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Arquiteturarevista ISSN: 1808-5741 arq.leiab@gmail.com Universidade do Vale do Rio dos Sinos Brasil Estivalet Bello, Helton Modelos, planos e realizações urbanísticas em Porto Alegre Arquiteturarevista, vol. 2, núm. 2, julio-diciembre, 2006 Universidade do Vale do Rio dos Sinos São Leopoldo, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193616283001 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto Arquitetura Revista v. 2 nº 2, jul-dez 2006 Modelos, planos e realizações urbanísticas em Porto Alegre Helton Estivalet Bello1 O presente artigo investiga algumas manifestações da arquitetura na imagem da cidade, bem como realizações decorrentes das utopias surgidas desde o século XVIII até o presente. Procura também verificar a evolução do significado de modernidade no decorrer deste processo, ao confrontar idéias relacionadas com o Ecletismo e o Modernismo na arquitetura e também com os modelos de cidade a que estão associadas. A verificação empírica destas correlações é examinada através do planejamento urbano de Porto Alegre, Brasil. Palavras-chave: Porto Alegre, modernidade, planejamento urbano City models, urban planning and realizations in Porto Alegre, Brazil This paper investigates some manifestations of architecture in the city image and the realizations that emerged from the utopias since the 18th century until the present time. It also intends to verify the evolution of the concept of modernity along this process, confronting ideas connected to the Eclecticism and Modernism in architecture and also the city models they are associated with. The empirical verification of these correlations is examined through the urban planning of Porto Alegre, Brazil. Key words: Porto Alegre, modernity, urban planning A cidade é o objeto maior da cultura humana (Waisman, 1990, p. 32). Utopia e construção da cidade moderna No decorrer dos séculos XIX e XX, o surgimento de uma nova ordem urbano-industrial na América Latina caracterizou-se pela emergência de dois temas incorporados às transformações do período: os ideais de “modernidade” e de “progresso”. Esses dois mitos – que poderiam até ser caracterizados como complementares –, atravessaram o tempo e chegaram ao presente através de uma atualização de significados, sempre com um sentido voltado para a mudança. Contudo, os desdobramentos daí decorrentes muitas vezes não corresponderam a uma efetiva evolução da qualidade de vida urbana. Modernidade, progresso e, paradoxalmente, passado e natureza, ilustraram o discurso de afirmação das classes dominantes em várias nações, legitimado pelos demais setores sociais. Fundamentados nessas referências, produziram-se os sonhos sobre o destino coletivo, consubstanciados na cidade como centro do poder e das transformações. Assim, a modernidade representou a aspiração a uma nova forma de vida urbana, segundo uma idéia de cidade que se contrapôs à imagem da cidade existente (Pechman, 1992, p. 37), num desejo de antecipar o futuro. A implantação desses novos valores, assumidos por todos como evidências do progresso, correspondeu à vontade de transformação do cenário da cidade, num processo de substituição do “tradicional” pelo “moderno”. As mudanças necessárias para a modernização da sociedade ocidental foram também caracterizadas pelo surgimento das utopias, concebidas enquanto projeções de uma vida coletiva e de um ambiente urbano renovados. O século XIX foi particularmente pródigo na produção dessas representações do futuro, chegando a ser considerado como “a idade de ouro das utopias” que, por sua vez, podem ser consideradas como a origem do urbanismo moderno (Andrade, 1993, p. 4). O pensamento utópico do século XIX agregou novos significados e desdobramentos ao conceito original daquela Utopia imaginada por Morus em 1516, no sentido de reforçar a hipótese de se tornar um projeto executável, isto é, como o primeiro estágio de uma transformação real no destino de uma sociedade. Assim, a renovação da imagem urbana passou a se manifestar não só no campo abstrato, mas principalmente