após as guerras contra os holandeses, pois, apesar das dificuldades econômicas resultantes dessa guerra de expulsão, houve maior necessidade de se expandir as atividades econômicas, não só para acelerar na recuperação do cenário conturbado, do ponto de vista econômico, mas também para dilatar o domínio luso-brasílico sobre os vastos territórios sertanejos. Para contornar e amenizar os efeitos produzidos com as guerras neerlandesas, “a Coroa portuguesa procurava uma alternativa para repor as perdas no trato colonial”. 23 A ação voltada para o domínio do espaço sertanejo “passou a receber o apoio e a serem agenciadas pelo governo-geral”. 24 Assim, os colonos atuaram com vistas a ocupar e explorar os sertões, seus habitantes, com o apoio das autoridades na colônia e, por vezes, à revelia destas. Além disso, os jesuítas e seu projeto missionário eram parte integrante da ação 19 NEVES, Erivaldo Fagundes. MIGUEL. Antonieta (Org.). Op. Cit. Loc. Cit. 20 ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial (1500 - 1800). 5 a . Edição. Brasília Editora Universidade, 1969. P. 131. 21 Dá-se o nome de Restauração Portuguesa ao regresso de Portugal à sua completa independência em relação à Castela em 1640, depois de sessenta anos de regime de monarquia dualista (1580-1640) em que as coroas dos dois países couberam ambas a Filipe II, Filipe III e Filipe IV de Castela. 22 MATTOSO, Apud IVO, Isnara Pereira. Homens de caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América Portuguesa. Século XVIII. 1ª Ed. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2012, p. 103. 23 PUNTONI, Pedro. No íntimo dos Sertões. In:_____. A Guerra dos Bárbaros – Povos Indígenas e a Colonização do Sertão Nordeste do Brasil (1650-1720). São Paulo: 1998. p. 25. 24 Id. 20 colonizadora, pois reconhecemos o “papel das missões como unidade de ocupação do território ultramarino”. 25 Os rios e antigos caminhos desempenharam funções relevantes para as jornadas de conhecimento/reconhecimento e conquista dos sertões pela ação desses agentes acima citados. Sobre esses caminhos ou rotas sabemos que muitos “começaram como trilhas de sertanistas, mineradores e criadores, para mais tarde se tornarem caminhos reconhecidos como tal, com exclusividade de utilização, contratação de exploração e aplicação de tributos”, 26 transformando estes em espaços geopolíticos. O mapa a seguir demonstra esse deslocamento das atividades do litoral para interior, que se deu, dentre outras formas, com a formação de currais, de povoações ao longo dos caminhos originando, ainda no século XVII, importantes vilas no sertão. Figura 1: Mapa Marcha de povoamento e a urbanização do século XVII Fonte: História da vida privada no Brasil. Fernando Novais. Vol. I, SP: Cia. das Letras, 1997, p. 19. Sobre esta ocupação, Felisbello Freire fala em duas estradas que comunicaram os sertões da Capitania da Bahia a Minas Gerais (Estrada do Sul) e a Sergipe (Estrada do Norte). 27 Para Pompa, mesmo que estes tenham sido os caminhos resultantes da expansão da 25 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O tratado dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 24. 26 SANTOS, Márcio Roberto Alves dos. Fronteiras do sertão baiano: 1640-1750. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010, p. 182, 186. 27 FREIRE, Felisbello. História Territorial do Brasil. Edição fac-similar. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 1998. p. 19. http://3.bp.blogspot.com/-bFsGAgPTNvU/Ud9m36rVtvI/AAAAAAAAFjY/iVtfVCjiSoY/s1600/Mapa+MARCHA+DE+POVOAMENTO+E+A+URBANIZA%C3%87%C3%83O+DO+S%C3%89CULO+XVII.jpg 21 economia do gado, a priori, não deixou de ser também o caminho das correntes de povoamento. 28 Vastas regiões sertanejas foram ocupadas, exploradas, conquistadas e reconquistadas por sertanistas, militares e também pelos índios no processo de reversão da conquista, ou seja, na retomada de territórios pelos indígenas. Verifica-se que a primeira corrente de ocupação ou (re)povoamento do sertão foi a da Bahia que seguiu o curso do Rio São Francisco e do Itapicuru, além da foz do rio Real no século XVI (divisa com o atual Estado de Sergipe), 29 Inhambupe, Itapicuru e rio Pojuca, ocupando o “sertão de dentro” 30 onde foram organizados diversos aldeamentos com o índio, como marco inicial da ocupação em muitas partes do território, nas possessões territoriais e currais de Antônio Guedes de Brito, Garcia D`Ávila e João Peixoto Viegas. O mapa 31 abaixo evidencia os principais caminhos do sertão baiano nos séculos XVII e XVIII, incluindo os espaços supracitados. 