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2 Esta coletânea de textos dialoga com a filosofia da linguagem de Wittgenstein, tendo como foco questões educacionais do nosso mundo contemporâneo. Os autores recorrem a diversos conceitos forjados pelo filósofo, como os de jogo de linguagem, semelhança de família, forma de vida, entre outros, para problematizar diretrizes e discursos educacionais que ainda estão atrelados a um modelo referencial da linguagem, a saber, um modelo que desconsidera a multiplicidade das funções da linguagem e, consequentemente, torna-se origem de diversas confusões de natureza conceitual que também acometem o campo educacional. Convidamos os leitores a também dialogarem com Wittgenstein ao longo dos diferentes percursos trilhados pelos autores, à medida em que estes vão como que “dissolvendo” problemas educacionais decorrentes de tais diretrizes e discursos, através de um processo filosófico-terapêutico que contribui para se fomentar atitudes e práticas no contexto escolar que, de fato, possam estimular a imaginação, a reflexão e o pensamento crítico; combatendo-se, assim, o pensamento dogmático tão presente nas sociedades de hoje, e fundamentalmente humanizando-se nossas crianças e adolescentes. 3 Diálogos com Wittgenstein na Educação Organização Cristiane Maria Cornelia Gottschalk Bárbara Nivalda Palharini Alvim Sousa Revisores Língua Inglesa Martin Charles Nicholl Língua Portuguesa Edson Carmona Sanches Luciana Duarte Baraldi Marília Maria Polerá Sampaio 4 Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e autoria e respeitando a Licença Creative Common indicada. Universidade de São Paulo Reitor: Prof. Dr. Carlos Gilberto Carlotti Junior Vice-Reitora: Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Diretora: Profa. Dra. Carlota Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto Vice-Diretor: Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto Direitos desta edição reservados à FEUSP Avenida da Universidade, 308 - Cidade Universitária – Butantã 05508-040 – São Paulo – Brasil - (11) 3091-2360 E-mail: spdfe@usp.br - http://www4.fe.usp.br/ Revisores Língua Inglesa - Martin Charles Nicholl Língua Portuguesa - Edson Carmona Sanches, Luciana Duarte Baraldi e Marília Maria Polerá Sampaio Comunicação e Mídia da FEUSP Projeto gráfico e diagramação - Maria Clara Bueno Capa - Lilian Curiel Passeri Catalogação na Publicação Biblioteca Celso de Rui Beisiegel Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo D537w Diálogos com Wittgenstein na Educação. / Cristiane Maria Cornelia Gottschalk; Bárbara Nivalda Palharini Alvim Sousa (Organizadores). – São Paulo: FEUSP, 2025. 196 p. ISBN: 978-65-5013-019-0 (E-book) DOI: 10.11606/9786550130190 1. Wittgenstein. 2. Educação. 3. Humanização. 4. Terapia filosófica. 5. Ecopedagogia. I. Gottschalk, Cristiane Maria Cornelia (org.). II. Sousa, Bárbara Nivalda Palharini Alvim (org.). III. Título. CDD 22ª ed. 193 Ficha elaborada por: José Aguinaldo da Silva – CRB8a: 7532 5 Sumário Prefácio� 7 Mauro Lúcio Leitão Condé Apresentação� 10 Cristiane Maria Cornélia Gottschalk Bárbara Nivalda Palharini Alvim Sousa Capítulo�1� � 16 Embracing the Shallow Ground of Cherished Eco-pedagogies during a Climate Crisis: Thinking with Wittgenstein about the Efficacy of Place-based Education Jeff Stickney Capítulo�2� � 46 Educação como humanização numa leitura ético-política de Wittgenstein Mirian Donat Capítulo�3� � 63 Efeitos terapêuticos da filosofia de Wittgenstein nas Imagens da educação Cristiane Maria Cornelia Gottschalk Capítulo�4� � 91 Compondo uma visão panorâmica do conceito de cuidado: ideias wittgensteinianas para pensar cuidado e ensino em enfermagem Rosely da Silva Matos Liberatori Capítulo�5� � 106 Uma boa analogia refresca o entendimento: Wittgenstein, Frazer e o abstracionismo pedagógico Eder Marques Loiola 6 Capítulo�6� � 120 Wittgenstein na Educação Matemática: dos usos da matemática à ampliação dos “modos de ver” o mundo Bárbara Nivalda Palharini Alvim Sousa Capítulo�7� � 131 Uma crítica wittgensteiniana ao utilitarismo do Currículo de matemática na BNCC Dorival Rodrigues da Rocha Jr. Capítulo�8� � 139 A importância da nomenclatura nas aulas de língua materna: reflexões de inspiração wittgensteiniana sobre a BNCC de língua portuguesa Marília Maria Polerá Sampaio Capítulo�9� � 151 Educação Musical é preciso? Para quê? José Estevão Moreira Capítulo�10� � 167 O protagonismo do aluno na BNCC olhado pela filosofia da linguagem wittgensteiniana Solange de Araújo Gonçalves Capítulo�11� � 181 Por uma docência performativa: dos jogos de linguagem aos estudos da performance Samuel Edmundo Lopez Bello Luís Fabiano de Oliveira Sobre�os(as)�Autores(as)� � 192 7 Prefácio Mauro Lúcio Leitão Condé Nas Observações sobre os fundamentos da matemática, Wittgenstein profere de forma lapidar a seguinte proposição: “O matemático é um inventor, não um descobridor” (Wittgenstein, 1956, § 168). Essa afirmação poderia ser uma síntese não apenas da sua profunda crítica à tradicional ideia de fundamentos da matemática, mas também, em um sentido mais amplo, uma crítica à cultura ocidental. A busca pela essência do conhecimento que caracterizou a cultura ocidental, em diversos aspectos, encontrou na matemática um tipo de confirmação da possibilidade de existência dessa essência. O máthēma, a mathesis universalis ou a matemática como contemporaneamente entendida por nós, enquanto “aquilo que se aprende” definiu os rumos da cultura ocidental na determinação daquilo que deveria ser o modelo da base do conhecimento ou a essência predeterminada que deveríamos perseguir. Com efeito, a matemática tornou-se um importante pilar de sustentação dos valores ocidentais. Consequentemente, uma crítica contundente e direta a uma concepção tradicional de matemática necessariamente reverbera em toda a cultura. Nesse sentido, poderíamos seguir uma linha de pensamento que considera Wittgenstein, mais do que um filósofo da linguagem ou da matemática, um crítico da cultura. Contudo, diferentemente de outros pensadores como Nietzsche, que, ao realizar sua crítica à cultura ocidental “explode” a metafísica causando grande estardalhaço e comoção, além de não propor nada em seu lugar, Wittgenstein, por sua vez, de forma muito mais sutil, “implode” as estruturas que sustentavam essa metafísica ocidental (Condé, 1999) e, por consequência, termina por exigir uma redefinição dessa cultura que se baseava na metafísica. Entretanto, ao invés de cair no perspectivismo niilista nietzschiano, Wittgenstein nos lega uma rica proposta para erigir um novo pensamento sobre os escombros de sua crítica. Pensamento esse presente sobretudo em suas obras Investigações filosóficas e Sobre a certeza. A nova concepção de linguagem apresentada por ele e, derivada dela, sua compreensão sobre os fundamentos da matemática, constituem o mecanismo dessa profunda crítica aos valores ocidentais e, ao mesmo tempo, a proposta para a superação da falência da metafísica ocidental. Em outras palavras, em certo sentido, a matemática se constituiu como o epicentro de toda uma 8 visão de mundo, ao sustentar uma concepção metafísica, e a crítica contundente de Wittgenstein exigiria uma revisão não apenas de nossa ideia de matemática, mas dos nossos diferentes valores culturais que de várias formas se conectaram ao saber matemático. Certamente, não se trata de desqualificar a matemática. Ela foi e é, mais que um importante valor instrumental, um valor cultural. Ainda que o exercício matemático não mais possa ser um “descobrir” dos entes matemáticos, como a tradição entendeu, mas uma “invenção” de tais entes, como propõe Wittgenstein, isso apenas nos mostra como a matemática ainda se estabelece como uma sólida referência a orientar nossos pensamentos e nossas ações. Trata-se, portanto, de requalificar nossa compreensão da matemática e suas diferentesfor us” (OC, § 273). In saying that these propositions “Count” as certain Wittgenstein makes them rule-governed elements of a game rather than objective pictures of reality. In the end, we try to instruct others in our contestable language- games for weighing evidence: “Whether a proposition can turn out false after all depends on what I make count as determinants for that proposition” (OC, § 5). In answering his interlocutor, Wittgenstein acknowledges the circularity of this form of post-foundational reasoning. “Well, if everything speaks for an hypothesis and nothing against it – is it then certainly true?” One may designate it as such. – But does it certainly agree with reality, with the facts? With this question you are already going around in a circle. To be sure there is justification; but justification comes to an end.” (OC, § 191-92, emphasis added). Regularities in our daily experience15 and the agreement of others with whom we share a form of life give shallow foundation to these language-games: repeated confirmations are not exactly “proof” but give us the right to make certain assumptions or predictions (OC, § 294-296; Cf. § 240-241). It is not a matter of empirical verification (see L&C, p. 27) as it was for the positivists, but a matter of whether we learn to live and see this way. “Further experiments cannot give the lie to our earlier ones, at most they may change our whole way of looking at things” (OC, § 292); in other words, not reality itself, but what people “consider reasonable and unreasonable alters” over time (OC, § 336-337). To give up on these propositions, he says, would alter our whole way of seeing nature (OC, § 293).16 Wittgenstein defended his game/practice-based view of learning against possible accusations of “reductionist behaviorism”: a crucial distinction when discussing the role of initiate training and enculturation into “solidarities” of worldview (borrowing Richard Rorty’s 1989 term). But doesn’t anything physical correspond to it? I do not deny that. (And suppose it were merely our habituation to these concepts, to these language-games? But I am not saying that it is so.) If we teach a human being such-and-such a technique by means of examples— 15 Wittgenstein lists things like the sphericity of the earth, that clothes remain in the dresser- drawer while we are not home, that rulers do not stretch, that colours remain constant, etc. 16 Wittgenstein’s epistemology was sympathetic if not openly aligning himself with pragmatism (Garrison, 2017). “So I am trying to say something that sounds like pragmatism. Here I am being thwarted by a kind of Weltanschauung” (OC, § 422). 33 that he then proceeds like this and not that in a particular new case, or that in this case he gets stuck, and thus that this and not that is the “natural” continuation for him: this of itself is an extremely important fact of nature (Z, § 355).17 As Stephen Mulhall (1990, 2001) put it, through training and enculturation we “graft onto our natural reactions new, second-nature reactions” like ways of seeing/regarding things that become for us defining practices of our community, including in this case how we generate and respond to scientific reports on climate change. But it is not as though we have chosen to adhere to these regularities (OC, § 315 & §317; cf. Z, § 413; PI, § 241-2). “We do not learn the practice of making empirical judgments by learning rules: we are taught judgments and their connexion with other judgments. A totality of judgments is made plausible to us”. (OC, § 140). Over-extending causal claims in attempts to create a ‘pedagogical science’ Wittgenstein thought it was laughable to talk about psychology or aesthetics becoming exact sciences. The confusion and barrenness of psychology is not to be explained by calling it a “young Science”; its state is not comparable with that of physics, in its beginnings (PI, xiv, p. 232). You might think Aesthetics is a science telling us what’s beautiful – almost too ridiculous for words. I suppose it ought to include also what sort of coffee tastes well (C&V, § 2, p. 11). People often say that aesthetics is a branch of psychology. The idea is that once we are more advanced, everything – all the mysteries of Art – will be understood by psychological experiments. Exceedingly stupid as the idea is, this is roughly it (C&V, § 35, p. 17; cf. III, § 7, p. 19, where he explores “what sort of thing we would call an explanation of an aesthetic judgment” – what psychology is supposed to offer.). In trying to justify eco-pedagogies we may fall into this trap of thinking that someday we may know better how the brain works and will be able to verify the pedagogical moves an instructor makes in performing arts or place-based education. 