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AULA 2 - TEXTO BASE REFORMA PSIQUIÁTRICA E A HISTÓRIA DO PRESENTE FICHA TÉCNICA © 2025. Ministério da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz. Escola de Governo Fiocruz. Alguns direitos reservados. É permitida a reprodução, disseminação e utilização desta obra, desde que citada a fonte. É vedada a utilização para fins comerciais. Curso Nós da Rede. Brasília: [Curso na modalidade híbrida]. Escola de Governo Fiocruz, 2025. MINISTÉRIO DA SAÚDE Secretaria Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde Departamento de Gestão da Educação na Saúde Esplanada dos Ministérios, Bloco O, 9º andar CEP: 70052-900 Tel:. (61) 3315-2596 Felipe Proenço de Oliveira Secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde - SGTES/MS Mozart Sales Secretário de Atenção Especializada - SAES/MS Fabiano Ribeiro dos Santos Diretor de Gestão da Educação na Saúde - DEGES/SGTES/MS Sônia Barros Diretora do Departamento de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas - DESMAD/SAES/MS Erika Rodrigues de Almeida Coordenadora-geral de Ações Estratégias de Educação da Saúde - CGAES/DEGES/SGTES/MS Neli Maria Castro de Almeida Coordenadora-Geral de Redes e Serviços de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas - CGRSSM/DESMAD/SAED/MS Fundação Oswaldo Cruz Escola de Governo Fiocruz Brasília Avenida L Norte, s/n, Campus Universitário Darcy Ribeiro, Gleba A CEP:. 70.904-130 - Brasília - DF Telefone: (61) 3329-4550 Mário Moreira Presidente Maria Fabiana Damásio Passos Diretora da Fiocruz Brasília - Gereb Diretora da Escola de Governo Fiocruz Brasília - EGF Luciana Sepúlveda Köptcke Diretora Executiva da Escola de Governo Fiocruz Brasília - EGF André Vinícius Pires Guerrero Francini Lube Guizardi Coordenação Geral do Projeto Nós na Rede Caroline Zamboni de Sousa Coordenação Executiva do Projeto Nós na Rede Anna Cláudia Romano Pontes Samuel Dourado Coordenadores do Núcleo de Educação a Distância Daiana Silva de Brito Assessoria Pedagógica Meiriene Moslaves Meira Supervisão de Oferta CRÉDITOS Conteúdo Isadora Simões de Souza Coordenação Pedagógica Francini Lube Guizardi Caroline Zamboni de Souza Revisão Técnico-científica Bethânia Ramos Meireles Caroline Zamboni de Souza Daiana Silva de Brito Erika Rodrigues de Almeida Francini Lube Guizardi Jéssica Rodrigues Machado Joana Thiesen Larissa Correia Nunes Dantas Roberto Albuquerque Design Institucional Daiana Silva de Brito Revisores de Texto Filipe do Nascimento Lopes Márcia Turcato Pesquisa de Recursos Educacionais Daniela Bruno dos Santos Design Gráfico e Diagramação Sávio Cavalcante Marques Braytner Rocha Pereira Bernardes Karina Silva de Souza Desenvolvedores Vando Carvalho Rodrigues Pinto Rafael Cotrim Henriques SUMÁRIO AULA 2 - TEXTO BASE - REFORMA PSIQUIÁTRICA E A HISTÓRIA DO PRESENTE O passado presente: aspectos relativos ao debate sobre racismo, sexismo e desigualdade social Reforma psiquiátrica antimanicomial na experiência brasileira Prioridade absoluta: a importância do campo da infância e adolescência na Reforma Psiquiátrica brasileira Referências 5 8 28 38 44 AULA 2 - TEXTO BASE REFORMA PSIQUIÁTRICA E A HISTÓRIA DO PRESENTE Olá, pessoal, chegamos à aula 2 do curso “Nós na Rede” 6 7 A ideia é que possamos ingressar em um debate central para nós, que atuamos na maior clínica pública do Brasil, o SUS; por isso, vamos contar um pouco da história da saúde mental pública no Brasil, das suas lutas históricas e dos desafios que ainda temos nos dias de hoje. Este texto tem várias direções, caminhos e entradas; dessa forma, você poderá escolher por onde começar a leitura. Aqui sugerimos uma trilha, mas você poderá fazer a sua. Iniciaremos pelos aspectos relativos ao debate sobre racismo, sexismo e desigualdade social e depois partiremos para o reconhecimento da produção de pessoas que construíram narrativas, livros e obras artísticas a partir de suas histórias. Em seguida, vamos conversar sobre o percurso da Reforma Psiquiátrica brasileira e da luta antimanicomial, buscando olhar para os caminhos de ambos os movimentos e pensando em como se constituíram em nosso país. No livro “Holocausto Brasileiro”, a autora Daniela Arbex (2013) conta histórias de tortura e opressão ocorridas dentro do Hospital Psiquiátrico de Barbacena, em Minas Gerais, a partir de depoimentos de pessoas que sobreviveram aos longos períodos de tortura durante as internações. Ela também se vale do depoimento de ex-funcionários desse que foi um dos maiores hospitais psiquiátricos do Brasil. Apesar de esse manicômio ter sido comparado a um “holocausto brasileiro”, numa referência aos campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, temos, na obra de Rachel Gouveia Passos (2018), uma importante provocação para pensarmos nos aspectos raciais relacionados ao caso, quando ela questiona: “Holocausto brasileiro ou o navio negreiro?”. Aqui, a autora relembra os navios europeus que sequestraram populações negras na África para escravizá-las na América. 