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1
Um conto de
Franz 
Kafka 
3
as últimas décadas, o 
interesse por artistas 
da fome diminuiu mui-
to. Embora no passado valesse a 
pena organizar grandes apresen-
tações por conta própria, hoje 
em dia isso é totalmente impos-
sível. Eram outros tempos. Na-
quela época, toda a cidade se en-
tretinha com o artista da fome: a 
participação aumentava dia após 
dia de jejum; todos queriam vê-lo 
diariamente pelo menos uma vez; 
N
4
já no final, havia espectadores que 
passavam o tempo todo diante da 
pequena jaula; inclusive à noite 
aconteciam visitas, cujo efeito era 
ampliado pelo brilho das tochas; 
nos dias de clima agradável, a jau-
la ficava ao ar livre, e então era 
especialmente às crianças que o 
artista da fome era exibido. Embo-
ra muitas vezes fosse apenas uma 
diversão para os adultos, da qual 
participavam por uma questão 
de moda, as crianças observavam 
maravilhadas, boquiabertas, se-
gurando as mãos umas das outras 
para se sentirem seguras, enquan-
to ele, pálido, usando malha preta, 
com as costelas muito salientes e 
5
desdenhando até mesmo de uma 
poltrona, se sentava na palha jo-
gada pelo chão, ora anuindo edu-
cadamente com a cabeça, ora res-
pondendo com um sorriso força-
do, esticando o braço através das 
grades para deixar que sentissem 
sua magreza, mas em seguida vol-
tava a mergulhar completamen-
te em si mesmo, sem se importar 
com ninguém, nem mesmo com 
aquilo que era tão importante pa ra 
ele, o tiquetaquear de um relógio 
que era a única peça decorativa da 
jaula, e apenas encarava o vazio 
com olhos semicerrados e vira e 
mexe bebericava água de um co-
pinho para umedecer os lábios.
6
Além dos espectadores em re-
vezamento, havia também guar-
das fixos escolhidos pelo públi-
co: estranho que, em geral, eram 
açougueiros, sempre em trios, 
encarregados de vigiar dia e noi-
te o artista da fome para que não 
conseguisse algum jeito misterio-
so de se alimentar. Mas era ape-
nas uma formalidade, introduzi-
da para acalmar as massas, pois 
os iniciados sabiam muito bem 
que o artista da fome nunca, em 
hipótese nenhuma, nem mesmo 
sob coação, comeria qualquer 
coisa durante o período do je-
jum; a honra de sua arte o proi-
bia. Claro, nem todos os guardas 
7
conseguiam entender essa pos-
tura; às vezes havia grupos no-
turnos que faziam a vigilância 
de um jeito bastante descuida-
do; sentavam-se deliberadamen-
te em um canto mais afastado e 
mergulhavam no carteado, com 
a óbvia intenção de dar ao artis-
ta da fome tempo para uma refei-
ção leve que ele poderia buscar, 
na opinião dos vigias, em alguma 
provisão secreta. Nada era mais 
torturante para o artista da fome 
que tais vigias: eles turvavam seu 
ânimo, tornavam a fome terrivel-
mente difícil; às vezes, supera-
va a fraqueza e cantava durante 
o tempo de vigília, contanto que 
8
conseguisse aguentar, para mos-
trar que as pessoas suspeitavam 
dele injustamente. Mas isso não 
adiantava muito; elas se surpreen-
diam apenas com a habilidade 
dele de comer mesmo enquan-
to cantava. Preferia muito mais 
os guardas que se sentavam per-
to das grades, que não se conten-
tavam com a penumbra noturna 
do salão e o iluminavam com as 
lanternas elétricas que o empre-
sário punha à disposição deles. A 
luz clara não o incomodava nem 
um pouco; de qualquer maneira, 
não conseguia mesmo dormir, 
mas sempre podia cochilar um 
tanto, com qualquer iluminação 
9
e a qualquer hora, inclusive com 
o salão lotado e barulhento. Com 
tais vigias estava sempre pron-
to a passar a noite em claro, dis-
posto a contar piadas, comparti-
lhar histórias de sua vida errante 
e depois voltar a ouvir as histó-
rias deles; tudo apenas para man-
tê-los em vigília, para conseguir 
mostrar-lhes de novo que não ti-
nha nada para comer na jaula e 
que jejuava como nenhum deles 
seria capaz de fazer. Mais feliz, 
no entanto, ficava quando a ma-
nhã chegava e eles recebiam um 
desjejum reforçado por sua conta, 
ao qual se lançavam com o apeti-
te dos homens saudáveis depois 
10
de uma noite de vigilância traba-
lhosa. Havia até pessoas que que-
riam ver uma influência indevi-
da dos vigias nessa refeição, mas 
isso seria ir longe demais, e, caso 
fosse perguntado a essas pessoas 
se gostariam, por exemplo, de as-
sumir a vigília noturna apenas 
pelo bem da causa, sem receber 
o café da manhã, elas se esquiva-
vam, mas permaneciam com suas 
suspeitas.
