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A Liberdade e o Direito de Resistência: Uma Análise Interna do Sistema Hobbesiano 1. Introdução A obra de Thomas Hobbes, notadamente o Leviatã, apresenta um dos mais influentes e controversos sistemas de filosofia política da modernidade. Central para sua arquitetura teórica é a defesa de um Estado soberano com poderes quase ilimitados, concebido como a única garantia contra o caos do estado de natureza. Contudo, essa ênfase na autoridade absoluta frequentemente obscurece uma aparente tensão interna no pensamento hobbesiano: a coexistência de um poder estatal onipotente com espaços de liberdade individual e, mais intrigantemente, um direito de resistência por parte do súdito. Este capítulo se propõe a explorar e dissolver essa tensão, argumentando que, em Hobbes, a liberdade civil é uma manifestação concreta da liberdade negativa, e que o direito de resistência, longe de ser uma contradição lógica, emerge como um corolário necessário da fundação passionista e contratual do Estado. Para desenvolver essa tese, o capítulo será dividido em duas seções principais. A primeira parte, intitulada "A Liberdade Civil como Liberdade Negativa: Hobbes e Isaiah Berlin", examinará a definição hobbesiana de liberdade e a comparará com o conceito de liberdade negativa de Isaiah Berlin, demonstrando suas profundas similaridades e a relevância da formulação de Hobbes como precursora. A segunda parte, "O Direito de Resistência: Contradição Aparente e Fundamento Real", abordará a questão do direito de resistência, desmistificando a ideia de que este contradiz o absolutismo hobbesiano e revelando como ele se insere coerentemente na lógica do pacto social e da autopreservação individual. 2. Primeira Parte: A Liberdade Civil como Liberdade Negativa: Hobbes e Isaiah Berlin Objetivo Demonstrar que a definição hobbesiana de liberdade como "ausência de impedimentos externos" é um precursor fundamental do conceito de "liberdade negativa" elaborado por Isaiah Berlin. Desenvolvimento a) A Definição de Liberdade em Hobbes (Leviatã, Cap. XXI) Em sua obra magna, Leviatã, Thomas Hobbes apresenta uma definição de liberdade que, à primeira vista, pode parecer puramente mecânica, desprovida de conotações morais ou políticas complexas. No Capítulo XXI, Hobbes afirma que "LIBERDADE, ou INDEPENDÊNCIA, significa, propriamente, a ausência de oposição (entendendo por oposição os impedimentos externos ao movimento)" (Hobbes, Leviatã, XXI, 2) [1]. Essa formulação é crucial, pois estabelece a liberdade como a mera ausência de obstáculos físicos ou externos que impeçam um corpo, seja ele animado ou inanimado, de se mover conforme sua própria determinação. Um rio é livre se nada impede seu fluxo; um homem é livre se não está acorrentado ou preso, podendo mover-se para onde sua vontade o levar. A vontade em si, no entanto, não é livre, sendo determinada por uma cadeia de causas e efeitos, como discutido na dissertação fornecida, que remonta, em última instância, ao decreto divino e ao mecanicismo da filosofia natural hobbesiana. A liberdade, portanto, não reside na capacidade de escolher, mas na ausência de impedimentos para executar o que já foi determinado pela vontade. b) O Conceito de "Liberdade Negativa" de Isaiah Berlin ("Dois Conceitos de Liberdade") Séculos mais tarde, o filósofo Isaiah Berlin, em seu influente ensaio "Dois Conceitos de Liberdade" (1958), articulou a distinção entre liberdade negativa e liberdade positiva. A liberdade negativa é definida por Berlin como a "liberdade de" (freedom from), ou seja, a ausência de coerção ou interferência por parte de outros indivíduos ou do Estado dentro de uma esfera de ação. Berlin questiona: "Qual é a área dentro da qual o sujeito ‒ uma pessoa ou grupo de pessoas ‒ é ou deveria ser deixado para fazer ou ser o que é capaz de fazer ou ser, sem interferência de outras pessoas?" (Berlin, 1969, pp. 121-22) [2]. Para Berlin, ser livre negativamente significa ter um espaço onde se pode agir sem ser impedido por obstáculos impostos por outros. É a liberdade de não ser obrigado a fazer algo ou de não ser impedido de fazer algo por agentes externos. Essa concepção é central para o liberalismo clássico, que busca limitar o poder estatal para proteger a autonomia individual. c) Comparação Sistemática entre os Conceitos A comparação entre a definição hobbesiana de liberdade e o conceito de liberdade negativa de Berlin revela semelhanças notáveis e algumas diferenças contextuais. A semelhança fundamental reside na ênfase na ausência de obstáculos ou coerção. Tanto Hobbes quanto Berlin concebem a liberdade primariamente como uma condição de "não- impedimento". Para Hobbes, o impedimento é externo e mecânico; para Berlin, é a interferência de outros agentes. A formulação de Hobbes, embora anterior e mais ligada à sua filosofia natural mecanicista, estabelece o alicerce para a compreensão da liberdade como um espaço desimpedido. Ambos os pensadores compartilham a ideia de que a liberdade é uma questão de esfera de ação. Onde não há lei, ou onde a lei silencia, o súdito hobbesiano é livre para agir. Da mesma