8 O PASSADO PRESENTE: ASPECTOS RELATIVOS AO DEBATE SOBRE RACISMO, SEXISMO E DESIGUALDADE SOCIAL A autora traz para o centro do debate situações atuais, em especial de mulheres, como, por exemplo, aquelas que têm seus filhos retirados, que passam por laqueaduras compulsórias, mulheres que são assassinadas. Nesse sentido, a autora busca problematizar práticas manicomiais que ocorreram e seguem ocorrendo em nosso país: 9 [...] hoje expressas nas múltiplas ações do Estado, estão atreladas muito mais ao colonialismo do que ao holocausto. O debate aqui não é medir o grau de atrocidade e de violação de direitos humanos, e, sim de reconhecer os fundamentos estruturantes da nossa realidade. No livro de Daniela Arbex (2013), Holocausto Brasileiro, que apresenta os reflexos do manicômio na vida não só dos sobreviventes da Colônia de Barbacena (MG), mas também de seus familiares, podemos identificar, através das fotografias contidas no livro, que as pessoas que lá estiveram internadas possuíam determinada cor/raça. Logo, torna-se fundamental racializarmos a história da loucura no Brasil (Passos, 2018, p.17). Quando pensamos na história da Reforma Psiquiátrica brasileira e na história do presente, identificamos uma perpetuação de práticas de violência do Estado em diversas ações estatais. Muitas dessas violências encontram um alvo privilegiado nos corpos das pessoas em sofrimento psíquico, assim como aquelas que desenvolveram necessidades específicas, em função do uso intenso de drogas, sendo que muitas delas são negras e vivem em áreas de maior desigualdade social. O autor Frantz Fanon (2021) também se debruçou sobre as questões relacionadas ao sofrimento psicossocial, em especial em como as marcas do racismo operam na saúde mental. Em sua obra, ele aborda o quanto as pessoas negras são encurraladas, sem meios de existir, tendo seu desejo de viver capturado. Aqui entendemos e articulamos a expressão necropolítica, cunhada pelo autor camaronês Achille Mbembe (2018), a qual considera aspectos de biopoder, soberania, estado de exceção e política da morte. Não queremos falar somente da morte propriamente dita, mas sim da morte em vida, das vidas que passam a ser diminuídas e de pessoas que são aniquiladas subjetivamente. Pensando em diferentes formas de violação que atravessam as vidas das pessoas que acompanhamos nos serviços de saúde, é importante relacionarmos as marcas do racismo e do sexismo, que produzem sofrimento psíquico. Um exemplo são as mulheres impedidas de exercer a maternidade porque fazem uso de drogas, ou aquelas que exercem a maternidade passando por grandes experiências de sofrimento, vivendo em condições duras, sem redes de apoio, como aquelas que foram internadas em hospícios e afastadas de seus filhos. 10 A filósofa e escritora Sueli Carneiro (2011) relembra a expressão “matriarcado da miséria”, que se dirigia às mulheres que carregam no corpo uma vida marcada pela exclusão e pelas privações.Ela aponta a necessidade de reconhecermos que há uma dimensão racial em relação ao debate sobre gênero, que estabelece mais ou menos acesso das mulheres em diferentes espaços da vida. Na mesma direção, a filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez (2020) aponta que são muitos os legados que a escravidão deixou no Brasil, desde os processos de distribuição geográfica dos territórios aos impactos na saúde mental e no corpo das mulheres que sofreram as mais diferentes formas de exploração. Pensando em pessoas que contribuíram com a história da Reforma Psiquiátrica brasileira, as quais carregaram em suas vidas os efeitos dos longos períodos da institucionalização em manicômios, compartilhamos brevemente suas histórias e obras, para que você possa conhecer mais e, quem sabe, descobrir mais coisas sobre as pessoas que você atende por aí, em seus territórios. Esses autores e artistas viveram em hospitais psiquiátricos, e suas obras têm uma imensa contribuição para a história, justamente porque nomearam a barbárie que ocorria no interior dos hospitais psiquiátricos brasileiros. 11 Você já acessou a obra desses artistas? Maura Lopes Cançado é escritora e autora dos livros “Sofredor do Ver” e “Hospício é Deus”. Nascida em São Gonçalo do Abaeté, em Minas Gerais, em 1929, viveu internada em manicômios em Minas Gerais e no Rio de Janeiro e teve um filho retirado, logo em sua primeira internação. A escritora Maura Lopes Cançado (Foto: AJB) 12 Na reimpressão de seus livros, consta um perfil biográfico, escrito por Mauricio Meireles, sobre a obra e a vida da autora: No livro de Maura, O Sofredor do Ver, existem dois contos em que fala do filho retirado, Cesarion: Pavana e O Rosto, que retratam o sofrimento dela e do filho em função do afastamento dos dois. Nesses contos de Maura para Cesarion, ela registra o que viveram, os movimentos que ela fez, falando do que ocorreu com eles (Cançado, 2016, p. 61). Maura fala que, além das grades que a separavam do filho, tinha um grande sentimento de incompreensão, quando era impedida de pegar o filho no colo e tinha de suportar seu choro, que ela dizia ser “cheio de razão”, reconhecendo uma aliança entre mãe e filho, os quais sabiam das dores de viver uma vida separados. Nessa passagem, Maura fala desse imenso sofrimento, da dor da separação do seu filho, acontecimento como esse com o qual ainda nos deparamos quando escutamos histórias de vida de mulheres. Stella do Patrocínio, nascida no Rio de Janeiro, em 1941, era poeta, foi criadora do “Falatório”, uma obra que reunia um conjunto de falas registradas por autoras e pesquisadoras, como a artista plástica Carla Guagliardi. Mais tarde, suas falas foram organizadas e publicadas pela psicóloga e escritora Viviane Mosé, que considera o “Falatório” uma das poéticas fundamentais para a arte contemporânea brasileira. A escritora e artista visual Bruna Beber trabalhou na forma como Stella aliou poéticas e profecias, reconhecendo que Stella fez uma tecitura única na literatura brasileira. Ela passou boa parte de sua vida internada em hospitais psiquiátricos, aproximadamente 30 anos, e se tornou importantíssima para a história da luta antimanicomial no Brasil. 