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Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados Centro de Documentação e Informação Coordenação de Biblioteca http://bd.camara.gov.br "Dissemina os documentos digitais de interesse da atividade legislativa e da sociedade.” ISBN 85 - 7365 -231 - 4 9 7 8 8 5 7 3 6 5 2 3 1 4 Diogo Alves de Abreu Junior é jornalista formado pelo Centro Uni- versitário de Brasília – UniCEUB, pós-graduado em Especialização em Desenvolvimento Gerencial pela Universidade de Brasília – UnB, e co- autor do livro *Processo legislativo: guia prático. Técnico Legislativo da Câmara dos Deputados, assessorou a Liderança do PSDB no Plenário e nas Comissões (1991-1997) e foi Chefe de Gabinete da Primeira-Se- cretaria da Câmara dos Deputados (1997-2001). Hoje, é Chefe de Gabi- nete da Liderança do PSDB. Este livro originou-se da mono- grafia de conclusão do curso de es- pecialização. O tema abordado é o abuso no processo de edição de me- didas provisórias que vigorou até a promulgação da Emenda Constitu- ocional n 32, de 2001, uma tentativa do Congresso de restringir o uso das MP, devolvendo ao Parlamento a sua mais importante prerrogativa: fazer leis. O autor faz um estudo compara- tivo dos decretos-leis em diversos países, inclusive na Itália, cuja cons- tituição inspirou os constituintes brasileiros; relata a história do de- creto-lei no Brasil e os debates sobre medidas provisórias na Constituinte de 1988; discute as diferenças entre o decreto-lei e a medida provisória, que, com a promulgação da Carta de 1988, passa a ser o instrumento legal preferido e de uso indiscriminado dos governantes. Os fatores que caracterizam os abusos cometidos são identificados e analisados, bem como suas causas circunstanciais, em busca de pos- síveis soluções. Ao contrário do que comumente se diz, o autor demons- tra que a responsabilidade pelo abu- so no processo de edição de MP não se restringe ao Poder Executivo. Francisco da Silva Cardozo Hundalto Guida Marco Aurélio Santullo * "A primeira missão do Parlamento é legislar. A Constituição de 1988 que tinha um perfil parlamentarista criou o instituto das medidas provisórias, sucedâneo dos decretos-leis do período autoritário. Em conseqüência, o Poder Executivo vem-se valendo disso para (não cabe aqui discutir intenções nem resultados) retirar do Parlamento a sua razão primeira de ser." (Aécio Neves, 2001) "Quando vi deixarmos de votar nesta Casa [Senado Federal] contra a admissibilidade de uma medida pro- visória que supostamente deveria tratar de assunto urgente e relevante que conferia a possibilidade de o Vice- Presidente da República ter um automóvel, passei a não acreditar nos critérios de anterioridade, ou seja, na obediência aos pressupostos que definem a admissibilidade de uma medida provisória." (Mário Covas, 1991) "Esse instrumento [medida pro- visória] hoje é utilizado de forma autoritária e absolutista, transfor- mando o Presidente da República em imperador do País, com funções par- lamentares. (...) O Executivo usa e abusa das medidas provisórias, o Legislativo não reage e o Judiciário dá uma interpretação elástica ao conceito de urgência e relevância." (Rubens Approbato Machado, Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, 2001) "... é imperioso contê-las [MP] na dimensão de poder limitado, próprio do Estado de Direito". (Josaphat Marinho, ao defender uma proposta de emenda constitucional que coibia os excessos praticados, 1997) SECRETARIA ESPECIAL DE EDITORAÇÃO E PUBLICAÇÕES SENADO FEDERAL CÂMARA DOS DEPUTADOS O PODER QUASE ABSOLUTO Diogo Alves de Abreu JuniorDiogo Alves de Abreu Junior Brasília – 2002 MEDIDAS PROVISÓRIAS MEDIDAS PROVISÓRIAS C ap a: m on ta ge m s ob re f ot os d e M ar il d a C am p ol in o M ED ID AS PRO VISÓ RIAS: O PO D ER Q UASE ABSO LU TO D iogo A lves de A breu Junior B rasília – 2002 CÂMARA DOS DEPUTADOS MEDIDAS PROVISÓRIAS o PODER QUASE ABSOLUTO Diogo Alves de Abreu Junior Centro de Documentação e Informação Coordenação de Publicações Brasília 2002 CÂMARA DOS DEPUTADOS I CEDI - BIBLIOTECA ClCompra R$ ~Doaçêo CÂMARA DOS DEPUTADOS DIRETORIA LEGISLATIVA Diretor: Afrísio Vieira Lima Filho CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO Diretora: Suelena Pinto Bandeira COORDENAÇÃO DE PUBLICAÇÕES Diretora: Nelda Mendonça Raulino Câmara dos Deputados Centro de Documentação e Informação - CEDI Coordenação de Publicações - CODEP Anexo li, térreo Praça dos Três Poderes Brasília (DF) CEP 70160-900 Telefone: (61) 318-6865; fax: (61) 318-2190 E-mail: publicacoes.cedi@camara.gov.br SÉRIE Temas de interesse do Legislativo n.1 Dados Internacionais de Catalcqaçãc-na-publlcação (CIP) Coordenação de Biblioteca. Seção de Catalogação. Abreu Junior, Diogo Alves de. Medidas provisórias : o poder quase absoluto I Diogo Alves de Abreu Junior. - Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002. 74 p. - (Temas de interesse do Legislativo; n. 1) ISBN 85-7365-231-4 1. Medida provisória, Brasil. I. Título. 11. Série. CDU 340.135(81) ISBN 85-7365-231-4 sUMÁRIo APRESENTAÇÃO Pelo Aperfeiçoamento da Democracia (Aécio Neves) 5 1. INTRODUÇÃO: MEDIDA PROVISÓRIA E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES 9 2. MEDIDA PROVISÓRIA: O INSTRUMENTO E SEU USO 2.1 Antecedentes da medida provisória 2.1.1 O decreto-lei 2.1.1.1 Alemanha: dura experiência 15 2.1.1.2 França: moderado uso das ordenanças 16 2.1.1.3 Portugal: um instituto limitado 17 2.1.1.4 Espanha: parlamentarismo monárquico 18 2.1.1.5 Itália: a agilidade necessária 21 2.1.1.6 O decreto-lei no Brasil 24 2.2 Medidas provisórias no Brasil 2.2.1 A Constituição de 1988: o sonho parlamentarista a) A discussão 27 b) As diferenças entre o decreto-lei e a medida provisória 30 2.2.2 A prática das medidas provisórias no Brasil 2.2.2.1 A regulamentação da tramitação das medidas provisórias 33 a) Natureza jurídica e processo legislativo .. 34 b) A reedição 38 2.2.2.2 A medida provisória nos governos do Brasil: um balanço 40 2.2.3 Uso, abuso e poderes da República: hipótese e metodologia 44 3. USO E ABUSO 3.1 Conceituação de abuso 47 3.2 Uso abusivo das medidas provisórias 48 3.2.1 Abusos procedimentais a) Na edição 48 b) Na reedição 50 c) Na convalidação 52 3.2.2 Abusos materiais 53 3.3 Causas circunstanciais do uso abusivo 56 3.3.1 Causas legislativas 57 3.3.2 Causas jurídicas 58 3.3.3 Causas políticas 59 4. CONCLUSÕES 63 5. POSFÁCIO 67 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 71 APRESENTAÇÃO PELO APERFEIÇOAMENTO DA DEMOCRACIA As medidas provisórias constituíam, até o advento da Emenda Constitucional n° 32, que votamos em 2001, um perigo permanente para a democracia. Usadas excessivamente pelo Poder Executivo como instrumento de legislação, acabavam atropelando os trabalhos do Poder Legislativo, instância maior de representação da sociedade, criada para elaborar as leis de que o país necessita. Compreender por que e como isso acontecia, grande contribuição deste trabalho, é fundamental para termos dimensão da importância dos passos que o Congresso Nacional tem dado nos últimos anos em busca de sua legitimação como poder. Desde minha candidatura, no ano passado, à Presidência da Câmara, vinha enfatizando a necessidade imperiosa de o Congresso Nacional recuperar suas prerrogativas de legislar, ofuscadas por uma enxurrada de medidas provisórias editadas pelo Executivo. Os conflitos e desavenças provocados até então apontavam para a exigência de uma ação política, rápida e eficaz, que pudesse estancar o fluxo incessante dessas medidas, que não apenas desfiguravam a função do legislador, mas ainda provocavam um desequilíbriodesastroso nas relações entre os poderes da República. É preciso enfatizar ainda que não apenas as instituições mas todo o povo brasileiro estavam sendo prejudicados com o uso abusivo das medidas provisórias pelo Executivo. Os cidadãos votam nos seus legisladores para que façam as leis, mas, se essa função é usurpada por outro poder, a vontade do povo é contrariada, ofendida e desrespeitada. Transforma-se, assim, a utilização abusiva de medidas provisórias num instrumento autoritário e antidemocrático. Como irá demonstrar este estudo de Diogo Alves de Abreu Junior, havia no país uma situação anômala e constrangedora entre os poderes, ou como sentenciou no ano passado o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Rubens Approbato 5 Machado, "o Executivo usa e abusa das medidas provisonas, o Legislativo não reage e o Judiciário dá uma interpretação elástica ao conceito de urgência e relevância". A anomalia criou um campo de conflitos permanentes entre os poderes, que se acusavam mutuamente e se desentendiam. Esse desequilíbrio não contribuía em nada para o aperfeiçoamento do regime democrático, mas, ao contrário, tornava-se ameaça constante à harmonia que deve imperar nas relações entre Legislativo, Executivo e Judiciário. Harmonia, equilíbrio e independência constituem, como sabemos, os fundamentos da teoria da separação dos poderes, tal como a formularam Locke e Montesquieu. Essa formulação tem um sentido maior, mais abrangente: demonstrar que, sem separação e sem harmonia, equilíbrio e independência, um dos poderes acaba concentrando todas as forças do Estado numa só instituição, abrindo caminho para toda sorte de arbítrio, de decisões autoritárias, de abstração de direitos fundamentais, enfim, para as ditaduras. Eleito Presidente da Câmara, minha primeira preocupação foi, portanto, encaminhar a regulamentação das medidas provisórias, para que o Legislativo deixasse de ser um mero estuário das vontades do Executivo, uma instituição sem força, sem vontade própria, sem poder, e