Essa, no entanto, era uma das 
suspeitas indissociáveis do jejum. 
Afinal, ninguém era capaz de pas-
sar todos os dias e todas as noites 
vigiando o artista da fome, por 
isso ninguém conseguia saber por 
11
observação própria se o jejum ti-
nha sido realmente ininterrup-
to e impecável; apenas o próprio 
artista da fome poderia sabê-
-lo, assim, só ele conseguia ser, 
ao mesmo tempo, o espectador 
completamente satisfeito do pró-
prio jejum. Mas, por outro moti-
vo, nunca ficava satisfeito; talvez 
não tenha sido a fome que o de-
finhara a ponto de alguns, para 
seu pesar, se afastarem das apre-
sentações por não suportarem 
vê-lo, mas tenha sido a insatis-
fação consigo mesmo que o dei-
xara assim macilento. Pois só ele 
sabia, e nenhum outro iniciado 
além dele, como o jejum era fácil. 
12
Era a coisa mais fácil do mundo. 
Também não guardava segredo 
quanto a isso, mas ninguém acre-
ditava nele; na melhor das hipóte-
ses o consideravam modesto, mas 
principalmente exibido ou mes-
mo vigarista, para quem o jejum 
era fácil, pois sabia como torná-lo 
fácil, e ainda tinha a pachorra de 
confessá-lo pela metade. Precisa-
va aturar tudo isso, e se acostumou 
com o passar dos anos, mas, em 
seu íntimo, essa insatisfação sem-
pre o consumia; e nunca, depois 
de um período de jejum – quan-
to a isso merecia reconhecimento 
–, deixou voluntariamente a jau-
la. O empresário fixava quarenta 
13
dias como tempo máximo de je-
jum e nunca permitia que duras-
se mais que isso, nem mesmo nas 
grandes metrópoles, e por um 
bom motivo. A experiência mos-
trava que, por cerca de quarenta 
dias, era possível provocar o in-
teresse de uma cidade com uma 
publicidade cada vez maior, mas 
depois desse período o público di-
minuía, e se verificava uma que-
da substancial na popularidade; 
é claro que, nesse sentido, havia 
pequenas diferenças entre cida-
des e países, mas a regra eram os 
quarenta dias como tempo máxi-
mo. Então, no quadragésimo dia, 
a porta da jaula decorada de flores 
14
era aberta, uma plateia entusias-
mada lotava o anfiteatro, uma 
banda militar tocava, dois médi-
cos entravam na jaula para fazer 
as medições necessárias do artista 
da fome, os resultados eram anun-
ciados ao salão por um megafone 
e, por fim, duas jovens senhoras 
chegavam, felizes por terem sido 
sorteadas, e conduziam o artista 
da fome por alguns degraus para 
fora da jaula, onde uma refeição 
cuidadosamente selecionada para 
enfermos era servida numa me-
sinha. E, nesse momento, o artis-
ta da fome sempre relutava. Em-
bora pousasse voluntariamente 
os braços ossudos nas prestativas 
15
mãos que as senhoras inclina-
das sobre ele lhe estendiam, não 
queria se levantar. Por que pa-
rar agora, depois de quarenta 
dias? Resistira por muito tempo, 
indefinidamente; por que parar 
agora, quando não estava no me-
lhor, claro, ainda não estava no 
melhor do jejum? Por que que- 
riam roubar dele a fama de con-
tinuar a jejuar e de não apenas se 
tornar o maior artista da fome 
de todos os tempos, o que pro-
vavelmente já era, mas também 
de se superar, ir além do com-
preensível, por sentir que sua ca-
pacidade de jejuar não tinha li-
mites? Por que essa multidão, 
16
que fingia admirá-lo tanto, tinha 
tão pouca paciência com ele? Se 
aguentava jejuar mais, por que 
as pessoas não pareciam querer 
aguentar? Também estava can-
sado, sentava-se bem sobre a pa-
lha e precisava endireitar-se e ca-
minhar até a comida, que só de 
imaginar lhe causava náuseas, 
cuja manifestação ele reprimia 
com dificuldade apenas por con-
sideração às senhoras. E fitava 
os olhos dassenhoras aparente-
mente tão amigáveis, mas na rea-
lidade tão cruéis, e balançava a 
cabeça extremamente pesada so-
bre o pescoço fraco. Então, acon-
tecia o de sempre. O empresário 
17
aproximava-se e erguia os braços 