13 Eu gosto mesmo é de escrever De fazer número Em papelão Continuar repetindo o que eu acabei de fazer no dia Quando eu tô com vontade de falar Tenho muito assunto muito falatório Não encontro ninguém para que eu possa conversar Quando não tenho uma voz a mais Vocês me aparecem E querem conversar conversar conversar (Patrocínio, 2001, p. 139). Lima Barreto, nascido no Rio de Janeiro, em 1881, foi um importante escritor brasileiro e tinha uma posição combativa e crítica, o que produziu um forte preconceito na elite intelectual. Autor de grandes obras da literatura brasileira, como o “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, ele foi internado em um hospital psiquiátrico em função do uso de álcool. Foi durante suas internações que produziu o romance “Cemitério dos Vivos”. 14 Em sua internação, o primeiro pavilhão em que Lima Barreto ficou era destinado àqueles que a polícia levava, sendo a maior parte de negros. Estou no hospício ou, melhor, em várias dependências dele, desde o dia 25 do mês passado. Estive no Pavilhão de Observação, que é a pior etapa de quem, como eu, entra aqui pelas mãos da polícia. [...] não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades e minha vida material há seis anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro (Barreto, 2017, p. 34). Arthur Bispo do Rosário, que nesta foto veste uma de suas importantes obras de arte, “Manto de Apresentação”, nasceu em Japaratuba, Sergipe, em 1909, e foi viver no Rio de Janeiro anos depois, onde trabalhou na Marinha e praticou esportes, como boxe. Em 1938, Bispo teve uma visão de si mesmo descendo do céu, acompanhado por anjos, que está registrada em um de seus bordados, no qual relata esse acontecimento. 15 Hoje existe um importante museu chamado “Museu Bispo do Rosário”, no Rio de Janeiro. Essa instituição organizou um importante livro, que leva seu nome (2012), com a história e as obras de Bispo catalogadas, entre elas a que ele relata ter escutado vozes que diziam: “chegara a hora de representar todas as coisas existentes na Terra para a apresentação no dia do juízo final”. Sua obra está intimamente ligada a essas representações, trabalhando com linhas azuis, que desfiava dos uniformes do manicômio, e objetos como pedaços de madeiras, arame, papelão, fios de varal, garrafas e materiais diversos que ele obtinha no manicômio. 16 Aurora Cursino, nascida em São José dos Campos, São Paulo, em 1896, pintou de forma explícita os temas e os traumas que marcaram sua vida em uma vasta obra que foi exposta em diversos museus, assim como na Bienal de 2023 em São Paulo. Os autores Silvana Jeha e Joel Birman (2022) produziram um livro das histórias e obras de Aurora Cursino, no qual podemos entender sobre o pioneirismo da artista ao narrar a sua condição de mulher e prostituta no Brasil e tudo aquilo que ela sofreu no manicômio. Em um de seus quadros, em que ela se referia aos tribunais de justiça. Jeha e Birman supõem que Cursino teve problemas com os tribunais e seus filhos, “algo que a impedisse de exercer a maternidade” (Jeha; Birman, 2022, p. 39). 17 As trajetórias, os sofrimentos e as criações dessas pessoas, que foram designadas como loucas, mostram-nos a loucura como um fenômeno complexo, que não pode ser reduzido a um conceito único ou estático. Você já parou para pensar que, ao longo da história, a loucura tem sido vista sob diferentes prismas? O que realmente define a loucura? E, mais importante, quem tem o poder de defini-la? O filósofo e historiador Michel Foucault (1972), em sua obra “História da Loucura na Idade Clássica”, nos convida a pensar a loucura não apenas como uma condição biológica, mas como uma construção social. Ele argumenta que o conceito de loucura foi construído historicamente, sendo moldado de acordo com os interesses de poder de cada época. Em diversas culturas tradicionais, as características que hoje nossa sociedade classifica como loucura eram valorizadas e consideradas especiais e, muitas vezes, essas pessoas eram vistas como detentoras de um poder místico e de uma conexão privilegiada com a dimensão espiritual. 