através do espaço físico, mediante a implantação de modelos decorrentes das cidades ideais ou mesmo das realizações urbanísticas do século XIX. Neste período, operou-se nas cidades uma ampla mudança, tornando o cidadão o espectador e principal beneficiário de uma radical transformação morfológica e funcional do ambiente urbano. Surgia um novo cenário construído, uma inovadora concepção de vias e de espaços abertos, um redimensionamento funcional e estrutural, assumido como um ideal coletivo de modernidade. Não por acaso, a cidade de Paris, berço do Iluminismo e palco da Revolução Francesa, passou a ser a “Cidade-Luz”, capital da modernidade do século XIX, através de uma ampla intervenção em termos de embelezamento, circulação e infra-estrutura, comandada pelo prefeito Haussmann entre 1853 e 1870. A reforma de Paris alimentou a utopia da transformação de grande parte das metrópoles do velho e do novo mundo ocidental, tornando-se o modelo mais veiculado e utilizado na modificação da fisionomia das metrópoles até meados do século XX. Inúmeros autores reconheceram que a capital francesa foi referência de modernização não só para cidades européias, como Berlim, Barcelona, Madri e Roma (Rossi, 1995, p. 197), mas também para cidades americanas, como Chicago (Choay, 1980, p. 30), Buenos Aires e Havana (Segre, 1991, p. 80). Na construção das capitais brasileiras verifica-se a mesma influência. Muitas vezes a aplicação parcial do modelo, como na implantação de apenas um boulevard, foi evento suficiente para transformar uma cidade em referência nacional de modernização. Assim ocorreu com a Avenida Central no Rio de Janeiro, em 1904, sob a gestão do prefeito Pereira Passos. Pelo menos até os anos 1930, a haussmannização foi seguida em diversos projetos urbanísticos no Brasil, como no Plano da Cidade do Rio de Janeiro, de Alfred Agache, em 1928, e no Plano de Avenidas de São Paulo, do prefeito Prestes Maia, em 1930, ambos não executados. Na Inglaterra, em oposição ao impacto negativo da Revolução Industrial na estrutura urbana, surgia a Cidade-Jardim, proposta por Ebenezer Howard, em 1898. O modelo foi largamente adotado na Europa e América, principalmente na expansão periférica das cidades sob a forma dos chamados “bairros-jardim” (Segre, 1991, p. 257). Tal fenômeno também se generalizou no Brasil, principalmente na implantação de loteamentos residenciais pela iniciativa privada. No caso pioneiro do bairro Jardim América em São Paulo, o projeto foi desenvolvido entre 1913 e 1919 por Barry Parker, autor do plano de cidades-jardim inglesas como Letchworth e Hampstead Garden, juntamente com Raymond Unwin. Com o surgimento do Movimento Moderno, assumido como vanguarda perante o ecletismo arquitetônico e os modelos urbanísticos anteriores, a idéia da metamorfose do meio urbano tornou-se quase uma obsessão. A indústria foi o tema gerador de uma visão de cidade voltada completamente para o futuro, a partir da crença nas possibilidades do desenvolvimento tecnológico. Contudo, apesar dessa vanguarda propor um novo modelo, mais uma vez foram evocados os mesmos mitos de aspirações passadas: a cidade do Movimento Moderno, ou modernista, foi também denominada de modelo progressista (Choay, 1979, p. 8). Seguindo essa corrente, o Plan Voisin de Le Corbusier (1925) foi um singular exemplo da absoluta incompatibilidade entre duas concepções de cidade: no coração de Paris, reformulada pelo modelo de Haussmann, abria-se um grandevazio para a inserção de torres de 60 andares, rodeadas por áreas verdes e autopistas. Na realização do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna - CIAM (1933), esse modelo ficou definitivamente formulado através da Carta de Atenas, passando a influenciar o planejamento e a estruturação das cidades do mundo ocidental. Em essência, os princípios básicos propunham uma “cidade funcional” (tema do Congresso) através do atendimento das necessidades humanas então consideradas como essenciais: habitação, circulação, trabalho e recreação. No Brasil, o Estado foi o grande patrocinador da afirmação da vanguarda modernista