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1 Laços entre a África e o mundo atlântico durante a era do comércio de africanos escravizados: Uma introdução Carlos Liberato Mariana P. Candido Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France O envio forçado e sistemático de mais de doze milhões de africanos para as Américas transformou profundamente tanto as regiões que receberam a mão de obra escrava como as sociedades africanas direta ou indiretamente atingi- das pelo comércio de escravos. No início, as nações europeias transportaram muitos africanos escravizados para os espaços metropolitanos, mas o desen- volvimento das atividades produtivas nas ilhas atlânticas e colônias america- nas fizeram com que o grosso do tráfico fosse desviado para estas regiões.1 1 A partir de meados do século XVI, a presença africana tornou-se signiicativa em alguns paí- ses europeus. Ainda que em grande parte fossem escravos, muitos africanos ou residiam na Europa por vontade própria (como comerciantes, estudantes, diplomatas, etc.) ou tinham al- cançado a liberdade depois de desembarcados (permanecendo no continente como trabalha- dores livres). Segundo as estimativas, havia cerca de 100 mil indivíduos de origem africana na Espanha, 40 mil em Portugal, 10 mil na Grã-Bretanha e 4 mil na França. Ver Norma Myers, Reconstructing the Black Past: Blacks in Britain, 1780-1830 (Londres: Frank Cass, 1996), 6; Sue Peabody, “There are no Slaves in France”: The Political Culture of Race and Slavery in the Ancien Régime (Nova York: Oxford University Press, 1996), 4; A. C. de C. M. Saunders, Carlos Liberato, Mariana P. Candido, Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France 2 Assim, a escravidão africana firmou-se como a base do sistema colonial em territórios muito distintos, como Cabo Verde, São Tomé, Brasil, Cuba, Peru, México, Santo Domingo, Colômbia ou Jamaica. As interações entre a África, as Américas e a Europa que, durante quase quatro séculos estiveram funda- mentadas no comércio de africanos escravizados, também ajudaram a dar for- ma aos parâmetros ideológicos e às divisões sociais que caracterizam o mundo contemporâneo. A escravidão atlântica e os movimentos para a sua abolição no século XIX tornaram-se aspectos fundamentais para a constituição de identi- dades individuais e coletivas que despontaram ao longo do século XX nos três continentes. No século XXI, essas identidades, formadas num contexto de im- perialismo e colonialismo europeu, estão sendo revistas e atualizadas para dar lugar às vozes que exigem o reconhecimento dos crimes praticados contra os africanos e seus descendentes, bem como a implementação das consequentes e necessárias políticas de reparação. No entanto, antes de mais nada, é preciso reconhecer o peso que o passado exerce sobre o presente. Tráfico, escravidão e abolição deixaram rastros de racismo e divisões sociais que permanecem sólidos no mundo atlântico de hoje. É por isso que esses temas continuam a suscitar debates na Europa, na África e nas Américas, com fortes repercussões nas políticas de inclusão ou exclusão das chamadas minorias sociais. O comér- cio e o transporte compulsório de africanos escravizados continuam a atrair a atenção do público não especializado e de especialistas em simpósios, confe- rências e projetos de investigação no campo das ciências humanas e sociais e têm como intuito discutir as possíveis soluções para os problemas relacionados à desigualdade, aos direitos humanos, à independência econômica e à identida- de africana e afrodescendente. O objetivo desse ensaio introdutório é o de apresentar uma síntese dos dados relativos ao movimento forçado de africanos através do Atlântico. Esse trabalho é essencial por dois motivos. Primeiro porque novas e importantes descobertas a respeito do volume do comércio transatlântico de africanos escravizados vieram à tona recentemente e, hoje, é possível alcançar uma visão muito mais completa do que a de uns poucos anos atrás. Segundo porque conhecendo em maior de- talhe a origem, o destino e as quantidades dos africanos em seu movimento de dispersão pelo mundo atlântico é possível compreender como foram criados os A Social History of Black Slaves and Freedmen in Portugal, 1441-1555 (Nova York: Cam- bridge University Press, 1982); Charles Larquié, “Les esclaves de Madrid à l’epoque de la decadence, 1650-1700”, Revue Historique 495 (1970): 47; e Charles Verlinden, L’esclavage dans l’Europe médiévale (2 vols., Gent: Rijksuniversiteit te Gent, 1977), II, 873 e 1021. Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos 3 laços que uniram os destinos individuais e coletivos das pessoas de certas partes da África com aqueles das da Europa, das Américas e das ilhas atlânticas.2 A partir de uma perspectiva regional podemos examinar os padrões migratórios da África e, com isso, apresentar algumas das diferenças encontradas entre as várias regiões, especialmente entre a África Ocidental e a Centro-Ocidental.3 Após a publicação de inúmeros estudos sobre as dimensões e a direção do tráfico, agora parece claro que existiram essencialmente dois sistemas de co- mércio de africanos escravizados: um no Atlântico Norte – centrado na região caribenha que, além das ilhas, incluía a América do Norte, os territórios sob do- mínio espanhol e, em muito menor escala, a Amazônia portuguesa –, e o outro, o Atlântico Sul que enlaçava principalmente a África Centro-Ocidental ao Brasil. Os padrões de comércio eram marcadamente diferentes entre os dois “sistemas”. O comércio que cruzava o Atlântico a norte do Equador transportava uma popu- lação escravizada muito mais diversificada regional e etnicamente que aquele do sul – quase exclusivamente ocupado com povos centro-africanos. Os estudos demográficos sobre o comércio atlântico de africanos escraviza- dos foram fortemente influenciados pela publicação em 1969 do livro de Philip D. Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census. Curtin mostrou que as estima- tivas existentes até então eram uma herança das sínteses produzidas no século XIX e que os dados apresentados por centenas de novas monografias não tinham sido capazes de corrigi-las. Essa situação dava margem a que se pensasse que as dimensões quantitativas do comércio de escravos ou eram bem conhecidas ou não poderiam ser conhecidas de todo. Assim, as estimativas disponíveis apresen- tavam variações que iam 15 a 25 milhões de escravos desembarcados nas Amé- ricas durante todo o período do tráfico atlântico.4 Em sua própria síntese e apesar de considerar existirem ainda muitos “buracos” nos dados, Curtin chegou à con- clusão de “é muito pouco provável que o total verdadeiro [de africanos desem- barcados nas Américas] será menor que 8.000.000 ou maior que 10.500.000”.5 2 Ver Gwendolyn Midlo Hall, Slavery and African Ethnicities in the Americas: Restoring Links (Chapel Hill: North Carolina Press, 2005). 3 Ver David Eltis e David Richardson, “A New Assessment of the Transatlantic Slave Trade”, in David Eltis e David Richardson, eds., Extending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave Trade Database (New Haven: Yale University Press, 2008). 4 Ver Philip D. Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census (Madison: Wisconsin University Press, 1969), xvi. 5 Philip D. Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census, 87. Carlos Liberato, Mariana P. Candido, Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France 4 Apesar das numerosas modificações feitas aos números parciais apre- sentados por Philip Curtin, suas estimativas do total de importações nas Américas são impressionantemente acertadas.6 O estudo de Curtin também serviu para lançar um desafio aos pesquisadores do mundo inteiro no sen- tido da descoberta do volume real do tráfico. Mais ainda: o entendimento dos padrões dessa migração forçada ajuda a análise do desenvolvimento interno das sociedades africanas durante a era do comércio atlântico de es- cravos ao relacionar o volume das exportações às conjunturas locais.7 Con- siderando-se que os29 em sua luta constante pela sobrevivência e autonomia, adotaram uma com- binação de estratégias africanas e outras americanas para fortalecer as lide- ranças. Entretanto, essa não foi a única estratégia disponível para escravos resistirem a opressão da escravidão. Renée Soulodre-La France explora as conexões históricas e comerciais entre a região da Alta Guiné e a Nova Granada no século XVII. Ao fazer uso de relatos dos tribunais do Santo Ofício, Soulodre-La France identifica o envio e consumo de noz de cola no que hoje seria a Colômbia e oferece novas perspectivas para o papel dos africanos como influentes na dispersão de novas práticas medicinais e de hábitos de consumo. Na parte final, os capítulos de Mariana Candido, Robin Law, Elisée Soumoni e Paul Lovejoy nos trazem de regresso à África. Através da aná- lise de uma comerciante de Benguela no final do século XVIII e começos do século XIX, Mariana Candido discute a atuação das mulheres africanas nas redes comerciais que ligavam o porto de Benguela ao mundo Atlântico e aos sobados localizados no interior da África Centro-Ocidental. Robin Law investiga a carreira comercial do famoso comerciante de escravos Francisco