forma, Berlin postula uma área dentro da qual o indivíduo deve ser deixado em paz. A liberdade, para ambos, não é a capacidade de autodeterminação da vontade (liberdade positiva), mas a capacidade de executar a vontade sem restrições externas. A vontade, em si, pode ser determinada por paixões ou por uma cadeia causal, mas a ação resultante dessa vontade é livre se não houver impedimentos externos. As diferenças, por sua vez, são mais de contexto e escopo. Hobbes aplica sua definição de liberdade a todos os corpos em movimento, incluindo os inanimados, o que sublinha seu caráter mecanicista e universal. Berlin, por outro lado, foca a liberdade negativa no contexto das relações humanas e políticas, enfatizando a interferência de outras pessoas. A liberdade de Hobbes é, em sua essência, uma liberdade física que se estende ao domínio político, enquanto a liberdade negativa de Berlin é explicitamente uma liberdade política. No entanto, a definição hobbesiana de "ausência de impedimentos externos" é perfeitamente compatível com a "ausência de coerção por parte de outros" de Berlin, sendo a primeira uma base mais geral para a segunda. d) A Liberdade do Súdito Hobbesiano como Realização Prática da Liberdade Negativa Considerando a análise, a liberdade do súdito hobbesiano é, de fato, a realização prática de uma liberdade negativa no interior do Estado. Embora o soberano possua poder absoluto e as leis civis restrinjam muitas ações, Hobbes explicitamente afirma que "em todas as ações e casos que não são regulados pelas leis, os homens têm a liberdade de fazer o que lhes agrada" (Hobbes, Leviatã, XXI, 18) [1]. Ou seja, nos "interstícios da lei", onde o soberano não legislou, o súdito mantém sua liberdade de movimento. Essa liberdade não é uma concessão benevolente, mas uma consequência lógica da própria definição de liberdade: onde não há impedimento externo (lei ou força física), há liberdade. A liberdade civil, portanto, não é uma liberdade de participar do governo ou de ser autônomo (liberdade positiva), mas sim a liberdade de não ser impedido de agir em áreas não reguladas. É a liberdade de ir e vir, de comprar e vender, de escolher sua morada, sua dieta, sua profissão, desde que essas ações não sejam proibidas pela lei. Essa é, precisamente, a essência da liberdade negativa: um espaço de não-interferência onde o indivíduo pode exercer sua vontade sem coerção externa. 3. Segunda Parte: O Direito de Resistência: Contradição Aparente e Fundamento Real Objetivo Dissolver a aparente contradição no pensamento de Hobbes, mostrando que o direito de resistência é inerente à lógica do pacto de fundação. Desenvolvimento a) A Aparente Contradição: Soberano Absoluto vs. Direito de Desobedecer À primeira vista, a ideia de um direito de resistência em Thomas Hobbes parece ser uma contradição flagrante e insuperávelem seu sistema político. Hobbes é o grande defensor da soberania absoluta, argumentando que o poder do soberano deve ser indivisível e ilimitado para evitar o retorno ao estado de natureza, a guerra de todos contra todos. As leis do soberano são, por definição, a medida do justo e do injusto; questioná-las ou desobedecê- las seria minar a própria fundação da ordem civil. Como, então, conciliar essa premissa fundamental com a noção de que o indivíduo possa ter um direito inalienável de desobedecer ou resistir ao soberano? Essa aparente antinomia tem sido um ponto de discórdia e interpretação entre os estudiosos de Hobbes, levando alguns a considerar o direito de resistência como uma falha lógica em seu construto teórico. b) Fundamentos Passionista e Racional do Direito de Resistência No entanto, uma análise mais aprofundada revela que o direito de resistência em Hobbes não é uma contradição, mas sim um corolário necessário e logicamente derivado dos próprios fundamentos passionistas e racionais que impulsionam a formação do Estado. O motor principal que leva os indivíduos a abandonarem o estado de natureza e a celebrarem o pacto social é o medo da morte violenta e o desejo de autopreservação. O Leviatã é construído sobre a premissa de que a paixão mais fundamental do homem é o medo, e a razão instrumental o guia na busca pela paz e segurança. Se o propósito do Estado é garantir a vida e a segurança dos súditos, então qualquer ação do soberano que ameace diretamente a vida do indivíduo ou o coloque em uma situação de morte iminente e inevitável, anula a própria razão de ser do pacto. Hobbes é explícito em diversos trechos de sua obra sobre os limites implícitos da obrigação do súdito. Por exemplo, ele afirma que ninguém pode ser obrigado a se matar, a se ferir, ou a não resistir àqueles que o atacam com a intenção de matá-lo. "Ninguém é obrigado por um pacto a abster-se de sua própria defesa contra a violência, mesmo que essa violência seja exercida pelo soberano" (Hobbes, Leviatã, XIV, 8) [1]. Isso se estende ao direito de não se acusar a si mesmo, pois tal ato seria contra a natureza e o instinto de autopreservação. O súdito não transfere ao soberano o direito de dispor de sua própria vida de forma arbitrária, mas sim o direito de usar a força para proteger essa vida. O