comandada pela chamada “escola carioca” (Segawa, 1998, p. 103) – composta por Lúcio Costa, Niemeyer e Reidy, entre outros –, cuja qualidade das realizações transformou-se em expressões da identidade de uma nação moderna, amplamente reconhecida no exterior. Obras como o Ministério da Educação no Rio (1936), o Pavilhão do Brasil na Exposição de Nova York (1939) e as realizações da Pampulha em Belo Horizonte (1943), culminaram com o projeto e a construção de Brasília (1958), marco da consagração da arquitetura e urbanismo modernista no País, hoje reconhecida como Patrimônio da Humanidade. Embora a diversidade dos modelos e planos mencionados, em todos se percebe uma característica em comum: o caráter deliberado de diferenciação – ou mesmo de negação – relativo à cidade herdada, o que representa muitas vezes a reestruturação do ambiente construído mediante a desestruturação da preexistência. Tal mudança de paradigma no processo de construção urbana pode ser caracterizada como uma efetiva “revolução ambiental” da cidade, correspondendo à idéia de modernidade e de progresso presente em cada época e lugar. Essa revolução ambiental constitui-se numa figura sempre presente no imaginário coletivo, se admitirmos a cidade como obra permanente da sociedade. Assim, a construção da cidade futura converte-se em um padrão onde se encadeiam as várias etapas de um processo contínuo, que parte da utopia (cidade ideal), para instaurar modelos (cidade-paradigma), que podem ser adotados em planos ou projetos (cidade virtual) e que resultam em uma obra construída, com eventuais deformações e/ou adaptações relativas às etapas anteriores (cidade real). Porto Alegre: positivismo, modernismo, ambientalismo O Plano Geral de Melhoramentos de 1914, atribuído a João Moreira Maciel, foi o primeiro projeto urbano para o conjunto da cidade de Porto Alegre, constituindo-se no maior legado da administração positivista em termos urbanísticos. Tratava-se de um instrumento fundamental para transformações modernizadoras que iriam se consolidar logo adiante, suplantando a estrutura e a imagem urbana de herança colonial. No mandato de Otávio Rocha (1924/28), generalizou-se a prática da cirurgia urbana, com os canteiros de obra tomando conta do centro. Além da ampliação na escala das obras de infra-estrutura, a cidade foi sendo higienizada através do rompimento dos becos, dando espaço, literalmente, ao surgimento de boulevards. O título de “remodelador” dado a Otávio Rocha pela opinião pública (Mauch, 1992, p. 41) demonstrava que seu papel foi semelhante ao desempenho de Haussmann em Paris. Em complementação às obras viárias e de infra-estrutura, intensificou-se a implantação de áreas verdes com a arborização das ruas, ajardinamento de praças e o início do tratamento paisagístico do Campo da Redenção (Souza e Damásio, 1993, p. 142). No caso da Avenida Borges de Medeiros, inaugurada em 1932, viabilizou-se um franco acesso entre a zona sul e o centro, sendo construído o primeiro viaduto da cidade, tratado de forma monumental. Para os cidadãos da época, a obra resumiu a imagem de uma Porto Alegre moderna (Pesavento, 1991, p. 70). Tais operações evidenciavam um amplo projeto de transformação da imagem e estrutura da cidade. De acordo com um plano estabelecido, foram enfrentados os problemas de trânsito, higiene e equipamentos da capital com uma explícita intenção estética, ou seja, colocando a beleza do panorama construído como um fator imprescindível na imagem urbana resultante. Em meados da década de 1930 colocava-se a necessidade de um novo plano para ordenar o crescimento da capital. Sob esta orientação, Edvaldo Paiva e Ubatuba de Faria, integrantes do quadro técnico da Prefeitura, elaboraram uma pré-proposta em 1935, que partia do Plano Maciel e propunha soluções viárias fortemente influenciadas pelo Plano Agache para o Rio e pelo de Prestes Maia para São Paulo (Porto Alegre, 1964, p. 17). De 1938 até 1943, foi desenvolvido outro “plano diretor” para a cidade pelo arquiteto Arnaldo Gladosch, contratado pelo Município ao escritório Agache do Rio, justificando o prestígio e a influência exercidos pelo urbanista francês no contexto nacional. Seguindo a mesma orientação dos planos anteriores, Gladosh apresentou três propostas de intervenção na estrutura da cidade. Enfatizava a organização do sistema viário em avenidas perimetrais e radiais, incluindo a abertura das Avenidas Farrapos e Salgado Filho, além do prolongamento da Avenida Borges de Medeiros. No entanto, devido à falta de estrutura técnica e administrativa da Prefeitura, o Plano acabou não sendo implantado na íntegra, reduzindo-se a uma lei de recuos e alinhamentos. Mesmo assim, ficou claro que a proposta de Gladosh visava à articulação dos espaços com base em traçados de origem barroca. Valia-se também de grandes eixos e pontos focais, buscando um sentido paisagístico para o conjunto, o que ainda se poderia considerar como ecos do longínquo modelo de Haussmann. É significativo observar que a adoção de um modelo de reestruturação e verticalização para a área central foi complementado por outro modelo na expansão periférica e horizontal da cidade. Vários bairros ou loteamentos residenciais construídos principalmente nos anos 1930 e 1940 representaram uma tradução da imagem da Cidade-Jardim para o contexto local. Em alguns desses espaços, hoje totalmente integrados à malha urbana da cidade, percebe-se um ambiente associado ao modelo de Howard, pelo traçado orgânico, construções isoladas em baixa escala e densa vegetação. Vila Jardim, Vila Assunção e Vila Conceição ilustraram essa tendência, como também a Vila do IAPI, cuja permanência de características originais em termos de tipologia arquitetônica e morfologia urbana lhe valeram o reconhecimento como Patrimônio Cultural de Porto Alegre. Após o final da Segunda Guerra Mundial iniciava-se um processo de redemocratização no Brasil. A industrialização crescente concorreu para acelerar o crescimento das metrópoles brasileiras, que atraíam cada vez mais a mão-de-obra do campo. A partir da metade da década de 1950, o “desenvolvimentismo” do presidente Juscelino Kubitscheck imprimiu um novo ritmo na vida nacional. Através do lema “50 anos em 5”, JK promoveu a abertura do país ao capital estrangeiro e a internacionalização da economia, sem deixar de lado o ufanismo nacionalista existente desde a fase anterior. Capitalismo, nacionalismo e industrialização tornaram-se as palavras de ordem que mobilizaram o país, traduzindo os anseios por modernidade durante a época dos “anos dourados” (Pesavento, 1991, p. 94). Em Porto Alegre, uma vanguarda local afirmava-se a partir de 1949, por ocasião da formatura da turma pioneira do curso de arquitetura da Escola de Belas Artes. A disponibilidade de profissionais qualificados e sintonizados com o Movimento Moderno brasileiro foi decisiva para plasmar a nova linguagem no cenário da cidade. Em âmbito urbanístico, a influência já se fazia sentir desde 1951, quando os arquitetos Edvaldo Paiva e Demétrio Ribeiro organizaram uma proposta para a cidade sob a inspiração da Carta de Atenas. Este trabalho teve continuidade no anteprojeto do plano diretor organizado pelomesmo Edvaldo Paiva em 1954. Somente em 1959 o Plano Paiva foi implantado na cidade. Tratava-se do primeiro plano diretor de Porto Alegre na forma de uma legislação específica (Lei 2046/59). Assim, princípios básicos da doutrina modernista passaram a compor um instrumento legal através de parâmetros para a estruturação da cidade. Tais padrões consistiam na racionalização das atividades, das vias e na instituição de índices urbanísticos (densidade, potencial construtivo do lote, recuos e altura predial), que foram sendo aplicados segundo o crescimento das áreas urbanizadas. Embora a rigidez desses dispositivos caracterizasse um reducionismo na aplicação da Carta de Atenas, alguns aspectos da proposta de Paiva evidenciaram a predominância do repertório característico deste modelo. Na exposição de motivos, identificam-se referências ao conceito de “unidade de vizinhança” – equivocadamente denominado no Plano de “unidade de habitação” –, além da ênfase ao zoneamento discriminado de usos do solo (Porto Alegre, 1964, p. 27). Quanto ao tecido edificado, ficou evidente a associação da tipologia proposta com a imagem ideal da cidade modernista. Nesse sentido, a referência à “superquadra”, presente no projeto não executado do bairro residencial Praia de Belas, revelava claramente a eleição de Brasília como matriz da concepção. No decorrer da aplicação do Plano, incrementou-se a verticalização da cidade segundo o repertório da arquitetura moderna. Nesse período, Porto Alegre experimentou o maior crescimento edilício de sua história, o que alterou significativamente a morfologia urbana. Processava-se, novamente, uma revolução ambiental, que redefinia outra imagem do moderno na cidade. Com o advento do golpe militar de 1964, a democracia e os resquícios do desenvolvimentismo deram lugar ao “milagre brasileiro”. Num clima de ufanismo demagógico, o Estado promovia obras faraônicas em âmbito nacional, como a rodovia Transamazônica e a usina de Itaipu, postura que também acabou repercutindo na construção de muitas cidades do País. Em Porto Alegre, além do acelerado processo de verticalização das construções, a estruturação urbana acusou o surgimento de extensos conjuntos habitacionais do Banco Nacional da Habitação – BNH, em paralelo ao crescente processo de favelização nos vazios urbanos e na periferia. A postura tecnocrática dos governos autoritários prosseguiu nos anos 1970 com massivas intervenções em áreas consolidadas, o que repercutiu em alterações sem precedentes na morfologia da cidade. O centro perdeu sua fisionomia mais tradicional: os bondes deixaram de circular, a “Rua da Praia” tornava-se exclusiva de pedestres, surgiam vias perimetrais, viadutos e túneis (Pesavento, 1991, p. 113), que ampliaram as demolições do tecido histórico e saturavam a cidade de concreto aparente. Além disso, a construção do muro contra enchentes e da ferrovia ao longo da Avenida Mauá separou o porto do centro histórico e tornou o nome da cidade uma contradição, evidenciando uma crise de identidade sem precedentes. Em 1979, Porto Alegre ganhava um novo plano diretor, também implantado por uma legislação específica (Lei Complementar 43/79). Em relação ao plano anterior, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano – 1° PDDU – trouxe principalmente algumas inovações metodológicas, pois não mais se tratava de um plano “de autor” e sim de uma proposta realizada por uma equipe de técnicos de variada formação, o que evidenciava o caráter multidisciplinar do instrumento. Também o aspecto participativo foi outra prerrogativa deste Plano, abrindo um pouco mais de espaço à representação de algumas entidades organizadas da sociedade civil na forma de Conselhos Municipais. Não obstante a tais inovações, no que se refere ao modelo urbanístico predominante, o 1o PDDU ainda pode ser caracterizado como um desdobramento da influência da Carta de Atenas na construção da cidade, pois manteve sua fundamentação em alguns conceitos-chave presentes no Plano de 1959. A instituição das “unidades territoriais de planejamento” – UTPs (módulo espacial e estatístico) – visava um sistema permanente de planificação da cidade e constituía-se numa atualização do conceito de “unidade de vizinhança” (ainda erroneamente denominado “unidade de habitação”) existente no plano anterior. Além disso, a manutenção dos critérios de homogeneidade de uso e de hierarquização do sistema viário evidenciou a importância dada ao aspecto funcional, tão presente no modelo da cidade modernista. A exemplo do plano de 1959, o 1o PDDU também se valeu da aplicação dos regimes de aproveitamento, ocupação, recuos e altura das edificações. A tipologia arquitetônica induzida por estes padrões consagrou alguns elementos do repertório da arquitetura modernista, como pilotis, terraços, coberturas e afastamentos dos limites do terreno. No entanto, a generalização de tais elementos através de uma lei urbanística produziu um tecido urbano incoerente. Na busca daquela imagem ideal da superquadra de Brasília, a implantação do 1o PDDU acabou gerando uma progressiva descaracterização da