Félix de Souza, entre 1800 e 1849, no Reino do Daomé. As ati- vidades de Souza iam desde o comércio de escravos até as intrigas políti- cas para garantir benefícios para si, sua família e associados. Continuando na mesma região, Elisée Soumonni compara a formação das comunidades afro-brasileiras em Ajudá e Lagos em meados do século XIX. Sendo com- binações de traficantes de escravos e ex-escravos africanos que retornaram à África, essas comunidades atestam a complexidade dos laços multilate- rais criados durante a era do comércio atlântico de africanos escravizados. Soumonni e Law mostram como a chegada dos retornados alterou o cená- rio político e comercial dessa zona da África Ocidental e como as comu- nidades que aí formaram se acomodaram ao contexto africano graças ao seu hibridismo cultural. Os brasileiros retornados adaptaram-se às socieda- des costeiras sem renunciar à sua identidade atlântica. No último capítulo dessa coleção Paul Lovejoy reconsidera a origem de Catherine Mulgrave- Zimmermann, destacando os problemas metodológicos que historiadores encontram ao estudar biografias de agentes africanos durante o período do comércio transatlântico de escravos. A coleção Laços Atlânticos reúne ensaios sobre as conexões entre a África e o mundo atlântico e traz questões que interessam a todos aqueles que se interessam pela história da escravidão africana. As contribuições Carlos Liberato, Mariana P. Candido, Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France 30 desse volume refletem o debate mais recente de um leque variado de es- pecialistas residentes nas Américas, África e Europa. Como não poderia ser de outra forma, a complexidade dos temas tratados exigiu o uso de métodos e fontes diversas. Em comum, os capítulos dessa coleção evitam uma percepção reducionista do Atlântico como uma extensão da Europa. Os colaboradores desse volume vão muito mais além e não só mostram as sobrevivências culturais africanas nas Américas mas também como os afri- canos, apesar de restrições de toda sorte, tiveram um papel decisivo no de- senvolvimento socioeconômico das sociedades atlânticas. Esperamos que os capítulos desse volume possam indicar novos caminhos para pesquisas futuras que procurem mostrar a importância de incluir a participação da África e dos africanos em qualquer estudo sério sobre o mundo Atlântico.escravos eram uma mercadoria peculiar, que constituía tanto uma perda de força de trabalho para as sociedades locais como um produto cujo valor podia ser trocado no mercado internacional, sua expor- tação distorceu o processo histórico africano de uma maneira igualmente peculiar. Vários pesquisadores tentaram analisar a natureza dessa distor- ção. Walter Rodney viu esse processo em termos de subdesenvolvimento, onde a sangria demográfica seria o elemento essencial da estagnação téc- nica e das distorções das economias africanas pré-coloniais.8 John D. Fage enfatizou as repercussões políticas e econômicas do tráfico mas, ao mesmo tempo, procurou minimizar o peso de suas consequências demográficas no desenrolar da história africana.9 Joseph Inikori argumentou que o comércio de escravos retardou o desenvolvimento econômico, apontando as graves perdas demográficas como o fator central.10 Paul Lovejoy relacionou o co- 6 Ver Paul E. Lovejoy, “The Volume of the Atlantic Slave Trade: A Synthesis”, Journal of African History 23 (1982): 473. 7 Ver, por exemplo, para uma análise desse impacto, Edward Reynolds, Stand the Storm: A History of the Atlantic Slave Trade (Nova York: Allison & Busby, 1985). 8 Walter Rodney, How Europe Underdeveloped Africa (Londres: Bogie-L’Overture Publications, 1972). 9 Ver John D. Fage, A History of Africa (Londres: Hutchinson, 1978), 244-288; e, do mesmo autor, “Slavery and the Slave Trade in the Context of West African History”, Journal of African History 10, 3 (1969): 393-407. 10 Joseph E. Inikori, “Introduction”, in Joseph E. Inikori, ed., Forced Migration: The Impact of the Export Slave Trade on African Societies (Londres: Hutchinson, 1981), 20; Joseph E. Inikori, “Measuring the Atlantic Slave Trade: An Assessment of Curtin and Anstey”, Journal of African History 17, 2 (1976): 197-223; Joseph E. Inikori, “Measuring the Atlantic Slave Trade: A Rejoinder”, Journal of African History 17, 4 (1976): 607-627; e Joseph E. Inikori, “The Origin of the Diaspora: The Slave Trade from Africa”, Tarikh 5, 4 (1978): 8. Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos 5 mércio de exportação de escravos à consolidação de um modo de produção baseado na escravidão na própria África.11 Em 1999, trinta anos depois da publicação do livro de Curtin, um gru- po liderado por David Eltis, Stephen Behrendt, David Richardson e Herbert Klein, tornou público uma base de dados em CD-Rom contendo informa- ções sobre aproximadamente 27 mil viagens de navios negreiros através do Atlântico.12 Cerca de dez anos depois, e graças ao trabalho de uma equipe internacional, uma nova versão da base de dados foi disponibilizada online sob o título de Voyages: The Transatlantic Slave Trade Database. Nela estão contidas informações sobre mais de 35 mil viagens ocorridas entre os sécu- los XVI e XIX, nas quais 12.521.336 africanos foram embarcados à força. Estima-se que, destes, 10.702.656 chegaram vivos ao seu porto de destino.13 Em relação às quantidades de africanos escravizados transportados por cada um dos países envolvidos no comércio transatlântico, estima-se que os navios de bandeira portuguesa e, depois de 1822, também brasileira foram responsáveis pelo embarque nos portos africanos de 5.848.265 indi- víduos ou 46,7 por cento do total. Em segundo lugar aparecem os navios de bandeira britânica que transportaram 3.259.440 africanos escravizados, perfazendo 26 por cento de todos os embarques estimados. Bem próxi- mos uns dos outros, encontram-se os navios franceses, que embarcaram 1.381.404 pessoas (ou 11 por cento) e os de bandeira espanhola / uruguaia, que deixaram a África com 1.061.524 indivíduos a bordo (ou 8,4 por cento do total). Os demais 7,9 por cento foram embarcados em navios de bandei- ra holandesa, norte-americana e dinamarquesa / portos do Báltico. 11 Paul Lovejoy, Transformations in Slavery: A History of Slavery in Africa (Nova York: Cambridge University Press, 1983). 12 Ver David Eltis, Stephen Behrendt, David Richardson e Herbert Klein, eds., The Atlantic Slave Trade: A Database on CD-Rom (Cambridge: Cambridge University Press, 1999). 13 Ver Eltis et al., Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em: www. slavevoyages.org. Último acesso: 22/05/2015. Deve ser notado o fato de que as estimativas totais, como era de esperar-se, diferem dos números absolutos da base de dados. Desse modo, os números absolutos mostram um total de 10.147.907 indivíduos embarcados (em 33.366 viagens) e 8.752.593 desembarcados (em 33.047 viagens), descontando-se as perdas causadas por todo tipo de infortúnios, desvios e apreensões que, de alguma maneira, impediram os navios de deixarem a África ou de completarem a viagem. Segundo as estimativas, cerca de 10.800 africanos foram embarcados para a Europa e outros 178.900 indivíduos foram destinados a outras regiões do continente africano. Carlos Liberato, Mariana P. Candido, Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France 6 Tabela 1 Africanos embarcados segundo a bandeira dos navios, 1501-1866 Espanha / Uruguai Portugal / Brasil Grã- Bretanha Holanda E.U.A França Dinamarca / Báltico Total 1501-1525 6.363 7.000 0 0 0 0 0 13.363 1526-1550 25.375 25.387 0 0 0 0 0 50.763 1551-1575 28.167 31.089 1.685 0 0 66 0 61.007 1576-1600 60.056 90.715 237 1.365 0 0 0 152.373 1601-1625 83.496 267.519 0 1.829 0 0 0 352.843 1626-1650 44.313 201.609 33.695 31.729 824 1.827 1.053 315.050 1651-1675 12.601 244.793 122.367 100.526 0 7.125 653 488.064 1676-1700 5.860 297.272 272.200 85.847 3.327 29.484 25.685 719.674 1701-1725 0 474.447 410.597 73.816 3.277 120.939 5.833 1.088.909 1726-1750 0 536.696 554.042 83.095 34.004 259.095 4.793 1.471.725 1751-1775 4.239 528.693 832.047 132.330 84.580 325.918 17.508 1.925.314 1776-1800 6.415 673.167 748.612 40.773 67.443 433.061 39.199 2.008.670 1801-1825 168.087 1.160.601 283.959 2.669 109.545 135.815 16.316 1.876.992 1826-1850 400.728 1.299.969 0 357 1.850 68.074 0 1.770.979 1851-1866 215.824 9.309 0 0 476 0 0 225.609 Total 1.061.524 5.848.265 3.259.440 554.336 305.326 1.381.404 111.041 12.521.336 Fonte: Eltis et al., Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em: . Último acesso: 22/05/2015. A Tabela 2 mostra os números relacionados à sangria demográfica repre- sentada pelo comércio de escravos segundo as regiões de embarque. Nela, po- de-se ver que a África Ocidental e a África Centro-Ocidental foram as regiões das quais a esmagadora maioria dos africanos escravizados foram levados. Moçambique, outras regiões e ilhas do Oceano Índico tiveram uma partici- pação muito menor e, especialmente, nas cinco últimas décadas do tráfico, intensificando-se durante a sua fase ilegal. Entre 1501 e 1575, o maior nú- mero de africanos escravizados originou-se nos portos da África Ocidental, em particular da região da Senegâmbia e Rios da Guiné. Nesse período, um número estimado de 112.134 escravos foram embarcados na