18 Michel Foucault conta que foi no fim da Idade Média, na Europa, que a loucura passou a se constituir como um problema social. Com as transformações sociais geradas pela Modernidade e pelo Iluminismo, houve uma grande valorização da razão, e a loucura se tornou algo que devia ser controlado por meio do confinamento, em nome da constituição de uma sociedade homogênea no modo de produzir e no modo de viver a vida. Com suaobra, ele nos mostrou que a sociedade ocidental promoveu a segregação da loucura, confinando em manicômios e hospitais psiquiátricos aqueles que não se adequavam aos padrões de normalidade. Nesses espaços, a loucura era tratada como uma doença a ser curada e como um problema moral a ser corrigido; desse modo, o sujeito “louco” perdia sua autonomia, sua voz e sua dignidade. Aqui entra uma questão importante: Quem decide o que é loucura? Como sugere Foucault, são as instituições de poder — médicos e outros profissionais de saúde, cientistas, juristas — que detêm o domínio de definir quem está ou não dentro dos limites da normalidade; e essa definição, frequentemente, serve a interesses sociais, econômicos e morais muito mais do serve ao bem- estar das pessoas rotuladas como loucas. CAIXA DE FERRAMENTAS Se quiser saber mais sobre esse tema e já se aquecer para a segunda parte do texto, te convidamos a assistir à websérie “Morar em Liberdade”. 19 Seguimos com Franco Basaglia (2005), psiquiatra italiano e um dos pensadores de maior importância da Reforma Psiquiátrica, que propôs mudanças concretas no tratamento da loucura. Basaglia foi o grande responsável pela desinstitucionalização dos manicômios na Itália, movimento que inspirou reformas em vários países, inclusive no Brasil. Ele denunciou as condições degradantes dos hospitais psiquiátricos e defendia que a internação prolongada nesse tipo de instituição não promovia a cura, mas sim a cronificação da loucura e a marginalização das pessoas, sendo um impedimento para que vivessem com saúde. Basaglia (2005) passou a trabalhar com a perspectiva de que a loucura não deve ser encarada como uma patologia que precisa ser eliminada, mas como uma condição humana que merece ser compreendida. Por isso, afirmava que, em vez de isolar os “loucos”, deveríamos buscar integrá-los na sociedade, garantindo-lhes direitos, respeito e dignidade. Em suas palavras, “a liberdade é terapêutica”. Ou seja, a autonomia e o reconhecimento do sujeito como alguém capaz de participar ativamente de sua própria vida e tratamento são elementos fundamentais do cuidado em saúde mental. Ao pensarmos sobre a loucura, é crucial refletirmos sobre o papel da sociedade e das instituições na definição e no controle do que é considerado “normal” e o que é considerado “patológico”. 20 De onde vem o sofrimento psíquico que as pessoas consideradas loucas, na nossa sociedade, vivenciam? Será que a loucura, como a entendemos hoje, ainda atende a certos interesses de controle social? Quais seriam eles? Se, como sugere Foucault, a loucura foi usada historicamente para separar os que deviam ser “curados” dos que deviam ser “confinados”, talvez seja necessário questionar as práticas e os discursos contemporâneos que ainda perpetuam essa separação e restringem as possibilidades de cuidado. Será que, ao tentarmos curar a loucura, não estamos também eliminando a diversidade de experiências humanas? Não seria a loucura uma oportunidade de ampliar o entendimento sobre as várias formas de nos constituirmos como pessoas, abrindo novos horizontes para a compreensão da condição humana? 21 Essas reflexões nos provocam a reconsiderar a própria noção de saúde mental, que não deve ser entendida apenas como a ausência de doença, mas como uma construção coletiva, que envolve as relações sociais, a subjetividade e os direitos de cada um. Por esse motivo, o diálogo sobre a loucura precisa incorporar não apenas o olhar técnico ou científico, mas também o olhar ético e político, que reconheça a dignidade de cada pessoa, independentemente de ter um diagnóstico relacionado a um sofrimento psíquico. Esse debate é importante para a atenção psicossocial brasileira, justamente por estarmos em um país que é marcado por questões trazidas na colonização. Os autores consideram que “a manicomialização no Brasil tem ancoragem na colonialidade, configurando o manicolonial”. Tanto David como Vicentin afirmam que é necessário colocar em jogo a experiência relacional para produzir práticas antirracistas no SUS. Propomos a você pensar sobre como os estigmas sociais atuam na produção do adoecimento psíquico das pessoas. Michel Foucault, conforme falamos antes, estudou a construção histórica dessa ideia de loucura na sociedade e, agora, seguimos com Emiliano Camargo David e Maria Cristina Vicentin (2023), que demonstram o quanto os efeitos psicossociais do racismo são produtores de sofrimento psíquico. 22 Nessa perspectiva, o “manicolonialismo” opera em diversas esferas: ele sustenta uma visão de mundo hierárquica, em que certos grupos de pessoas dominam e subjugam outros, especialmente as pessoas com identidades que não seguem o padrão hegemônico. Isso acontece tanto no campo econômico e político quanto no simbólico e cultural, atravessando, inclusive, as práticas de cuidado em saúde que realizamos. Muitas vezes não nos damos conta disso, pois estamos acostumadas com elas há séculos. De fato, se historicamente os modos de vida e as culturas negras foram (e são) rotulados como inferiores, criminalizados, estigmatizados e objeto de inúmeras tentativas de impedimento dos seus exercícios, propô-los psicossocialmente é intervenção em saúde mental antirracista, pois colabora com os processos de descolonialização do saber e do poder. Mas, a antimanicolonialização não deve se limitar à oferta de intervenções em saúde mental fruto das tradições negras; mas deve se inscrever nos contraditórios jogos de forças da afirmação dessa cultura (Camargo; Vicentin, 2023, p.5). Os autores propõem que possamos nos “desnortear”. Mas o que é estar desnorteado? 