17 He was careful to avoid the obvious criticism that he has fallen into behaviourism, or stimulus-response:“Are you not really a behaviourist in disguise? Aren’t you at bottom really saying that everything except human behaviour is a fiction?” – If I do speak of fiction, then it is of a grammatical fiction (PI, § 307). 34 Richard Louv’s diagnosis of our students’ ‘nature-deficit disorder’18 is now manifesting in empirical studies that seek to prove the benefits of getting into the greenery, employing medical and neuroscience to bolster outdoor education (Meerts-Brandsma, Sibthorp, Rochelle, 2019).19 Some of this is likely valid empirical research, helping to support outdoor educators. There are obvious constraints, however, on using classrooms and walks as laboratories: rather messy places for isolating the causes and effects for a given pedagogical move, or for testing the results of myriad, sometimes overlapping or successive, variably paced sets of educational practices. There is no control (or double-blind) in the scientific sense of limiting and identifying variables behind actions and reactions. Classrooms are not wind tunnels, and when we take our classes outside,20 we expose ourselves to even wider elements. But Evans et al was not calling for such scientific or technical rigour, but rather improving (prudently) quantitative and qualitative research methods in ESE research in order to leverage administrative support. I am not arguing against the use of surveys with more representative sample sizes and more sensitive methods of gathering the thoughts of teachers and students (e.g., better ones than using ambiguous Likart scales), or transcribing and coding interview and focus group conversations with teachers and students, and insider testimony of practitioners like my own paper (Stickney, 2022a) on inaugurating and running an ESE course in our ITE program. Consider though for a moment how coding survey and interview data works, starting from Wittgenstein’s remarks on seeing/regarding as: how (using his examples) we come to see a fork as cutlery (PI, p. 195), a given tree as a chestnut, (OC, § 591; cf. § 353, 451),21 or read fluently without using phonics (PI, p. 224). 18 What is Nature-Deficit Disorder? (2019) https://richardlouv.com/blog/what-is- nature-deficit-disorder. 19 A growing field over the last fifteen years: Outdoor learning is good for pupils and teachers: https://neurosciencenews.com/outdoor-learning-15360/The benefits of outdoor learning: https://neurosciencecommunity.nature.com/posts/49802-the-benefits-of-outdoor- learning https://health.utah.edu/sites/g/files/zrelqx131/files/media/documents/2020/ Meerts%20at%20al%202019%20JEE%20NOLS_SE.pdf https://health.utah.edu/sites/g/files/zrelqx131/files/files/migration/image/ sibthorproe.pdf - https://www.psu.edu/news/health-and-human-development/story/researchers- receive-14m-study-how-outdoor-education-influences/ - https://ies.ed.gov/ncee/edlabs/regions/west/Ask/Details/115 Accessed on: Feb 15th 2025. 20 https://www.sciencealert.com/experiment-reveals-what-1-hour-in-nature-does-to-the- human-brain. Accessed on: Feb 15th 2025. 21“I know what kind of tree that is.—It is a chestnut.” (OC, § 591). https://richardlouv.com/blog/what-is-nature-deficit-disorder https://richardlouv.com/blog/what-is-nature-deficit-disorder https://neurosciencenews.com/outdoor-learning-15360/ https://neurosciencecommunity.nature.com/posts/49802-the-benefits-of-outdoor-learning https://neurosciencecommunity.nature.com/posts/49802-the-benefits-of-outdoor-learning https://health.utah.edu/sites/g/files/zrelqx131/files/media/documents/2020/Meerts%20at%20al%202019%20JEE%20NOLS_SE.pdf https://health.utah.edu/sites/g/files/zrelqx131/files/media/documents/2020/Meerts%20at%20al%202019%20JEE%20NOLS_SE.pdf https://health.utah.edu/sites/g/files/zrelqx131/files/files/migration/image/sibthorproe.pdf https://health.utah.edu/sites/g/files/zrelqx131/files/files/migration/image/sibthorproe.pdf https://www.psu.edu/news/health-and-human-development/story/researchers-receive-14m-study-how-outdoor-education-influences/ https://www.psu.edu/news/health-and-human-development/story/researchers-receive-14m-study-how-outdoor-education-influences/ https://ies.ed.gov/ncee/edlabs/regions/west/Ask/Details/115 https://www.sciencealert.com/experiment-reveals-what-1-hour-in-nature-does-to-the-human-brain https://www.sciencealert.com/experiment-reveals-what-1-hour-in-nature-does-to-the-human-brain 35 The investigator has to re-cognize something as being related to a general category or theme in the research and then code it appropriately. These cases are examples of agreement in judgment, based on a common form of life (PI, § 221-2, above): Knowledge is in the end based on acknowledgement. (OC, § 378). Saying there was “triangulation in the data” sounds convincing, but it is not like picking up radio frequencies from three locations to pinpoint where a radio broadcast is emitted from; on the contrary, it rests upon the prior acculturation and training of the interviewer and reader of the data into a form of life, sharing the same second-nature reactions as others likely do, and so responding in kind when acknowledging when an utterance counts as belonging to this rather than that category or set22: e.g., as a statement being indicative of having been moved by an eco-artwork toward a state of stronger ecological consciousness, being non- anthropogenic in regarding our relations with non-human animals, or being in tune with the ethos or spirit of a place or sympathetic to Indigenous worldviews when it comes to our connections with or obligations to the Land. How can those working in ESE ever prove that their students demonstrate ‘ecological consciousness’, or that their chosen eco-pedagogies are ‘transformative’ (Stickney; Skilbeck, 2020)? Hinges binding eco-pedagogical certainties At the foundation of well-founded belief lies belief that is not founded (OC, § 253). For our holistic knowledge system (cf. OC, § 279) to work there have to be basic points of agreement, ‘hinges’ or ‘axes of rotation’ so deeply internalized that we do not even notice our regular reliance on them unless engaging in forms of critical reflection and phenomenological revelation. But isn’t that the situation is like this: We just can’t investigate everything, and for that reason we are forced to rest content with assumptions. If I want the door to turn, the hinges must stay put (OC, § 343). My life consists in my being content to accept many things (OC, § 344). This silent “complacency” in accepting the veracity of scientific propositions does not play out the same, with veritable consensus, for a researcher seeking to justify the efficacy/worth of eco-pedagogies such as place-based education. The content in these lessons may be shown to have secure connections with this overall system of propositions, supported by our current games of verification, but claims for their pedagogical efficacy seem to demand imponderable forms of empirical validation. A formal distinction 22 See Stanley Cavell (1990) on things appearing to us handsome or handy. 36 can be made: “I am inclined to believe that not everything that has the form of an empirical proposition is one.” (OC, § 308). Let’s look at these two aspects of judging eco- pedagogies further to see, through perspicuous description, why doubt fueling criticism of descriptive and less theoretical research in this case is unwarranted. In conducting place-based environmental education I channel polymathic knowledge obtained through formal education, gathered from botany, chemistry, biology, geology, mathematics, astronomy, geography, anthropology, history, architecture and theories of art, literature and philosophy. I use discovery-learning at various landmarks to open conduits for topics: for instance, boulders acting as prompts for an educational conversation about the geologic history of our city site and the impacts of glaciation, and dendritic drainage patterns (fractal geometries) still cutting across and underneath our campus; pausing by notable trees to discuss the evolution of our mixed forests, the energy and communication flows between trees, our prehistoric kinship with these beings, their notable presence in the furnishings of our dwellings, and how they might appear differently to artists and also Indigenous peoples enculturated with a different grammar (Stickney 2020a, b for examples). The discourses I draw on in doing place-based education are tethered to our vast web of knowledge, into which the participants are invited to explore connections, in some cases adding their own knowledge-connections or correcting what I have stated based on their competencies within different areas of specialization. In this way we are jointly engaging in a rational and passionate conversation of instruction, whether in the classroom or outdoors: one which operates smoothly and almost autonomically in accordance with our shared, internalized “system of verification”. Relying on this prior training or initiation, the discussants are instantaneously judging whether any bit of the instructor’s or participant’s speech coheres within this overall system, accepting some and perhaps setting aside or rejecting others.23 In this sense, the attainment of knowledge is testable, and one can determine the efficacy of the teaching or learning by the quality of student responses in examinations or in their critical engagement with this knowledge in their writing. Teachers do reflect on their effectiveness in conveying knowledge and consider the adequacy of their approaches when assessing students; we take for granted the teacher’s ability to recognize successful attainment of knowledge on these public tests. However, in expertly judging pedagogical efficacy – not in terms of knowledge conveyance but the transformative power to change students’ attitudes, values, beliefs, and behaviors – we are relying upon extensive, often ineluctable background or circumstances, including the bedrock or “hinge propositions” that 23 Consider that you have to teach the child the concept. Thus you have to teach it evidence (the law of evidence, so to speak). […] Remarkable the concept to which this game of evidence belongs (LW, I, p. 55e). 