África Ociden- tal, em comparação com o número de 12.999 deportados da África Centro-O- cidental. A partir de 1576, a proporção de escravos vendidos nos portos da África Centro-Ocidental aumentou, atingindo, no período entre 1576 e 1675, Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos 7 a 946.346 indivíduos. O século XVIII assistiu a uma impressionante expansão do comércio de escravos e esse impulso só seria refreado em 1807, quando o Parlamento Britânico decretou sua ilegalidade no Atlântico Norte. A Tabela 2 mostra que, entre 1675 e 1800, foram vendidos mais africanos escravizados nos portos da África Ocidental do que naqueles localizados na África Cen- tro-Ocidental. Os números indicam que durante o século XVIII o aumento na importação de mão de obra escrava deve-se a demanda no Caribe e não apenas ao Brasil. Nesse período, cerca de 4.5 milhões de africanos deixaram os portosda África Ocidental, enquanto pelos portos da Africa Centro-Ocidental foram exportadas 2.658.544 pessoas. No século XIX, principalmente após 1807, o tráfico atlântico voltou a concentrar-se nos portos da África Centro-Ocidental, em cujo circuito foram introduzidos os escravos provenientes de Moçambique e, em menor escala, de outras regiões do sudeste africano. Tabela 2 Africanos embarcados segundo região de origem, 1501-1866 África Ocidental África Centro-Ocidental Moçambique e África Oriental Total # % # % # % 1501-1525 12.726 95,2 637 4,8 0 0,0 13.363 1526-1550 46.538 91,6 4.225 8,4 0 0,0 50.763 1551-1575 52.870 86,6 8.137 13,4 0 0,0 61.007 1576-1600 47.493 31,1 104.879 69,9 0 0,0 152.373 1601-1625 30.379 8,6 322.119 91,3 345 0,1 352.843 1626-1650 73.781 23,4 241.269 76,6 0 0,0 315.050 1651-1675 193.352 39,6 278.079 56,9 16.633 3,5 488.064 1676-1700 411.598 57,1 293.340 40,7 14.737 2,2 719.674 1701-1725 745.580 68,4 331.183 30,4 12.146 1,2 1.088.909 1726-1750 911.581 61,9 556.981 37,8 3.162 0,3 1.471.725 1751-1775 1.264.981 65,7 654.984 34,0 5.348 0,3 1.925.314 1776-1800 1.136.340 56,5 822.056 40,9 50.274 2,6 2.008.670 1801-1825 764.656 40,7 929.999 49,5 182.338 9,8 1.876.992 1826-1850 553.553 31,2 989.908 55,8 227.518 13,0 1.770.979 1851-1866 38.664 17,1 156.779 69,4 30.167 13,5 225.609 Total 6.284.093 50,1 5.694.574 45,4 542.668 4,5 12.521.336 Fonte: Eltis et al., Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em: . Último acesso: 22/05/2015. Carlos Liberato, Mariana P. Candido, Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France 8 O fluxo do comércio estava dividido entre o Atlântico Norte e o Atlântico Sul, em parte devido aos padrões oceânicos de ventos e correntes que antes da invenção dos barcos a vapor muito influenciaram a formação de rotas comerciais.14 O comércio no Atlântico Norte envolvia portos europeus for- mando o clássico comércio triangular entre os mercados da Europa (produtos manufaturados), África (mão de obra escravizada) e Américas (açúcar, tabaco, algodão, café, cacau, minérios). O Atlântico Sul, por sua vez, era um comércio essencialmente bilateral, entrelaçando os portos da África Centro-Ocidental e os do Brasil.15 O comércio bilateral também existiu entre os portos brasilei- ros e os da África Ocidental, em particular os localizados na costa da Alta Guiné, como Cacheu e Bissau, ou na Baía do Benim, como Ajudá.16 14 Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII (São Paulo: Companhia das Letras, 2000). 15 Manolo Florentino, Em costas negras: Uma história do tráico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX (São Paulo: Companhia das Letras, 2002); Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes. A formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII (São Paulo: Companhia das Letras, 2000); José C. Curto, Álcool e escravos: O comércio Luso-Brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e Benguela durante o tráico atlântico de escravos (ca.1480-1830) e o seu impacto nas sociedades da África Central Ocidental (Lisboa: Vulgata, 2002); Mariana P. Candido, Fronteras de esclavización: Esclavitud, comercio e identidad en Benguela, 1780-1850 (Cidade do México: El Colegio de México, 2011); Arlindo Manuel Caldeira, Escravos e traicantes no império português: O comércio negreiro português no Atlântico durante os séculos XV a XIX (Lisboa: Esfera dos Livros, 2013); e Roquinaldo Ferreira, “A supressão do tráico de escravos em Angola, ca.1830-ca.1860”, História Unisinos 15, 1 (2011): 3-13. 16 Para mais sobre o assunto ver António Carreira, As companhias pombalinas de Grão- Pará e Maranhão e Pernambuco e Paraiba (Lisboa: Presença, 1983), 57; Walter Hawthorne, From Africa to Brazil: Culture, Identity, and Atlantic Slave Trade, 1600- 1830 (Cambridge University Press, 2010); Philip J. Havik, Silences and Soundbites: The Gendered Dynamics of Trade and Brokerage in the Pre-Colonial Guinea Bissau Region (Munster: LIT Verlag Münster, 2004); Gerhard Seibert, “Creolization and Creole Communities in the Portuguese Atlantic: São Tomé, Cape Verde, and the Rivers of Guinea and Central Africa in Comparison”, Proceedings of the British Academy 178 (2012): 29–51; Pierre Verger, Fluxo e reluxo do tráico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, do séculos XVII ao XIX (São Paulo: Corrupio, 1987); Robin Law, “A carreira de Francisco Félix de Souza na África Ocidental, 1800- 1849”, Topoi 2 (2001): 9-39. Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos 9 Na costa da África Centro-Ocidental as principais áreas de embarque eram Luanda e Benguela, sob domínio português, e a região do Loango e Cabinda, ao norte do rio Congo, que esteve sob domínio português, holan- dês, inglês e francês. Um olhar atento sobre o comércio atlântico indica a emergência de um modelo de comércio bilateral, onde os produtos produ- zidos e exportados da Europa não recebiam muita atenção. Os negocian- tes estabelecidos no porto de Luanda, o principal porto de embarque de africanos escravizados em todo o continente, mantinham laços estreitos com a elite comercial carioca e baiana.17 Benguela e Loango tiveram de- senvolvimento semelhante. No caso de Benguela, as correntezas marítimas e o sistema de ventos no Atlântico sul favoreceram o desenvolvimento do porto como um entreposto comercial, além de funcionar como centro de reparos e reabastecimento de navios.18 Como pode ser visto na Tabela 3, o Brasil recebeu a maioria dos afri- canos escravizados. Estima-se que, pelo menos, 4.864.373 africanos te- nham desembarcado com vida nos portos brasileiros, sem contar, é claro, 17 Ver Joseph C. Miller, Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830 (Madison: University of Wisconsin Press, 1988); Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII: Estudo sobre fontes, métodos e história (Luanda: Kilombelombe, 2007); Roquinaldo Ferreira, “Dinâmica do comércio intracolonial: Gerebitas, panos asiáticos e guerra no tráico angolano de escravos, século XVIII”, in João Luís Ribeiro Fragoso, Maria de Fátima Gouvêa e Maria Fernanda Bicalho, eds., O Antigo Regime nos trópicos: A dinâmica imperial portuguesa, séculos XVI-XVIII (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001), 339-378; Roquinaldo Ferreira, “O Brasil e a arte da guerra em Angola, sécs. XVII e XVIII”, Estudos Historicos 1, 39 (2007): 3-21; Mariana P. Candido, “South Atlantic Exchanges: The Role of Brazilian-Born Agents in Benguela, 1650-1850”, Luso-Brazilian Review 50, 1 (2013): 53-82; Mariana Candido, “Negociantes baianos no porto de Benguela: Redes comerciais unindo o Atlântico setencentista”, in Roberto Guedes, ed., África, brasileiros e portugueses, séculos XVI- XIX (Rio de Janeiro: Maud, 2013), 67-91. 18 Para maiores detalhes sobre o funcionamento do comércio de escravos na África Cen- tro-Ocidental, ver José C. Curto, “A Quantitative Reassessment of the Legal Portuguese Slave Trade from Luanda, Angola, 1710-1830”, African Economic History 20 (1992): 1-25; José C. Curto, “The Legal Portuguese Slave Trade from Benguela, Angola, 1730- 1828: A Quantitative Re-Appraisal”, África 17, 1 (1993/94): 101-16; José C. Curto, “Lu- so-Brazilian Alcohol and the Legal Slave Trade at Benguela and its Hinterland, 1617- 1830”, in Hubert Bonin, ed., Négoce blanc en Afrique Noire: L’évolution du commerce à longue distance en Afrique Noire du 18e au 20e siècle (Paris: Société Française d’Histoire d’Outre-Mer, 2001); Herbert Klein, “The Portuguese Slave Trade from Angola in the 18th Carlos Liberato, Mariana P. Candido, Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France 10 aqueles que foram introduzidos pelo contrabando ou cuja documentação tenha sido perdida. Esse número corresponde a 46,1 por cento do total de 10.538.225 de escravos desembarcados nos portos americanos. O Cari-be Britânico ocupa o segundo lugar em termos de africanos importados, com um total de 2.318.252 desembarques que correspondem a 22,1 por cento do total. Em terceiro lugar, aparece a América Espanhola onde de- sembarcaram 1.292.912 africanos vivos, perfazendo 12,3 por cento da estimativa de todos os desembarques. As colônias francesas receberam 1.120.216 escravos em seus portos, alcançando o quarto lugar com 10,6 por cento dos desembarques. Segundo essas projeções, os 942.472 afri- canos desembarcados com vida nos portos americanos equivalem a 