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Havia uma mesa de carvalho no fim do corredor do ministério onde antigos mapas amarelados se sobrepunham a relatórios digitais. A janela dava para a cidade, e eu observava — não como um técnico distante, mas como alguém que cresceu ouvindo histórias de fronteiras que mudavam com canções e guerras, de promessas diplomáticas que se desfaziam como neblina. Nessa sala, em uma manhã de chuva, percebi que a política global não é apenas uma sucessão de crises e tratados; é uma narrativa contínua escrita por escolhas éticas, interesses económicos e imaginações coletivas. Começo esta crônica com a imagem de uma embaixadora que perdeu a paciência: cansada de ver reuniões multilaterais transformarem-se em jogos de poder, ela bateu na mesa e pediu clareza. A reação foi uma mistura de constrangimento e alívio. Foi um gesto pequeno numa cena vasta, mas revelou uma verdade contundente — estruturas globais sobrevivem quando há coragem para reformá-las. A política global, então, é um palco onde atores diversificados ensaiam presença, mas nem sempre assumem responsabilidade. É narrativa viva, com protagonistas e figurantes, onde cada ato repercute além do horizonte de quem o protagoniza. Narrar a geopolítica contemporânea é narrar a ascensão de múltiplas vozes que disputam hegemonias, narrar também a persistência das desigualdades que se disfarçam em acordos técnicos. Ao redor do mundo, economias que ontem eram periféricas reinventam-se como centros; alianças emergem por conveniência e valores, e antigas certezas se dissolvem. Essa transformação poderia ser celebrada se viesse acompanhada de justiça: no entanto, frequentemente encontramos um sistema que perpetua privilégios por meio de regras desenhadas por quem já detém vantagem. A narrativa que proponho não aceita esse desfecho como inevitável. É preciso disputar a história. Há um elemento íntimo nessa disputa — a percepção de que decisões tomadas em Washington, Pequim, Bruxelas ou em capitais emergentes alteram vidas concretas: afetam o preço do alimento, a estabilidade de um lar, a possibilidade de migrar sem risco, o futuro climático de uma criança. Transformar essa percepção em ação é objetivo persuasivo deste editorial. Ao escrever sobre política global, proponho que os leitores deixem de vê-la como algo distante e comecem a reconhecer nela um tecido de responsabilidades compartilhadas. A retórica política, por admirável que seja, não substitui políticas que reduzam desigualdades, protejam o planeta e defendam direitos. As crises climáticas, por exemplo, contam uma história que ultrapassa fronteiras. Suas narrativas locais — enchentes, secas, migrações — dialogam com decisões globais sobre emissões e finanças verdes. A justiça climática exige que a narrativa considere quem contribuiu menos para o problema e sofre mais por suas consequências. Do mesmo modo, o avanço tecnológico revela outra trama: a inteligência artificial, as redes sociais e a vigilância alteram dinâmicas de poder; podem ampliar vozes marginalizadas ou cristalizar abismos de influência. Pergunto-me, então: queremos um mundo onde algoritmos definam destinos sem supervisão democrática? É essencial ressaltar que instituições multilateralistas não são relicários estanques: são espaços em construção. Reformá-las não é plantar uma bandeira de ingenuidade; é tarefa pragmática para garantir relevância e legitimidade. A narrativa que defendo propõe regras claras sobre transparência, representatividade e mecanismos de correção quando o poder se corrompe. Assim, a política global deixa de ser um palco para performances vazias e passa a ofertar resultados mensuráveis. O tempo das retóricas infindáveis deve ceder ao tempo das soluções eficazes. Ao mesmo tempo, é necessário reconhecer limites. A soberania dos Estados não pode ser suprimida em prol de um ideal abstrato, e políticas externas precisam dialogar com identidades culturais e aspirações locais. Persuadir, neste contexto, não significa homogeneizar, mas construir pontes sagazes entre o respeito ao diverso e a promoção de bens públicos globais — desde saúde até segurança alimentar. A narrativa ética que proponho combina prudência com ambição: ambição de reescrever regras de pesca, de comércio, de tecnologia; prudência em escutar e doar espaço a vozes diversas. Por fim, deixo um apelo direto ao leitor: a política global é feita de escolhas cotidianas. Consumo, voto, mobilização comunitária e pressão por transparência são fios que tecem a história internacional. Não se trata de delegar a responsabilidade apenas a diplomatas ou especialistas. Toda democracia se fortalece quando seus cidadãos entendem que “o externo” começa dentro de casa. A transformação desejada exige que sejamos narradores atuantes — capazes de contar e recontar uma história que privilegie equidade, sustentabilidade e democracia. Se fecharmos a janela daquela sala de carvalho, levemos conosco a imagem da embaixadora que bateu na mesa. Que seu gesto inspire coragem institucional e cidadã. A política global, em suma, pode ser um recurso de prosperidade comum ou um espelho que reflete desigualdades. A escolha está nas ações que escolhemos narrar e nas instituições que aceitaremos transformar. Esta é a hora de escrever uma narrativa onde o “global” signifique compartilhamento de responsabilidades, e não apenas disputa por interesses. E que cada leitor, ao sair ao seu mundo local, leve consigo essa responsabilidade. PERGUNTAS E RESPOSTAS: 1) O que explica a transição para um mundo multipolar? Resposta: Crescimento econômico de países emergentes, dispersão tecnológica e busca por autonomia estratégica criam múltiplos centros de poder. 2) Multilateralismo ainda é eficaz? Resposta: É necessário, porém exige reformas para maior representatividade, transparência e mecanismos de execução vinculantes. 3) Como a política global pode enfrentar a crise climática? Resposta: Através de financiamento justo, transferências tecnológicas, metas ambiciosas e políticas locais alinhadas a planos globais. 4) Qual o papel da tecnologia nas relações internacionais? Resposta: Amplia influência e vigilância; exige regulação conjunta para proteger direitos, combater desinformação e garantir equidade. 5) Como cidadãos influenciam a política global? Resposta: Por voto, pressão pública, consumo consciente e participação em redes que exigem transparência e responsabilidade dos governos.