37 have long sedimented in our language and way of life. What warrants an instructor’s or student’s testimony as being “correct” or “adequate”, when speaking about the sublime beauty of nature in an art piece or the ethos and power (dynamis) of a tree in gathering its surroundings into a notable place? Here we move from logos to mythos. Let’s explore this inheritance further with Wittgenstein’s anti-verification approach, pondering what he referred to as “imponderable evidence” behind expert judgment (PI, p. 227-8). The way one becomes a place-based instructor is not through formal learning, but rather by participating in these practices as a student: as a novice first watching an adept guide, gradually picking up tips through experience until absorbing and later mastering itsmany techniques (like in the case of learning to read emotions in PI, p. 227; cf. Medina, 2002). What kind of tacit, practical knowledge have I internalized informally, channeling my judgements of eco-pedagogies? “They are determined by a consensus of action: a consensus of doing the same thing, of reacting in the same way. There is a consensus but it is not a consensus of opinion. We all act the same way, walk the same way, count the same way”. (LFM, XIX, p. 183-84).24 Accepting this solidarity does not necessarily take us into epistemic relativity.25 “From its seeming to me—or to everyone—to be so, it doesn’t follow that it is so. What we can ask is whether it can make sense to doubt it.” (OC, § 2). Wittgenstein establishes the shallow ground of this certainty-in-action, of holding something to be true as a matter of course, in shared ways of living into which people have been initiated from childhood: informally acquiring common ways of reacting to signs, expressions, and other stimuli. Setting aside the content-knowledge, on what kinds of hinges or axis are we turning in making shared judgments of pedagogical efficacy, here in the case of doing place-based education? We are starting from our form of life as arboreal creatures with prehensile thumbs: creatures that evolved in primeval forests. In growing up we have learned how places become marked off (rule-governed) by almost imperceptible boundaries between private/public, free/forbidden, sacred/profane space: how some can even enrapture us in feelings of “homeliness”. Being placental mammals that evolved to be bipedal is an essential aspect of how we relate to places: we take for granted that we had an umbilicus and that our mother was our first place and home 24 Think of how one normatively adheres to orders of operation, using the axiom of BEDMAS in solving equations. Wittgenstein also gives an example of woodcutters who use alternate practices for measuring amounts of wood cut and pricing it: e.g., by area instead of volume, or by effort expended (RFM, p. 44e). 25 But the end is not an ungrounded presupposition: it is an ungrounded way of acting (OC, § 110). This game proves its worth. That may be the cause of its being played, but it is not the ground (OC, § 474). 38 (see Tuan, 1977). Wittgenstein gave this example of hinge or bedrock proposition: “I believe everyone had parents,” as it belongs (unremarkably) to the ‘scaffolding’26 of our language and common way of thinking (cf. OC, § 211; cf. § 234, 240). Sensing when a place has been despoiled, causing feelings of solastalgia, cannot be easily explained: our words seem to fail us in capturing the ethos or genius loci of a site, and so we turn to art and spoken-word poetry to express the otherwise ineluctable sensation. I have briefly surveyed some of the ‘bumps’ we get when trying to use more certain language-games of formal knowledge, and in particular those of the empirical sciences, when talking about the efficacy of certain eco-pedagogies like place-based learning, as though this employment of causal (etiological) terminology made it a similar veridical discourse. Let’s consider in conclusion the consequence of this type of grammatical confusion. Conclusion Giving grounds in an attempt to substantiate more ephemeral eco-pedagogies quickly comes to a dead-end. Providing examples may have to suffice (PI, p. 127-8), and we then “must go on like this without a reason [ohne grund]” (RPP, II, § 401- 404, citing PI, § 326). “But the end is not an ungrounded presupposition: it is an ungrounded way of acting” (OC, § 110).27 Dominant norms of educational research are sustained by discourses (containing taxonomies and axiological value-schemes) that position “research” as data collection instead of work with texts in the library, as “empirical” studies instead of [mere] “think-pieces”: the former approaches also being deemed worthy of a lighter teaching loads to grant more time for such demanding work. What I hear from academics in both fields is growing frustration with pressure to present a scientistic appearance in their scholarship: having to adopt more prevalent, empirical and evidence-based methodologies. Consider the way much educational/ESE literature is composed, reproducing scientific methods with an opening statement of the research question (possibly a hypothesis), followed by sections laying out the methods, findings, limitations of the study, recommendations, and suggestions for 26 Wittgenstein’s use of ‘scaffolding’ in On Certainty (§ 211) refers to less visible hinges/ bedrock normatively guiding our thinking and researches. Now it gives our way of looking at things, and our researches, their form. Perhaps it was once disputed. But perhaps for unthinkable ages, it has belonged to the scaffolding of our thoughts. (Every human being has parents.) (OC, § 211). 27 This game proves its worth. That may be the cause of its being played, but it is not the ground. (OC, § 474). 39 further research. These scientific methods, reified into inflexible rules, are in many cases an impediment to writing truthfully about teaching ESE through place-based pedagogies. Wittgenstein noted how empirical propositions can turn into norms of description, due in part to the way these norms rest upon world-pictures we learned as children: “the matter-of-course foundation for research that as such also goes unmentioned” (paraphrasing OC, § 167). In making judgments about the efficacy of place-based approaches in ESE, the situation is very different from doing empirical research. It is more about trying to capture what currently counts as true and the effects produced by living this truth within a professional community, as our veridical discourses in education mesh with many other contemporary discourses and practices. Although education researchers can conceive of doing focus group interviews and small-sample surveys, the feedback we ordinarily get as instructors is largely anecdotal, drawn from participants’ comments, course evaluations and student emails. The most vital feedback comes from hearing the questions and reading the reactions of the participants’ faces, in situ. These expressions of gratitude and of resonance are deeply contextualized, and one can scarcely say how one knows as the instructor what the feelings of the group are despite having a sense of whether the conversation of instruction is flowing well or not (as is the case with other performers). The degree of certainty is much less than that in the language-games of math and science, and even that in the humanities, as it is the ethos of the teaching situation instead of any measurable achievement or effect that is being sought and not more precise information. The language-games of giving information operate differently, and though they are certainly involved in relaying the knowledge-content of the lesson they have little to do with judging the pedagogical tact with which the instructor conducts place-based education. Wittgenstein cautioned that philosophy, as he practiced it, was a grammatical investigation: not an empirical inquiry into causes (see Stickney, 2017a). He offers a rather pragmatic view on the indeterminacy of asserting causes when trying to understand human behavior, but he was trained as an engineer and so was not opposed to all causal inquiries. He grounded justifications, even of mathematical norms and causal claims, in their everyday utility in ways of living.28 Whether the earlier experience is the cause of the certainty depends on the system of hypotheses, or natural laws, in which we are considering the phenomenon of certainty. 28 The insidious thing about the causal point of view is that it leads us to say: “Of course, it had to happen like that.” Whereas we ought to think: it may have happened like that – and also in many other ways (CV, p. 37e). 40 Is our confidence justified? – What peopleaccept as justification – is shown by how they think and live (PI, § 325; cf. PI, § 654, PI, p. 200; OC, § 206). I doubt that this epistemological discussion will satisfy valued colleagues in ESE who are calling for more empirical evidence, hoping to establish eco-pedagogies in teacher education at universities. A philosopher says “Look at things like this!”—but in the first place doesn’t ensure that people will look at things like that, and in the second place his admonitions may come altogether too late; it’s possible, moreover, that such an admonition can achieve nothing in any case and that the impetus for such a change in the way things are perceived has to originate somewhere else entirely … I ought never to hope for more than indirect influence (Wittgenstein, CV, p. 61-62). I have tried to show, however, that philosophers of education have to be careful to distinguish the kind of language-games in which various “empirical” and quasi-causal claims are made around pedagogical efficacy. I hope this shows the vicious circle we are caught in when attempting such verification, freeing us from enthralling pictures of a “pedagogical Science”. “A picture held us captive. And we could not get outside it, for it lay in our language and language seemed to repeat it to us inexorably.” (PI, § 115; cf. PO, Phil, p. 185). References BESLEY T.; PETERS, M. A. Life and death in the anthropocene: educating for survival amid climate and ecosystem changes and potential civilisation collapse. Educational Philosophy and Theory, on-line, p. 1347-1357, nov. 2019. BIRDSALL, S. Exploring effective pedagogies in environmental and sustainability education for teachers: a story of new zealand pre-service teachers’ learning experiences. Brock Education Journal, v. 31, n. 2, p. 40-62, 2022. CAVELL, S. Conditions handsome and unhandsome: the constitution of emersonian perfectionism: the carus lectures, 1988. Chicago; London: University of Chicago, 1990. EVANS, N. 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Uma rica bibliografia secundária tem sido desenvolvida nesse sentido, em que se abordam desde questões específicas da educação de uma perspectiva wittgensteiniana até análises de sua própria obra de um ponto de vista eminentemente pedagógico29. Nesse texto, proponho uma reflexão acerca do papel da educação no que podemos chamar de humanização ou, em outras palavras, de formação do humano a partir de Wittgenstein. Humanizar-se, para Wittgenstein, é um imperativo ético e tem a ver com a busca de cada um por um sentido na vida, o que significa buscar uma vida que merece ser vivida; entretanto esse não é um empreendimento individual e egoísta, pois não é possível humanizar-se se a própria forma de vida em que vivemos é uma forma de vida desumanizadora em que a violência e a exploração do outro afloram por toda parte. Nesse sentido, humanizar-se é, também, um empreendimento político em que, coletivamente, buscamos transformar nossa forma de vida superando as condições desumanizadoras. E aqui a educação ocupa um papel fundamental e encontramos em Wittgenstein muitos elementos que podem contribuir para o debate. Para mostrar a contribuição de Wittgenstein para uma educação humanizadora, divido o texto em duas partes. Em primeiro lugar precisamos compreender o sentido 29 A título de exemplo cito: Ensaios filosóficos-educacionais de uma perspectiva wittgensteiniana, organizado por Cristiane Gottschalk (2020), e A companion to Wittgenstein on Education, organizado por Michael Peters e Jeff Stickney (2017). 