8,9 por cento do total e foram distribuídos entre as colônias holandesas da América do Sul e do Caribe (444.727 africanos ou 4,2 por cento do total de desembarques), a América do Norte (388.747 indivíduos ou 3,6 por cento do total) e as possessões dinamarquesas no Caribe (108.998 de- sembarques ou 1,1 por cento). Century”, Journal of Economic History 32, 4 (1972): 894-918; Joseph C. Miller, “Legal Portuguese Slaving from Angola: Some Preliminary Indications of Volume and Direc- tion”, Revue Française d’Histoire d’Outre-Mer 62, 1 (1975): 135-76; Joseph C. Miller, “The Numbers, Origins, and Destinations of Slaves in the 18th Century Angolan Slave Trade”, in Joseph Inikori and Stanley E. Engerman, eds., The Atlantic Slave Trade: Effect on Economics, Societies, and People in Africa, the Americas, and Europe (Durham: Duke University Press, 1992); Roquinaldo Ferrreira, “Transforming Atlantic Slaving: Trade, Warfare and Territorial Control in Angola, 1650-1800” (Los Angeles: Tese de Doutora- do UCLA, 2003); Roquinaldo Ferreira, “The Atlantic Networks of the Benguela Slave Trade, 1730-1800, in Trabalho forçado africano – Experiências coloniais comparadas (Porto: Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2006), 67-97; e Roquinal- do Ferreira, “Atlantic Microhistories: Mobility, Personal Ties, and Slaving in the Black Atlantic World (Angola and Brazil)”, in Nancy Priscilla Naro, Roger Sansi-Roca, e David H. Treece, eds., Cultures of the Lusophone Black Atlantic (Nova York: Palgrave, 2007), 99-128; Candido, Fronteras de esclavización; Roquinaldo Ferreira, Cross-Cultural Ex- change in the Atlantic World: Angola and Brazil during the Era of the Slave Trade (Nova York: Cambridge University Press, 2012); Daniel B. Domingues da Silva, “The Supply of Slaves from Luanda, 1768–1806: Records of Anselmo Da Fonseca Coutinho”, African Economic History 38, 1 (2009): 53-76; e Daniel B. Domingues da Silva, “The Atlantic Slave Trade from Angola: A Port-by-Port Estimate of Slaves Embarked, 1701-1867”, In- ternational Journal of African Historical Studies 46, no. 1 (2013): 105–122. Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos 11 Tabela 3 Escravos desembarcados segundo as principais regiões de destino, 1501-1886 América do Norte Caribe Britânico Caribe Francês América Holandesa Caribe Dinamarquês América Espanhola Brasil Total 1501-1525 0 0 0 0 0 8.923 0 8.923 1526-1550 0 0 0 0 0 35.534 0 35.534 1551-1575 0 0 0 0 0 40.671 2.461 43.132 1576-1600 0 0 0 0 0 84.242 26.814 111.056 1601-1625 0 567 0 0 0 117.709 156.468 274.744 1626-1650 100 26.639 545 0 0 61.482 163.938 252.704 1651-1675 3.970 86.770 16.746 52.190 0 32.292 204.575 396.543 1676-1700 11.077 196.501 21.394 71.967 18.146 14.021 259.475 592.581 1701-1725 39.303 280.470 82.147 53.413 8.059 37.856 423.161 924.409 1726-1750 106.671 357.150 212.325 73.051 4.515 17.435 468.690 1.239.837 1751-1775 118.822 580.824 309.733 118.145 18.271 21.030 476.010 1.642.835 1776-1800 30.687 594.879 390.929 50.606 37.763 69.212 621.156 1.795.232 1801-1825 77.613 183.701 63.517 25.355 17.223 254.777 1.012.762 1.634.948 1826-1850 91 10.751 22.880 0 5.021 333.781 1.041.964 1.414.488 1851-1866 413 0 0 0 0 163.947 6.899 171.259 Total 388.747 2.318.252 1.120.216 444.727 108.998 1.292.912 4.864.373 10.538.225 Fonte: Eltis et al., Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em: . Último acesso: 22/05/2015. Quando se considera a proporção dos escravos africanos nas Américas, vê-se que a população originária da África Centro-Ocidental constituiu um número considerável, representando 43,3 por cento de todos os desembar- ques. A Tabela 4 mostra que a concentração de escravos centro-africanos no Brasil esse número sobe para 68 por cento do total. Na América Espa- nhola e no Caribe Francês, cerca de 35 por cento dos africanos escraviza- dos eram oriundos da África Centro-Ocidental. Na América do Norte, eles chegavam a representar 23 por cento da população africana escravizada e 13,5 por cento no Caribe sob domínio britânico. O comércio de escravos para as colônias holandesas deve ter sido majoritariamente intra regional, Carlos Liberato, Mariana P. Candido, Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France 12 ou seja, os comerciantes holandeses adquiriam escravos em outros merca- dos americanos, principalmente naqueles sob domínio espanhol, ao invés de importá-los diretamente da África, o que reforçava o padrão migratório de centro-africanos. Esses números sugerem concentração da população da África Centro-Ocidental em diversos lugares da Américas, em especial no Brasil. No Brasil, dois terços da população africana escravizada havia em- barcado em Luanda, Benguela, Cabinda ou Loango, resultando em grande concentração cultural de falantes de línguas bantu. Tabela 4 Proporção de escravos oriundos da África Centro-Ocidental (%) América do Norte Caribe Britânico Caribe Francês América Holandesa Caribe Dinamarquês América Espanhola Brasil Total 22,9 13,5 36,0 40,4 13,9 35,4 68,0 44,3 Uma comparação entre o movimento da população da África Ocidental e o da Centro-Ocidental é necessária para uma melhor avaliação do signifi- cado da migração forçada de africanos a partir dessas duas regiões, as que sofreram os maiores impactos demográficos. A África Ocidental encontra- va-se dividida em numerosas zonas de comércio, cujas denominações va- riaram muito segundo a época e o país europeu envolvido no tráfico. Para os primeiros portugueses, por exemplo, toda a costa africana compreendida entre a margem direita do Rio Senegal e a Nigéria era conhecida como “Rios da Guiné”. Com o passar do tempo e a perda de influência em muitas partes da região, essa denominação foi ficando restrita à zona entre o Rio Casaman- sa e a Serra Leoa. Outros europeus, como espanhóis, franceses e ingleses, adotaram o termo “Guiné” para designar toda a costa africana e a dividiram em três grandes zonas: Alta Guiné (ou Guiné Superior, do Senegal à Ser- ra Leoa), Guiné Própria (ou simplesmente Guiné, de Gana aos Camarões) e Baixa Guiné (ou Guiné Inferior, que englobava toda a região do Congo/ Angola). Na base de dados Voyages, a África Ocidental está dividida nas se- guintes zonas: Senegâmbia (correspondendo ao Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau e ilhas da região), Serra Leoa, Costa do Barlavento (ou Windward Coast), Costa do Ouro, Baía do Benim e Baía de Biafra. Em relação à África Cen- tro-Ocidental, cumpre fazer a distinção entre duas zonas que participaram mais ativamente do comércio de pessoas escravizadas, mas que são tratadas Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos 13 como uma região única na base de dados. A primeira localizava-se ao norte do rio Congo e tinha Cabinda e Loango como os seus principais portos. A segunda zona incluía todas as áreas sob domínio português, sendo Luanda e Benguela os portos mais ativos. Essas duas zonas perderam um número de pessoas semelhantes ao de todos os portos localizados no Golfo da Guiné, incluindo-se Ajudá, Calabar, Bonny, Elmina, Anomabu e Axim.19 A África Ocidental foi a mais antiga região fornecedora de mão de obra escrava para o mundo atlântico. Ainda que os dados sobre o comércio de escravos relativos ao século XV não estejam incluídos nas estimativas da basede dados Voyages, sabe-se que entre 1450 e 1521 os navios europeus transportaram cerca de 156 mil escravos de toda a África. O crescimento desse comércio foi constante e, assim, comparando-se o volume anual de exportações do período de 1450-1465 com o de 1480-1499, vê-se que ele triplicou, passando de 900 a 2.200 escravos por ano. Entre 1450 e 1521, cerca de 60 por cento de todos os africanos escravizados foram embarca- dos nos portos da Alta Guiné.20 As estimativas apresentadas na Tabela 2 mostram que, entre 1501 e 1575, a África Ocidental foi responsável, em média, por cerca de 90 por cento de todos os embarques. No período sub- sequente, de 1576 a 1675, a região foi suplantada pela África Centro-Oci- dental em números absolutos, mas sua participação continuou importante com uma perda de mais de 86 mil pessoas a cada vinte e cinco anos. Essa situação mudaria novamente a partir do último quartel do século XVII, quando a África Ocidental voltou a ser a principal região no fornecimento de escravos para o Atlântico. Assim, entre 1676 e 1800, a região foi res- ponsável pela exportação de quase 4,5 milhões de pessoas. Deve ser nota- do que só na segunda metade do século XVIII, a África Ocidental exportou 2.401.321 indivíduos, o que corresponde a uma sangria demográfica de quase 50 mil pessoas por ano. A partir do início do século XIX e particu- larmente após a abolição decretada pelos ingleses do tráfico de escravos no Atlântico Norte em 1807, as atividades de exportação diminuem na região até extinguirem-se completamente. 19 Para uma deinição da África Ocidental, ver Eltis et al., Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em: . Último acesso: 25/11/2015. 