28 POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, tupi e tapuia no Brasil Colonial. Bauru São Paulo SP. Edusc, p. 201. 29 FREIRE, Felisbello. Op. Cit. P. 57. 30 ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial (1500 - 1800). 5 a. Edição. Brasília Editora Universidade, 1969. 31 SANTOS, Márcio Roberto Alves dos. Fronteiras do sertão baiano: 1640-1750. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010, p 162. 22 Figura 2: Mapa Caminhos principais do sertão baiano – 1640-1750 Fonte: Fronteiras do sertão baiano: 1640-1750. Márcio Roberto Alves dos Santos. p. 162. Mas, não é possível pensar esse processo de ocupação como algo contínuo, com ações estritamente delimitadas, sem imprevisíveis alterações. Márcio Roberto destaca, por exemplo, que em função dos muitos interesses relacionados com as entradas para o espaço sertanejo, sendo que estas entradas e bandeiras podiam ser ou não oficiais, mas, se fossem, podiam 23 prevalecer objetivos não oficias ao se abrir e trilhar caminhos pelos sertões. 32 Sobre as múltiplas facetas dessa ocupação ele afirma: A conquista luso-brasileira do sertão não fluiu numa única direção – do litoral para o interior -, nem se prendeu exclusivamente ao interesse régio de ampliação da esfera de soberania lusitana na América, não envolveu grupos organizados sob o objetivo comum de “colonização” desses espaços e não se deu por meio de agregação contínua e concatenada de novos espaços ao território colonial. E nem sempre foi bem sucedida, podendo ser revertida pela retomada indígena do espaço ocupado ou mesmo não resultar em ocupação luso-brasileira efetiva. 33 Para um melhor entendimento do quadro de ocupação dessa parte do sertão baiano faz-se necessário analisar as medidas tomadas para garantir a posse e dominação dessas terras, dospovos que a habitavam e exploração de seus recursos e potencialidades econômicas. Dentre as estratégias utilizadas, podemos enumerar as doações de sesmarias, a catequização e os aldeamentos com os índios. Não devemos entender esse como sendo um processo coeso, pois, se por um lado, os diversos agentes ou beneficiados pelas medidas adotadas comungavam com o desejo de adentrar e dominar o sertão, por outro lado, esse processo fora marcado por uma série de conflitos relacionados à possessão do território e a administração dos índios que o habitavam. O sistema de distribuição de terras aos vassalos, posto em prática no Novo Mundo, foi parte integrante da história de Portugal. Essa foi uma das formas encontradas pela Coroa para garantir a ocupação dos territórios e também evitar o assédio e invasão por estrangeiros. A presença europeia na América Portuguesa, por meio de seus agentes e outros aventureiros em busca de riqueza contribuiu para o (re)povoamento, sobretudo, com a inserção de escravos do continente africano. Assim, é “evidente a impossibilidade de haver colonização sem deslocamento populacional.” 34 Destacando ainda essa prática de doação de terras aos vassalos, Francisco Carlos Teixeira da Silva afirma: A definitiva expulsão do gado para os sertões em fins do século XVII e, ao mesmo tempo, a abertura da fronteira (através da intensificação das guerras de extermínio e/ou escravização das populações indígenas), permitiram [a] formação, por parte dos colonizadores, de uma vastíssima rede de propriedades: as fazendas de gado. As bases do novo rush fundiário, com seu ápice nos anos entre 1670/80-90 são as mesmas que moldaram as estruturas fundiárias da Plantation açucareira: as sesmarias. Tratava-se da doação de vastas extensões de terras recém-conquistadas ou por conquistar, principalmente por remuneração ao serviço militar prestado contra os índios [,] concedidas com limites e extensão incertos. Repetia-se a preocupação já 32 Ibidem. p. 87. 33 Ibidem. p. 88. 34 NOVAIS, Fernando Antônio. Colonização e desenvolvimento econômico. In: Aproximações: ensaios de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 33. Reproduced with permission of copyright owner. Further reproduction prohibited without permission.