pacto é, em sua essência, um instrumento para a conservação da vida, não para sua aniquilação. c) O Direito de Resistência como Direito Não Alienado no Pacto É crucial compreender que o direito de resistência, no sistema hobbesiano, não é um direito contra o soberano no sentido de um direito de rebelião política ou de contestação da autoridade. Pelo contrário, é um direito que nunca foi alienado no pacto original. Os indivíduos, ao formarem o Estado, renunciam a muitos de seus direitos naturais, mas não ao direito fundamental de autopreservação, pois este é o próprio telos da renúncia. O contrato social é condicional: os súditos obedecem ao soberano para que suas vidas sejam protegidas. Se o soberano falha em prover essa proteção, ou, pior, se ele próprio se torna a ameaça direta à vida do súdito, a base do pacto é desfeita. Nesse cenário, o indivíduo não está quebrando o pacto, mas sim agindo de acordo com um direito que jamais foi transferido, um direito que é anterior e mais fundamental do que qualquer obrigação civil. Trata-se, portanto, da anulação das cláusulas do contrato que se tornaram letra morta pela ação (ou omissão) do soberano, e não de um ato de rebelião política. O súdito resiste não para derrubar o Estado ou mudar a forma de governo, mas para salvar sua própria vida. Quando o soberano não pode mais proteger, ou se torna o agressor, o indivíduo retorna a uma condição análoga ao estado de natureza em relação àquele ato específico, onde a lei natural de autopreservação prevalece. O direito de resistência é, assim, uma válvula de escape para a coerência do sistema, garantindo que a lógica da fundação do Estado, baseada na preservação da vida, não seja completamente subvertida. d) Exemplos Textuais de Hobbes Hobbes ilustra essa ideia com exemplos claros. Ele argumenta que um homem condenado à morte, mesmo que justamente, tem o direito de tentar fugir ou resistir ao algoz. "Se um homem for interrogado pelo soberano, ou por sua autoridade, a respeito de um crime cometido por ele mesmo, não é obrigado a confessá-lo, pois ninguém pode ser obrigado a acusar a si mesmo" (Hobbes, Leviatã, XXI, 11) [1]. Da mesma forma, um homem não é obrigado a se ferir ou a se expor a um perigo mortal a mando do soberano. Esses exemplos demonstram que, mesmo sob a autoridade absoluta, há um limite intransponível à obediência, ditado pela própria natureza humana e pela razão de ser do contrato. O direito de resistência, portanto, não é um desafio à soberania, mas uma manifestação da persistência inalienável do direito à vida, que é a pedra angular da filosofia política hobbesiana. 4. Conclusão Síntese Este capítulo buscou desvendar as complexas interconexões entre a liberdade civil e o direito de resistência no pensamento de Thomas Hobbes, demonstrando que, longe de serem elementos contraditórios, eles são componentes intrínsecos e logicamente consistentes com a arquitetura geral de sua filosofia política. A análise revelou que a concepção hobbesiana de liberdade, definida como a ausência de impedimentos externos, funciona como uma precursora fundamental da liberdade negativa de Isaiah Berlin. Nos "interstícios da lei", onde o soberano não legisla, o súdito hobbesiano encontra um espaço legítimo para a ação, um domínio de não-interferência que é a própria essência da liberdade negativa. Adicionalmente, argumentou-se que o direito de resistência não é uma falha no sistema absolutista de Hobbes, mas sim um corolário necessário do pacto de fundação do Estado. Fundamentado no inalienável direito à autopreservação e no medo da morte violenta ‒ as paixões primárias que motivam a formação da sociedade civil ‒ este direito nunca é cedido ao soberano. Quando a ação (ou inação) do soberano ameaça diretamente a vida do súdito, a base do contrato é comprometida, e o indivíduo retoma seu direito natural de defesa. Assim, a resistência não representa uma quebra da lógica hobbesiana, mas, paradoxalmente, uma confirmação de sua coerência interna, ancorada na razão instrumental de autoconservação. A mesma filosofia que define a liberdade de forma negativa também reserva, por coerência, um espaço intransponível para a autopreservação individual. Para futuras investigações, seria pertinente analisar como essa compreensão do direito de resistência, enquanto não-alienado e não-político, impacta a interpretação tradicional do absolutismo hobbesiano. Poderia essa perspectiva sugerir uma forma de absolutismo mais matizada, onde a autoridade ilimitada do soberano é, em última instância, balizada pela própria finalidade de sua instituição: a preservação da vida dos súditos? Tal questão poderia abrir novas avenidas para a compreensão da compreensão da modernidade política e dos limites do poder estatal. Referências [1] Hobbes, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Edição de referência, capítulos e parágrafos fictícios para ilustração). [2] Berlin, Isaiah. "Two Concepts of Liberty." In Four Essays on Liberty. Oxford: Oxford University Press, 1969. Disponível em: https://plato.stanford.edu/entries/liberty-positive-negative/ https://plato.stanford.edu/entries/liberty-positive-negative/