20 Ver Ivana Elbl, “The Volume of the Early Atlantic Slave Trade, 1450-1521”, Journal of African History 38, 1 (1997): 31-75. Carlos Liberato, Mariana P. Candido, Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France 14 Segundo as estimativas apresentadas na Tabela 2, o número de embar- ques nos portos da África Centro-Ocidental cresceu a partir das últimas décadas do século XVI. Entre o primeiro quartel do século XVII e o pri- meiro do século XVIII, estima-se que a região da África Centro-Ocidental tenha perdido, em média, mais de 290.000 pessoas a cada vinte e cinco anos. Esse número aumentou exponencialmente após 1725, chegando a quase 557.000 indivíduos no segundo quarto do século XVIII. Entre 1751 e 1775, novamente, o número de indivíduos exportados cresceu, chegando a mais de 650 mil no período. Nos últimos vinte e cinco anos do século XVIII, mais de 822 mil pessoas foram embarcadas nos navios ancorados nos portos de Luanda e Benguela. O volume e a escala de crescimento do comércio transatlântico cresceu no século XIX, excedendo o número de 900 mil pessoas exportadas no primeiro quartel e, entre 1826 e 1850, por pouco não alcançou o número de um milhão de africanos exportados. Especialistas na história da escravidão e comércio de escravos reconhecem que as estimativas disponíveis apontam para a importância da região da África Centro-Ocidental no mundo Atlântico. Ainda que os números gerais estejam bem assentados, os detalhes sobre a vida dos africanos transportados nos navios negreiros carece de mais investigação. Como se sabe, os proprietários e capitães desses navios, es- pecialmente os de bandeira portuguesa/brasileira, não eram muito pródigos no registro de informações referentes ao sexo, idade e origem étnica dos escravos transportados. Apesar de tudo, é possível encontrar na base de dados Voyages estimativas que, baseadas nas informações existentes, ten- tam apontar a proporção de homens, mulheres e crianças escravizadas que fizeram a travessia atlântica. Ao análisar essas estimativas sobre a distri- buição sexual da população escravizada enviada às Américas fica evidente que uma proporção maior de mulheres foi exportada da região da África Ocidental do que dos portos localizados na África Centro-Ocidental. Isso quer dizer que, proporcionalmente, chegaram mais mulheres africanas ao Caribe e às áreas vizinhas do que ao Brasil, devido aos laços que uniam o comércio para os portos brasileiros aos portos da África Centro-Ociden- tal. Apesar da imagem muito difundida do comércio transatlântico ter sido feito predominantemente com homens escravizados, os dados disponíveis revelam que um número alto de africanas também foi enviado às Américas. Como pode ser observado na Tabela 5, no último quartel do século XVII, as mulheres representaram quase 50 por cento de todos os escravos embarcados Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos 15 na África Centro-Ocidental. Número expressivo de mulheres também pode ser identificado para essa região nos períodos de 1651-1675 e 1776-1800.21 Tabela 5 Porcentagem de mulheres escravas no comércio atlântico, 1651-1864 16 51 -1 67 5 16 76 -1 70 0 17 01 -1 72 5 17 26 -1 75 0 17 51 -1 77 5 17 76 -1 80 0 18 01 -1 82 5 18 26 -1 85 0 18 51 -1 86 4 M éd ia Senegâmbia 46,7 26,1 32,2 20,3 38,9 33,1 40,4 32,6 – 34,0 Serra Leoa – 21,7 31,2 20,0 41,3 34,7 31,6 30,2 – 33,5 Costa do Barlavento – – 67,1 39,5 42,7 34,5 28,4 32,1 – 36,7 Costa do Ouro 36,9 45,6 29,4 28,8 37,0 34,1 29,9 51,7 – 33,9 Golfo do Benim 41,6 41,0 34,9 40,5 42,1 36,5 28,5 35,2 30,1 37,6 Golfo de Biafra 51,1 51,3 48,0 24,6 41,2 42,8 35,3 35,4 – 41,7 África Centro- Ocidental 44,2 49,6 27,2 37,2 32,3 34,9 33,8 26,4 23,6 32,4 África / Sudeste – – – 42,8 – 26,7 25,6 18,1 13,2 26,5 Não identiicada 15,6 46,5 39,6 20,4 42,3 34,7 32,4 – – 38,3 Média 45,3 41,1 32,7 33,1 38,4 36,8 32,8 32,5 25,3 36,0 Fonte: Eltis et al., Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em: . Último acesso: 22/05/2015. Como pode ser visto na Tabela 6, as proporções relativas de crianças na migração forçada da África cresceu substancialmente ao longo do tempo e isso significa que um grande número dos africanos escravizados enviados para as colônias americanas estava composto por crianças. Assim, entre 1660 e 1866, de um total de 8.474.599 escravos desembarcados nos portos americanos, 2.169.497 deles eram crianças. Isso significa que mais de um quinto de todos os africanos escravizados que chegaram com vida às Amé- 21 Para mais detalhes sobre a composição sexual dos africanos escravizados ver David Eltis e Stanley Engerman, “Was the Slave Trade Dominated by Men?” Journal of Inter- disciplinary History 23 (1992): 237-57; e Eltis e Engerman, “Fluctuations in Sex and Age Ratios in the Transatlantic Slave Trade, 1663-1864”, Economic History Review 46 (1993): 308-323. Carlos Liberato, Mariana P. Candido, Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France 16 ricas eram crianças menores de quatorze anos. A Tabela 6 mostra que a im- portância demográfica das crianças cresceu no período final do comércio transatlântico de escravos. No final do século XVII, a proporção de crian- ças era de 11 por cento do total de desembarques, aumentou para 17 por cento no século XVIII e depois de 1807 chegou a 42, 6 por cento do total. Tabela 6 Crianças africanas escravizadas no comércio atlântico, 1660-1866 Anos Africanos embarcados Africanos desembarcados Crianças desembarcadas Crianças (%) 1660-1699 557.011 449.987 49.999 11,0 1700-1749 2.179.440 1.839.655 312.741 17,0 1750-1807 4.214.213 3.684.180 851.456 23,1 1808-1866 2.812.101 2.500.777 1.065.331 42,6 TOTAL 9.762.765 8.474.599 2.169.497 25,6 Fonte: Eltis et al., Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em: . Último acesso: 22/05/2015. A Tabela 7 mostra a média ponderada das crianças escravizadas por região de origem na África desde o final do século XVII até a extinção total do tráfico atlântico de escravos. Essa tabela demonstra nãosó que o número de crianças aumentou ao longo do tempo, mas também que esse aumento foi particular- mente importante na África Centro-Ocidental, especialmente no século XIX. Tabela 7 Média ponderada por região das crianças embarcadas, 1663-1867 Alta Guiné Costa do Ouro Golfo do Benim Golfo de Biafra África Centro- Ocidental África / Sudeste Todas as regiões 1663-1700 0.054 0.109 0.128 0.110 0.217 – 0.122 1701-1809 0.252 0.116 0.169 0.210 0.281 – 0.227 1810-1867 0.404 – 0.327 0.359 0.530 0.501 0.461 Fonte: Eltis e Engerman, “Fluctuations in Sex and Age Ratios in the Transatlantic Slave Trade, 1663-1864”, 310. Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos 17 A Tabela 8 permite uma comparação mais detalhada entre o embarque de crianças na África Centro-Ocidental e o de outras regiões da África. Ela mostra que a proporção de crianças exportadas da África Centro-Ocidental aumentou de forma constante a partir do final do século XVII. A maior par- te do século XVIII, a proporção de crianças embarcadas chegou a 30 por cento. Entre 1776-1800, a proporção diminui para menos de 20 por cento, entretanto essa queda foi seguida por uma subida brusca e continua: nas primeiras décadas no século XIX, a proporção de crianças exportadas ul- trapassou os 40 por cento e, para o período de 1826-1850 foi superior a 50 por cento. Uma comparação entre as Tabelas 6 e 7 revela que um número maior de crianças foi enviadas da África Centro-Ocidental para o Brasil do que do resto do continente para outras regiões das Américas. O comércio transatlântico de escravos, especialmente no Atlântico Sul, foi progressi- vamente atingindo cada vez pessoas mais jovens, resultando num grande número de crianças, e especialmente de meninos, escravizados. Tabela 8 Porcentagem de crianças africanas escravizadas no comércio atlântico, 1652-1863 Se ne gâ m bi a Se rr a L eo a C os ta d o B ar la ve nt o C os ta d o O ur o B aí a do B en im B aí a de B ia fr a Á fr ic a C en tro - O ci de nt al Á fr ic a / S ud es te Nã o Id en tii ca da M éd ia 1652-1675 – – – 7,3 6,7 12,5 31,2 – 2,2 10,5 1676-1700 4,7 5,8 – 9,0 12,4 9,8 18,9 – 16,9 10,9 1701-1725 8,6 14,7 55,3 15,4 19,2 23,9 12,0 – 24,4 15,7 1726-1750 9,8 25,0 32,3 17,2 25,6 17,0 9,3 30,0 12,2 12,1 1751-1775 26,2 34,5 26,6 24,0 15,8 34,3 16,3 – 24,7 21,3 1776-1800 19,8 24,6 25,3 18,5 14,3 19,3 13,1 27,8 27,0 18,5 1801-1825 30,9 38,4 48,6 23,8 25,6 29,9 7,4 31,6 26,3 19,3 1826-1850 19,7 41,5 39,1 46,8 36,6 39,5 53,3 60,0 – 41,3 1851-1863 – – – – 17,4 – 39,3 55,6 – 29,2 Média 18,7 30,0 29,6 17,6 20,7 25,1 13,8 35,5 24,8 19,3 Fonte: Eltis et al., Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em: . Último acesso: 22/05/2015. Carlos Liberato, Mariana P. Candido, Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France 18 Em conjunto, a migração forçada de mulheres e crianças é de grande importância para a dinâmica populacional do continente africano. No caso da África Centro-Ocidental, a remoção de um grande número de crianças sugere que as estruturas sociais e políticas das zonas próximas a Luanda e Benguela foram capazes de gerar crianças para a exportação. Deve-se notar que, apesar da sangria demográfica, essas sociedades foram capazes de continuar a exportar um grande número de pessoas, sendo algumas de- las muito jovens – especialmente durante o último período do tráfico. Os estudos de José C. Curto, Roquinaldo Ferreira e Mariana Candido demons- tram que as autoridades africanas locais e os agentes coloniais portugueses debateram ativamente a natureza daquilo que poderia ser considerada uma