em silêncio – a música impossibi-
litava a fala – sobre o artista da 
fome, como se convidasse o céu 
a ver a sua obra ali, sobre a pa-
lha, esse mártir lamentável que, 
de fato, era o artista da fome, só 
que em um sentido completamen-
te diferente; agarrava o artista da 
fome pela cintura franzina, ten-
tando convencer, com exagerada 
cautela, que lidava ali com algo 
frágil; e o entregava – não sem se-
cretamente sacudi-lo um pouco, 
de modo que o artista da fome se 
balançava, descontrolado, para lá 
e para cá com suas pernas e tronco 
– às senhoras, que nesse ínterim 
18
 já tinham ficado mortalmente pá-
lidas. Nesse momento, o artista 
da fome tolerava tudo; a cabeça 
repousava sobre o peito, como se 
tivesse rolado e inexplicavelmen-
te se mantido ali; o corpo se es-
vaziava; as pernas se apertavam 
com força uma contra a outra na 
altura do joelho, no instinto de se 
manterem firmes, mas mesmo as-
sim batiam no chão como se este 
não fosse de verdade, procuran-
do o solo real; e todo o peso do 
corpo, embora muito pequeno, 
recaía sobre uma das senhoras, 
que, em busca de ajuda, esbafori-
da – não era assim que havia ima-
ginado aquela posição de honra –, 
19
antes de mais nada esticava o pes-
coço ao máximo para pelo menos 
evitar que seu rosto tocasse o ar-
tista da fome. Mas então, quando 
não conseguia e sua companheira 
mais feliz não vinha em seu auxí-
lio, contentava-se em puxar pela 
mão à sua frente, trêmula, o artis-
ta da fome, aquele pequeno feixe 
de ossos; irrompia em lágrimas 
sob as risadas embevecidas do 
salão e precisava ser rendida por 
um criado que muito tempo antes 
havia sido preparado para tanto. 
Depois vinha a refeição, cujo bo-
cado o empresário fazia o artista 
da fome engolir enquanto estava 
meio adormecido, em meio a uma 
20
conversa alegre que deveria des-
viar a atenção da condição do je-
juador; em seguida, oferecia-se ao 
público um brinde supostamente 
sussurrado ao empresário pelo ar-
tista da fome; a orquestra reforça-
va tudo aquilo com uma grande 
fanfarra, o público se dispersava 
e ninguém tinha o direito de ficar 
insatisfeito com o que tinha vis-
to, ninguém, apenas o artista da 
fome, sempre e apenas ele.
Assim viveu muitos anos com 
pausas curtas e regulares, em apa-
rente esplendor, honrado pelo 
mundo, mas, apesar disso tudo, 
em geral de humor turvado, que 
ficava ainda mais nublado pelo 
21
fato de que ninguém sabia levá-lo 
a sério. Com o que se deveria con-
solá-lo? O que mais poderia que-
rer? E, quando gente de boa ín-
dole se compadecia dele e queria 
explicar-lhe que a tristeza prova-
velmente advinha da fome, podia 
acontecer, especialmente em está-
gios avançados do jejum, de o ar-
tista da fome responder com uma 
explosão de raiva e, para horror de 
todos, começar a sacudir as grades 
como um animal. Mas o empresá-
rio tinha um método de punição 
para tais estados de ânimo que 
usava com prazer. Desculpava o 
artista da fome perante o público 
reunido e admitia que somente a 
22
irritabilidade causada pela fome, 
que não era facilmente compreen-
sível para pessoas bem nutridas, 
poderia tornar o comportamento 
do artista da fome perdoável. En-
tão passava a falar também sobre 
a alegação do artista da fome, ain-
da a ser explicada, de que pode-
ria jejuar por muito mais tempo 
do que jejuava; elogiava o gran-
de esforço, a boa vontade, a gran-
de abnegação, certamente conti-
dos nessa afirmativa; mas tentava 
refutá-la com bastante simplici-
dade, mostrando fotografias que 
estavam sendo vendidas na mes-
ma época com imagens do artista 
da fome no quadragésimo dia de 
23
jejum, na cama, quase extinto pela 
inanição. Essa distorção da verda-
de, que o artista da fome conhecia 
bem, mas sempre o incomodava, 
era demais para ele. O resultado 
do término prematuro do jejum 
era apresentado ali como a causa! 
Era impossível combater essa in-
sensatez, esse mundo de insensa-
tez. Ansioso, agarrado às grades, 
sempre ouvia de boa-fé o empre-
sário, mas, a cada vez que as fo-
tos apareciam, soltava as grades, 
afundava na palha com um suspi-
ro, e o público tranquilizado podia 
voltar e observá-lo.
Alguns anos depois, quando as 
testemunhas recordavam de tais 
24
cenas, muitas vezes não compreen-
diam a si mesmas. Pois, nesse ín-
terim, a referida virada ocorreu; 
tinha acontecido quase de repen-
te; podia haver razões mais pro-
fundas, mas quem se importou 
em encontrá-las? De qualquer for-
ma, um dia o mimado artista da 
fome se viu abandonado pela tur-
ba ávida por diversão, que pre-
feria rumar a outros espetáculos. 
Mais uma vez, o empresário cor-
reu com ele por metade da Europa 
para ver se não reencontrava aqui 
e ali o antigo interesse. Tudo em 
vão. Como se houvesse um acor-
do secreto, criou-se em toda parte 
quase uma aversão a espetáculos 
25
de jejum. Na realidade, claro, isso 
não poderia ter acontecido de re-
pente, e, em retrospecto, muitos 
daquela época recordavam que, 
na embriaguez do sucesso, não 
se prestou atenção suficiente aos 
presságios, nem se reprimiram 
esses avisos o suficiente. Mas ago-
ra era tarde demais para tomar 
qualquer atitude nesse sentido. E 
era certo que o momento da fome 
também voltaria, mas isso não era 
consolo para os que estavam vi-
vos. O que o artista da fome de-
veria fazer, então? Aquele que 
milhares haviam ovacionado não 
podia se apresentar em barracas 
de pequenas feiras, e o artista da 
26
fome não só estava velho para as-
sumir outra profissão, mas, acima 
de tudo, era fanaticamente devo-
tado ao jejum. Por isso despediu 
o empresário, camarada de uma 
carreira incomparável, e passou a 
trabalhar num grande circo; para 
poupar sua suscetibilidade, nem 
olhou os termos do contrato.
Um grande circo, com sua mul-
tiplicidade de pessoas, animais e 
equipamentos que o tempo todo 
compensam e complementam uns 
aos outros, pode lançar mão de 
qualquer um a qualquer momen-
to, inclusive de um artista da fome, 
se, por sua vez, este tiver deman-
das modestas, é claro, e, além disso, 
27
nesse caso particular, não havia 
sido contratado apenas o próprio 
artista da fome, mas também seu 
antigo e famoso nome; sim, dada a 
peculiaridade dessa arte, que não 
diminui com o aumento da idade, 
não seria possível dizer que o ar-
tista obsoleto, não mais no ápice 
de suas capacidades, queria refu-
giar-se num tranquilo cargo do cir-
co; ao contrário, o artista da fome 
garantiu que jejuava tanto quanto 
antes, o que era totalmente crível, 
e até afirmou que, se fosse deixa-
do à vontade, e isso lhe foi prome-
tido de imediato, apenas se fosse 
deixado à vontade o mundo fica-
ria justificadamente boquiaberto, 
28
afirmação que, no entanto, em re-
lação ao espírito da época, que, em 
seu afã, o artista facilmente esque-
cia, somente causava riso nos es-
pecialistas.