47 de humano e humanidade em Wittgenstein, sentido esse que passa pela compreensão dos modos como constituímos o sentido de expressões, tais como eu, tu, ele e nós, sentido que muitas vezes pode se perder e levar a condições desumanizadoras. Tendo claro esse sentido, veremos, num segundo momento, como a educação pode contribuir para a formação do humano a partir de três momentos na obra de Wittgenstein em que isso pode ser encontrado: o seu trabalho como professor nas escolas primárias da Áustria e a elaboração do Dicionário para escolas primárias; sua discussão sobre o aprendizado e o seguimento de regras e sua concepção de filosofia como terapia. O sentido de humano e humanidade em Wittgenstein Para compreender os sentidos de humano e humanidade em Wittgenstein é preciso voltar-se para o modo como ele compreendeu a linguagem e a significação linguística.Depois de um longo tempo revendo a concepção de linguagem presente no Tractatus logico-philosophicus, encontramos nas Investigações filosóficas sua afirmação de que a linguagem está ligada com as ações e práticas humanas no mundo; o significado das palavras deve ser compreendido de acordo com os usos que delas fazemos. O uso das palavras, por sua vez, acontece nos jogos de linguagem e, de acordo com esse uso, podem exercer diferentes funções, de acordo com a multiplicidade e diversidade dos jogos de linguagem de que podem fazer parte. O pano de fundo em que a linguagem acontece são as formas de vida; é nas formas de vida que encontramos os fundamentos da linguagem e da significação. Este último conceito, formas de vida, aparece poucas vezes nas Investigações filosóficas e outras poucas vezes no Sobre a certeza, sempre de forma não muito explicada. Apesar disso, essa noção é fundamental para compreender o sentido do humano em Wittgenstein e para desenvolver minha compreensão do tema, vou partir da maneira como Cavell entende a expressão. Cavell faz uma distinção entre o que ele chama de sentidos horizontal e vertical das formas de vida. O sentido horizontal é também chamado por ele de etnológico e enfatiza “os aspectos convencionais, ou contratuais, de concordância” que seriam próprios das diferenças entre “prometer e realmente ter a intenção, ou entre coroações e investimentos de cargos, ou entre o escambo e um sistema de crédito” (Cavell, 1997, p. 44), diferenças que se situam no plano do social, da sociedade humana. Nas palavras de Veena Das, o sentido horizontal “captura a noção de diversidade humana, o fato de que instituições sociais, como casamento e propriedade, variam entre as sociedades” (Das, 2020, p. 41). É muito comum que as discussões sobre a educação, ou mesmo sobre o aprendizado, se debrucem sobre o sentido horizontal de formas de vida na medida 48 em que enfatizam o aprendizado como uma introdução do aprendiz em sua forma de vida, para que aprenda a ser sujeito desta forma de vida, como, por exemplo, na seguinte passagem: Ele [Wittgenstein] avança um ponto de vista sobre a vida humana que toma seriamente a ideia de que humanos são seres culturais. A linguagem é, nessa perspectiva, inserida em um conjunto de práticas culturais em constante expansão e mudança, ou como ele chama, uma forma de vida. Aqui o treinamento ocupa um papel crucial na educação, mas em um importante sentido diferente de condicionamento, em que a associação é estruturada por uma prática que é, de acordo com Wittgenstein, governada por regras (ou normativas). O treinamento é exitoso se resulta na formação do aprendiz em um praticante habilidoso e autônomo nas práticas – quem sabe até mesmo como alguém que possa contribuir para mudanças adicionais nessas práticas. Aqui não há incompatibilidade entre a iniciação em práticas existentes e a transformação dessas práticas de algum modo; de fato, a primeira é condição para a segunda (Smeyers; Burbules, 2010, p. 185-186). Por outro lado, o sentido vertical de formas de vida está relacionado com o sentido biológico e, nas palavras de Cavell: [...] recorda as diferenças entre o que é humano e as formas de vida ditas “inferiores” ou “superiores” – entre, digamos, espetar a comida, talvez com um garfo, e pegar nela com a pata ou bicá-la. Aqui entra a bela história da mão e do polegar que se lhe opõe, e da postura ereta e dos olhos que se voltam para o céu; mas também da força e do âmbito específicos do corpo humano, dos sentidos, da voz humana (Cavell, 1997, p. 46). Sem considerar que haja algo de errado em pensar a educação a partir do sentido horizontal das formas de vida, nesse momento quero enfatizar o sentido vertical, pois esse sentido, parece-me, está diretamente relacionado com o modo como Wittgenstein coloca a questão sobre o humano quando afirma o seguinte: Mas será que não posso imaginar que as pessoas ao meu redor sejam autômatos, não tenham consciência, ainda que seu modo de agir seja o mesmo de sempre? – Quando agora – sozinho em meu quarto – imagino isso, vejo as pessoas seguindo seus afazeres com o olhar fixo (como que em transe) – a ideia talvez seja um pouco perturbadora. Mas tente, então, aferrar-se a essa ideia nas relações usuais com outras pessoas, digamos, andando na rua! Diga a si mesmo, por exemplo: “Aquelas crianças são meros autômatos; toda a sua vivacidade é meramente automática”. E essas palavras ou passarão a não dizer 49 absolutamente nada para você; ou despertarão em você um tipo de sentimento perturbador, ou algo do gênero (Wittgenstein, 2022, § 420). Essa passagem se aproxima do sentido vertical de forma de vida proposto por Cavell, na medida em que Wittgenstein enfatiza o estranhamento que seria considerar que “as pessoas ao meu redor sejam autômatos” e não humanos. O estranhamento acontece justamente porque vemos as pessoas ao nosso redor como humanos e não como autômatos, ou seja, fazem parte da nossa forma de vida, são como nós, agem da mesma forma que nós; todos juntos compartilhamos “da força e do âmbito específicos do corpo humano, dos sentidos, da voz humana”, nas palavras de Cavell. Wittgenstein, na passagem de onde a citação foi retirada, confronta a questão acerca da necessidade de que ser humano seja algo que precisa ser provado como tal, no sentido de evidências que possam ser apresentadas para se aceitar algo como humano; é como se pudéssemos ficar em dúvida sobre a humanidade do outro. Diante da possibilidade do ceticismo acerca das outras mentes, uma longa tradição na filosofia tenta encontrar a resposta para o humano a partir de algo que possa ser a sua característica ou propriedade essencial. O modelo clássico dessa empreitada é a filosofia cartesiana que “demonstra” que a essência do humano é o pensamento (consciência). Nessa perspectiva temos diante de nós apenas um corpo, mas para que esse corpo possa ser considerado humano, deveria apresentar alguma outra propriedade ou característica. Se tudo o que temos diante de nós é um corpo, então não poderíamos afirmar se realmente se trata de um ser humano sem apontar para esse algo que seria o que lhe caracteriza como tal. Esse algo foi compreendido como sendo a consciência, ou a mente; algo que não se reduz ao corpo e é dele separado. E como a consciência não se reduz ao corpo, precisamos de uma prova de que realmente ela exista para além desse corpo que se apresenta à minha frente, pois poderia perfeitamente ser o caso de que esse corpo não tenha nenhuma consciência, tal como a possibilidade de que eu esteja diante de um autômato. No que diz respeito à noção de humano-humanidade a filosofia de Wittgenstein pode ser vista como uma resposta a essa tradição dualista – que tem em Descartes seu representante máximo – que instituiu uma separação radical entre corpo e mente. Essa resposta passa por uma investigação da linguagem psicológica e mostra que, nessa linguagem, as sentenças em primeira pessoa (Eu) não têm seu uso determinado pela referência a supostos objetos internos e não são um tipo de descrição do que se passa internamente com o sujeito; tampouco proposições como “Os homens são conscientes” são quaisquer tipos de informação (opinião) sobre os seres humanos. O argumento da linguagem privada, na passagem que vai do § 243 ao 315 das Investigações, serve para demonstrar os equívocos de uma tal imagem 50 ou, em outras palavras, promove uma terapia dessa imagem enganosa acerca do humano e da subjetividade. Essa passagem tem como núcleo a demonstração da impossibilidade de uma linguagem que possa ser compreendida apenas pelo próprio sujeito. Wittgenstein empreende essa análise em meio à discussão sobre regras e o seguimento de regras para mostrar que o que torna a linguagem possível depende de uma concordância nas práticas e, por isso, a linguagem é uma prática pública e implica impossibilidade de regras privadas. Em meio ao argumento, Wittgenstein colocaas seguintes observações: Apenas a respeito do homem vivo, e do que lhe é semelhante (se comporta de maneira semelhante), pode-se dizer que tem sensações; que vê; que está cego; que ouve; que está surdo; que está consciente; ou inconsciente (Wittgenstein, 2022, § 281). Da mesma maneira, também um cadáver nos parece totalmente inacessível à dor. Não temos a mesma disposição em relação ao que vive e ao que está morto. Todas as nossas reações são diferentes (Wittgenstein, 2022, § 284). A base da nossa compreensão do humano é uma certa atitude para com esse ser, uma atitude para uma alma. Em outras palavras, é uma atitude para com “aquele que vive” e esta é uma reação primitiva, espontânea, que não precisa de nenhuma prova. É uma resposta imediata a como vemos o outro como ser vivo e que tem sentimentos e sensações, é consciente, ou seja, é humano. Essa atitude é vista, por exemplo, na seguinte situação: “quando alguém tem dores na mão, esta não o diz (a não ser que escreva), e não se consola a mão, mas sim quem está sofrendo; olha-se nos seus olhos” (Wittgenstein, 2022, § 286). Olhar em seus olhos é a expressão da compaixão, da empatia; é compreender que o outro é alguém que sofre como eu mesmo sofro, que aquilo que se passa com ele é o mesmo que se passa comigo e, com isso, ver o outro como ser humano assim como eu sou. Nas belas palavras de Gaita: Quando os cães respondem a nossos humores, prazeres e medos, quando eles se antecipam às nossas intenções, ou esperam ansiosos para saber se vamos levá-los para um passeio, eles não supõem que somos seres sensíveis e com intenções. Imagino que tenha sido assim também conosco em estágios primitivos. A partir dessas interações não hesitantes entre nós e entre nós e os animais, não se desenvolveram crenças, suposições e conjecturas sobre a mente, mas sim os nossos próprios conceitos de pensamento, sentimento, intenção, crença, dúvida e assim por diante. Com um entendimento equivocado sobre essas coisas, fascinados por uma imagem de nós mesmos como espectadores certos de nossas próprias mentes, interpretamos mal a história do desenvolvimento do nosso conceito de mente (Gaita, 2011, p. 77). 51 Com isso, Wittgenstein também aponta para uma nova forma de pensar a subjetividade. Em uma anotação nos seus Notebooks, de 05/08/1916, Wittgenstein escreve o seguinte: “O Eu, O Eu é o profundamente misterioso”. E, de fato, ao tempo do Tractatus Wittgenstein tem uma noção um tanto quanto “misteriosa” do Eu, assim mesmo, em maiúscula. A linguagem, tal como pensada nessa obra, leva o Eu para os seus limites. Ele não diz respeito a um sujeito da linguagem no mundo, mas no seu limite, como sua condição de possibilidade. Junto com a lógica, portanto, o Eu é transcendental. Do outro eu de que trata no Tractatus, o “sujeito empírico”, esse não tem nenhuma função no estabelecimento da significação linguística. Essa postura diante do Eu será radicalmente modificada nas Investigações. Agora ele afirma, de forma não menos enigmática, diga-se de passagem: [...] “eu” não nomeia nenhuma pessoa, “aqui” não nomeia um lugar, “esse” não é um nome. Mas eles estão relacionados a nomes. Nomes são explicados por meio deles. Também é verdade que a física se caracteriza por não empregar essas palavras” (Wittgenstein, 2022, § 410). Afirmar que palavras como “eu” não são próprias da física mostra que a distinção entre o físico e o psicológico não é determinada por tratarem de diferentes domínios ontológicos, mas sim pela distinção entre diferentes jogos de linguagem: as palavras em um e outro jogo de linguagem não têm seu significado estabelecido da mesma forma. Quando se extrapola o modelo da física para a linguagem psicológica, seguimos pensando nas palavras em termos de designação das coisas e passamos a investigar o que é que, afinal, a expressão “eu” se refere na proposição “eu tenho dor”, mas a função de “eu” não é referir; sua significação primária não está relacionada ao descrever, mas ao expressar. E na expressão da experiência há um lugar na linguagem que não pode ser substituído e marca a irredutibilidade da linguagem psicológica à linguagem da física. Para Wittgenstein, a assimetria entre a primeira e terceira pessoas não pode ser anulada e se estabelece como a constituição de um lugar, no caso da linguagem psicológica, em que se pode usar a linguagem para a expressão de sua própria experiência. Aprender o significado dessas palavras é aprender a tomar parte em certas práticas, no caso as práticas de expressar suas próprias experiências e vivências utilizando-se da linguagem. Aprende-se a substituir um comportamento expressivo natural pela linguagem expressiva que não deixa de ser, ela mesma, comportamento expressivo de tal forma que passa a fazer parte da significação das próprias experiências e vivências. Isso significa que a linguagem ocupa um papel na própria constituição das experiências e vivências tipicamente humanas, ou seja, as experiências e vivências humanas são de tal forma, que podem ser expressas por meio de palavras e sentenças. 52 Ter a certeza de que alguém tem dores, duvidar de se tem ou não etc., são outros tantos tipos de comportamento naturais e instintivos para com os outros seres humanos, e a nossa linguagem é apenas um auxiliar e uma extensão suplementar desta relação. O nosso jogo de linguagem é uma extensão do comportamento primitivo (Com efeito, o nosso jogo de linguagem é comportamento) (Wittgenstein, 1981, § 545). Como vemos, a linguagem é um procedimento entre os sujeitos, em comunidade ou, na expressão de Gaita (p. 27), é na comunhão de sujeitos que os nossos conceitos recebem sua significação. Nessa comunhão se formam os diferentes lugares que cada um pode ocupar, surgindo o eu, o tu, o ele e, principalmente, o nós. O sujeito da linguagem não é um Eu profundamente misterioso e nos limites da linguagem, mas é o nós que se forma nas interações linguísticas ordinárias e cotidianas. Tornar-se humano passa pela compreensão desse reconhecimento mútuo na linguagem, o encontro com o outro por meio de nossas expressões. Nossas palavras – nossos conceitos – demonstram nossa compreensão do outro como humano e se reflete em nossa atitude para com ele e, entre outras coisas, envolve respeitar o lugar do outro no jogo de linguagem, respeitar sua voz, sua palavra. Por outro lado, se nossa humanidade se constitui no tipo de reações e atitudes que temos uns diante dos outros, ela também pode se perder ou fracassar nosso reconhecimento do outro como humano. Numa anotação de 1914, que encontramos em Cultura e Valor, Wittgenstein observa o seguinte: Temos tendência para confundir a fala de um chinês com um gorgolejo inarticulado. Alguém que compreenda o chinês reconhecerá, no que ouve, a língua. Muitas vezes, não consigo, analogamente, distinguir num homem a humanidade (Wittgenstein, 2000, p. 13). Mas o que seria isso: não distinguir num homem a humanidade? Isso se esclarece quando Wittgenstein compara a impossibilidade de distinguir no outro a humanidade com a confusão que podemos sentir ao ouvir a fala de um chinês. Não podemos distinguir imediatamente a humanidade do outro a menos que já tenhamos algo preparado e o preparado, aqui, é o lugar que o outro assume em nossas relações e os tipos de atitudes que temos em relação a ele. Poderíamos também dizer que precisamos de algo a mais do que simplesmente o contato com esse outro, pois assim como não podemos reconhecer apenas pelos sons a língua dos chineses, não poderíamos, simplesmente, ver no outro a sua humanidade. Essa observação foi feita por Wittgenstein em meio às trincheiras da Primeira Guerra Mundial e os homens a quem ele se refere são seus colegas de combate. Para Wittgenstein, para quem a guerra tem um sentido absolutamente grave, 53 é incompreensível o modo de comportar-se daqueles soldados que não viam a singularidade e a gravidade do momento. Faltava a eles a sensibilidade para tal compreensão,o que, do ponto de vista de Wittgenstein, tornava difícil reconhecer neles a humanidade. Em outra passagem de Cultura e Valor, Wittgenstein escreve: “Sejamos humanos” de forma direta, como um imperativo. Quer dizer que a nossa humanidade não vem dada, pronta, mas que é algo que precisamos conquistar e que também podemos perder, como aconteceu com os seus companheiros de guerra. É bem conhecido o fato de que Wittgenstein tinha a questão acerca do sentido da vida como algo da mais profunda importância. Esse sentido deve ser buscado como um dever, pois uma vida sem sentido é uma vida que não merece ser vivida. Humanizar- se passa por essa busca pelo sentido da vida e esse sentido não está vinculado apenas ao próprio sujeito que coloca a questão, mas diz respeito à humanidade enquanto tal. Podemos fracassar coletivamente nesse propósito de encontrar um sentido para a vida, de viver vidas que merecem ser vividas. Temos muitos exemplos em nossa história que ilustram esses momentos de perda da humanidade, todos momentos nos quais a violência aflora de formas terríveis. A escravidão e os campos de concentração são exemplos extremos, mas encontramos essas formas de desumanização também em nosso cotidiano mais próximo, como, por exemplo, nas relações sociais, de trabalho e na educação nas sociedades contemporâneas, onde as pessoas, cada vez mais, são tratadas como peças de um grande mecanismo que não pode deixar de funcionar. Se uma peça falha, ela é substituída imediatamente. Importante perceber que essas relações desumanizadoras afetam a todos indistintamente: o escravizado e aquele que escraviza; o judeu no campo de concentração e o nazista; o trabalhador e o patrão; o oprimido e o opressor (para lembrar Paulo Freire). No pungente testemunho do campo de concentração É isto um homem?, Primo Levi mostra como esse processo vai acontecendo e desumanizando a todos: se do ponto de vista do nazista o que ele faz se justifica porque o judeu não é considerado humano como ele, também a sua ação acaba por torná-lo mais e mais abrutalhado e desumanizado: [...] os personagens dessas páginas não são homens. A sua humanidade ficou sufocada, ou eles mesmos a sufocaram, sob a ofensa padecida ou infligida a outros. Os SS maus e brutos, os Kapos, os políticos, os criminosos, os “proeminentes” grandes e pequenos, até os Häftlinge indiscriminados e escravos, todos os degraus da hierarquia insensata determinada pelos alemães estão, paradoxalmente, juntos numa única íntima desolação (Levi, 1988, p. 180). 54 Podemos perceber o quanto essa possibilidade de desumanização do outro é devedora daquela noção de humano que separa corpo e mente (matéria e consciência), pois ela leva à noção de uma “excepcionalidade” do humano, como se ter consciência fosse algo próprio de um ser superior, levando à noção de que outros seres podem ser subjugados e explorados pelo homem. Da mesma maneira, essa mesma noção é o que permite pensar nos próprios homens e mulheres como seres mais ou menos humanos, pois como o corpo não mostra em si mesmo a sua humanidade, não temos como saber se todos os corpos ditos humanos são realmente humanos, levando a todo tipo de desumanização30. A perda do sentido do humano passa pela perda dos sentidos das expressões eu, tu, ele, nós e o lugar que cada um ocupa em nossos jogos de linguagem. Não nos vemos mais como membros de uma comunidade, em comunhão com os outros nem como nós, apenas cada um como um eu isolado e fragmentado. Como vimos, ser humano implica reconhecer a humanidade do outro e esse reconhecimento não é estritamente racional ou intelectual, como no modelo cartesiano, mas algo prévio à racionalidade. É a própria humanidade, em sua linguagem e ação, que possibilita a percepção e a compreensão do significado e do mistério da existência humana, reconhecendo a todos e a cada um como membro de uma mesma forma de vida, a forma de vida humana. Educação como humanização em uma perspectiva wittgensteiniana Tendo em vista a noção de Wittgenstein do humano e da possibilidade de perda desse sentido, como pensar uma educação para a humanização em termos da filosofia desse autor? Sem tentar esgotar o tema, apresento a seguir três momentos em que podemos ver, na obra de Wittgenstein, elementos para elaborar uma educação humanizadora. Esses três momentos são os seguintes: a) o trabalho de Wittgenstein em sua função de professor nas escolas primárias da Áustria e a elaboração do Dicionário para escolas primárias; b) suas observações sobre o ensino e o aprendizado das regras e; c) a sua concepção de Filosofia como terapia. 30 Veja-se sobre isso o livro Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, de Silvia Federici, que mostra como a desumanização das mulheres, consideradas bruxas e por isso sentenciadas à morte na fogueira, fez parte de um movimento próprio do surgimento do capitalismo e suas novas estruturas de exploração dos corpos. Essa mesma lógica foi aplicada pelos colonizadores sobre os povos originários da América – norte e sul – bem como os africanos que foram escravizados com base na mesma afirmação de que sua forma de vida não era humana (ou ao menos “não tão humana como a nossa”). 55 a. Como se sabe, depois de terminar e publicar o Tractatus, Wittgenstein abandona a filosofia e torna-se professor em algumas pequenas aldeias da Áustria. Sem dúvida, esse trabalho teve uma influência importante sobre as mudanças que ocorreram em sua maneira de pensar a linguagem e a significação, mas nos ensina muito sobre o modo como ele pensava o ensino e a educação. Wittgenstein desenvolve seu trabalho de professor em meio à reforma do sistema educacional austríaco, que defende, entre outras coisas, a participação ativa do aluno, a atividade pessoal como forma de aprendizado mais adequada. Ele é bastante favorável a esse princípio e podemos ver essa influência no prefácio que escreveu para o Dicionário para escolas primárias: Perguntar com frequência ao professor e aos colegas perturba os alunos em seu trabalho, levando a uma certa acomodação mental e, além disso, a resposta dada pelos colegas muitas vezes está errada. De resto, a informação oral deixa na memória uma impressão muito mais fraca do que a obtida pela visualização da palavra. Somente o dicionário possibilita ao aluno ser plenamente responsável pela ortografia de seu próprio texto, pois lhe fornece um meio mais seguro de descobrir e corrigir seus erros, sempre que quiser fazê-lo. É absolutamente necessário que o aluno corrija por si mesmo seus próprios textos. O aluno deve sentir-se como o único autor de seu próprio texto e também ser o único responsável por ele (Wittgenstein, 2020, p. 43). Nessa passagem vemos claramente a defesa de um papel fundamental do aluno no processo de aprendizado que se desdobra na reflexão sobre o papel da atividade do aluno, da sua experiência, responsabilidade e autonomia. Em relação ao papel ativo do aluno, vemos a defesa de Wittgenstein de que, em vez de perguntar a um outro (professor ou colega), deve o próprio aluno ir em busca da resposta. O simples perguntar pode até fornecer a resposta, mas não torna o aluno ativo na busca do conhecimento; ele é simplesmente alguém sem o conhecimento que recebe esse conhecimento de outro. É o receptáculo passivo do conhecimento já estabelecido, sem nenhum envolvimento com ele. Wittgenstein revela o papel fundamental da prática, da ação, no aprendizado. Essa noção será, mais tarde, nas Investigações, fundamental em sua nova concepção de linguagem. Aprender uma linguagem não é um empreendimento passivo, mas depende da participação do aprendiz em uma prática comum; ele aprende a fazer algo por si mesmo. Da mesma maneira, o ensino, de uma forma geral, tem como objetivo tornar o aluno capaz de, ele mesmo, participar ativamente na elaboração do conhecimento. 56 Esse papel ativo do aluno se reflete na compreensão de que a experiência direta do aluno influencia na maneiracomo ele aprende. Visualizar a palavra é uma experiência muito mais forte do que o simples ouvir a palavra. Com a referência à própria experiência do aluno, enfatiza-se o fato de que o aprendizado depende de uma práxis, de um fazer, não se resumindo a qualquer tipo de transposição de conhecimento da mente do professor para a mente do aluno. Essas experiências vão se desdobrando e se tornando cada vez mais complexas e são elas que, de alguma maneira, tornam cada sujeito único em sua compreensão do mundo e da vida. É dessa maneira que Wittgenstein concebe a falta de humanidade de seus colegas na guerra. Eles não percebem os acontecimentos da maneira que Wittgenstein entende a correta; eles não têm, desses acontecimentos, a mesma experiência que Wittgenstein. As experiências que temos podem transformar nosso modo de ver as coisas, podem ajudar a estabelecer um sentido para elas e, com isso, nos transformam a nós mesmos, ou seja, elas nos humanizam. Com isso segue-se que “é absolutamente necessário que o aluno corrija por si mesmo seu próprio texto”, enfatizando a responsabilidade do aluno pelo seu próprio texto. O texto, podendo ser aqui considerado como o resultado, em geral, do aprendizado, é de responsabilidade do próprio aprendiz. O Dicionário não é uma ferramenta que produza o resultado por si mesmo, mas é o envolvimento ativo do aprendiz com essa ferramenta, usando-a para descobrir e corrigir o seu próprio erro, que faz com que o aluno consiga seguir adiante por si mesmo; o professor lhe indica o caminho, mas é o aluno que deve segui-lo, passo a passo. Descobrindo seus próprios erros, o aluno torna-se capaz de corrigi-los e continuar aprendendo. Em outros termos: “o aluno deve sentir-se como o único autor de seu próprio texto e também ser o único responsável por ele”. Tornar-se responsável por seu próprio texto torna o aluno sujeito autônomo e capaz por si mesmo de seguir adiante. Ele é o único responsável por seu texto, que pode também ser compreendido que cabe a cada um, de forma responsável e autônoma, formar-se e educar-se. Para Wittgenstein isso é um imperativo ético; é dever de cada um buscar essa autonomia e transformar-se em alguém capaz de pensar por si mesmo. Interessante comparar essa reflexão com o texto das Investigações, que é escrito de tal forma que não dá ao leitor respostas prontas para as questões que são colocadas. Ao contrário, o texto tem uma estrutura tal que convida o leitor a pensar sobre si mesmo e, com isso, criar o seu próprio texto, suas próprias respostas, ou seja, na própria forma de desenvolver as Investigações, Wittgenstein consegue, na prática, mostrar como deve ser o ensino para que se possa formar alguém responsável e autônomo. A partir desses “princípios”, atividade, experiência, responsabilidade e autonomia, o aluno aprende, pouco a pouco, a ocupar o lugar de sujeito em meio ao contexto de aprendizado. Aluno e professor – eu e tu – têm cada um seu lugar no jogo 57 do ensino e aprendizado, mas nenhum deles pode ocupar seu lugar sem o outro, de quem imediatamente é o complemento. Essa relação só é saudável se cada um ocupa esses lugares sem a imposição de uma ou outra posição; é um jogo que depende de cada um levar adiante seu papel simetricamente. Os outros colegas formam o restante do contexto em que agora, todos juntos, formam o nós que, em comunhão, permite a cada um ocupar seu lugar e desempenhar seu papel da melhor forma possível. E essa melhor forma só será alcançada se cada um for realmente responsável e autônomo naquilo que lhe compete. Não é, de forma alguma, um rebaixamento do papel do professor, mas, ao contrário, revela o lugar fundamental que cabe a ele, pois para que possa realizar adequadamente o que lhe compete, precisa, ele mesmo, ter garantidas de sua responsabilidade e autonomia. Por outro lado, o aluno só surge como tal em meio ao contexto em que acontece o aprendizado, em que diferentes papéis precisam ser desempenhados para que o jogo de linguagem funcione. Sem o professor não há aluno, assim como não há aluno sem professor; cada um ocupa um lugar no jogo de linguagem e são todos fundamentais para o processo. b. A concepção de linguagem que Wittgenstein apresenta nas Investigações filosóficas, tem como um de seus elementos fundamentais o papel do ensino e do aprendizado das regras que governam o significado das palavras. Aprender o significado de uma palavra não é realizar a ligação dela com algum objeto do qual seria o nome, mas sim aprender a tomar parte nas diferentes práticas que estão envolvidas nos jogos de linguagem. Esse aprendizado revela a íntima ligação da linguagem com as práticas, pois uma criança, quando aprende a linguagem, aprende a tomar parte nas práticas das pessoas com quem interage. E a criança é capaz de aprender porque ela mesma compartilha com os outros as reações e comportamentos primitivos que levaram ao desenvolvimento dos jogos de linguagem e que, aos poucos, instituem as regras para o uso (significado) das palavras. Para Wittgenstein, as regras que instituem o significado da linguagem e da ação humana estão dadas num espaço compartilhado de uma forma de vida. Isso significa que para uma criança aprender a linguagem e aprender a agir como os adultos ela precisa ser adestrada nesse sistema regrado de tal maneira que aprende a reagir como se espera que reaja em cada situação. Peter Winch mostra que a criança precisa aprender, inclusive, o que significa agir de acordo com regras: O ponto aqui é que importa que o aluno reaja ao exemplo do professor de uma forma e não de outra. Ele tem que adquirir não apenas o hábito de seguir o exemplo de seu professor, mas também entender que algumas formas de seguir aquele exemplo são permitidas e outras não. Isto é, ele tem que adquirir a habilidade de aplicar um critério; 58 tem que aprender não simplesmente a fazer coisas da mesma forma que seu professor, mas também o que conta como a mesma forma (Winch, 2020, p. 93, grifos do autor). Ou seja, a criança não nasce com um sistema de regras universais que vai desenvolvendo com seu crescimento. Ela precisa aprender até o que seja seguir regras e só então poderá tomar parte em situações de linguagem e ação significativas. Aprender uma linguagem é aprender a tomar parte em um jogo de linguagem, encontrar seu lugar ali dentro; não é responder mecanicamente regras e procedimentos, mas é agir como sujeito responsável e autônomo junto aos outros sujeitos. É este o sentido de que, na linguagem, estamos em comunhão com os outros, formamos uma comunidade e só ali nos tornamos efetivamente sujeitos. Não é apenas estar sujeito à autoridade do outro, mas aprender a exercer sua própria autoridade e também a solidariedade nos diferentes espaços em que vive, como, por exemplo, na família e na escola. Wittgenstein mostra isso ao apresentar diferentes estratégias de ensino, tais como completar uma série matemática, ler e obedecer a uma ordem. Em todas as situações, a criança é ensinada a projetar o conceito, a palavra ou um procedimento em novas situações até chegar o momento em que ela diz: “Agora eu posso continuar”. Nesse momento ela se torna autônoma e pode continuar por si mesma, pois o que ela aprende não é simplesmente produzir a mesma resposta que o adulto a ensinou, mas que seja capaz de expressar sua própria perspectiva. A criança aprende a tomar parte em um acordo tácito de regras, costumes, hábitos, práticas e exemplos de uma forma de vida, mas isso não significa que ela irá agir exatamente da mesma forma que os adultos, sejam eles seus pais, parentes ou professores; não aprende apenas o conjunto de informações que são passadas a ela, mas a encontrar seu próprio lugar em meio aos seus companheiros. Isso é possível pelo entendimento de Wittgenstein de que as regras não preveem em si mesmas todas as futuras situações; elas não são rígidas e fixas. A linguagem deixa um caminho aberto; ela nunca está completa. Esse caminhoserá trilhado por cada um da sua própria maneira, permitindo que possa dar sua própria contribuição para o desenvolvimento e transformações em sua forma de vida. A educação tem o papel fundamental de dar um rumo a essas transformações. Ela pode fornecer as condições para que cada um possa tomar parte nos debates que podem resultar em novas práticas políticas e sociais, ou seja, em novas regras. Assim, o processo de aprendizagem não é uma mera iniciação do aprendiz em formas prévias de pensamento de uma tradição dada; o aprendiz deve ter um papel ativo, no sentido de tornar-se capaz, ele mesmo, de contribuir para a formação do pensamento. 59 Num sentido ético-político, a educação, ou o ensino, tem o sentido de formar sujeitos capazes de tomar/assumir seu lugar nas formas de vida. Esse é um procedimento humanizador, pois percebe-se a possibilidade de surgimento das diferenças, das singularidades, das perspectivas. É assim que se pode pensar uma educação que incorpore as histórias de vida daqueles que são considerados “os outros” em relação a classe, raça, sexualidade e gênero. Se não há uma essência do humano, este se constitui em meio aos desdobramentos vitais entre os sujeitos, numa situação em que cada um conta como um representante particular da humanidade, com as diferenças que lhe são características. c. O terceiro ponto diz respeito ao modo como Wittgenstein pensa e, mais especificamente, faz filosofia. Isso pode ser visto na própria elaboração do texto das Investigações filosóficas. No prefácio que escreveu para essa obra, Wittgenstein afirma que “com meu escrito, eu não gostaria de poupar outros de pensar. Pelo contrário, se isso fosse possível, gostaria de incitar alguém a pensar por conta própria” (Wittgenstein, 2022, p. 19). Revela-se, logo no Prefácio, o papel fundamental do diálogo nas Investigações. Não é um texto que pretende ensinar ao leitor uma teoria particular, mas fazer com que o leitor veja por si mesmo os problemas e equívocos de uma certa imagem da linguagem humana, a imagem agostiniana. O diálogo que Wittgenstein propõe não se reduz àqueles que encontramos no próprio texto, muitas vezes de forma não muito clara, mas envolve, também, o leitor, que é convidado a participar da conversa. Nesse diálogo, perguntas são colocadas, muitas delas sem ter uma resposta, e às vezes aparece uma observação que parece uma resposta de algo que não foi perguntado, o que mostra justamente esse apelo ao leitor: que ele se faça essas perguntas e tente encontrar, ele mesmo, uma resposta. Pensar a filosofia como terapia significa esse papel da atividade filosófica como uma busca por transformação em que compreende que a solução para os problemas filosóficos é alcançada quando se consegue ver os problemas sob uma nova perspectiva; sugere uma mudança em nosso modo de ver o problema. É isso que o texto de Wittgenstein tenta mostrar em vez de dizer. Ele quer que o leitor seja capaz de perceber que há diferentes modos de ver os problemas; que não há uma única resposta verdadeira, um único sistema de regras que deve ser seguido, enfim, superar o dogmatismo da filosofia. Ao ver o problema claramente o problema desaparece. A terapia é uma constante luta contra pseudoproblemas e preocupações metafísicas que nos atormentam o entendimento. Sua solução depende de uma terapia linguística que nos leve de volta ao ordinário e cotidiano (lembrando que não há uma única terapia, mas várias, assim como há vários métodos em filosofia). Assim, 60 clareza na linguagem torna-se um imperativo; a busca pela clareza na e por meio da linguagem torna-se uma questão ética, uma atividade necessária para viver a vida tal como um ser ético, ou, dito de outro modo, torna essa vida uma vida digna de ser vivida. Assim, percebe-se que a atividade filosófica, enquanto busca de clareza, é um empreendimento terapêutico e ético que nos traz paz aos pensamentos. Essa noção de clareza não é aquela que diz respeito à solução de problemas, contradições, não tem um enfoque epistêmico, mas vital: Não desejamos refinar ou tornar completo, de alguma maneira inaudita, o sistema de regras para o emprego de nossas palavras. A clareza que nos esforçamos para atingir é, de todo modo, completa. Mas isso quer dizer apenas que os problemas filosóficos devem desaparecer completamente. A verdadeira descoberta é aquela que me torna capaz de parar de filosofar quando quero. – Aquela que faz a filosofia descansar, de tal maneira que ela não é mais espicaçada por questões que colocam ela mesma em questão. – O que mostramos, por meio de exemplos, é um método, e a sequência desses exemplos pode ser interrompida. – Problemas são resolvidos (dificuldades são afastadas), não um problema (Wittgenstein, 2022, p. 134). A filosofia como terapia tem como foco o envolvimento de cada um com seu próprio processo de elaboração do pensamento. Com a terapia, alcança-se um momento em que podemos colocar as questões e dúvidas que muitas vezes não podemos colocar, por questões sociais ou políticas. Por isso, esse é um processo educativo e formativo, pois torna o sujeito consciente de sua situação e o força a buscar mudanças e transformações, o que revela a importância de tomada de consciência do problema, muito mais do que a solução que possa ser alcançada. Podemos concluir com essa observação que encontramos em Cultura e Valor: “o trabalho em Filosofia é, na realidade, mais um trabalho sobre si próprio. Sobre a nossa própria interpretação. Sobre a nossa maneira de ver as coisas (E sobre o que delas se espera)” (p. 33). Considerações�finais Pensar a Educação com Wittgenstein revela a importância de uma certa forma de pensar sobre o outro. É no chão comum de nossas formas de vida que vão se instituindo os diferentes lugares que cada um pode assumir: quem tem autoridade, quem tem direito à fala. Isso depende do modo como vemos uns aos outros; quais direitos admitimos que eles tenham. Se partimos da noção de que cada um de nós é um representante da humanidade, que compartilhamos o mesmo destino comum, então todos têm o mesmo direito à fala. As tentativas de calar a voz do outro, seja em 61 termos políticos, éticos ou educacionais, tem como pano de fundo uma noção de que não compartilhamos todos da mesma humanidade, mas que alguns são mais e outros menos humanos, cabendo aos primeiros a autoridade e o direito de fala sobre os demais. Tornar-se humano, livre e autônomo, implica um modo de se ver no mundo como um eu com direito à voz, que muitas vezes não é percebido pelo próprio sujeito, de tal modo envolvido ele mesmo em uma imagem de mundo que o coloca em um lugar, subalterno, sem voz, sem palavra. Os acordos tácitos que estão na base das práticas em nossas formas de vida, muitas vezes dificultam, ou mesmo impedem, uma reflexão crítica sobre essas práticas. Essas práticas não são ensinadas explicitamente, mas por meio das nossas interações comunitárias em que vamos, aos poucos, assumindo uma certa perspectiva sobre a validade e correção delas. Isso leva a uma situação em que assumimos como corretas e adequadas, práticas que são contrárias aos nossos próprios interesses, como os alunos que não têm direito a falar e a se manifestar, o explorado que justifica a própria exploração, o escravizado que não se reconhece como tal. Uma educação humanizadora deve conseguir fazer com que o sujeito (aprendiz/aluno) seja capaz de perceber essa imagem e torná-lo capaz de dissolvê-la. Com isso poderá, junto com os outros, imaginar uma outra imagem e com ela transformar seu mundo comum. Precisamos fazer a terapia daquela velha imagem de humano e humanidade que permeia nossas relações e nos desumaniza. Precisamos incentivar novos modos de ver, mudar nossa perspectiva e com isso provocar uma autotransformação que, ao mesmo tempo, provoca uma transformação em nossa forma de vida. Referências CAVELL, Stanley. Esta América nova, ainda inabordável: palestras a partir de Emerson e Wittgenstein.implicações culturais. Em suma, ao estabelecer a crítica à matemática como o último rincão de uma concepção metafísica de conhecimento, anulando assim a pretensão de fundamentação de nosso saber na ideia de uma “descoberta” e afirmando sua nova compreensão da matemática, do conhecimento ou da cultura como uma “invenção”, o filósofo austríaco nos impele a repensar profundamente nossas crenças e, de igual maneira, o modo como as disseminamos na sociedade. Em outras palavras, como educamos as novas gerações, como preparamos os que chegam ao processo educacional para não mais se iludirem com a falsa ideia de uma essência transcendental. Em termos da proposta wittgensteiniana, precisamos educar a todos para não serem vítimas de uma “ilusão gramatical”. Enfim, devemos ensinar a todos como repensar a própria cultura nesse novo viés da crítica de Wittgenstein. Portanto, devemos compreender a matemática como um bem cultural que vai muito além do habitual aspecto metafísico e instrumental que a tradição reservou a ela. É preciso compreender como esse produzir matemática, em seu sentido mais amplo possível, se insere de modo complexo e sutil nos meandros da cultura. É esse um dos caminhos possíveis que este livro, Wittgenstein e Educação – questões contemporâneas, que ora o leitor tem em mãos, nos proporciona. Este livro nos ajuda a pensar não apenas a educação, a matemática e seu ensino, mas visita outras questões do domínio da cultura sobre as quais a obra de Wittgenstein pode muito nos ajudar a refletir como, por exemplo, a ética, a música, a saúde. Como salientou Hegel, a filosofia é a coruja de minerva que alça voo ao entardecer. Primeiro é preciso viver para depois refletir criticamente essa vivência. Os filósofos refletem nosso viver e criam modelos explicativos para ele, mas, arraigados que somos à nossa vivência, quase sempre não conseguimos de imediato entender suas filosofias. Assim, ao prenunciarem uma crítica aos valores vigentes em dado tempo, os filósofos nos parecem estar sempre à frente de seu tempo. Há um descompasso entre o que eles prefiguram e o que entendemos. Precisamos de tempo para efetivar essa compreensão e, neste sentido, todo filósofo inaugural é póstumo. 9 Por vezes, alguns filósofos são marginalizados em seu tempo ou imediatamente após o seu tempo. Isso não aconteceu com Wittgenstein, que teve sua obra fortemente aclamada já em vida e, sobretudo, logo após os anos que seguiram à sua morte. No entanto, essa valorização da obra do pensador austríaco não necessariamente implicou dizer que a tenhamos compreendido em seus aspectos mais fundamentais, o que levou Kambartel (1989) a dizer, cerca de quarenta anos atrás, que um dia saberíamos por que tanto valorizamos Wittgenstein. Enfim, viveríamos o tempo póstumo de Wittgenstein no qual teríamos muito mais compreensão de sua obra e de suas ramificações culturais. Me parece que começamos a adentrar esse tempo e este livro é prova disso. Nesse aspecto, encontramos a relevância central que este livro apresenta. Ele parte das ideias de Wittgenstein sobre linguagem e matemática e as estende em várias outras trilhas possíveis, nos levando ao compreender a novas “imagens” da matemática, da música, da saúde, da ética etc. Com efeito, se já chegamos ao “tempo póstumo” de Nietzsche ao compreender a sua crítica à cultura ocidental, mas, infelizmente, não indo muito além de seu perspectivismo para enfrentar os nossos problemas filosóficos e culturais, me parece que começamos a chegar ao tempo póstumo de Wittgenstein. E, assim, na linha salientada por Kambartel, já começamos a entender por que tanto valorizamos o pensador austríaco. E ao estender o pensamento de Wittgenstein sobre a linguagem e a matemática a toda uma gama de temas filosóficos em diferentes áreas do conhecimento, livros como este apontam não apenas que nosso caminho se aproxima mais e mais do pensamento wittgensteiniano, mas sobretudo o quão frutífero tal pensamento é para ajudar a resolver nossos problemas filosóficos e culturais. Referências CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Wittgenstein e Nietzsche: semelhanças de família. In: PIMENTA-NETO, O. J.; BARRENECHEA, M. (org.). Assim falou Nietzsche. Rio de Janeiro: Sette Letras; Ouro Preto: Ufop, 1999. p. 38-54. KAMBARTEL, F. Wittgensteins späte Philosophie: Zur Vollendung von Kants Kritik der wissenschaftlichen Aufklärung. In: KAMBARTEL, F. Philosophie der Humanen Welt. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989. p. 146-159. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações�filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1979. WITTGENSTEIN, Ludwig. On Certainty. Oxford: Basil Blackwell, 1969. WITTGENSTEIN, Ludwig. Remarks on the foundations of Mathematics. Oxford: Basil Blackwell, 1956. 10 Apresentação Cristiane Maria Cornélia Gottschalk Bárbara Nivalda Palharini Alvim Sousa Embora as ideias filosóficas de Wittgenstein tenham inspirado a pesquisa em vários campos do saber, para além do debate estritamente lógico e filosófico, como, por exemplo, na antropologia, nas ciências políticas, na psicologia, no direito, dentre outras áreas das ciências humanas, só a partir da década de oitenta que suas reflexões passaram a circular de fato no campo educacional, em particular, através da filosofia da educação praticada sobretudo nos países de língua inglesa1, ainda fortemente influenciada pelos filósofos analíticos da educação. No Brasil, a pesquisa educacional de uma perspectiva wittgensteiniana teve seus primeiros trabalhos publicados a partir da virada do milênio, concentrando-se, inicialmente, na área da educação matemática; e só mais recentemente aventurou-se a se expandir para outras áreas, tendo como norte a investigação ética e epistemológica do filósofo fundamentada na linguagem, para repensar a práxis da sala de aula em todas as áreas do saber. Esta coletânea faz parte deste desafio colocado pelas complexas relações entre teoria e prática, ao contar com textos que são resultados de pesquisa de diversos filósofos e educadores, que perceberam a grande potencialidade das ideias de Wittgenstein para enfrentar as questões educacionais não apenas de cunho filosófico-educacional, mas também as que dizem respeito ao cotidiano escolar. Parte dos autores desta coletânea participaram ou ainda participam do grupo de pesquisa Filosofia, Educação, Linguagem e Pragmática (FELP)2, que ao longo dos últimos vinte anos tem debatido diversos temas educacionais de uma perspectiva 1 Cf. Hamlyn, D. W.. “Education and Wittgenstein’s Philosophy”. Journal of Philosophy of Education, v. 23, n. 2, 1989. 2 Este grupo de estudos, sediado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) desde 2004 e sob a coordenação de Cristiane Maria Cornelia Gottschalk (FEUSP), reúne pesquisadores e alunos de pós-graduação de diversas universidades do Brasil que têm como referencial teórico central a filosofia de Wittgenstein, tendo sido cadastrado no Diretório de Pesquisas do CNPq em 2012. 