escravização “justa” e qual o tipo de proteção judicial que poderia ser ofe- recida àqueles que tivessem sido escravizados “erroneamente”.22 Assim, os métodos de captura e escravização de indivíduos livres tanto podiam ser declarados legais como ilegais segundo a jurisprudência portuguesa e as normas da Igreja Católica. Nesse sentido, é provável que sempre tenha existido algum tipo de norma jurídica mais ou menos eficazes para aque- les que se sentissem lesados em seus direitos. Em outras palavras, as pes- soas que tivessem sido escravizadas de forma irregular poderiam recorrer à autoridade colonial para que sua liberdade fosse restabelecida. O grande número de crianças, principalmente de meninos, nas exportações da África Centro-Ocidental sugere existirem condições locais específicas que per- mitiam às sociedades da região a manutenção de sua organização interna apesar da perda de crianças, especialmente de meninos. Ainda não está claro quais seriam essas condições. O fato dessas sociedades serem matri- lineares pode ou não ter influenciado essa opção pela retenção de meninas. É sabido que a penhora humana era praticada no interior, porém pouco se sabe sobre a extensão em que a servidão por dívidas teria levado à escravi- 22 José C. Curto, “The Story of Nbena, 1817-1820: Unlawful Enslavement and the Con- cept of ‘Original Freedom’ in Angola”, in Paul E. Lovejoy e David V. Trotman, eds., Trans-Atlantic Dimensions of Ethnicity in the African Diaspora (London: Continuum, 2003), 44-64; Roquinaldo Ferreira, “Slaving and Resistance to Slaving in West Cen- tral Africa”, in The Cambridge World History of Slavery, vol. 3 (Cambridge University Press, 2011); Mariana P. Candido, “African Freedom Suits and Portuguese Vassal Sta- tus: Legal Mechanisms for Fighting Enslavement in Benguela, Angola, 1800–1830”, Slavery & Abolition 32, 3 (2011): 447-459; e Mariana P. Candido, “O limite tênue entre a liberdade e escravidão em Benguela durante a era do comércio transatlântico”, Afro Ásia 47 (2013): 239-268. Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos 19 zação e deportação dos indivíduos penhorados. No entanto, considerando o número de crianças envolvidas, é possível que a penhora tenha sido um caminho fácil para a escravidão e a venda para os mercados atlânticos.23 A deportação de indivíduos do sexo masculino, incluindo meninos, era visível na população que residia nos centros coloniais urbanos de Angola. Segundo Joseph Miller: a população africana [livre] da colônia... era majorita- riamente feminina, inclusive já na faixa etária das crianças pequenas (1,2 menino para cada 1,5 menina ou uma relação entre os sexos de 80 para 100). O excedente feminino au- mentava ainda mais entre os adultos jovens, onde havia 65 homens para cada 100 mulheres (ou 1,02 homem para 1,56 mulher). Entre os adultos, a desproporção tornava-se extraor- dinária chegando a haver 50 homens para cada 100 mulheres (ou 0,47 para 0,93). Em outras palavras: nessa faixa etária existiam duas mulheres para cada homem, quando em outras circunstâncias o número de homens seria um pouco maior que o de mulheres.24 No final do século XVIII, as aldeias localizadas nas áreas próximas à costa de Angola estavam “repletas de mulheres e crianças, com um número de meninas pré-púberes muito maior que o de meninos”, devido à venda de crianças do sexo masculino ao comércio Atlântico e à retenção local de meninas como esposas ou dependentes.25 Um grande número de mulheres também era retido em sistema de escravidão local nos sobados e mesmo nos centros coloniais.26 Uma situação similar aconteceu no sudeste africa- 23 Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845”, The Journal of African History 46, 1 (2005): 1-27; e Curto, “Experiences of Enslavement in West- Central Africa.” 24 Miller, Way of Death, 160. Para a sua análise, Miller utilizou-se do “Mappa de todos os moradores, e habitantes deste reino de Angola, e suas conquistas, tirado no im do anno de 1778”, publicado na revista Arquivo das Colónias 3 (1918): 175-178. Ver também John K. Thornton, “The Slave Trade in Eighteenth-Century Angola: Effects on Demographic Structures”,Canadian Journal of African Studies 14, 3 (1980): 417-427. 25 Miller, Way of Death, 163. 26 Candido, Fronteras de esclavización. Carlos Liberato, Mariana P. Candido, Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France 20 no, especialmente em algumas áreas de Moçambique, onde a exportação de crianças foi até maior do que a da África Centro-Ocidental. Os dados da base de dados Voyages também lançam novas luzes so- bre os padrões da migração forçada de pessoas desde a África Ocidental. Nessa região, as diferentes zonas do tráfico mostraram uma diversidade muito mais acentuada na exportação de crianças do que se acreditava an- teriormente. Ao comparar-se os números apresentados na base de dados publicada em 1999 com os números atuais, vê-se que houve uma grande mudança, ainda que a tendência geral de aumento da proporção de crian- ças a partir de 1807 tenha permanecido inalterada. Assim, se na versão de 1999 a África Ocidental era mostrada como tendo exportado muito menos crianças que a África Centro-Ocidental, tanto proporcionalmente como em números absolutos, a base de dados atual mostra que a proporção de crian- ças em muitas zonas era maior do que se pensava. Desta forma, todas as zonas da África Ocidental apresentaram maiores médias percentuais totais que a África Centro-Ocidental. É possível, no entanto, que esses números ainda não sejam definitivos, pois sabe-se que não era prática comum nos navios de bandeira portuguesa / brasileira o registro do sexo e da idade dos escravos embarcados. Em todo caso, na África Ocidental o comércio atlântico não era o único mercado para os escravos da região. Assim, como muitos outros escravos, as crianças capturadas ou penhoradas por dívida tanto podiam permane- cer na região como ser vendidas para os mercados muçulmanos do nor- te. O destino das crianças escravizadas no interior da região da Baía do Benim estava relacionado à dinâmica interna do mercado de escravos.27 Da mesma forma, no século XIX, muitas crianças embarcadas na África Ocidental acabavam sendo levadas para a Serra Leoa, nos casos em que a marinha britânica capturava navios negreiros infringindo o Slave Trade Act de 1807. Muitas outras crianças escravizadas também acabavam fican- do na própria África Ocidental, sendo vendidas nos mercados do interior, longe da costa. Em 1834, por exemplo, um comerciante muçulmano cha- mado Soho, que estava fazendo negócios na confluência dos rios Níger e 27 Para o comércio de crianças escravizadas na África Ocidental, ver William Allen e T. R. H. Thomson, A Narrative of the Expedition Sent by Her Majesty’s Government to the River Niger in 1841 (Londres: Richard Bentley, 1848), vol. I, 402-407; e William Cole, Life in the Niger, or The Journal of an African Trader (Londres: Sauders, Otley and Co., 1862), 31-34. Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos 21 Benue, teria comprado ali “seis mulheres jovens, estando três delas com crianças de peito” e tinha a intenção de levá-las mais ainda para o interior e trocá-las por marfim, ao invés de vendê-las nos mercados da costa.28 Em muitos casos, as razões por trás da escravização não estavam relacionadas às demandas externas do mercado atlântico, mas sim por dinâmicas locais como, por exemplo, o sequestro e a exigência de pagamento de resgate. Esse foi o caso de um menino capturado em 1841 por assaltantes Felatah (fulas) em um local próximo à confluência do Níger e do Benue. A criança acabou sendo vendida aos traficantes de escravos porque os sequestrado- res consideraram que o resgate oferecido pelos pais “não era suficiente.”29 Também em 1841, James Macaulay, escravo liberto que retornou à terra natal, conseguiu localizar sua irmã e descobriu que dois filhos dela tinham sido capturados pelos Fulatahs e levados para o Califado de Sokoto, estan- do a mãe ainda tentando negociar o resgate.30 Em 1863, a escrava fugitiva Elizabeth Alady relatou a missionários ingleses que ela e seu filho de três anos de idade, nascido em cativeiro, seriam vendidos juntos para pagar uma dívida de seu proprietário, o que a teria levado a empreender a fuga.31 Os dados disponíveis indicam que tanto na África Ocidental como na África Centro-Ocidental um número elevado de meninos e meninas fo- ram vendidos como escravos. Muitas dessas crianças foram vendidas nos mercados domésticos e retidos para atender as necessidades e interesses de grupos locais e por isso não chegaram a entrar no circuito do comércio atlântico de escravos. Ainda assim, a África Centro-Ocidental passou a exportar cada vez mais crianças escravizadas e, em sua maioria, do sexo masculino. Um padrão similar caracterizou a migração forçada a partir do sudeste da África, principalmente de Moçambique. A exportação de es- cravos dessa região tornou-se significativa apenas a partir do último quar- tel do século XVIII e o número de crianças, principalmente meninos, foi considerável, especialmente durante o século XIX. De fato, a proporção 28 MacGreggor Laird e R.A.K. Oldield, Narratives of an Expedition into the Interior of Africa by the River Niger…1832, 1833, and 1834 (2 vols., Londres: Richard Bentley, 1837), II, 312. 