23 Seguindo essa provocação, é bom lembrarmos que, por vezes, quando achamos que alguém está “perdido”, usamos a expressão “fulano está desnorteado”; ao contrário do sentido dessa expressão popular, os autores nos convidam a nos desnortear como uma forma de sair dos mesmos referenciais do Norte do mundo e nos conectarmos mais à diversidade e à multiplicidade de perspectivas de autores do Sul. Isso também vale como um convite para nos abrirmos a outras práticas de cuidado. Estamos propondo que você, profissional que atua no território, possa construir práticas e saberes a partir da sua realidade, da realidade dos usuários que acessam o serviço. Por isso, trazemos esses autores e pesquisadores, para que eles possam ajudar você a construir essas estratégias de cuidado onde você está. A autora Bárbara dos Santos Gomes (2019) provoca o debate sobre o termo antimanicolonial na tentativa de engendrar esforços para que intersetorialmente se garanta e se construa uma rede de cuidados. Sem dúvidas, o debate antimanicomial sempre trouxe a garantia de todos os direitos para o centro do cuidado, mas reunir os debates da luta antimanicomial aliados aos enfrentamentos dos efeitos da colonização é uma posição ética, que se faz urgente em todos os territórios do Brasil. Dessa forma, no enfrentamento da “manicolonização”, buscar formas e práticas antimanicoloniais na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) pode ser um processo de “desnorteamento”: 24 [...] pelo exercício contracultural no qual elementos da diáspora negra na América Latina possam ressignificar negritude e desrazão; de forma aquilombada, tomando os quilombos como metáfora viva da radicalização das relações nas diferenças (Camargo; Vicentin, 2023, p. 4). Pensando nos movimentos que afetam as instituições, recorremos ao livro de Alex Ratts (2006), “Eu sou Atlântica”, sobre a vida da ativista, historiadora, intelectual brasileira e mulher preta Beatriz Nascimento, que mostra a importância daquilo que nasce e acontece fora dos espaços acadêmicos. Aqui, temos uma pista da importância do que acontece na ponta, junto com aqueles de quem cuidamos; e talvez resida aí a ideia do que se entende por quilombo: um espaço de resistência. 25 CAIXA DE FERRAMENTAS Que tal pensarmos mais sobre as práticas antirracistas no SUS?Acesse o artigo dos autores e saboreie de mais conhecimento. Esse papo tem ligação com nossa proposta de experimentação/desafio, que propõe a busca pela ancestralidade em seu território de atuação. Conhecer Beatriz Nascimento é fundamental para repensar as relações entre território, colonialidade, corpo, raça e gênero no Brasil. Ela dedicou sua produção ao estudo do racismo, à divulgação do trabalho intelectual das pessoas negras e à formação dos quilombos. resistir em busca libertária, abolicionista e antirracista, valorizando aspectos territoriais e culturais da população negra que predominantemente tem sido vítima diuturna de um Estado que busca lhe fazer anônima, indigente, presa, morta (David, 2018, p. 122). O trabalho de Emiliano de Camargo David reforça a rica produção de Beatriz Nascimento. Ele compreende o aquilombamento em saúde mental como: O autor aponta que a proposta do aquilombar-se é justamente: sair do paradigma racista, trabalhando pela desinstitucionalização do racismo como relação de poder [...] sustentar o desejo da diferença, mas trabalhar também pela produção do comum (David, 2018, p. 146). 26 Dessa forma, em seu livro, David trabalha mais amplamente com três ideias forças, que são chaves para pensarmos nosso fazer: Desnorteamento Antimanicolonialidade Aquilombação 27 REFORMA PSIQUIÁTRICA ANTIMANICOMIAL NA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA E assim, problematizando essas questões do passado e do presente, iremos revisitar a história da experiência brasileira de Reforma Psiquiátrica antimanicomial. Dela resultou a construção de um modelo de atenção psicossocial territorial e comunitário, que parte de tecnologias de cuidado para promover saúde e cidadania para pessoas em sofrimento psíquico e que usam drogas. Nessa passagem, vamos olhar para os movimentos e as legislações que foram sendo consolidados e validados ao longo dos anos, desde a redemocratização do país. Quando pensamos na Reforma Psiquiátrica brasileira e na história do presente, estamos falando de um campo amplo, atravessado por muitas trajetórias e lutas. Por isso, vale compreender as suas origens, que contaram com diferentes movimentos sociais, com a articulação de trabalhadores e usuários que apresentaram suas demandas e necessidades, assumindo um importante protagonismo, pautando o Estado e lutando pela garantia de seus direitos. 28 Os movimentos reformistas brasileiros também foram construídos para que pessoas não tivessem suas vidas conduzidas e controladas por outras pessoas, mas que pudessem participar de seu cuidado, de forma democrática. O autor Roberto Tykanori Kinoshita (2001) apontou muitos caminhos, mas destacamos um, em especial, quando ele diz que existe um “problema de produção de valor”. Ele se refere ao fato de que o “poder contratual” do usuário de saúde mental pode estar abalado, justamente porque atribuímos menor valor para as pessoas em sofrimento psíquico e que usam drogas. É importante pensarmos que, para garantirmos atenção psicossocial digna, é fundamental ampliarmos o “poder contratual” de quem sofre, ou seja, trabalhar para ampliar a autonomia e a liberdade da pessoa. Uma leitura fundamental é o livro “A Instituição Negada”, que fala das transformações institucionais e da atuação dos trabalhadores. A italiana Franca Basaglia Ongaro (1985), em um dos capítulos desse livro, retrata que uma instituição negada pode ser considerada como um lugar onde um grupo de pessoas é conduzido por outras pessoas, sem possibilidade de escolher a forma de viver. Para ela, fazer parte de uma instituição total significa ser controlado e julgado pelos planos de outros, “sem que a pessoa que necessite de cuidados possa intervir para modificar o andamento da instituição” (Basaglia, 1985, p. 273). 29 Kinoshita (2001) afirma que, quando falamos em contratualização psicossocial, pensamos em mudar as relações sociais, ou seja, em possibilitar a participação nos bens econômicos, culturais, construir um mundo mais justo, mais equânime e mais livre. A reabilitação psicossocial precisa restituir o poder contratual do usuário de saúde mental, na intenção de ampliar a sua autonomia. Nesse sentido, a intenção é diminuirmos o nosso poder como profissionais e ampliar o poder do usuário, pois sabemos que, nas relações de trocas, as pessoas em sofrimento psíquico sempre foram desvalorizadas em tudo o que falavam, sentiam e pensavam. Não tem sido automática a passagem de uma situação de desvalor para uma situação de participação efetiva no intercâmbio social. Ao contrário, é mais presente a tendência a estacionarmos em um patamar de assistência humanizada, mais tolerante, eventualmente até mais belo, porém igualmente excluída e desvalida (Kinoshita, 2001, p. 56). O que fazer quando não há mais manicômio? Nosso país é marcado por muitas diferenças locorregionais, sabemos de lugares que fecharam seus hospitais e outros tantos que ainda convivem com essas instituições. Outros territórios nunca tiveram uma instituição psiquiátrica, mas sabemos que a perspectiva de uma “sociedade sem manicômios” não está restrita ao fechamento das instituições totais. 30 Esse ideal envolve a superação e o enfrentamento das tantas formas de aprisionamento das pessoas que vivem em sofrimento psíquico e que têm necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Nesse sentido, o movimento da Reforma Psiquiátrica luta pelos direitos das pessoas com sofrimento psíquico. Dentro dessa luta está o enfrentamento à ideia de que se deve isolar a pessoa com sofrimento ou com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Assim, o Movimento da Luta Antimanicomial brasileiro faz lembrar que toda pessoa tem o direito fundamental à liberdade, o direito de viver em sociedade, além do direito de receber cuidado e tratamento sem que, para isso, tenha que renunciar a sua condição de cidadão. Esse movimento se fortaleceu no final da década de 1970, em pleno processo de redemocratização do país. Em 1987, aconteceram dois marcos para a escolha do dia que simboliza essa luta, com o Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental, em Bauru/SP, e a I Conferência Nacional de Saúde Mental, em Brasília. No encontro de Bauru, tivemos um importante manifesto brasileiro, construído por muitos trabalhadores, nomeado o “Manifesto de Bauru”, momento em que o Movimento da Luta Antimanicomial foi oficialmente fundado. 31 O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida.” FRAGMENTO DO MANIFESTO DE BAURU, de 1987: Com o lema “por uma sociedade sem manicômios”, diferentes categorias profissionais, associações de usuários e familiares, instituições acadêmicas, representações políticas e outros segmentos da sociedade questionaram a centralidade das internações em hospitais psiquiátricos, denunciaram as graves violações aos direitos das pessoas com transtornos mentais e propuseram a reorganização do modelo de atenção em saúde mental no Brasil. O novo modelo deveria partir de serviços abertos, comunitários e territorializados, buscando a garantia da cidadania de usuários e familiares, historicamente discriminados e excluídos da sociedade. 32 CAIXA DE FERRAMENTAS Acesse o Manifesto de Bauru na íntegra. O Movimento Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental (MNTSM) tensionou o debate, apontando a urgência da implementação de outros modos de tratamento. Acreditava-se que só assim, com a luta por formas mais dignas de vida, poderíamos garantir um cuidado ético e humanizado. Para isso,foi proposta a construção de uma rede territorial formada por serviçosque definitivamente pudessem substituir os hospitais psiquiátricos e que fossem próximos do território da vida das pessoas, garantindo o cuidado em liberdade. Assim como o processo da Reforma Sanitária, que resultou na garantia constitucional da saúde como direito de todos e dever do Estado, com a criação do Sistema Único de Saúde, o Movimento da Reforma Psiquiátrica resultou na aprovação da Lei n. 10.216/2001, que trata da proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo de assistência e cuidado às pessoas. 33 Também conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira, a Lei n. 10.216/2001 reflete uma mudança de paradigma. Ela desloca o modelo de tratamento, que até então era centrado na internação em hospitais psiquiátricos, para um enfoque na atenção comunitária, com ênfase nos direitos humanos, na reintegração social e na dignidade das pessoas. Esse marco legal estabelece a responsabilidade do Estado no desenvolvimento da política de saúde mental no Brasil, com o fechamento de hospitais psiquiátricos, a abertura de serviços comunitários e a participação social no acompanhamento de sua implementação. A lei regulamentou o fechamento progressivo dos hospitais psiquiátricos, a fim de concretizar o princípio de que o tratamento em saúde mental deve ser realizado em serviços abertos e comunitários, que são substitutivos dos hospitais psiquiátricos. Além disso, veta a internação em instituições com características asilares e estimula a criação de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que se tornaram um dispositivo estratégico de cuidado à saúde mental no território. 34 A seguir, destacamos alguns pontos para você conhecer mais esse tema. 1. Direitos dos usuários dos serviços de saúde mental: a legislação estabelece a proteção e a promoção dos direitos das pessoas em sofrimento mental, garantindo tratamento digno e respeitoso. O artigo 2º da lei assegura o direito ao tratamento sem discriminação de qualquer natureza e sem qualquer restrição de direitos civis, políticos, sociais e de cidadania, salvo nos casos de ordens judiciais. 2. Desinstitucionalização: a lei impulsiona o processo de desinstitucionalização e incentiva o acolhimento nos CAPS. Em caso de necessidade de leito, o CAPS III deve ser o principal serviço de referência. Na ausência desse recurso comunitário, os hospitais gerais podem ser acionados como retaguarda. 3. Serviços substitutivos e atenção psicossocial: a partir da promulgação da lei, intensificou-se a criação de estabelecimentos para substituir a internação de longa permanência, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), as Unidades de Acolhimento Transitório e outros serviços que substituem a lógica manicomial. Aqui também cabe destacar o papel significativo que as equipes de Atenção Primária à Saúde e estratégias ligadas à geração de renda, por exemplo. 4. Participação social: outro aspecto importante da lei é o fortalecimento da participação social no campo da saúde mental, garantindo que usuários, familiares e profissionais possam contribuir para a formulação e o controle das políticas públicas na área. Essa participação é essencial para promover a democratização das práticas e para transformar as relações de cuidado em saúde mental (Birman, 1992). 35 A Lei n. 10.216/2001 representa um avanço significativo no campo da saúde mental no Brasil, consolidando os princípios da Reforma Psiquiátrica e promovendo a transição de um modelo centrado no isolamento para uma abordagem de cuidado baseada na integração social e no respeito aos direitos humanos. Iniciamos o texto falando sobre o manicômio de Barbacena, mas é fundamental também resgatar a história de Santos, que, em 2024, comemorou os 35 anos de fechamento do hospital psiquiátrico da cidade. 36 CAIXA DE FERRAMENTAS Essa história mostra a luta de dois importantes médicos e ativistas. Para conhecer esse marco histórico em detalhes, assista ao vídeo que conta o processo de intervenção na Casa Anchieta, em Santos (SP). • Constituição Federal, promulgada em 1988, colocando a saúde como um direito de todas as pessoas e dever do Estado garanti-la. • A Lei n. 8080/1990, que institui o Sistema Único de Saúde (SUS), garante e reafirma o texto constitucional, inserindo na centralidade a integralidade, a equidade e a universalidade do cuidado. • A Lei n. 10216/2001, da Reforma Psiquiátrica. • A Portaria n. 336/2002, que institui o CAPS. Com o resgate da democracia e o fim da ditadura militar, em 1985, celebramos várias conquistas e marcos legais. Principais marcos normativos da Reforma Psiquiátrica Brasileira: 37 PRIORIDADE ABSOLUTA: A IMPORTÂNCIA DO CAMPO DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA NA REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA A partir do reconhecimento pelo SUS, no início do século XXI, da necessidade de serem organizadas redes de atenção psicossocial para cuidado de crianças e adolescentes em sofrimento psíquico e com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, temos a entrada da saúde mental infantojuvenil na história da Reforma Psiquiátrica brasileira. Entretanto, ainda hoje no Brasil, mesmo com todos os avanços no campo das políticas públicas para a infância e a adolescência, não é possível afirmar a vigência de um sistema integrado de garantia de direitos. Tampouco podemos afirmar que alcançamos a plena superação do ideário menorista ou de seus valores, conforme estabelecidos nos antigos códigos menoristas, que antecederam o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) (Couto, 2004). 38 O ideário menorista refere-se a um conjunto de concepções, práticas e políticas voltadas ao “tratamento” de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social que foram institucionalizados no Brasil, especialmente no início do século XX. Esse conceito é baseado na “doutrina menorista”, que via as crianças e os adolescentes como “menores” em um sentido jurídico e social, enfatizando a necessidade de controle, tutela e disciplina por parte do Estado. O menorismo foi baseado em uma visão assistencialista, com foco em medidas repressivas e correcionais, em vez de políticas inclusivas e de garantia de direitos (Pilotti; Rizzini, 1995). Esse modo de ver as crianças e os adolescentes surgiu no contexto das transformações urbanas e sociais que aconteceram no Brasil, entre o final do século XIX e início do XX, quando o país passou por um rápido processo de industrialização e urbanização. Nesse período, houve um aumento significativo do número de crianças pobres e abandonadas nas cidades, que eram vistas como “ameaças à ordem pública”. Assim, o ideário menorista foi uma resposta estatal que aconteceu principalmente a partir da criação do Código de Menores, de 1927, quando foi institucionalizado o tratamento diferenciado para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Essa foi a primeira legislação brasileira que tratou de forma específica sobre a infância e a juventude, mas sob uma ótica punitiva e higienista. Essas crianças e adolescentes eram vistos como desviantes da sociedade, e por isso se compreendia que elas precisavam ser retiradas dos lugares públicos para não prejudicar o andamento da sociedade “normal”. 39 O menorismo classificava as crianças pobres, órfãs ou envolvidas em atividades ilícitas como “menores infratores” ou “menores abandonados”, o que reforçava a ideia de que eram um problema e precisavam ser “regeneradas” e “corrigidas”, frequentemente em instituições de reclusão (Rizzini, 2008). O ideário menorista fez com que crianças e adolescentes pobres fossem tratados de forma discriminatória e violenta, reforçando a exclusão social em vez de proporcionar inclusão e proteção. A noção de criminalização da pobreza (Coimbra, 2009), de “família desestruturada” e de outras noções baseadas na noção de “irregularidade” ainda parece habitar o cotidiano da sociedade e interferir em decisões desuspensão da convivência familiar e comunitária, mesmo sob a égide da doutrina da proteção integral. Seguimos na luta para que as legislações e os movimentos sociais possam garantir e construir formas de operar as políticas públicas à luz da proteção integral, tomando crianças e adolescentes como prioridades absolutas. O CAPSi (em alguns territórios podemos encontrar a nomenclatura CAPSij) é o serviço destinado para prestar atenção psicossocial para as crianças e os adolescentes. 40 Você sabia que, na cidade de São Paulo, os CAPSij, e os demais serviços da rede intersetorial, juntamente com as crianças e os adolescentes que frequentam os serviços, se reúnem todo mês no “Fórum municipal de saúde mental de crianças e adolescentes”? A cidade de São Paulo alterou todas as placas dos serviços para CAPSij, marcando a importância de atendermos crianças, adolescentes e jovens nos serviços, ou seja, mesmo sabendo que CAPSi significa CAPS infantojuvenil, foi uma marcação ética e política, para dizer que toda a moçada é bem-vinda. O fórum é um espaço coletivo, mensal e itinerante, e a cada mês é realizado em um dos CAPSij de São Paulo para refletir e discutir sobre as políticas públicas, a garantia de direitos e a qualificação da atenção psicossocial de crianças e jovens. A cidade de São Paulo tem mais de trinta CAPSij. O último Fórum Nacional de Saúde Mental Infantojuvenil, realizado em Brasília, no ano de 2012, apontou diversas recomendações que fortalecem a criação de espaços de debate para a ampliação do cuidado de crianças e adolescentes. 41 -Ampliar o debate em saúde mental infantojuvenil sem se restringir ao tema álcool e outras drogas. -Garantir a participação de crianças e adolescentes nos fóruns municipais, estaduais, regionais e nacional de saúde mental infantojuvenil, desde a sua organização, com a proposta de formar multiplicadores. -Divulgar informações sobre a RAPS para adolescentes de forma que possibilite a compreensão destes sobre a rede, utilizando vários meios de mídia, como televisão, rádio e redes sociais. - Oferecer formação continuada a trabalhadores da RAPS e do sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes mediante convênios entre Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Ministério da Justiça e as universidades públicas. Destacamos aqui algumas dessas recomendações, que fazem força para propostas coletivas, como a que trouxemos no exemplo acima: 42 Para garantirmos formas de cuidar mais e melhor das pessoas, seguiremos essa conversa no próximo capítulo, caracterizando e analisando os mecanismos que foram construídos para promover a atenção psicossocial em liberdade. Vamos refletir sobre o modo como esses serviços incidem na vida das pessoas em sofrimento psíquico e com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas. A nossa conversa abordará práticas que sustentem e incluam os diferentes modos de vida como um caminho para a configuração de redes vivas (Merhy, 2014) no campo da saúde e das políticas públicas. 43 AMARANTE, P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. 3. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007. ARBEX, D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editora, 2013. BARRETO, L. Diário do Hospício. O cemitério dos Vivos. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. BASAGLIA, F. 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