recobrasse, finalmente, a função essencial de legislar. Por outro lado, era necessário ainda fomentar uma vasta e delicada engenharia parlamentar que permitisse a confluência das posições do Executivo, do Judiciário e das próprias correntes do Congresso, para a construção do consenso, sem o qual qualquer tentativa de mudança nas regras estabelecidas poderia redundar em mais um grande fracasso. Há mais de dez anos, o Congresso tentava, sem êxito, regulamentar a edição de medidas provisórias. Se fosse fácil, já teria acontecido. Houve então convergência positiva de vontades e de interesses, e, com o consenso estabelecido entre todas as forças políticas do Congresso, foi possível regulamentar o uso desse 6 instrumento e alargar o campo das decisões democráticas, abrindo amplo espaço para o entendimento, a independência e a harmonia entre os poderes da República. Neste estudo. Medidas Provisórias - O Poder Quase Absoluto, o autor faz um resumo de tudo o que existe sobre o assunto, traçando o percurso do nascimento dos conceitos, seus antecedentes e sua utilização na prática jurídica e política de vários países do mundo. Ele percorre ainda o caminho da medida provisória na Constituinte de 1988, acompanhando não apenas sua trajetória na discussão política entre as diversas forças partidárias em ação no Congresso, mas também as distorções e desvirtuamentos de que as medidas provisórias vinham padecendo nesses últimos anos. Este estudo constitui, portanto, instrumento útil de trabalho não apenas para os estudiosos do assunto mas para todos aqueles que têm interesse nos fundamentos da democracia e desejam conhecer os obstáculos que se opõem à sua concretização em nosso país. O uso abusivo de medidas provisórias pelo Executivo era um deles e, felizmente, parece afastado depois que votamos a Emenda Constitucional n° 32, em setembro de 2001. A votação foi uma promessa da minha campanha à Presidência da Câmara. Acredito que ela contribuiu para aproximar o povo brasileiro do Congresso Nacional, o que se converte em uma força poderosa de aperfeiçoamento da democracia em nosso país. Aécio Neves Presidente da Câmara dos Deputados 7 1. INTRODUÇÃO: MEDIDA PROVISÓRIA E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES A democracia parece ser a melhor forma de permitir que a população de um país participe do governo e escolha o destino a ser seguido. Com a democracia, pode-se votar, ser votado, ter direitos fundamentais assegurados e viver em liberdade. Contudo, para que isso seja possível, é necessário haver garantias de que seja imediatamente afastada qualquer possibilidade de arbítrio. Entre essas garantias, encontram-se a própria Constituição e o princípio da separação e harmonia entre os poderes. Montesquieu (apud Santos, 1991), que desenvolveu ateoria da separação dos poderes, ensina que, quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o Poder Legislativo junta-se ao Poder Executivo, não existe liberdade, pelo temor de que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do Poder Legislativo e do Executivo. Se estiver ligado ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos será arbitrário, pois o juiz será legislador. Se estiver ligado ao Poder Executivo, o juiz poderá ter a força de um opressor. Montesquieu, em sua análise, assegura que tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos. Com o objetivo de assegurar a liberdade dos cidadãos, as constituições dos países democráticos prevêem a harmonia e a independência entre os poderes. Contudo, há situações em que, mesmo em uma democracia, devem ser adotadas medidas urgentes para assegurar a ordem social, por vezes até com suspensão das garantias constitucionais, O estado de defesa, o estado de sítio e a intervenção federal, previstos na Constituição, são exemplos de medidas excepcionais. O constituinte, semelhantemente, também quis fosse excepcional a utilização das medidas provisórias, pois, devido à sua eficácia 9 imediata, elas invertem o processo legislativo normal: apresentação de projeto, tramitação na Câmara e no Senado e a sanção presidencial, com direito a veto, a ser apreciado pelo Congresso Nacional. A Constituição determina que as medidas provisórias, com força de lei, só poderiam ser editadas pelo Presidente da República em caso de relevância e urgência. Não preenchidos esses requisitos, dever-se-ia percorrer o processo normal. A intenção do constituinte com a criação da medida provisória (MP) era dar agilidade ao Poder Executivo em situações nas quais fosse impossível aguardar a tramitação de um projeto de lei, sem que houvesse prejuízos para a sociedade e para o país. Porém, após a Constituição de 1988, o que se observou em todos os governos foi a grande utilização de MPs como caminho mais curto para o advento de uma lei. O instituto excepcional passou a ser utilizado de forma ordinária. Além de freqüentemente não respeitar os pressupostos constitucionais, tratou-se, por MP, dos mais variados assuntos, inclusive os constitucionalmente proibidos. O Poder Executivo toma-se hipertrófico no processo legislativo, deixando em segundo plano o Congresso Nacional, a quem cabe precipuamente, pela Constituição, a elaboração das leis. A inversão de papéis, que causa constantes atritos entre os poderes, é apenas um dos abusos cometidos pelo Poder Executivo na edição de MPs. Mariotti (1999) reconhece entre as causas do grande uso de medidas provisórias: a preferência indiscriminada do Executivo por sua edição; o descumprimento das limitações materiaisimplícitas da Constituição; a complacência do Poder Legislativo, que normalmente não obsta a tramitação de MPs; a falta de rigor do Poder Judiciário, que considera de discricionariedade política o julgamento dos requisitos de urgência e relevância, e a exigüidade do prazo legislativo de trinta dias para a votação de uma MP1• O autor considera curioso que se invoque ofensa ao princípio da separação dos poderes em relação a uma prática que só se estabelece 1 Prazo que constava no texto da Constituição Federal anterior à promulgação da Emenda Constitucional n" 32, de 2001. 10 com o consentimento do Congresso Nacional, cuja supremacia em matéria legislativa é plenamente preservada pela disciplina do art. 62 da Constituição Federal. Ressalva, ainda, que se deve resistir à tentação de "imputar todas as vicissitudes relacionadas ao tema à tradição de comportamento autocrático do Poder Executivo no Brasil. Clêve (1999) sustenta ser impossível a transformação de ato normativo excepcional em meio ordinário de legislação, mediante a reedição de MPs que, por seu conteúdo, poderiam tramitar como projeto de lei. Neste caso, o autor aponta a ocorrência de abuso do poder de legislar, desafiador da pronta censura do Judiciário. Reconhece que o Poder Executivo abusa da prerrogativa de editar MPs e que seria viável, por parte do Poder Judiciário, uma interpretação restritiva do disposto no art. 62 da Constituição Federal para uma adequada disciplina jurídica das medidas provisórias. Bastos (2001) considera a medida provisória um instrumento aparentemente inócuo e criado para não funcionar na prática, devido à impossibilidade de o Poder Legislativo, por sua lentidão, pronunciar-se no prazo de 30 dias. Assim, o Executivo, para conseguir maior eficácia, passou a reeditar MP e o Judiciário, a aceitá-la, impedindo que fosse entravada. Para o autor, o uso das MPs ganhou proporções não imaginadas pelo constituinte de 1988. Segundo o constitucionalista, além de se assegurar a independência dos poderes, algo que se tem procurado nos últimos anos, é necessária a implantação de uma harmonia entre eles para a composição das coordenadas fundamentais do órgão estatal. Para isso, não basta haver uma norma limitando a edição de medidas provisórias; urge que se preveja a possibilidade de dissolução do Congresso Nacional, caso este se torne um estorvo para a apreciação do mérito da medida provisória, como acontece na Itália. Ferreira Filho (2000) defende a eliminação da medida provisória da Constituição Federal, por ela ter-se tornado um instrumento de concentração de poder, ensejando o abuso e o arbítrio, e gerando insegurança jurídica, com as suas constantes reedições'. 2 Posteriormente, a EC n° 32, de 2001, proibiu a reedição de medida provisória. 11 Rubens Approbato Machado, presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil- OAB, assim se posiciona: Esse instrumento [medida provisória] hoje é utilizado de forma autoritária e absolutista, transformando o Presidente da República em imperador do país, com funções parlamentares. (...) O Executivo usa e abusa das medidas provisórias, o Legislativo não reage e o Judiciário dá uma interpretação elástica ao conceito de urgência e relevância. (Machado, 2001) Para Santos (1991), a medida provisória é incompatível com o sistema presidencialista e, no Brasil, quase sempre, motivo de atrito entre os poderes e de desequilíbrio das relações jurídicas. Segundo o autor, o excesso de poder que ocorre na edição de medidas provisórias leva ao estado de desordem, por ausência de legitimidade da ordem jurídica por elas introduzida. O Deputado Aécio Neves (pSDB-MG), então candidato à Presidência da Câmara dos Deputados, afirma: A primeira missão do Parlamento é legislar. A Constituição de 1988 - que tinha um perfil parlamentarista - criou o instituto das medidas provisórias, sucedâneo dos decretos-leis do período autoritário. Em conseqüência, o Poder Executivo vem-se valendo disso para (não cabe aqui discutir intenções nem resultados) retirar do Parlamento a sua razão primeira de ser. (Neves, 2001) Marinho (1996) constata que os chefes do Poder Executivo têm abusado das medidas provisórias. O jurista alega que a edição e a reedição de MPs, muitas com alterações, mostram o grau de arbítrio com que têm sido usadas. Lembra que até medidas rejeitadas pelo Congresso Nacional foram reeditadas. Ao defender uma proposta de emenda constitucional que coibia os excessos praticados, Marinho afirma que é imperioso contê-las [MPs] na dimensão de poder limitado, próprio do Estado de Direito. 