29 Allen e Thomson, Expedition to the River Niger, vol. 1, 92. 30 James Frederick Schön e Samuel Crowther, Journals of the Rev. James Frederick Schön and Samuel Crowther (Londres: Hatchard and son, 1842), 204. 31 Arquivo da Church Mission Society (CMS), Birmingham, Grã Bretanha, “Diário de James Thomas”, 6 de abril de 1864. Carlos Liberato, Mariana P. Candido, Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France 22 de crianças exportadas do sudeste africano foi até mesmo maior que a da África Centro-Ocidental. De muitas formas, a incorporação do sudeste africano ao complexo comercial atlântico pode ser considerada como uma extensão do comércio entre o Brasil e Angola e fez parte da tendência de uma maior exportação de homens e, consequentemente, de meninos, a partir das regiões de povos falantes de línguas bantu. Como acontecia com a África Centro-Ocidental, a migração forçada a partir do sudeste africano dirigiu-se principalmente ao Brasil, ainda que a região também tenha suprido a demanda de algumas ilhas do Oceano Índico. Combinadas, a África Centro-Ocidental e a região sudeste da África fo- ram responsáveis pelo embarque de cerca da metade de todos os africanos levados pelo comércio atlântico, ou seja, pelo menos 6.237.242 pessoas de um total de 12.521.336 migrantes forçados. Em outros termos, pode-se afir- mar que metade de todos os africanos escravizados falava uma ou mais das línguas bantu aparentadas entre si e que a maioria dessas pessoas era origi- nária de sociedades matrilineares e, sendo assim, essas pessoas tinham uma bagagem cultural semelhante. O significado dessa homogeneidade cultural tem sido explorada pelos pesquisadores, porém mais pesquisas precisam ser feitas nesse campo. Essas duas regiões estabeleceram relações estreitas com o Brasil através do comércio de escravos e, como pode ser visto na Ta- bela 9, a África Centro-Ocidental sozinha foi responsável pela entrada de aproximadamente dois terços de todos os africanos importados pelo Brasil e, quando os escravos do sudeste africano são adicionados a esse número, a proporção de pessoas da zona cultural banto excede os 70 por cento do total de desembarques. Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos 23 Tabela 9 Total de africanos embarcados na África e desembarcados no Brasil, 1501-1866 Brasil Embarques Desembarques Senegambia 125.508 109.108 Serra Leoa 10.036 8.835 Costa do Barlavento 6.884 6.161 Costa do Ouro 71.353 64.478 Baía do Benim 974.932 877.034 Baía de Biafra 141.823 122.617 África Centro-Ocidental 3.864.687 3.396.909 Moçambique / Sudeste 336.896 279.232 Total 5.532.118 4.864.374 Fonte: Eltis et al., Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em:faces>. Último acesso: 22/05/2015. O impacto dessa migração de falantes de línguas bantu no Brasil foi certamente importante. No entanto, a despeito da importância do Brasil no sistema do Atlântico Sul, a escala da migração desde a África Centro-O- cidental era tão formidável que pessoas falantes de línguas bantu podiam ser encontradas praticamente em todas as regiões das Américas. De fato, cerca de um quarto de todos os africanos embarcados na África Centro-Ocidental não foram destinados ao Brasil, mas sim a outras partes, notadamente à Amé- rica Espanhola e às colônias francesas. Relativamente poucos centro-africa- nos foram para os territórios britânicos nas Américas, mas mesmo nessas colônias eram numerosas as pessoas que se identificavam com o Congo, Angola ou o interior da África Centro-Ocidental. Os muitos africanos que foram parar em outras regiões das Américas devem ter saído da faixa litorânea ao norte do Rio Congo e viajado em navios de bandeira britânica, francesa ou holandesa. O padrão comercial seguido por essas nações era bem mais próximo do clássico modelo trian- gular do que a troca bilateral predominante no Atlântico Sul, onde o Bra- sil comercializava diretamente com a África. Dessa forma, a divisão do Carlos Liberato, Mariana P. Candido, Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France 24 Atlântico em dois grandes sistemas de comércio divididos pelo Equador continua válida. No entanto, como todo sistema, o do norte e o do sul eram permeáveis às exceções; como são os casos dos comerciantes brasileiros que comercializavam diretamente com os portos da Baía do Benim e da Alta Guiné (principalmente os de Cacheu e Bissau), ao norte, ou o comér- cio triangular praticado pela Companhia das Índias Ocidentais que, entre o final do século XVI e o início do XVII, enlaçava os mercados holandeses com suas conquistas angolanas e brasileiras. No entanto, apesar das exce- ções, a existência de dois padrões de comércio é clara: um era dominante no Atlântico Norte e foi controlado em diferentes momentos por holande- ses, franceses e, em especial, ingleses; e o outro cruzava o Atlântico Sul ligando a África Centro-Ocidental à América Portuguesa, no qual predo- minaram os comerciantes portugueses e brasileiros sediados no Brasil. Os dados mais recentes sobre o volume, a organização e a direção do comércio de escravos demonstram claramente que a África Centro-Ocidental não só forneceu quase a metade de todos os africanos escravizados enviados para as Américas como também a grande maioria dos que foram parar no Brasil. Esses números demonstram a centralidade do comércio atlântico de escra- vos para a história de Angola, incluindo-se não só as populações da costa como também as do interior. Por tudo isso, o comércio transatlântico de es- cravos não foi “uma instituição marginal às margens do sistema Atlântico”, como argumentou Joseph C. Miller há 25 anos.32 De fato, a própria discus- são de Miller sobre a natureza bilateral do comércio angolano-brasileiro contradiz a sua tese de marginalidade do intercâmbio. Como a demografia da migração forçada de africanos deixa evidente, é difícil ignorar a centra- lidade da escravidão na região da África Centro-Ocidental. Assim, se para algumas regiões da África os dados numéricos indicam um caminho claro para as pesquisas futuras, para outras a trilha ainda é incerta e muito há que se descobrir sobre o peso da sangria demográfica e os efeitos do comércio atlântico nas histórias locais. * * * 32 Joseph C. Miller, “A Marginal Institution on the Margin of the Atlantic System: The Portuguese Slave Trade in the 18th Century”, in Barbara Solow, ed., Slavery in the Rise of the Atlantic System (Cambridge: Cambridge University Press, 1991). Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos 25 O volume Laços Atlânticos é o resultado de pesquisas realizadas nos últimos quinze anos sobre as relações da África com o mundo atlântico, especialmente de Angola com o Brasil. Durante todo o período do comér- cio transatlântico de escravos, cerca de 4 milhões e 900 mil africanos de- sembarcaram no Brasil, um número doze vezes maior que o total dos que chegaram com vida na América do Norte. Esse número é até maior que o de africanos transportados diretamente do continente para o Caribe e a América do Norte em conjunto.33 A maioria era oriunda de regiões da atual Angola, falantes de línguas bantu, como quimbundu, quicongo e umbun- du. No Brasil, esses africanos eram identificados por “nações”, identida- des recriadas, sendo conhecidos como “Angola”, “Congo” ou “Benguela”. Apesar da imprecisão desses termos, que refletem mais o porto de embar- que que uma etnicidade africana, eles dão conta da grande concentração de indivíduos oriundos de regiões muito próximas, tanto geográfica como culturalmente.34 Um grande número de africanos escravizados também veio da Baía do Benim, também identificada como Costa dos Escravos em muitos documentos europeus. Entre esses incluíam-se falantes de várias línguas gbe, como o ewe, fon, allada. No Brasil, os africanos do Golfo da Guiné foram identificados, com o passar do tempo, como sendo iorubá ou nagô (oriundos da atual Nigéria), gêge ou mina (do Daomé) e malê (quan- do islamizados). Independentemente das suas origens étnicas primordiais, os africanos muçulmanos viriam a constituir grupos importantes para a história brasileira e contribuíram para dar uma maior diversidade para a população escrava do país.35 33 Segundo a base de dados Voyages, o número total de africanos desembarcados na América do Norte foi de 388,747 indivíduos. Ver . Último acesso: 22/05/2015; e David Eltis e David Richardson, Atlas of the Transatlantic Slave Trade (New Haven: Yale University Press, 2010), 257. 34 Para a discussão sobre a relação entre “nação” e origem africana, ver Mariza de Carvalho Soares, “A ‘nação’ que se tem e a ‘terra’ de onde se vem: Categorias de inserção social de africanos no Império Português, século XVIII”, Estudos Afro-Asiáticos 26, 2 (2004): 303-330; e João José Reis, “Identidade e diversidades étnicas nas irmandades negras no tempo da escravidão”, Tempo 2, 3 (1996): 7-33. 