Porém, em princípio, o artista 
da fome também não perdeu de 
vista as condições reais e presu-
miu naturalmente que ele e sua 
jaula não seriam postos no centro 
do picadeiro como um número de 
destaque, mas sim alojados do lado 
de fora, em local de acesso bastan-
te facilitado, próximo aos estábu-
los. Placas grandes e pintadas em 
cores vivas emolduravam a jau-
la e anunciavam o que lá se via. 
Nos intervalos da apresentação, 
29
quando o público corria aos está-
bulos para observar os animais, 
era quase inevitável que passas-
sem pelo artista da fome e pa-
rassem um pouco; talvez perma-
necessem por mais tempo ali se 
aqueles que vinham atrás, pelo 
corredor estreito, sem entender 
aquela parada no caminho dos tão 
almejados estábulos, não tornas-
sem impossível uma contempla-
ção mais longa e tranquila. Esse 
também era o motivo por que o 
artista da fome voltava a estreme-
cer antes desses períodos de visi-
ta, que ele naturalmente desejava 
comoum propósito de vida. No iní-
cio, mal conseguia esperar pelos 
30
intervalos entre as apresentações; 
voltava os olhos com encanto para 
o povo que se aproximava, até que 
logo se convenceu – nem mesmo a 
autoilusão mais obstinada e qua-
se consciente resistia à experiên-
cia – de que a intenção daquelas 
pessoas era sempre, sem exceção, 
visitar os estábulos. E aquela vi-
são à distância continuava sendo a 
mais bonita. Pois, quando se apro-
ximavam dele, era imediatamente 
cercado por gritaria e xingamen-
tos de duas turmas que se forma-
vam sem parar: a daqueles que – 
logo se tornou a mais penosa para 
o artista da fome – queriam vê-lo 
confortável não por compreensão, 
31
mas por capricho e antagonismo, 
e a segunda, que a princípio que-
ria apenas chegar aos estábulos. 
Passada a grande multidão, che-
gavam os retardatários, e eles, cla-
ro, já livres para ficar pelo tem-
po que lhes apetecia, moviam-se 
a passos largos, quase sem olhar 
para os lados, a fim de chegar logo 
aos animais. E não era muito fre-
quente o acaso feliz em que um 
pai vinha com os filhos, aponta-
va o dedo para o artista da fome, 
explicava em detalhes do que se 
tratava, contava sobre anos ante-
riores, quando tinha visto apre-
sentações parecidas, mas incom-
paravelmente mais veneráveis, 
32
e então as crianças, por causa de 
preparação insuficiente para a es-
cola e para a vida, embora perma-
necessem ainda sem compreen-
der – o que era a fome para elas? 
–, deixavam escapar no brilho dos 
olhos indagadores algo dos tem-
pos novos, vindouros e mais pie-
dosos. Talvez, assim dizia às vezes 
o artista da fome a si mesmo, tudo 
melhorasse um pouco se ele não 
estivesse tão perto dos estábulos. 
Dessa maneira, ficaria muito fá-
cil para as pessoas optarem, sem 
mencionar que o feriam e cons-
tantemente o deprimiam os vapo-
res dos estábulos, a inquietação 
dos animais à noite, o transporte 
33
dos pedaços de carne crua para 
os carnívoros, os gritos enquan-
to eram alimentados. Mas não se 
atrevia a falar com a direção; afi-
nal, devia aos animais a multidão 
de visitantes, entre os quais, aqui 
e ali, era possível encontrar um 
destinado a ele; e sabe-se lá onde 
o esconderiam se resolvessem se 
lembrar de sua existência e, por-
tanto, também do fato de que ele, 
a bem da verdade, era apenas um 
obstáculo no caminho até os está-
bulos.
Aliás, um pequeno obstáculo, 
um obstáculo cada vez menor. 