quadra tradicional, pela prevalência de uma estrutura fundiária baseada no lote autônomo (Turkienicz, 1993, p. 197). Assim, paralelamente ao processo de desconstrução da quadra tradicional empreendida pela adoção do urbanismo progressista, prosseguiu também a substituição das permanências do ecletismo arquitetônico nesta etapa de estruturação da cidade. Apesar de o Plano ter instituído áreas e edificações para preservação, a pressão exercida pelos novos índices construtivos – invariavelmente superiores aos gabaritos das construções remanescentes – estimulou o surgimento de edificações com maior altura e volumetria, acelerando o processo de renovação dos edifícios, principalmente na área central da cidade. Na prática, revelava-se uma aversão à cidade pré-existente, pois a manutenção de edificações antigas resumiu-se à preservação de fachadas ou frações de prédios em muitos casos. Os conflitos da aplicação do PDDU na cidade, somados à forte pressão dos agentes empreendedores pelo incremento dos índices construtivos, provocaram a descaracterização da proposta original pelas alterações do legislativo em 1987. Isso culminou em um longo processo de reavaliação do dispositivo em vigor, encaminhando o surgimento de um novo plano urbanístico, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental – PDDUA (Lei Complementar 434/1999) –, que agregou novos conceitos e instrumentos de gestão e aumentou também o número de representantes em sua implementação. Nesse plano, a cidade tornou-se objeto de um planejamento estratégico, fundamentado nos eixos de estruturação urbana, mobilidade urbana, uso do solo privado, qualificação ambiental, promoção econômica, produção da cidade e sistema de planejamento. O modelo espacial previsto partiu do reconhecimento do “centro histórico” da cidade e propôs a expansão deste centro até a III Perimetral (“cidade radiocêntrica”), a partir de onde se definiram outros “tipos” de cidade com maior miscigenação de usos, ocorrendo inclusive a evocação da “cidade-jardim” em setores da zona sul. O PDDUA também incorporou em seu texto (e em sua denominação) uma especial atenção ao aspecto ambiental, aprimorando medidas para a preservação e qualificação do ambiente natural e construído através, por exemplo, da proposta de regulamentação das Áreas Especiais de Interesse Cultural (uma atualização e ampliação das antigas Áreas Funcionais de Interesse Paisagístico do plano anterior). Embora as prerrogativas de desenvolvimento urbano sustentável, algumas medidas adotadas no Plano – como o aumento de densidade e carregamento da infra-estrutura – induziram o incremento dos regimes urbanísticos, principalmente na área definida como cidade radiocêntrica, o que acarretou consideráveis impactosna morfologia urbana existente. A unidade de vizinhança, conceito tão caro ao PDDU, perdeu significado no PDDUA, pois se verifica o rompimento do tecido residencial de alguns bairros tradicionais da cidade por edifícios de até 20 pavimentos de altura, gerando conflitos entre moradores, agentes imobiliários e gestores municipais. Esta foi a tônica nos debates nas Conferências de Avaliação do PDDUA, indicando a necessidade de aprimoramento dos dispositivos de controle e de participação da população mais diretamente relacionada com as intervenções decorrentes da aplicação dos regimes em vigor nos vários setores da cidade. Conclusão Nos últimos 100 anos, Porto Alegre sofreu uma significativa mudança de padrões na arquitetura e estruturação urbana, refletindo concepções distintas de modernização. Este desenvolvimento divide-se em duas fases, cujo limiar é a chegada dos anos 50. Entre 1914 e 1949, perdura a influência do modelo instaurado pela reforma de Paris na segunda metade do século XIX. Viu-se que o Plano Gladosh, concluído em 1943, seguia a versão de planos como o de Agache, no Rio, e Prestes Maia, em São Paulo, atualizando e ampliando idéias contidas da proposta urbanística de Maciel para Porto Alegre em 1914. Em paralelo, na escala das edificações, a transição do ecletismo historicista para a arquitetura déco marcou o ocaso da chamada “modernidade positivista” no cenário da cidade. Já nos anos 1950, o surgimento da primeira geração de arquitetos locais foi um evento emblemático na progressiva hegemonia da doutrina modernista na arquitetura e na adoção dos preceitos da Carta de Atenas. O modelo de cidade proposto pelo Plano Paiva em 1959 e pelo 1o PDDU em 1979 não conseguiu se sobrepor à cidade existente por inteiro. Na prática, apenas estabeleceu com o modelo precedente uma convivência marcada por conflitos morfológicos e tipológicos. Tais impactos prosseguiram na vigência do PDDUA que, apesar do discurso ambientalista e dos novos instrumentos de participação e de preservação, indicam ainda desequilíbrios entre inovação e permanência no construir da cidade. O aumento dos padrões de aproveitamento e de volumetria está a indicar o possível surgimento de outra revolução ambiental em Porto Alegre. Ao final de todo o processo, percebe-se a dicotomia, às vezes dramática, entre diferentes visões de modernidade estampadas na configuração urbana. Assim como em outras cidades brasileiras e latino-americanas, Porto Alegre exemplifica o caso de uma cidade onde um modelo de estruturação mais tradicional não se manteve e cujos modelos aplicados mais recentemente não se completaram. Apesar do desmonte do ambiente urbano construído na primeira metade do século XX, seus principais elementos ainda compõem a estrutura primária da cidade contemporânea, juntamente com realizações mais recentes. A consagração de algumas dessas permanências como Patrimônio Cultural indica a sua importância enquanto imaginário urbano, atuando como referência não só para o fortalecimento da qualidade ambiental e identidade coletiva, mas principalmente como fundamento de novos planos e projetos para a construção da cidade do presente e do futuro. NOTAS 1 Arquiteto, especialista em Restauração de Edificações e Conjuntos Históricos pela CECRE/UFBA, mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo PROPUR/UFRGS. Docente do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Caxias do Sul – UCS. Técnico da Prefeitura Municipal de Porto Alegre/Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural – EPAHC/SMC. REFERÊNCIAS ANDRADE, L.M.V. 1993. A Estrutura de Áreas Residenciais e a Ideologia Projetual: Dois Paradigmas em Discussão. Porto Alegre, RS. Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional. Faculdade de Arquitetura - UFRGS, 236 p. CHOAY, F. 1979. O Urbanismo. São Paulo, Perspectiva. MAUCH, C. 1992. História de Porto Alegre: processo de ocupação e urbanização. In: PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE, Porto Alegre: memória e identidade. Porto Alegre, Secretaria Municipal da Cultura, p. 30-49. PECHMAN, R.M. 1992. Um olhar sobre a cidade: estudo da imagem e do imaginário do Rio na formação da modernidade.In: A. FERNANDES e M.A. GOMES (orgs.), Cidade e História. Salvador, UFBA/Faculdade de Arquitetura/ANPUR. PESAVENTO, S.J. 1991. Memória Porto Alegre, Espaços e Vivências. Porto Alegre, Editora da Universidade - UFRGS/Prefeitura Municipal, p. 133-145. PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal. 1964. Plano Diretor. Porto Alegre, PMPA. PORTO ALEGRE. Secretaria do Planejamento Municipal. 1983. Porto Alegre; Planejar Para Viver Melhor. Porto Alegre, SPM. PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal/SPM. 2000. Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental - PDDUA; Lei Complementar 434/99. Porto Alegre, CORAG. ROSSI, A. 1995. A Arquitetura da Cidade. São Paulo, Martins Fontes. SEGAWA, H. 1998. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo, EDUSP. SEGRE, R 1991. América Latina, Fim de Milênio: Raízes e Perspectivas de sua Arquitetura. São Paulo, Studio Nobel. SOUZA, C.F. de e DAMÁSIO, C. 1993. Os primórdios do urbanismo moderno: Porto Alegre na administração Otávio Rocha. In: W. PANIZZI e J.F. ROVATTI (orgs.), Estudos urbanos: Porto Alegre e seu planejamento. Porto Alegre, Editora da Universidade – UFRGS/Prefeitura Municipal, p. 133-145. TURKIENICZ, B. 1993. 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