12 Bicudo (1995) denuncia que, na questão do uso das medidas provisórias, o Poder Executivo invadiu a competência do Poder Legislativo. A invasão de um poder nas áreas que não lhe são próprias configura uma balbúrdia intolerável, que pode redundar numa crise capaz de destruir o Estado Democrático de Direito. A medida provisória é importante instrumento que permite ao Presidente da República agir em situações emergenciais, para preservar o bem-estar social e para que o cidadão não seja submetido a perigo. Apesar de se adequar mais ao sistema parlamentarista, como se verá neste trabalho, também pode funcionar no presidencialismo. Contudo, para o seu emprego adequado, indispensável é o efetivo funcionamento de mecanismos de controle institucionais. A importância deste trabalho reside na relevância da identificação e análise dos abusos cometidos, bem como das suas causas circunstanciais, com vistas a melhor compreender o fenômeno, na busca de formas de impedir a sua ocorrência. Pretende-se demonstrar que, no periodo da promulgação da Carta de 1988 até a edição da Emenda Constitucional n° 32, de 2001, que regulamentou a utilização de MPs, o Poder Executivo, em diversas ocasiões, usurpou a função constitucional do Legislativo de fazedor de leis, interferiu no Judiciário e desrespeitou direitos e garantias da Constituição, atentando contra a democracia. 13 2. MEDIDA PROVISÓRIA: O INSTRUMENTO E SEU USO 2.1 Antecedentes da medida provisória 2.1.1 O decreto-lei 2.1.1.1 Alemanha: dura experiência Os decretos-leis surgem na Alemanha em 1850 para serem utilizados em casos de necessidade ou de emergência. Também são permitidos pela Constituição de Weimar de 1919. Sua utilização abusiva por Hitler fez com que o instituto do decreto-lei fosse abolido pela Constituição de Bonn de 1949, que criou em seu lugar a declaração de estado de necessidade legislativa. A partir de então, quando um chanceler não obtém o voto de confiança do Parlamento, que rejeita projeto de lei declarado urgente por ele, o Presidente da República pode mantê-lo no poder se conseguir o apoio do Conselho Federal, composto por representantes das unidades da federação (que corresponde ao nosso Senado Federal), para declarar o estado de emergência legislativa. O projeto é novamente submetido à Câmara dos Deputados. Caso ele seja rejeitado mais umà vez, seja aprovado de forma inaceitável pelo governo ou não seja convertido em lei em quatro semanas, o Presidente da República pode promulgar a lei, se com ela concordarem os representantes do Conselho Federal. Santos (1991, p. 886) pondera: Contudo, há limites materiais e formais. O estado de emergência legislativa nãopode durar mais de seis meses com o mesmo chanceler. Não se pode atentar contra a Lei Fundamental nem contra os direitos fundamentais através de projetos de lei aprovados sob esse regime. Aliás, segundo Michel Fromont e Alfred Ring, esse regime jamais teve oportunidade de ser aplicado. 15 2.1.1.2 França: moderado uso das ordenanças As Constituições francesas de 1799 e de 1814 criaram os decretos de necessidade para serem utilizados em ocasiões de risco para as instituições. A Constituição francesa de 1830 impediu o rei de editar decretos com força de lei. Durante a Primeira e a SegundaGuerras Mundiais, os decretos-leis foram largamente utilizados, o que levou o constituinte de 1946 a suspender o instituto. Contudo, em 1948, uma lei instituiu as diretrizes legais, que dispunham sobre princípios gerais, cabendo ao Poder Executivo editar decretos regulamentares, que se tomariam definitivos ante o silêncio do Poder Legislativo. Caso houvesse oposição, a competência de regulamentar voltaria ao Legislativo. A mesma lei que instituiu as diretrizes legais permitiu a repartição do poder regulamentar, típica do Poder Legislativo, com o Poder Executivo, de acordo com a matéria tratada. O limite dessa regulamentação era feito pelo Legislativo. Em seguida, apesar de proibidos, recomeçaram a surgir os decretos-leis. Hoje, ainda está em vigor o texto da Constituição de 1958, que instituiu três espécies de ordenanças, além dos regulamentos autônomos e de complementação. A primeira ordenança, do art. 38, permite que o Governo solicite ao Parlamento autorização para, durante prazo fixo, editar medidas reservadas à lei. Elas entram em vigor a partir de sua publicação, tomando-se caducas se não for enviado projeto de lei de ratificação ao Parlamento em prazo definido pela lei de habilitação. Findo esse prazo, as ordenanças só podem ser modificadas por lei, nas matérias do domínio da lei. O segundo tipo de ordenança é a prevista no art. 47 da Constituição de 1958. O Governo pode se utilizar dela para pôr em vigor projeto de lei orçamentária que o Parlamento tenha deixado de apreciar no prazo de 60 dias. Para esse tipo de ordenança, não é 16 necessária a autorização legislativa, uma vez que aquela decorre de uma autorização direta da Constituição. Por fim, há as ordenanças do art. 16, que concede ao Presidente da República poderes extraordinários, inclusive legislativos, em caso de estado de emergência. Apesar dos amplos poderes conferidos ao Presidente, as ordenanças só são permitidas após consultados o primeiro-ministro e os presidentes do Senado, da Assembléia Nacional e do Conselho Constitucional. Não há limitação com relação às matérias. Estas ordenanças só foram utilizadas uma vez, no ano de 1961, para pôr fim a uma rebelião de oficiais na Argélia, que tentavam estabelecer um governo paralelo. Além das ordenanças, há ainda os regulamentos autônomos e de complementação. Aqueles são normas primárias; estes visam complementar as diretrizes legais, que possuem apenas princípios gerais. 2.1.1.3 Portugal: um instituto limitado A atual Constituição portuguesa, de 1976, institui três espécies de decreto-lei: a) os decorrentes de competência legislativa originária ou independente - são aqueles de competência concorrente do Poder Executivo com o Poder Legislativo; b) os decorrentes de competência legislativa derivada ou dependente - são aqueles que tratam de matérias reservadas à Assembléia da República e sobre as quais o Governo somente pode editar decretos-leis mediante delegação; c) os oriundos de competência legislativa exclusiva do Poder Executivo. 17 A Assembléia da República, além de possuir a competência de dispor sobre as matérias reservadas pela Constituição, pode também, quanto às outras, reservar para si a fixação de princípios gerais, reduzindo ainda mais o campo de atuação do Poder Executivo, no âmbito da competência legislativa concorrente. Outro aspecto que limita a atuação do governo é que o decreto-lei só pode ser editado pelo Conselho de Ministros, o que propicia a responsabilidade solidária. Além disso, as leis de delegação cessam seus efeitos: a) quando revogadas; b) com a sua utilização pelo governo; c) com a demissão do governo ao qual tenha sido feita a delegação; d) com o término da legislatura; e) no caso de a Assembléia editar lei regulamentando matéria objeto de delegação, quando há revogação implícita desta. Portanto, a Constituição portuguesa impõe limitações materiais à edição de decretos-leis e não faz referência a requisitos de urgência, relevância ou de necessidade premente. Santos (1991, p. 893) alerta para o perigo que isso representa: A experiência de mais de um século demonstrou que essas experiências tão largas dão sempre ensejo ao arbítrio, convertendo o governo em legislador normal, em vez do Parlamento, que ficará quase sempre em segundo plano no atinente ao exercício do poder de editar as leis. 2.1.1.4 Espanha: parlamentarismo monárquico A Espanha é uma monarquia parlamentarista, de reinado hereditário. O governo é composto pelo Presidente, pelo Vice-Presidente e pelos ministros. As Cortes Gerais representam o povo espanhol, e compõem-se de Congresso dos Deputados e Senado. Santos (1991, p. 158-162) descreve detalhadamente o funcionamento do regime parlamentar espanhol. No início de cada legislatura, o rei propõe, por intermédio do Presidente do Congresso dos Deputados, o nome de um candidato ao cargo de presidente do governo. O candidato expõe ao Congresso o seu programa de governo 18 e pede o voto de confiança, que deve ser aprovado por maioria absoluta, em primeira votação, ou por maioria simples, em segunda votação. Caso rejeitado, sucessivas propostas devem ser submetidas ao Congresso até que alguém consiga a aprovação. Se nenhum candidato conseguir o voto de confiança em dois meses, a partir da primeira votação, o rei dissolverá as Câmaras e convocará novas eleições, com o referendo do Presidente do Congresso. No caso de perda de confiança do Parlamento, o governo deve apresentar seu pedido de demissão, sendo convocadas eleições gerais. O presidente do governo, ouvido o Conselho de Ministros, pode solicitar uma moção de confiança para o seu programa de governo ou para uma decisão política. O Congresso pode outorgá-la, por maioria simples. Se o Congresso negar confiança ao governo, este deve pedir sua demissão ao rei. Em seguida, o partido majoritário no Parlamento deve indicar novo presidente do governo. A moção de censura pode ser aprovada pelo Congresso, por maioria absoluta, desde que proposta por, no mínimo, um décimo dos deputados. A moção deve indicar o nome de um candidato à presidência do governo, que será nomeado pelo rei. O presidente do governo, mediante prévia deliberação do Conselho de Ministros e desde que não esteja em tramitação uma moção de censura, pode propor ao rei a dissolução do Congresso, do Senado ou das Cortes Gerais. O decreto de dissolução fixará a data das novas eleições. Não se pode proceder a nova dissolução antes de transcorrido um ano da dissolução anterior, exceto no caso, já citado, de que não seja aprovado o programa de um candidato a presidente do governo no início da legislatura, após transcorridos dois meses da primeira votação. O regime parlamentarista, por sua própria natureza, permite maior responsabilidade no uso do decreto-lei. E este é um dos principais motivos por que não ocorre seu uso abusivo na Espanha. Outro fator que dificulta o abuso é o art. 86 da Constituição espanhola de 1978, que 19 prevê a utilização do decreto-lei apenas em caso de extraordinária e urgente necessidade. Esses pressupostos devem ser avaliados pelo Parlamento, que se utiliza de critérios políticos. Entretanto, essa decisão está sujeita ao controle do Tribunal Constitucional. Um terceiro aspecto a ser considerado é quanto às limitações temáticas para a edição de decreto-lei: é vedado o seu emprego em matérias referentes aos direitos, deveres e às liberdades do cidadão; ao ordenamento das instituições básicas do Estado; ao regime das Comunidades Autônomas e o Direito Eleitoral Geral. Editado, o decreto-lei deve ser submetido imediatamente ao Congresso dos Deputados, que é convocado se não estiver reunido. No prazo de trinta dias, o Congresso deve ratificar ou derrogar o decreto-lei. Este, ratificado, pode tramitar como projeto de lei pelo procedimento de urgência, desde que requerido por parlamentares, podendo seremendado, exceto em sua totalidade, caso que resultaria em sua devolução. Não havendo solução sobre o decreto-lei no período de trinta dias, este perde eficácia ex nunc, não afetando os atos praticados durante a sua vigência. Se, por outro lado, a decisão for contrária, o decreto-lei é derrogado, também com efeito ex nunc. A ratificação do decreto-lei não produz uma lei, visto que até então só se tem o pronunciamento de uma das Câmaras, mas a habilitação do instrumento legislativo no que diz respeito aos pressupostos de extraordinária e urgente necessidade. A lei só surge com a sua publicação no Boletim Oficial do Estado. Se o Congresso não adotar decisão alguma no prazo de trinta dias, o decreto-lei perderá toda a eficácia, pois só a ratificação poderia tirar dele a provisoriedade que o caracteriza quando editado. Devido ao fato de a Espanha ser uma monarquia parlamentarista, em que o rei possui a competência de dissolver o Parlamento e o governo, conforme o caso, e de as limitações à edição de decretos-leis estarem expressas na Lei Maior, não há grandes problemas no seu uso. Em caso de crise, o regime parlamentarista permite um pronto retorno à estabilidade política, visto que, após a dissolução do governo, o partido majoritário sempre indica o novo presidente. 20 2.1.1.5 Itália: a agilidade necessária Tendo em vista que o instituto da medida provisória brasileiro foi inspirado no modelo da Itália (Ferreira apud Santos, 1991), faz-se necessário o conhecimento mais pormenorizado da história do decreto-leinaquele país. Os primeiros decretos-leis na Itália foram expedidos na monarquia constitucional. O Estatuto Albertino, que regeu o reino Sardo-piemontês e depois o reino da Itália, não previa a adoção dos decretos-leis, antes a proibia expressamente, porquanto o art. 6° somente habilitava o rei a emanar os decretos e regulamentos necessários para a execução das leis, sem suspendê-las ou dispensar sua observância (Giuseppe Vieste apud Santos, idem). Apesar dessa restrição, os decretos-leis foram muito utilizados. Para isso, interpretaram de modo forçado o art. 6°, alegando até que ele não possuía a palavra jamais. Data de 1843 o primeiro decreto-lei italiano, que tomou o n° 738. Até 1914 o uso do decreto-lei foi moderado. A partir de então, devido às necessidades advindas com a Primeira Guerra Mundial, houve grande uso. Para tentar frear, o legislador fascista aprova, em janeiro de 1926, a Lei n" 100, que permitia ao governo baixar normas com força de lei e a expedir por decreto real, também sem delegação das Câmaras, normas com força de lei, quando ocorressem casos extraordinários de necessidade e urgência. Estes requisitos só se submetiam ao controle político do parlamento. Como o uso do decreto-lei continuou grande, o legislador limitou sua adoção a casos em que haja o estado de necessidade por causa de guerra ou em que sejam necessárias urgentes medidas de caráter financeiro ou tributário. Apesar disso, o decreto-lei continuou sendo o meio ordinário de legiferação. Santos (ibidem) denominou esse uso de orgia que atingia o ridículo e ignorava os mais elementares limites do bom senso, e que continuou até o desmoronamentoda ditadura legalizada. Logo após a Segunda Guerra Mundial, o constituinte italiano previu o decreto-lei, a ser utilizado em casos de extrema urgência, 21 para atender situações imprevistas e excepcionais. Mariotti (1999, p. 40) destaca as seguintes características básicas do decreto-legge: a) a existência de uma situação de necessidade; b) a ser enfrentada com urgência; c) por medidas do Executivo com força de lei; d) que deverão ser submetidas posteriormente ao parlamento. A Constituição italiana de 1947 trata dos decreti-leggi nos seguintes termos: Art. 77. O governo não pode, sem delegação das Câmaras, editar decretos com valor de lei ordinária. Quando, em casos extraordinários de necessidade e urgência, o governo, sob sua responsabilidade, adotar medidas provisórias com força de lei, deverá, no mesmo dia, submetê-las para efeito de conversão às Câmaras, as quais, se dissolvidas, são convocadas para essefim e reúnem-se em cinco dias. Os decretos perdem a eficácia desde o início se não forem convertidos em lei nos sessenta dias posteriores à sua publicação. As Câmaras, todavia, podem regular por lei as relações jurídicas decorrentes dos decretos não convertidos. (Cleve,1999,p.32) Apesar de não haver limites materiais à edição dos decreti-leggi no lugar de lei ordinária, a doutrina incorporou o consenso de que não caberia ao governo utilizá-los para dispor sobre matérias insuscetíveis de delegação legislativa, matéria eleitoral, autorização para emitir leis delegadas (decreti legislativi), autorização para o Chefe de Estado ratificar tratados internacionais e matéria orçamentária. Apesar disso, a utilização dos decreti-leggi por parte dos sucessivos governos foi se intensificando. Constatou-se que começava a haver abuso na sua utilização. A providência só surgiu após decisão da Corte Constitucional na sentença n" 30211988 (reI. Baldassare), em uma questão conexa a um decreto-legge reiterado nove vezes: (..) como princípio, a reiteração de decreti-leggi suscita graves dúvidas relativamente aos equilíbrios institucionais e 22 aos princípios constitucionais, tanto mais graves em razão de os efeitos surgidos com fundamento no decreto reiterado terem sido ressalvados, não obstante a decadência ter-se verijicado por obra dos decretos sucessivamente produzidos. Diante dessa exigência a Corte faz votos de que se produzam rapidamente as reformas necessárias para evitar o esvaziamento do significado dos preceitos contidos no art. 77 da Constituição. Ao mesmo tempo, todavia, não pode escusar-se, como no presente julgamento, de destacar as violações à Constituição devidas à reiteração dos decretos. (Mariotti, 1999, p. 45-46) Em resposta à sugestão judicial, o parlamento aprovou a Lei n" 400, de 23 de agosto de 1988, cujo art. 15 veda a edição de decreti-leggi para: a) conceder delegações legislativas; b) dispor sobre matéria constitucional e eleitoral, autorizar a ratificação de tratados internacionais, aprovar orçamentos e prestação de contas orçamentárias; c) renovar as disposições de atos cuja conversão em lei tenha sido negada, ainda que por uma só das Câmaras do Parlamento; d) repristinar disposições que a Corte Constitucional tenha declarado ilegítimas por vícios substanciais ou de competência; e) regular as relações jurídicas decorrentes dos atos não convertidos em lei. Essa legislação, contudo, não foi suficiente para deter o ímpeto legiferante do governo italiano, como mostra a seguinte tabela: Tabela 1 Edição de decreti-leggi na Itália - 1988-1994 Ano Decretos 1988 102 1989 103 1990 069 1991 077 1992 142 1993 258 1994 327 Fonte: Mariotti (1999, p. 49). Nota: No ano de 1994, os decreti-leggi novos (excluídas as reedições) representaram 63,7% daprodução legislativa total. 23 A solução só vina a partir de 1995, quando a Corte Constitucional da Itália, revogando entendimento anterior, decidiu ser inconstitucional a reedição de qualquer medida provisória. A seguir, em 1997, o Parlamento modificou a redação original da Constituição italiana, limitando a edição de medidas provisórias aos casos de segurança nacional, calamidadepública e normas financeiras (Castro,2000). 2.1.1.6 O decreto-lei no Brasil Todas as Constituições do Brasil promulgadas em períodos democráticos (1824, 1891, 1934 e 1946) não permitiam ao Presidente da República a competência de editar as chamadas medidas com força de lei. Já as Constituições surgidas nas ditaduras (1937, 1967 e 1969) contemplavam a figura do decreto-lei. A Constituição de 1937 nunca entrou em vigor, uma vez que não houve reunião do Congresso Nacional durante o Estado Novo. O Presidente da República exerceu a competência legislativada União. Após a Segunda Guerra Mundial, a Constituição de 1946 refletiu os pactos políticos firmados, que tinham o objetivo de impedir que tiranos tivessem um poder imperial. Assim, não previu a edição de medidas provisórias. Com o regime militar de 1964, começou a surgir uma legislação que privilegiava o Executivo na atividade legislativa. Em abril de 1964, foi editado o Ato Institucional n° 1, que: fixava o prazo de 30 dias para a aprovação dos projetos de Emenda Constitucional oriundos do Poder Executivo, reduzindo o quorum para sua aprovação para maioria absoluta, contra os dois terços estipulados na Carta de 1946; facultava ao Poder Executivo o envio de projetos de lei sobre qualquer matéria, revogando a exclusividade do Legislativo na iniciativa legal sobre determinados assuntos; estabelecia prazo de 30 dias para a apreciação de projetos enviados pelo Executivo à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal- no caso de projetos declarados urgentes, o prazo era reduzido para 30 dias nas duas Casas, findos os quais os projetos seriam considerados aprovados por decurso de prazo; concedia ao Executivo a exclusividade da iniciativa de leis que criassem ou aumentassem despesa pública e proibia o 24 Legislativo de acrescentar emendas que implicassem aumento de despesa. O decurso de prazo foi uma prática que vigorou até a Constituição de 1988. Em outubro de 1965, foi editado o Ato Institucional n° 2, que, além de repetir os dispositivos relativos às emendas constitucionais e à aprovação de projetos de leis oriundos do Executivo, mantinha a competência exclusiva do Poder Executivo para a iniciativa legal sobre criação de cargos, funções ou empregos públicos, aumentos de vencimentos ou despesas públicas e fixação dos efetivos das Forças Armadas, proibindo também emendas tendentes ao aumento de despesas. Autorizava ainda o Executivo a emitir atos complementares ao AI-2, bem como decretos-leis sobre matérias de segurança nacional ou, no caso de o Poder Executivo decretar recesso parlamentar, legislar por meio de decretos-leis em todas as matérias previstas na Constituição e na lei orgânica. Em 26 de novembro de 1965, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional n" 17, proposta pelo Executivo, que, dentre outras coisas, fixava em 45 dias o prazo para tramitação, em cada casa do Congresso, dos projetos de lei oriundos do Poder Executivo. A Constituição de 1967 inova ao permitir as leis delegadas e os decretos-leis. Conforme o seu art. 58, o Presidente da República estava autorizado a expedir decretos com força de lei especificamente sobre segurança nacional e finanças-públicas. O texto entrava em vigor com a publicação, tendo o Congresso o prazo de 60 dias para aprovar ou rejeitar, não podendo emendá-lo. Caso o decreto não fosse apreciado nesse prazo, o texto seria tido como aprovado. No ano seguinte, foi editado o Ato Institucional n" 5, que inaugurou o mais longo recesso parlamentar depois do Estado Novo. Em 1969, a ditadura militar - que substituíra o Presidente Costa e Silva - emite a Emenda n" 1 à Carta de 1967, na verdade uma nova Constituição, ampliando a abrangência do decreto-lei. Além disso, dilatou o prazo de apreciação de veto pelo Congresso Nacional para 45 dias e determinou que, caso não fosse apreciado nesse prazo, o veto seria mantido. O art. 55 determinava: 25 o Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sobre as seguintes matérias: I - Segurança Nacional; 11 - Finanças Públicas, inclusive normas tributárias; e 1lI - criação de cargos públicos e fixação de vencimentos. Posteriormente, o Executivo sairia ainda mais fortalecido em detrimento do Congresso Nacional. Em 1977, o Presidente Ernesto Geisel impõe o denominado Pacote de Abril. Tratava-se de um conjunto de emendas à Constituição e decretos-leis que alteraram as legislações eleitoral e partidária. Pessanha (1995, p. 291) chama a atenção para o fato de que todas as alterações ocorridas no período do regime militar sempre beneficiaram o Poder Executivo, no que diz respeito à iniciativa da produção legal no país: A ampliação do poder de legislar do Executivo não foi acompanhada por uma correspondente capacidade de controle e fiscalização do Congresso. Paralelamente ocorreu a neutralização do Judiciário, ora com a suspensão das garantias inerentes ao poder de julgar pelos atos institucionais, ora dificultando o acesso à justiça pelo monopólio das ações de inconstitucionalidadepelo Ministério Público, até 1988 diretamente subordinado ao Executivo. O controle do eleitorado sobre o Poder Executivo tomou-se inexistente, com a suspensão das eleições diretas em 1965, e extremamente débil sobre o Legislativo, devido às constantes mudanças nas regras do jogo mediante a introdução de casuísmos na legislação eleitoral e partidária. Como resultado, o referido autor revela que, de 1965, quando foi criado o decreto-lei, até outubro de 1988, em que foi extinto, a proporção entre a legislação ordinária e o número de decretos-leis só foi maior que 2:1 em dois anos: 1965 (330:1) e em 1986 (3:1). Em três anos a produção entre as duas foi idêntica, e em cinco anos a legislação extraordinária suplantou a ordinária. Esses números revelam a grande quantidade de decretos-leis editados no período da ditadura. 26 Por outro lado, o perfil da iniciativa legal, que ou era equilibrado ou revelava vantagem do Legislativo sobre o Executivo, alterou-se significativamente após 1964. Até o ano de 1988, nunca a iniciativa do Legislativo foi superior a 30% de toda a produção legal. Os decretos-leis só foram extintos com a promulgação da Constituição de 1988. Pensou-se que, com a extinção desse instrumento e a criação da medida provisória, estar-se-ia inaugurando novo tempo. Contudo, a realidade mostra que não foi bem isso o que aconteceu. 2.2 Medidas provísõrías no Brasil 2.2.1 A Constituição de 1988: o sonho parlamentarista a) A discussão Os debates na Assembléia Nacional Constituinte de 1988 centraram-se na necessidade de abolir o decreto-lei, que deixava o Congresso Nacional em segundo plano, devido à possibilidade de ser considerado aprovado por decurso de prazo, sem deliberação pelo Parlamento. Por outro lado, os constituintes tinham consciência da importância de dotar o Poder Executivo com um instrumento que possibilitasse agilidade na edição de uma norma, em casos excepcionais. Esse entendimento decorreu principalmente da constatação de que o Poder Legislativo era moroso para deliberar sobre matérias e, portanto, poderiam ocorrer graves conseqüências em casos de urgência. Foi o que demonstrou, por exemplo, o Deputado Egídio Ferreira Lima (pMDB-PE) (apud Figueiredo, 1999, p. 130), relator da Comissão da Organização de Poderes e Sistema de Governo: Na feitura do anteprojeto do Legislativo, desde o laborioso trabalho do relator, o constituinte José Jorge, com o fluxo das sugestões dos integrantes da subcomissão, houve uma atormentante e fértil preocupação de torná-lo célere e eficiente, escoimando-o de suas históricas deficiências. Tanto no relatório da Subcomissão do Poder Legislativo como no Relatório da Comissão da Organização de Poderes e Sistema de 27 Governo foi abolido o decreto-lei e criado um instrumento inspirado pela Carta italiana de 1948, que, além de democrático, pretendiam os constituintes, fosse fator de modernização e rapidez na ação administrativa nos casos de importância e urgência. o aspecto democrático referia-se ao fato de que, com a medida provisória, esperava-se não mais haver o freqüente abuso na utilização de um instrumento excepcional, como ocorreu com o decreto-lei. O que explica o abuso é o fato de que quanto maior o número de edições de decretos-leis pelo Poder Executivo, menor seria a chance de o Legislativo deliberar sobre eles noprazo de 60 dias, e, conseqüentemente, maior a probabilidade de serem aprovados por decurso de prazo (Figueiredo, op. cit.). Com a medida provisória, ao contrário, o silêncio do Congresso durante o prazo de 30 dias significaria a perda da eficácia ex tunc. A medida provisória esteve presente em todos os relatórios constituintes até ser apreciada no plenário. O sistema que então constava no projeto constitucional era o parlamentarismo. O texto que foi ao plenário para votação era o seguinte: Art. 76. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República, por solicitação do primeiro-ministro, poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato, para conversão, ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias. Parágrafo único. As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relaçõesjuridicas delas decorrentes. [grifo nosso] No dia 19 de março de 1988, na votação em primeiro turno, inscreveram-se para falar contra a proposta, os constituintes Adylson Motta (PDS-RS) e Michel Temer (PMDB-SP); e a favor, os constituintes Egídio Ferreira Lima (PMDB-PE) e Nelson Jobim (pMDB-RS). Motta e Temer argumentaram que a medida provisória 28 reproduzia o decreto-lei e traria como conseqüências: a diminuição da capacidade de legislar do Poder Legislativo e o ressurgimento de uma medida de conteúdo extremamente autoritário, nascida nos regimes fascistas (Covas, 1991). O Deputado Egídio Ferreira Lima contra-argumentou: (. ..) Isto não é um decreto-lei que imperou durante toda a ditadura. Isto é um mecanismo indispensável ao funcionamento de um regime democrático. (..) A medida provisória com força de lei tem 30 dias para ser votada e, se não o for, estará rejeitada. (Covas,op. cit.) Em seguida, o Deputado Nelson Jobim assim se posicionou: (..) Publicada a medida, em 30 dias esta Casa manifestar-se-á ou não. Se se manifestar contrariamente, não se converterá a medida provisória em lei. Se não se manifestar dentro de 30 dias, é absolutamente claro: As medidas provisórias perderão sua eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de 30 dias. (. ..) E poderemos, então, dentro de 30 dias, nesta Casa, conhecer e decidir sobre a validade dessas medidas, que, se não forem convertidas em lei, serão nulas, ineficazes todas as situações ocorridas anteriormente. E o juízo político nos compete, e esta Casa vigiará, de forma absoluta e com toda a sua força legislativa, qualquer excesso que venha a ser praticado. A vigília desta Casa será ou positiva para uma conversão, ou negativa pelo silêncio em 30 dias. E a medida cairá desde a sua edição. (Covas, idem) O dispositivo foi aprovado em primeiro turno. Contudo, posteriormente, ainda nesta etapa, não prosperou a idéia de se implantar o parlamentarismo. Foi mantido o presidencialismo. Alguns constituintes contrários à adoção da medida provisória diziam que os poderes legislativos extraordinários do Executivo seriam mais facilmente controlados no parlamentarismo, em que, caso uma medida provisória fosse rejeitada pelo Parlamento, o gabinete seria derrubado e novas eleições seriam convocadas. Argumentavam que haveria no 29 parlamentarismo uma co-responsabilidade entre o Executivo e o Legislativo no processo de edição de medidas provisórias. Após os dois turnos de votação, a redação final do artigo referente à edição de medidas provisórias ficou assim: Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir noprazo de cinco dias. Parágrafo único. As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes. o que se pode constatar dos debates ocorridos durante a Constituinte é que o legislador pretendeu que o novo instrumento criado fosse utilizado em casos excepcionais, sem que houvesse o abuso verificado com o decreto-lei, freqüentemente aprovado por decurso de prazo. Depreende-se também dos pronunciamentos a impossibilidade de reedição das medidas provisórias, como bem frisou o Senador Mário Covas (PSDB-SP), posteriormente, interpretando a vontade dos constituintes: (...) a única maneira de o dispositivo constitucional [parágrafo único, do art. 62] ser atendido, ou seja, de o Congresso regular as relações jurídicas de uma medida que perdeu a sua eficácia desde a sua edição, é ela não poder ser reeditada, ou contrariamente se criaria um moto contínuo pelo qual, a despeito da perda da eficácia, em sucessivas reedições se manteria intacto o fluxo. (Covas, ibidem) b) As diferenças entre o decreto-lei e a medida provisória Há diferenças significativas entre o decreto-lei e a medida provisória, como ressalta Arruda Câmara (1991): 30 a) quanto aos pressupostos para a edição, a norma que regia o decreto-lei utilizava-se da altemativa ou: urgência ou interesse público; a medida provisória possui maior rigidez normativa, pois somente pode ser editada em casos de urgência e relevância (cumulativos); b) quanto à matéria de que tratam, a norma do decreto-lei restringia textualmente a sua edição aos seguintes assuntos: segurança nacional; finanças públicas, inclusive normas tributárias; criação de cargos públicos e fixação de vencimentos; para as medidas provisórias, a norma não o explicitava, estando as limitações dispersas por todo o texto constitucional, que, segundo o autor, configuraria maior rigidez para a sua edição; c) os atos praticados na vigência de um decreto-lei rejeitado pelo Parlamento são considerados válidos; já aqueles praticados enquanto em vigor uma medida provisória posteriormente rejeitada perdem a eficácia desde a edição; d) o decreto-lei podia ser aprovado por decurso de prazo, se o Congresso não o apreciasse em 60 dias; no caso das medidas provisórias, o silêncio do Parlamento nos 30 dias de prazo implicaria a perda da eficácia de suas normas ex tunc. Em que pese a correta constatação de que as medidas provisórias possuíam limitações dispersas por todo o texto constitucional, não parece verossímil a opinião de Arruda Câmara de que haveria maior rigidez para a edição de medidas provisórias, se comparadas aos decretos-leis, visto que estes só poderiam tratar de três matérias. Fosse aquela posição fato, o Congresso Nacional não teria se ocupado de limitar materialmente a edição de medidas provisórias com a Emenda Constitucional n° 32/2001. Na verdade, as limitações materiais implícitas que vigoravam na Constituição foram insuficientes para evitar o grande uso que o Poder Executivo fez das MPs, como se irá demonstrar. Pessanha (1995) acrescenta que os decretos-leis não podiam ser emendados pelo Congresso, e que este apenas poderia aprová-los 31 ou rejeitá-los em bloco; já as medidas provisórias podem ser emendadas. Ferreira Filho (1992, p. 100-101) ressalta outras duas diferenças: a) o decreto-lei não podia acarretar aumento de despesa; a medida provisória pode; b) o decreto-lei resguarda melhor que a medida provisória o valor, que é a segurança jurídica. O autor explica que, embora as normas editadas pelo decreto-lei fossem rejeitadas pelo Congresso, produziam efeitos válidos. A medida provisória, caso rejeitada, tornaria sem efeito todos os atos praticados em sua vigência. A dúvida sobre se as normas que uma MP impõe serão convertidas em lei causa insegurança jurídica. Podemos esquematizar essa comparação entre o decreto-lei e a medida provisória,conforme o quadro que se segue. Quadro 1 Diferenças entre decreto-lei e medida provisória Critérios comparativos Decreto-lei Medida nrovisória* Pressupostos Urgência ou interesse Urgência e relevância público Matéria Segurança nacional, Não há proibição finanças públicas, criação expressa na de cargos públicos e Constituição, fíxacão de vencimentos mas implícita Aumento de despesa Proibido Permitido Emendamento Proibido Permitido Prazo para o Congresso 60 dias 30 dias votar Decurso de prazo Aprova Causa a perda da eficácia ex tune Segurançajuridica Atos praticados são válidos Atos só são válidos se a MP for convertida em lei ou se o Congresso convalidá-los Renovação Permitida, inclusive se Permitida, se efetuada rejeitado no prazo de 30 dias, exceto se reieitada Nota: *A comparação é feita com base na redação original do art. 62 da Constituição, anterior à Emenda n° 32/2001. 32 2.2.2 A prática das medidas provisórias no Brasil 2.2.2.1 A regulamentação da tramitaSão das medidas provisórias Promulgada a Constituição, logo em janeiro de 1989 os congressistas perceberam a necessidade de uma norma que tratasse da tramitação das medidas provisórias no Congresso Nacional. Isso ocorreu por ocasião do Plano Verão, constante de nove MPs editadas pelo governo José Sarney. O Regimento Comum do Congresso, ainda desatualizado perante a nova Carta, não permitia apresentação de emendas às medidas provisórias, à semelhança do que ocorria com o decreto-lei. O fato causou revolta em muitos parlamentares, que não admitiam somente a possibilidade de aprovação ou rejeição das MPs. O Deputado Gastone Righi, então Líder do PTB na Câmara dos Deputados, assim avaliou essa situação: A Constituinte, ao derrogar a existência do decreto-lei, acabou por compreender, e o fez no entendimento das lideranças, que alguma medida de urgência, sobre assuntos realmente relevantes, permanentes, de necessidade absoluta, teria de existir, até mesmo na hipótese do recesso do Congresso. E foi então que, mesmo proclamando um novo sistema político democrático, com o fortalecimento do Legislativo, permitimos a introdução desse fenômeno teratológico do direito que são as medidas provisórias. (...) Contudo, assistimos aqui à falência desse próprio poder. É o poder que se emascula, que se torna eunuco e, na verdade, se aliena de um poder que lhe é implícito: o da participação e da influência legislativa. Voltamos ao maniqueismo absoluto: ou sim ou não, ou tudo ou nada, ou branco ou preto, ou aprovamos as medidas ou as recusamos. (Righi apud Figueiredo, 1999,p. 137-138) Para contornar a impossibilidade de apresentação de emendas às medidas provisórias, o PSDB, PFL, PMDB, PDS e PTB alteraram o CÂMARA DOS DEPUTADOS· CEDI· BIBUOTECA 33 Regimento Comum, permitindo emendas supressivas. O problema foi parcialmente resolvido. Em 21 de fevereiro de 1989, no governo Sarney, o Congresso Nacional foi surpreendido com a reedição da MP n" 29, passando a ser a MP n° 39, que tratava da organização da Presidência da República e dos Ministérios. O então Presidente do Congresso Nacional, Senador Nelson Carneiro, nomeou uma comissão para elaborar parecer quanto à constitucionalidade da reedição. O Parecer n" 1/89, da Comissão Mista (DCN - 1° de março de 1989), cujo relator foi o Deputado Nelson Jobim (pMDB-RS), permitiu a reedição de medida provisória que tivesse perdido eficácia. Na mesma data, o então Senador Fernando Henrique Cardoso apresentou projeto de resolução para regulamentar a tramitação de medidas provisórias. O relator Nelson Jobim ofereceu parecer contrário ao dispositivo que proibia a reedição de medidas provisórias que tivessem perdido eficácia. Seu argumento era de que caberia à lei complementar regular essa matéria. Em seguida, o artigo foi rejeitado pelo plenário, e a Resolução, que recebeu o n° 1, de 1989, aprovada. O próprio Congresso Nacional foi o primeiro a possibilitar as constantes reedições de MPs por parte dos Presidentes da República. a) Natureza jurídica e processo legislativo Temer (2000, p. 151) esclarece que a medida provisória não é lei, é ato que tem força de lei, pois a MP não é fruto de representação popular. Lei é ato nascido no Poder Legislativo. Embora tal instrumento