As pessoas acostumaram-se à pe-
culiaridade de querer chamar a 
34
atenção para um artista da fome 
nos dias de hoje, e esse hábito decla-
rou a sentença contra ele. Poderia 
jejuar o quanto quisesse, e de fato 
era o que fazia, mas nada mais 
poderia salvá-lo; as pessoas não 
mais paravam diante dele. Tente 
explicar a arte da fome para al-
guém! Não é possível explicá-la a 
quem não a sente. As belas placas 
ficaram sujas e ilegíveis, foram 
arrancadas, e a ninguém ocor-
reu substituí-las; a tabuinha com 
o período passado em jejum, que 
no início era cuidadosamente re-
novada todos os dias, por muito 
permaneceu a mesma, porque, 
depois das primeiras semanas, os 
35
funcionários se cansaram até mes-
mo desse trabalhinho; e assim o 
artista da fome continuou jejuan-
do, como no passado havia sonha-
do, e conseguiu sem nenhum es-
forço, como havia previsto, mas 
ninguém contava os dias; nin-
guém, nem mesmo o próprio artis-
ta da fome, sabia o quanto já era 
grande sua conquista, e seu cora-
ção se encheu de pesar. E, quan-
do uma vez certo desocupado pa-
rou, zombou do antigo número e 
falou de fraude, foi, nesse sentido, 
a mentira mais estúpida que a in-
diferença e a maldade inata pude-
ram inventar, porque o artista da 
fome não ludibriava, trabalhava 
36
honestamente, mas o mundo bur-
lava a recompensa dele.
Mas muitos dias se passaram de 
novo, e isso também terminou. Cer-
ta vez, um supervisor observou a 
jaula e perguntou aos empregados 
por que deixaram sem uso e com 
palha podre aquele espaço em tão 
boas condições. Ninguém sabia, até 
que alguém se lembrou do artista 
da fome por conta da tábua com os 
números. Reviraram a palha usan-
do varas e lá o encontraram.
— Ainda está jejuando? — per-
guntou o supervisor. — Quando 
vai enfim parar?
— Peço perdão a todos vocês 
— sussurrou o artista da fome; 
37
apenas o supervisor, que encostou 
o ouvido nas grades, o entendeu.
— Claro — disse o supervisor, 
girando o dedo ao lado da têmpo-
ra para indicar a condição do ar-
tista da fome aos funcionários —, 
nós o perdoamos.
— Sempre quis que vocês ad-
mirassem meu jejum — comentou 
o artista da fome.
— Nós admiramos — garantiu 
o supervisor de um jeito amável.
— Mas não deviam admirá-lo 
— rebateu o artista da fome.
— Bem, então não admiramos 
— disse o supervisor. — Mas por 
que não deveríamos admirá-lo?
— Porque preciso jejuar, não 
38
consigo evitar — respondeu o ar-
tista da fome.
— É o que se vê — comentou o 
supervisor. — Por que não conse-
gue evitar?
— Porque eu — disse o artis-
ta da fome, erguendo um pouco 
a cabeça e falando ao ouvido do 
supervisor com lábios contraídos, 
como se preparasse um beijo, para 
que nada se perdesse —, porque 
eu não consegui encontrar uma 
comida que me apetecesse. Se a 
tivesse encontrado, acredite em 
mim, não teria causado um rebu-
liço e teria abarrotado meu estô-
mago, como fazem você e todos 
os outros.
39
Essas foram as últimas pala-
vras, mas ainda havia em seus 
olhos opacos a convicção firme, 
ainda que não mais orgulhosa, de 
que continuaria jejuando.
— Agora, deem um jeito nisso 
— disse o supervisor, e o artista 
da fome foi enterrado junto com 
a palha.
Mas puseram uma jovem pan-
tera na jaula. Trouxe um fres-
cor perceptível até mesmo para 
os sentidos mais embotados ver 
aquele animal selvagem andan-
do de um lado para o outro numa 
jaula que ficara tanto tempo va-
zia. Nada lhe faltava. A comida 
de que gostava era trazida pelos 
40
guardas sem muito pensar; ela 
nem parecia sentir falta da liber-
dade; aquele corpo nobre, forni-
do com tudo o que é necessário, a 
ponto de explodir, também dava 
ares de carregar consigo a liber-
dade, que parecia estar presa em 
algum lugar entre aqueles den-
tes; e a alegria de viver jorrava de 
sua garganta com tamanha força 
que não era fácil para os especta-
dores suportá-la. Mas eles se con-
trolavam, amontoavam-se ao re-
dor da jaula e dela não queriam 
se distanciar.
Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Comunicação . . . . . . . . . . . . . . . . 
Tradução . . . . . . . . . . . . . . . . . 
Preparação . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
Revisão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
Diagramação . . . . . . . . . . . . . . . 
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