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Havia uma cidade feita de telas onde as pessoas andavam em passo lento, olhos presos a janelas que brilhavam como pequenas praças públicas. Eu me acostumei a caminhar por ali com um caderno no bolso, coletando nomes e sorrisos como se fossem conchas à beira de um mar de luz. Foi num desses dias que conheci Helena — ou melhor, a ideia de Helena, porque a pessoa real por trás do perfil nunca apareceu na minha frente. Havia apenas a imagem construída: cabelos que sempre caíam no ângulo exato, pratos minimalistas, um gato que parecia posado por um maquiador invisível. Helena me sorriu por entre pixels e contratos. Ela era perfeitamente necessária e, ao mesmo tempo, totalmente dispensável. A cidade digital reinventa a solidão como espetáculo. Influencers surgem como faróis, cada um prometendo uma rota segura para quem se sente à deriva. Mas alguns desses faróis não iluminam nada além de si mesmos — acendem para vender esperança em potes e pacotes. Helena vivia nesse limiar. Suas postagens tinham a cadência de um roteiro calculado: início sugestivo, clímax de produto, desfecho com call to action. Havia um ensaio simétrico da vida, uma coreografia de autenticidade com passos ensaiados. Foi só quando comecei a notar a repetição que percebi: a autenticidade estava em promoção. As pessoas que seguiam Helena falavam com devoção de uma intimidade que parecia ter preço de varejo. Comentários cheios de afeto repetiam frases estudadas, e as curtidas caíam feitas chuva programada. Certo dia, encontrei um fornecedor de “engajamento” numa cafeteria; ele tinha as mãos marcadas por cliques e o olhar de quem negocia ecos. Explicou, com a naturalidade de um padeiro, que podia transformar qualquer perfil num microcosmo de influências: seguidores de acordo com a paleta desejada, interações sincronizadas e reviews prontos para uso. Para ele, Helena era um produto bem embalado que havia encontrado seu público. Não havia, ali, maldade; apenas um mercado que aprendeu a mascarar suas intenções. Decidi seguir a trilha dos bastidores. As mensagens privadas que supostamente vinham de fãs vinham de contas vazias com nomes de fantasia. Os stories “autênticos” eram roteirizados por equipes que mediam risos com cronômetro. Quando Helena publicou um vídeo sobre doação a uma ONG, descobri que o link redirecionava para uma landing page onde um parceiro comercial recolhia dados. A narrativa de empatia fora convertida em lead. A descoberta me deixou com um gosto metálico na boca, como se tivesse engolido uma peça de teatro junto com as verdadeiras intenções. Mas nem tudo ali era vilania. Havia nuances como as de uma novela onde cada personagem escolhe seu papel: alguns buscavam relevância porque acreditavam que a representatividade precisava de rosto; outros inventavam-se por despesa, por medo de não ser visto. A cidade de telas oferece a ilusão de pertencimento, e muitos pagam o preço que é a própria identidade. O que me inquietava não era simplesmente a falsidade técnica — bots, compra de seguidores, legendas terceirizadas — era o gesto de transformar desejo humano em mercadoria sem aviso: o consumo da aspiração. Certa noite, assisti a um encontro de microinfluencers em um bar cuja fachada continha mais selfies do que clientes. Conversamos, bebemos, e uma das participantes, chamada Lúcia, contou que começara a montar uma persona porque sua timidez não permitia aparecer tal como era. “Eu criei uma Lúcia corajosa”, disse, rindo e chorando ao mesmo tempo. Sua história me fez pensar que a linha entre arte e fraude é tênue: todos dramatizamos aspectos de nós para sermos aceitos. O problema surge quando a performance deixa de ser um recurso criativo e vira moeda corrente — quando a mentira se normaliza e passa a moldar expectativas reais. No final, visitei o estúdio onde Helena — ou seus gerentes — produziam o feed perfeito. Havia equipamentos, scripts, planilhas com horários de publicação e uma odor de café frio. Sentei-me numa cadeira e olhei para a tela onde rodavam comentários automáticos; era um coro sem rosto que repetia práxis. Ali entendi uma coisa simples e devastadora: quando a verdade é moeda rara, pessoas passam a trocar sua credibilidade por curtidas rápidas. A consequência não é apenas individual; é coletiva. Crê-se em recomendações que não foram testadas, gasta-se em promessas que não foram cumpridas, e uma confiança cívica — essa matéria frágil — vai se desgastando. Saí dali com o caderno mais pesado. Não por documentos ou provas, mas pela sensação de que a cidade de telas precisava de outro tipo de comércio: o da franqueza. Imagino um lugar onde a pessoa que aparece se responsabiliza pelo que indica, onde transparência não seja um termo técnico mas uma ética cotidiana. Isso implicaria regras, sim, e um esforço coletivo por educação midiática. Mas, acima de tudo, significaria valorizar a voz humana que não se traduz em unidades de engajamento. Enquanto caminho, ainda encontro Helensas e Lúcias — espectros e corpos que disputam espaço entre histórias verdadeiras e ensaiadas. Algumas resistem; outras se perdem. Resta a quem observa decidir se prefere o brilho fácil ou a textura de uma narrativa que demora para crescer. A cidade de telas continua a brilhar, mas aprendi a olhar por entre os reflexos, buscando sinais de vida que não estejam à venda. Talvez um dia, entre cliques e anúncios, aprendamos a sentir de novo aquilo que não se compra: a confiança. PERGUNTAS E RESPOSTAS 1) O que caracteriza um "fake influencer"? Resposta: Perfil que simula audiência ou autenticidade — por bots, compra de seguidores ou conteúdo roteirizado sem transparência. 2) Quais os riscos para quem segue esses perfis? Resposta: Perda de confiança, consumo de produtos ineficazes, exposição de dados e influência indevida em comportamentos. 3) Como identificar sinais de falsidade? Resposta: Picos artificiais de seguidores, comentários genéricos, falta de interação genuína e promoções excessivas sem contexto. 4) Há consequências legais para fake influencers? Resposta: Sim — publicidade enganosa e uso indevido de dados podem gerar sanções civis e administrativas. 5) Como promover maior transparência nas redes? Resposta: Educação midiática, exigência de disclosure em parcerias e plataformas cobrando verificação de métricas.