emane de uma só pessoa, o Presidente da República, vigora no exato instante em que é editada e cria direitos e obrigações. Para que uma MP seja editada, faz-se necessário que a matéria nela tratada respeite os requisitos constitucionais de relevância e urgência. De acordo com o texto constitucional anterior à EC 32/2001, a tramitação de medida provisória era a seguinte: editada, a MP era submetida de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, deveria ser convocado para reunir-se extraordinariamente em cinco dias. Caberia então ao Congresso apreciar se tinham sido 34 respeitados os pressupostos e, em seguida, aprovar ou rejeitar a MP em 30 dias. Se não o fizesse, a MP perderia a eficácia ex tune e o Congresso Nacional regularia as relações jurídicas referentes aos atos praticados em sua vigência. A aprovação de medida provisória sem alteração de texto a converte em lei. Não há sanção, pois não há projeto. Contudo, se houver alteração do texto, situação em que nasce o projeto de conversão, então este irá à sanção presidencial, pois difere do texto enviado pelo Chefe do Executivo. A MP possui vigência temporária. Ao ser editada, suspende a eficácia dos atos legislativos anteriores que conflitam com a MP adotada (Ferreira, 1992, p. 290). Por ser a medida provisória ato normativo com força de lei, não é admissível seja retirada do Congresso Nacional a que foi remetida para o efeito de ser ou não convertida em lei (STF, ADIMC 221,29/03/90). As medidas provisórias podiam tratar de todas as matérias reservadas à lei ordinária, com exceção das seguintes: a) aquelas reservadas à lei complementar; b) as que não pudessem ser objeto de delegação legislativa; c) a legislação em matéria penal; d) a legislação em matéria tributária (Temer, 2000, p. 152). No primeiro caso, não se poderia legislar por MP matéria reservada por lei complementar, pois esta exige quorum de maioria absoluta para sua aprovação, diferentemente da MP, aprovada por maioria simples. No segundo caso, o constituinte determinou que só por delegação do Congresso Nacional o Presidente da República poderia legislar sobre aqueles temas. No terceiro caso, a proibição de edição de MP decorre da impossibilidade de definição de crime ou aplicação de pena sem prévia cominação legal (CF, art. 5°, XXXIX) e também da própria transitoriedade característica da medida provisória. 35 No quarto caso, Temer (op. cit.) interpreta o texto constitucional então em vigor, asseverando que a única possibilidade de sacar recursos do patrimônio individual (propriedade) se daria por via de lei formal.' Além desses casos citados por Temer, maior limitação para a edição de medidas provisórias surgiu com as Emendas Constitucionais n'" 6 e 7, de 1995, instituidoras do art. 246, que vedava a sua adoção na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada a partir de 1995. Apesar dessas limitações, configurou-se no instituto da medida provisória uma amplitude temática que motivou o seu grande emprego por todos os governos. A tramitação de MPs foi regulamentada pela Resolução n° 1, de 1989, que assim determinava: no prazo de 48 horas da publicação de medida provisória no Diário Oficial da União, a Presidência do Congresso Nacional deve publicar e distribuir avulsos da MP adotada pelo Presidente da República e designar comissão mista, formada por sete senadores e sete deputados (redação dada pela Resolução n° 2/89) e igual número de suplentes, para oferecer os pareceres de admissibilidade e de mérito. Nas doze horas que se seguirem à designação,a Comissão deve ser instalada, para a eleição do presidente, vice-presidente e relator. Nos cinco dias que se seguirem à publicação da MP, podem ser apresentadas emendas, desde que não versem matéria estranha 3 O Supremo Tribunal Federal, em sede de liminar, admitiu a possibilidade de instituição de tributos por medida provisória. Segundo o relator, Ministro Octávio Gallotti, tendo força de lei, é meio hábil, a medida provisória, para instituir tributos, e contribuições sociais, a exemplo do que já sucedia com os decretos-leis do regime ultrapassado como sempre esta Corte entendeu. Ressalvou, contudo, a necessidade de respeito ao princípio da anterioridade, consagrado no art. 150, Ill, a, da Constituição (STF, ADIN 1.417-O/DF). Em decisão definitiva de mérito, o STF novamente permitiu a instituição de tributos por medida provisória, mas julgou parcialmente inconstitucional a MP n° 628, de 23/09/94, e suas sucessivas reedições até a MP n° 1.482-34, de 14/03/97, que dispunham sobre as alíquotas de contribuição para o plano de seguridade do servidor público civil, por não terem respeitado o princípio da anterioridade (STF, ADIN 1.135-9/DF, 13/08/97). 36 àquela tratada na MP, sob pena de serem indeferidas liminarmente pelo presidente da comissão. Desta decisão, cabe recurso, com o apoio de três membros, ao plenário da comissão, que decidirá por maioria simples. A comissão tem o prazo de cinco dias, contados da publicação da MP no Diário Oficial da União, para emitir parecer sobre a sua admissibilidade total ou parcial, em cumprimento ao que dispõe o art. 62 da Constituição a respeito dos pressupostos de urgência e relevância. O parecer pode concluir pela admissibilidade ou não da MP. No primeiro caso, caberá recurso ao plenário, com o apoio de um décimo dos membros do Congresso Nacional, ou líderes que representem este número. No segundo caso, será convocada uma sessão conjunta, para que o plenário decida sobre a admissibilidade da MP. A respeito desta sessão, assim dispõe o § 5° do art. 5° da Resolução n" 1/89: Se em duas sessões conjuntas, realizadas em até dois dias imediatamente subseqüentes, o plenário não decidir sobre a matéria, considerar-se-ão como atendidos pela Medida Provisória os pressupostos de admissibilidade do art. 62 da Constituição Federal. Inadmitida a MP quanto aos pressupostos de urgencia e relevância, será arquivada, cabendo à comissão mista a elaboração de projeto de decreto legislativo, disciplinando as relações jurídicas decorrentes da vigência da MP, com sua tramitação iniciada pela Câmara dos Deputados. Caso seja admitida, a comissão mista .deverá emitir parecer à MP no prazo de 15 dias, contado de sua publicação no DOU, quanto aos aspectos constitucional e de mérito. Em seu parecer, a comissão pode emitir parecer pela aprovação total ou parcial, pela alteração da MP ou pela rejeição; e, ainda, pela aprovação ou rejeição de emenda apresentada ao seu texto. Se o parecer concluir pela alteração do texto, a comissão deverá apresentar: a) projeto de lei de conversão; b) projeto de decreto legislativo, disciplinando as relações jurídicas decorrentes da vigência dos textos suprimidos ou alterados. 37 Se o parecer concluir pela inconstitucionalidade total ou parcial da MP, o plenário decidirá a questão, em apreciação preliminar. Esgotado o prazo da comissão sem a apresentação de qualquer dos pareceres (admissibilidade ou constitucionalidade emérito), o Presidente do Congresso Nacional designará relator para oferecer parecer em plenário, no prazo de 24 horas. Aprovado o projeto de lei de conversão, seu texto será enviado à sanção do Presidente da República. Sendo aprovada a MP sem alteração, o seu texto será enviado em autógrafos ao Presidente da República para publicação como lei. Segundo o art. 17 da Resolução 1I89-CN, esgotado o prazo de trinta dias, sem deliberação final do Congresso Nacional, a comissão mista elaborará projeto de decreto legislativo, disciplinando as relações jurídicas decorrentes, com sua tramitação iniciada na Câmara dos Deputados. Com essa regulamentação, o Congresso Nacional perdeu a oportunidade de limitar a reedição de medidas provisórias e permitiu a possibilidade de admissão de MP quanto aos pressupostos constitucionais de relevância e urgência por decurso de prazo. Ambos fatos contribuíram para o grande e questionável uso das medidas provisórias, que daria ensejo mais tarde aos embates ocorridos entre os três poderes. b) A reedição A questão da reedição de medidas provisonas ficou em evidência, pela primeira vez, 'quando o Presidente Sarney, em fevereiro de 1989, reeditou a MP n° 29, que tratava da organização da Presidência da República. Como já exposto, o Congresso Nacional analisou a possibilidade de reedição e o relator, Deputado Nelson Jobim, no Parecer n° 1189, da Comissão Mista, em resposta a uma consulta da Mesa do Congresso, opinou ser constitucional e jurídica a reedição de MPs que tivessem perdido a eficácia. Posteriormente, o próprio Congresso suprime, em votação, artigo do texto do projeto que 38 originou a Resolução n° 1/89, que proibia a reedição. Contudo, a hipótese de reedição não estava ainda decidida. A dúvida era se a MP rejeitada ou não apreciada pelo Congresso em trinta dias poderia ser reeditada. Em 22 de junho de 1989, o Presidente Sarney aprovou o Parecer n° SR-92 (21/06/89), da lavra do então Consultor-Geral da República, J. Saulo Ramos, para quem uma MP rejeitada ou não apreciada pelo Congresso Nacional poderia ser reeditada. Tércio Ferraz (1990, p. 94) criticou: A reedição de uma medida provisória rejeitada faz tâbula rasa do princípio geral de que o Poder Legislativo é exercido pelo Congresso, cuja decisão, neste ponto, tem o caráter de última instância. A questão da reedição de medida provisória já rejeitada foi resolvida definitivamente pelo Supremo Tribunal Federal, ao aprovar o parecer do Ministro Celso de Mello no julgamento de liminar, na ADIN 293-7/DF4, ajuizada para impugnar dispositivos da MP n" 190, de 31/05/90 (Collor), substancialmente idêntica à MP n° 185, de 04/05/90, que havia sido rejeitada pelo Congresso Nacional. Essa decisão também se estende ao caso de reedição de MP convertida em 4 Conforme o inteiro teor da decisão do Supremo Tribunal Federal: Reedição de medida provisória rejeitada pelo Congresso Nacional - As medidas provisórias configuram, no Direito Constitucional Positivo brasileiro, uma categoria especial de atos normativos primários emanados do Poder Executivo, que se revestem de força, eficácia e valor de lei. Como a função legislativa ordinariamente pertence ao Congresso Nacional, que a exerce por direito próprio, com observância da estrita tipicidade constitucional que define a natureza das atividades estatais, toma-se imperioso assinalar, e advertir, que a utilização da medida provisória, por constituir exceção derrogatória do postulado da divisão funcional do poder, subordina-se, em seu processo de conversão legislativa, à vontade soberana do Congresso Nacional. A rejeição parlamentar de medida provisória, ou de projeto de conversão, além de desconstituir-lhe ex tunc a eficácia jurídica, opera uma outra relevante conseqüência de ordem político-institucional, que consiste na impossibilidade de o Presidente da República renovar esse ato quase-legislativo, de natureza cautelar. Modificações secundárias de texto, que em nada afetam os aspectos essenciais e intrínsecos da medida provisória expressamente repudiada pelo Congresso Nacional, constituem expedientes incapazes de descaracterizar a identidade temática que existe entre o ato não convertido em lei e a nova medida provisória editada. (STF, Acórdão, Dl 16/0411993.) 39 lei com sensíveis alterações em seu conteúdo, pois, por via oblíqua, estar-se-ia indo de encontro à vontade soberana do legislador (Nobre Júnior, 2000). Quanto à caducidade da medida provisórianão apreciada em trinta dias, o STF decidiu, naquela oportunidade, que o fato não configura modalidade de rejeição tácita, a impedir a sua renovação. Estava aberto o caminho que possibilitou ao Poder Executivo tomar perene a norma provisória, deixando o Legislativo em segundo plano no processo de elaboração das leis. Isso acontecia porque, além de reeditar MPs, em cada uma delas o Presidente convalidava os atos praticados durante a vigência da MP anterior. Não interessava mais ao Poder Executivo garantir quorum nas comissões mistas que analisavam as medidas provisórias. Tomou-se, portanto, desnecessária a participação do Poder Legislativo no processo de apreciação de medidas provisórias. Só em 1997 firmou-se jurisprudência de que a reedição de uma medida provisória, na verdade, constitui uma nova medida, pois a MP não convertida em lei perde a eficácia. (TRF/l a, AMS-01.00.031847-4IMG,21/10/97.) 2.2.2.2 A medida provisória nos governos do Brasil: um balanço Logo depois da promulgação da Constituição de 1988, percebeu-se que as medidas provisórias careciam de uma regulamentação que limitasse a sua edição. Essa visão originou-se da constatação da grande freqüência com que esse poderoso instrumento estava sendo utilizado, e não somente em casos excepcionais, como pretendeu o constituinte. A situação não se alterou nos governos que se sucederam. O quadro seguinte mostra o número de medidas provisórias editadas desde a sua criação pela Constituição promulgada em 5 de outubro de 1998 até o dia 11 de setembro de 2001, data da promulgação da EC n" 32: 40 Tabela n° 2 Medidas provisórias editadas pelos governos do Brasil- 1985-2001* Presidente N° de Meses MPs Média Total Média originárias Mensal Reedições mensalda Período (A) (C) (CtA)Renública (B) (B/A) José Sarney 15/03/1985 a 17,3 125 7,22 22 147 8,4914/03/1990** Fernando Collor de 15/03/1990 a 30,5 89 2,92 70 159 5,21Mello 01/10/1992 Itamar Franco 02/10/1992 a 27,0 142 5,26 363 505 18,731/12/1994 Fernando Henrique 01/01/1995 a 48,0 160 3,33 2.449 2.609 54,35Cardoso (1° Gov.) 31/12/1998 Fernando Henrique 01/01/1999 a 33,3 103 3,09 2.586 2.689 80,75Cardoso (20 Gov.) 11/09/2001*** TOTAL 156,1 619 3,96 5.490 6.109 39,13 Fome: www.planalto.gov.br Notas: * Há pequenas diferenças entre a estatística de MPs que consta no si/e do Palácio do Planalto e a proveniente do Levantamento de Medidas Provisórias (2000), editado pelo Senado Federal, contudo não são relevantes a ponto de inverter a ordem dos governos na utilização de MPs, não comprometendo a análise feita. **As medidas provisórias só foram editadas a partir de 05/10/1988. ***A data não se refere ao término do mandato de Fernando Henrique, mas ao fim do período pesquisado. Caso se leve em conta apenas o número de medidas provisórias originárias editadas pelos Presidentes, excluídas as reedições, constata-se que Sarney é o que possui a maior média mensal (7,22), seguido por Itamar Franco (5,26), Fernando Henlique- primeiro governo (3,33), Fernando Henrique -' segundo governo (3,09) e Collor (2,92), totalizando 619 MPs. A explicação para a baixa média de Collor é que, em 1990, o então Deputado Nelson Jobim (pMDB-RS), com o apoio da OAB, apresentou um projeto de lei complementar visando regular o uso das MPs. O projeto foi aprovado na Câmara e, por falta de acordo, nunca foi votado no Senado. Porém, apenas o debate em tomo do assunto foi suficiente para fazer com que Collor não editasse um grande número de MPs. As medidas provisórias eram, por vezes, reeditadas com alteração de texto. Não raro, essa alteração consistia em uma nova matéria incluída na reedição de uma medida provisória. Contudo, a reedição em si de uma medida provisória com ou sem alteração de texto é, de fato, uma nova MP, pois o texto da Constituição rezava que, caso não fosse aprovada em 30 dias, perderia eficácia ex tune (TRFlla, AMS-01.00.031847-4/MG, 21/10/97). Para Mariotti (1999) não existe, a rigor, reedição de MP, mas edição de nova medida com o mesmo conteúdo normativo. Assim, considerando-se também as reedições, em números absolutos, Fernando Henrique é o presidente que mais editou medidas provisórias em seus dois governos (2.689 no segundo governo e 2.609 no primeiro), seguido por Itamar (505), Collor (159) e Sarney (147), totalizando 6.109 MPs. Neste caso, a média mensal de MPs editadas por governo passa a ser, em ordem decrescente: Fernando Henrique>- segundo governo (80,75), Fernando Henrique - primeiro governo (54,35), Itamar (18,7), Sarney (8,49) e Collor (5,21). Constata-se que, no segundo governo de Fernando Henrique, ainda inacabado no momento desta pesquisa, o número de reedições (2.586) já superava o de todos os demais governos. Observa-se que, desde a promulgação da Constituição de 1988, foram editadas 39,13 MPs por mês. Ressalve-se o fato de que, em cada um dos seus mandatos, Fernando Henrique é o presidente que governou mais tempo na 42 vigência da Constituição de 1988 (48 meses, no primeiro, e 33,3 no segundo - correspondente ao período em análise), seguido por Collor (30,5), Itamar (27) e Sarney (17,3). Isso explica o baixo número, na média mensal, dos governos de Fernando Henrique, apesar do grande uso que fez das medidas provisórias. Se, por um lado, o Congresso Nacional foi crescentemente deixando de votar as medidas provisórias a partir de 1993 (Figueiredo, 1999, p. 151), por outro lado, é forçoso reconhecer que a simples reedição mantinha em vigor, indefinidamente, uma norma criada para ter vigência por trinta dias, provocando insegurança jurídica e constituindo fator de decréscimo da importância do Poder Legislativo no processo da produção legal. Outro aspecto a ser analisado são as áreas temáticas abrangida pelas MPs editadas. Figueiredo (op. cit.) dividiu as medidas provisórias editadas até 1995 em cinco áreas temáticas, como mostra a tabela abaixo. Tabela n° 3 Distribuição temática das MPs por áreas e governos até 1995 - % Presidente da Econômica Admin. Social Política Homenagens Total República José Sarney 52,0 30,4 16,0 0,8 0,8 100,0 (125) Fernando Collor 55,7 26,1 18,2 - - 100,0 (88) Itamar Franco 50,7 25,3 23,9 0,7 - 100,0 (142) Fernando Henrique 59,4 28,1 12,5 - - 100,0 (32) TOTAL 52,9 27,1 19,1 0,5 0,2 100,0 (387) Fonte: Figueiredo, idem, p. 146. 43 Como se pode verificar, a área econômica foi o maior alvo da utilização de medidas provisórias. Devido às crises econômicas e à inflação por que passou o país, essa preponderância é até justificáveL Contudo, nas áreas administrativa e social, as MPs foram utilizadas de forma bem mais ampla do que pretenderam os constituintes. Assim, no plano administrativo, por exemplo, diversas iniciativas para reestruturar o aparelho do Estado deixaram de ser formalizadas por lei ordinária, como deveriam, pois regulavam matérias que não careciam de urgência. O mesmo também aconteceu na área temática Homenagens, que se refere somente à MP n° 105/89, editada por Sarney, que inscreveu os nomes de Tiradentes e Deodoro da Fonseca no Livro dos Heróis da Pátria. Para Figueiredo (ibidem, p. 147), é incontestável que o Poder Executivo exorbitou em suas atribuições legislativas constitucionalmente definidas. 2.2.3 TIso, abuso e poderes da República: hipótese e metodologia A teoria da separação dos poderes de Montesquieu visa limitar o poder estatal e impedir que um poder se sobreponha a outro. Contudo, atualmente, o seu significado não possui mais a visão clássica organicista que só cuidava da igualdade. Hoje, além da igualdade, existem os direitos sociais, cujo exercício pelos cidadãos requer um Estado ágil. Assim, a teoria foi sendo modificada, e incorpora também como objetivo a eficiência estatal (Nobre Júnior, op. cit., p. 108). A Constituição Federal de 1988 já adota o novo significado da teoria da separação dos poderes e determina no art. 2°: São poderes
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