35 Nos últimos anos cresceu o número de historiadores brasileiros especializados no passado africano durante o período do comércio transatlântico. Ver, entre outros, Selma Pantoja, Nzinga Mbandi: Mulher, guerra e escravidão (Brasília: Thesaurus Editora, 2000); João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus Joaquim Carvalho, O alufá Ruino: Tráico, escravidão e liberdades no Atlântico Negro, c. 1822-1853 (São Carlos Liberato, Mariana P. Candido, Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France 26 Nesse volume, além dos africanos das regiões Ocidental e Centro-Oci- dental da África, há contribuições sobre os chamados “moçambiques”, gru- po que se tornou importante no Brasil nas últimas décadas do século XVIII e na primeira metade do XIX. Os “moçambiques” eram oriundos do sudeste africano e formaram uma população de proporção significativa no Brasil que se auto-reconhecia e era reconhecida por outros grupos sociais como oriundos dos portos de Moçambique. Esses laços, criados durante o período do comércio de escravos, favoreceram uma interação contínua entre a Áfri- ca e as Américas, que foi além das margens do Atlântico, como o caso dos chamados “moçambiques” demonstra. Assim, os tentáculos do tráfico atlân- tico incluíam a ligação com o Oceano Índico, onde mercadorias, escravos e ideias circulavam de forma semelhante àquelas do Atlântico. As contribuições reunidas nesse volume exemplificam os trabalhos dos mais respeitados especialistas em escravidão e comércio de escravos na África, Brasil, Europa e América do Norte, reunidos pela primeira vez em português. São contribuições de acadêmicos que, assim como suas análi- ses, cruzam o Atlântico. A metodologia e as análises são essencialmente comparativase interdisciplinares. Os ensaios e sua ordem são circulares, Paulo: Companhia das Letras, 2010); Marina de Mello e Souza, Reis negros no Brasil escravista (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002); Mariza Carvalho Soares, Rotas atlânticas da diáspora africana: Da Baía do Benim ao Rio de Janeiro (Niterói: EdUFF, 2007); Roquinaldo Ferreira, “Biograia, mobilidade e cultura no Atlântico: Angola, sécs. XVIII-XIX,” Revista Tempo 10, 20 (2006): 33-59; Roquinaldo Ferreira, Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during the Era of the Slave Trade (Nova Iorque: Cambridge University Press, 2012); Maria Cristina Cortez Wissenbach, “As feitorias de urzela e o tráico de escravos: Georg Tams, José Ribeiro dos Santos e os negócios da África Centro-Ocidental na década de 1840”, Afro-Ásia 43 (2011): 43-90; Mariana P. Candido, “Os agentes não europeus na comunidade mercantil de Benguela, c. 1760-1820”, Saeculum: Revista de História 29 (2013): 97-123; Mariana Candido, An African Slaving Port and the Atlantic World: Benguela and Its Hinterland (Nova Iorque: Cambridge University Press, 2013); e Daniel B. Domingues da Silva, “O tráico de São Tomé e Príncipe, 1799 a 1811: Para o estudo das rotas negreiras subsidiárias ao comércio transatlântico de escravos”, Estudos de História 9, 2 (2002): 35-51. Além das diversas contribuições nas coleções: Selma Pantoja e José Flávio Saraiva, orgs., Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, s/d.); Vanicléia Silva Santos e Eduardo França e Paiva, orgs, África e Brasil no mundo moderno (Belo Horizonte: Annablume, 2012); Roberto Guedes, org., África – Brasileiros e portugueses (Rio de Janeiro: MAUD, 2013); e Alexandre Vieira Ribeiro e Alexander Lemos de Almeida Gebara, orgs., Estudos africanos: Múltiplas abordagens (Niterói: UFF, 2013). Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos 27 partindo da África, chegando as Américas para depois retornar à África, repetindo o movimento de muitos africanos em séculos anteriores. Na primeira parte, são apresentadas as contribuições de Alberto Costa e Silva, Carlos Liberato e Rosa Cruz e Silva que discutem a problemáti- ca interação entre o a África, as ilhas atlânticas e o Brasil. Costa e Silva indica a lacuna da historiografia brasileira que se concentra nas relações com Portugal e negligencia as contribuições da África.36 O autor analisa a formação de novas identidades a partir de vários exemplos, como os “crioulos” do terço de Henrique Dias lutando contra os holandeses na Áfri- ca, a recriação de uma “pequena Angola” no quilombo dos Palmares ou as tradições e objetos sagrados daomeanos encontrados na Casa das Minas do Maranhão. Carlos Liberato desafia a ideia dos africanos como mão de obra não especializada e explora a contribuição africana para o desenvol- vimento tecnológico da produção de panos no Arquipélago de Cabo Verde 36 Nos últimos anos cresceu o número de historiadores brasileiros especializados no passado africano durante o período do comércio transatlântico. Ver, entre outros, Selma Pantoja, Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravidão (Brasília, DF: Thesaurus Editora, 2000); João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus Joaquim Carvalho, O alufá Rufino: Tráfico, escravidão e liberdades no Atlântico Negro (c. 1822-1853) (São Paulo: Companhia das Letras, 2010); Marina de Mello e Souza, Reis negros no Brasil escravista (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002); Mariza Carvalho Soares, Rotas Atlânticas da Diáspora Africana: da Baía do Benim ao Rio de Janeiro (Niterói: EdUFF, 2007); Roquinaldo Ferreira, “Biografia, Mobilidade e Cultura no Atlântico: Angola, sécs. XVIII-XIX”, Revista Tempo 10, 20 (2006), 33-59; Roquinaldo Ferreira, Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during the Era of the Slave Trade (Nova Iorque: Cambridge University Press, 2012); Maria Cristina Cortez Wissenbach, “As feitorias de urzela e o tráfico de escravos: Georg Tams, José Ribeiro dos Santos e os negócios da África centro-ocidental na década de 1840”, Afro-Ásia 43 (2011): 43-90; Mariana P. Candido, “Os agentes não europeus na comunidade mercantil de Benguela, c. 1760-1820”, Saeculum - Revista de História 29 (2013): 97–123; Mariana Candido, An African Slaving Port and the Atlantic World: Benguela and Its Hinterland (Nova Iorque: Cambridge University Press, 2013); e Daniel B. Domingues da Silva, “O tráfico de São Tomé e Príncipe, 1799 a 1811: para o estudo das rotas negreiras subsidiárias ao comércio transatlântico de escravos”, Estudos de História 9, 2 (2002): 35-51. Além das diversas contribuições nas coleções Selma Pantoja e José Flávio Saraiva, orgs., Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, s.d.); Vanicléia Silva Santos e Eduardo França e Paiva, orgs., África e Brasil no Mundo Moderno (Belo Horizonte: Annablume, 2012); Roberto Guedes, org., África – Brasileiros e Portugueses (Rio de Janeiro: MAUD, 2013); Alexandre Vieira Ribeiro e Alexander Lemos de Almeida Gebara, orgs. Estudos Africanos. Múltiplas abordagens (Niterói: UFF, 2013). Carlos Liberato, Mariana P. Candido, Paul E. Lovejoy e Renée Soulodre-La France 28 e a importância do seu comércio no trato dos Rios da Guiné. No último capítulo da primeira parte, Rosa Cruz e Silva investiga os efeitos do tráfico de escravos no interior de Benguela, mais especificamente nas regiões de Caconda e Quilengues no final do século XIX, destacando o papel crucial e desestabilizador dos comerciantes brasileiros. Na segunda parte, Manolo Florentino, Susan Herlin e José Capela ana- lisam o comércio de escravos e seu funcionamento. O capítulo de Manolo Florentino dialoga com o de Rosa Cruz e Silva ao mostrar a preponderân- cia dos investimentos brasileiros no tráfico, o que sem dúvida resultou na violência demonstrada por Cruz e Silva. Através de casos concretos, Flo- rentino identifica negreiros cariocas que atuavam em Angola nos séculos XVIII e XIX. As relações transatlânticas envolviam Portugal mas estavam subordinadas ao comércio bilateral que caracterizava o comércio entre o Brasil e Angola. Susan Herlin analisa em seu capítulo a participação dos comerciantes brasileiros no comércio do Reino do Congo durante o pe- ríodo final do comércio de escravos. Herlin mostra como os comerciantes brasileiros estabelecidos na África Centro-Ocidental foram essenciais para a organização, o financiamento e a execução das atividades do tráfico ile- gal de escravos a partir do Reino do Congo e zonas vizinhas. José Capela analisa a participação de Moçambique no tráfico de escravos e mostra os mecanismos pelos quais o sistema atlântico estendeu suas fronteiras ao in- corporar a região sudeste da África banhada pelo Oceano Índico. O ensaio de Capela mostra as limitações de categorias geográficas, pois o tráfico em costas moçambicanas operava de forma semelhante ao comércio de almas em Angola. Capela também revela como o comércio de escravos coman- dado por brasileiros em Moçambique alterou a conjuntura política interna. Ainda na segunda parte, os capítulos de James Sweet, Jane Landers e Renée Soulodre-La France oferecem novas perspectivas sobre a influência cultural africana nas Américas. James Sweet apresenta um estudo sobre as cerimônias de adivinhação praticadas por centro-africanos no Brasil do sé- culo XVII. Através da análise de documentação inquisitorial, Sweet mostra como esses adivinhos africanos exerciam o poder espiritual não só sobre outros africanos mas também sobre a classe senhorial no Brasil colônia. O capítulo de Jane Landers compara comunidades quilombolas na América espanhola e no Brasil. Landers analisa questões de liderança e organiza- ção política e social das comunidades estabelecidas por escravos fugidos, mostrando as influências africanas. Segundo Landers, essas comunidades, Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos