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Resenha: Contabilidade de empresas de alimentos orgânicos — entre a terra e o balanço Há uma poesia discreta nas prateleiras de um mercado orgânico: rótulos que prometem origem, solos que sussurram práticas antigas e preços que carregam o peso de uma escolha consciente. Traduzir essa poesia em números é o desafio central da contabilidade para empresas de alimentos orgânicos. Não se trata apenas de registrar entradas e saídas; é preciso capturar a história viva de sementes, ciclos sazonais e certificações, mantendo a fidelidade à técnica contábil e à narrativa de sustentabilidade que o consumidor espera. A contabilidade dessas empresas exige um olhar que seja ao mesmo tempo agrônomo e analítico. Do ponto de vista técnico, aparecem questões como avaliação de ativos biológicos (plantios, cultivos, animais), custeio de estoques perecíveis, controle de lotes e rastreabilidade, e contabilização de custos de certificação orgânica. Do ponto de vista narrativo, a empresa precisa traduzir em demonstrações financeiras a proposta de valor intangível — confiança, transparência, respeito ao ciclo natural — sem sacrificar rigor fiscal ou gestão eficiente. Produtos orgânicos convivem com sazonalidade intensa. Isso impõe desafios para estimar estoques e perdas: um excedente de colheita pode apressar promoções com descontos que corroem margens, enquanto uma safra ruim amplia custos unitários. Métodos de avaliação de estoque como FIFO ou média ponderada devem ser escolhidos considerando perecibilidade e rotatividade; a opção afeta diretamente o custo das vendas e a imagem de rentabilidade. Além disso, as empresas devem adotar mecanismos precisos de controle de lote para garantir rastreabilidade — requisito tanto para certificadoras quanto para o consumidor — e para isolar eventuais contaminações ou devoluções. Ativos biológicos, tratados pela norma contábil internacional IAS 41 (Adota-se, no Brasil, o arcabouço do CPC), introduzem outro olhar: a característica dinâmica desses ativos — crescimento, transformação, maturação — exige avaliação por valor justo, quando aplicável, ou por custo menos depreciação quando a mensuração por valor justo é impraticável. Isso implica que ganhos e perdas decorrentes de variações biológicas impactam diretamente o resultado, criando volatilidade que requer explicações transparentes nas notas explicativas. As certificações orgânicas representam um capítulo à parte. Custos de auditorias, adequação de processos e manutenção de registros costumam ser recorrentes e, em regra, são apropriados como despesas do período. Porém, investimentos em infraestrutura (como câmaras de frio, sistemas de rastreabilidade eletrônica ou adaptações produtivas) podem e devem ser capitalizados e depreciados conforme o regime fiscal e as políticas contábeis. A separação clara entre custos operacionais de certificação e investimentos é crucial para análises de retorno e para justificar preços premium. Tributação e incentivos fiscais compõem a paisagem: empresas de pequeno porte muitas vezes se enquadram no Simples Nacional, com regras próprias sobre tributação de receitas. Em outros casos, é preciso mapear créditos de PIS/COFINS, ICMS sobre insumos e eventuais benefícios regionais ou programas de fomento à agroecologia. Uma contabilidade pró-ativa busca identificar incentivos fiscais, linhas de crédito para agricultura familiar e programas de fomento que reduzam custos financeiros e promovam sustentabilidade. No campo do controle interno, a contabilidade de alimentos orgânicos beneficia-se enormemente da tecnologia. Sistemas ERP com módulos agrícolas, controle por lote, integração com sensores de campo e aplicativos de certificação reduzem discrepâncias e aumentam a confiabilidade dos dados. A adoção de práticas de governança, políticas de compliance ambiental e manuais de procedimentos fortalece a confiança de investidores, certficadoras e consumidores. Crítica e recomendações: a contabilidade do setor ainda padece de duas fragilidades recorrentes. Primeiro, subestimação da volatilidade inerente aos ativos biológicos nas demonstrações, suavizando oscilações que deveriam ser explicadas. Segundo, tratamento homogêneo de custos de certificação e marketing verde, confundindo despesas estratégicas com gastos operacionais. Recomenda-se: a) políticas contábeis claras e alinhadas às normas CPC/IFRS para ativos biológicos; b) segregação de custos de certificação, marketing e investimentos em relatórios gerenciais; c) adoção de sistemas de rastreabilidade integrados; d) divulgação robusta nas notas explicativas sobre práticas sustentáveis, metodologia de mensuração e riscos sazonais. Em suma, a contabilidade de empresas de alimentos orgânicos é um ofício híbrido — técnico e ético. Ela não apenas mede o desempenho econômico, mas também dá voz à origem dos produtos e ao compromisso ambiental. Quando bem-feita, transforma a delicada história da produção orgânica em relatórios que informam, seguram expectativas e preservam a confiança, sem despojar a terra do encanto que inspira o consumidor. PERGUNTAS E RESPOSTAS 1) Quais são os maiores riscos contábeis do setor? R: Volatilidade por ativos biológicos, perdas por perecibilidade, falhas na rastreabilidade e confusão entre custos de certificação e investimentos. 2) Como mensurar ativos biológicos? R: Pela norma aplicável (CPC/IAS 41): preferencialmente valor justo menos custos de venda; se impraticável, custo menos depreciação. 3) Custos de certificação são capitalizáveis? R: Em geral, as auditorias e taxas são despesas; investimentos em infraestrutura relacionados podem ser capitalizados e depreciados. 4) Qual método de estoque é mais indicado? R: FIFO ou média ponderada, escolhidos conforme perecibilidade e rotatividade; decisão deve ser consistente e justificada nas políticas contábeis. 5) Que controles reduzem riscos fiscais e operacionais? R: ERP integrado com rastreabilidade por lote, segregação de custos, políticas de compliance e demonstrações transparentes nas notas explicativas.