11 wittgensteiniana da linguagem, produzindo-se ao longo deste período artigos, teses de doutorado, dissertações de mestrado e capítulos de livros inspirados nas reflexões tardias do filósofo austríaco; em particular, as presentes nas suas obras Investigações Filosóficas e Sobre a Certeza. Além dos capítulos desta coletânea que refletem em certa medida os frutos dos debates travados nos encontros do FELP, o leitor terá o privilégio de contar também com as reflexões de filósofos e educadores de outras universidades do Brasil e do exterior, que se inspiram fortemente na obra de Wittgenstein para pensar questões de natureza ética, epistemológica e ambiental que atravessam o debate educacional contemporâneo, fundamentais para a compreensão da escola de hoje. Como será mais explicitado ao longo desta coletânea de textos, a nova concepção de linguagem de Wittgenstein rompe com a concepção hegemônica da linguagem subjacente às teorias educacionais hegemônicas do mundo contemporâneo,São Paulo: Editora 34, 1997. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2023. GAITA, Raimond. O�cão�do�filósofo. Rio de Janeiro: Difel, 2011. GOTTSCHALK, Cristiane (org.). Ensaios�filosófico-educacionais�de�uma�perspectiva� wittgensteiniana. 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Em particular seus escritos, publicados postumamente nas Investigações filosóficas31, explicitam a multiplicidade das funções da linguagem e seus processos de constituição do sentido, tendo como finalidade precípua o esclarecimento das questões filosóficas que ele havia deixado em aberto no Tractatus, investigação que, a meu ver, conduziu a uma segunda virada-linguística, com grandes impactos em diversas áreas do saber, em particular, na educação. De fato, a partir de sua nova perspectiva do funcionamento da linguagem Wittgenstein observa que os grandes problemas da filosofia tradicional não estariam radicados em um uso equivocado da linguagem ordinária, como pensara ao redigir o Tractatus, mas sim no pensamento filosófico confuso, que estaria atrelado a um 31 Embora publicada postumamente por seus herdeiros intelectuais, os 693 parágrafos da primeira parte das Investigações Filosóficas foram organizados pelo próprio Wittgenstein. Doravante, designaremos esta obra pela sigla IF, e as demais obras mencionadas do filósofo ao longo do texto pelas seguintes siglas: Tractatus logico-philosophicus [Tr], Da certeza [DC] e Fichas [F]. 64 modelo referencial da linguagem32, diferenciando-se, assim, de outros filósofos pertencentes ao movimento da virada-linguística iniciada na filosofia com Gottlob Frege e Bertrand Russell, entre outros, que tinham como objetivo elaborar uma ideografia que representasse precisamente o pensamento. Para eles, a linguagem seria ambígua e demasiadamente vaga, o que seria a causa dos problemas filosóficos. Afastando-se radicalmente de seus grandes mestres, Wittgenstein irá se contrapor a eles afirmando que o problema não estaria na linguagem ordinária, que segundo ele funcionava perfeitamente bem, mas no uso dogmático de determinadas teses filosóficas, que conduzem o pensamento em uma única direção. Para relativizá-las, decide inventar um novo método, que passa a denominar de terapia filosófica33, o qual teria a finalidade de levar à dissolução completa dos problemas filosóficos delas decorrentes. No entanto, é importante ressaltar que a invenção de seu novo “método” não significava de modo algum a dissolução definitiva dos problemas filosóficos em questão, na medida em que podem ressurgir a qualquer momento em outros contextos, sob outras vestimentas, como veremos através de alguns exemplos ao longo deste texto. Bem, se levarmos em conta que toda prática pedagógica pressupõe alguma teoria filosófica que tematiza o conhecimento e a sua possibilidade de transmissão, veremos que boa parte dos problemas que nos parecem estritamente filosóficos também ecoam nas práticas pedagógicas que têm sido propostas ao longo dos tempos34.. Daí nosso interesse em recorrer às reflexões filosóficas de Wittgenstein embebidas em uma concepção pragmática de linguagem, com o objetivo não só apenas de esclarecer as confusões decorrentes do uso dogmático de determinados conceitos problemáticos que estão presentes nos discursos educacionais contemporâneos, 32 Passarei a denominar de modelo referencial da linguagem a concepção de linguagem que atribui às palavras e expressões linguísticas um uso exclusivamente referencial, como será mais explicitado ao longo deste texto. 33 Sinteticamente, a terapia filosófica se dá a partir de um diálogo polifônico entre teses filosóficas conflitantes sobre alguma questão filosófica polêmica, onde a voz do filósofo terapeuta (Wittgenstein) aparece na forma de observações que resultam deste embate; mas sem qualquer propósito destas últimas serem vistas como novas teses que substituem as anteriores, mas apenas como afirmações esclarecedoras do problema filosófico em questão, na medida em que levam à sua dissolução. 34 A relação intrínseca das grandes teorias epistemológicas e os seus decorrentes métodos de ensino manifesta-se claramente em diversas obras da filosofia, como por exemplo, nos diálogos platônicos, em particular no Mênon, que tem como finalidade precípua investigar a natureza da virtude e a possibilidade de sua transmissibilidade através do ensino. Ao longo deste diálogo, a concepção epistemológica de Platão (Teoria da Reminiscência) fundamenta a maiêutica socrática gerando problemas filosófico- educacionais aparentemente insolúveis, os quais têm ressurgido sob novas vestimentas nas teorias educacionais contemporâneas. (Scheffler, 1967; Gottschalk, 2010). 65 como também o de prevenir confusões e equívocos que ainda ocorrem em nossas práticas pedagógicas, orientadas por tais discursos. Além do que, o que também nos interessa sobremaneira para pensar as questões do campo educacional, são algumas das afirmações que resultam da aplicação da terapia filosófica empreendida por Wittgenstein, e que embora tenham a aparência de teses, são observações de outra natureza, na medida em que não têm qualquer pretensão de fundamentar uma nova teoria filosófica, e muito menos educacional. Estas afirmações têm sido denominadas pelos comentadores da obra de Wittgenstein de “resultados terapêuticos”35, sendo que alguns deles, principalmente quando envolvem conceitos educacionais, tornam- se fonte de inspiração para lidar com diversos problemas que ainda enfrentamos em nossas práticas pedagógicas. Por exemplo, um dos aspectos revolucionários da nova abordagem de Wittgenstein sobre a linguagem com implicações imediatas para a educação, a meu ver, é a sua crítica ao modelo referencial da linguagem, cujos pressupostos, como veremos, produzem o que Wittgenstein passa a denominar de Imagens36 (Moreno, 1995), a saber, expressões linguísticas com força de norma, e que também estão presentes no campo da educação. Ao longo do texto, serão apresentados dois exemplos, que ilustram a força de Imagens oriundas de concepções mentalistas do conhecimento presentes em certasteorias psicológicas e psiquiátricas aplicadas à educação, com implicações pedagógicas bastante questionáveis, tais como: a medicalização cada vez maior de crianças diagnosticadas no contexto escolar através de testes psicométricos como hiperativas e com problemas de falta de atenção (TDAH37); como também o uso ainda bastante problemático do chat-GPT em todos os níveis de ensino, com impactos deletérios nos processos de aprendizagem no contexto escolar tanto no sentido epistemológico como ético. Mas antes, faremos uma breve incursão por algumas ideias centrais de Wittgenstein que servem de base para a nossa argumentação a seguir, em prol de uma formação crítica, reflexiva e principalmente humana de nossas crianças, que evite o pensamento dogmático que assola o nosso planeta. 35 Esta expressão é utilizada pelo filósofo e comentador da obra de Wittgenstein, Arley Ramos Moreno, no capítulo 5 de sua obra Introdução a uma pragmática filosófica (2005), quando discute a natureza das afirmações aparentemente téticas de Wittgenstein. 36 Esta palavra passará a ser expressa ao longo do texto com “i” maiúsculo, quando utilizada no sentido técnico de imagem presente na segunda fase do pensamento de Wittgenstein, posterior à fase de escrita do Tractatus. 37 Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. 66 A�transição�do�conceito�de�imagem�(Bild)�na�filosofia�de�Wittgenstein A filosofia de Wittgenstein tem sido dividida em duas fases. A primeira diz respeito à sua primeira grande obra publicada em vida, o Tractatus logico- philosophicus, que, embora pareça tratar estritamente de questões da lógica da nossa linguagem, segundo o próprio Wittgenstein, é eminentemente uma obra sobre ética. A palavra imagem era utilizada nesta primeira fase para se referir ao papel representativo/figurativo das proposições empíricas da nossa linguagem que se referem a um fato possível do mundo, desempenhando, assim, a função metafórica de “imagem”, como se a proposição fosse um espelho de um fato do mundo, na medida em que teria a mesma forma lógica38 do fato por ela representado. Nessa concepção de linguagem presente no Tractatus, se o fato do mundo representado por uma determinada proposição efetivamente ocorresse, então a proposição era considerada verdadeira; caso contrário, falsa. Assim, uma proposição complexa só seria significativa se fosse atribuída a ela um valor de verdade (V ou F), e para calcular este valor (a partir de proposições denominadas por Wittgenstein de elementares que, por sua vez, se referem a fatos simples do mundo) recorre a uma ideografia, a qual também possibilitará ao ainda jovem filósofo mostrar (e não dizer) a forma lógica da linguagem comum aos fatos do mundo, condição para que através da linguagem pudéssemos atribuir sentido a eles. Entretanto, apesar da abordagem logicista e referencial do Tractatus, Wittgenstein já tinha como objetivo precípuo evidenciar que o que de fato importava para a filosofia não seriam as proposições empíricas dotadas de valor de verdade (V ou F), mas sim os enunciados que não teriam referência no mundo, como os da ética, da estética, da religião e da própria filosofia, que se caracterizavam por serem sem sentido e absurdos (por não serem dotados de uma forma lógica), daí que no último aforismo do Tractatus, talvez o mais enigmático desta obra, o filósofo proclama: “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” (Tr. 7), aforismo mal compreendido pelos seus colegas filósofos, mas que deixou uma porta aberta para a segunda fase de seu pensamento, que se inicia quase uma década após a finalização do Tractatus. Em 1929, após uma experiência docente em escolas primárias em vilarejos extremamente pobres do interior da Áustria, Wittgenstein retorna a Cambridge como professor universitário, dando continuidade às questões filosóficas que tinham ficado em suspenso no Tractatus (Moreno, 2012a). Tendo em vista esclarecê- 38 Expressão utilizada no Tractatus para designar a articulação lógica de proposições complexas redutíveis a proposições mais simples, denominadas por Wittgenstein de proposições elementares. Já na segunda fase de seu pensamento, a “forma lógica” passa ser flexibilizada, incorporando-se a dimensão pragmática na constituição do sentido da proposição, dando lugar ao conceito de forma de vida. 67 las, não se ocupará mais em calcular o valor de verdade de uma proposição através de operações lógicas, mas iniciará uma reflexão sobre o sentido de nossas palavras e expressões linguísticas em geral, incluindo as que mantivera fora de suas considerações no Tractatus e que deveriam ser silenciadas, para que pudessem ser apenas mostradas. O significado de uma palavra ou de uma expressão linguística nesta segunda fase de seu pensamento não será mais visto como sua referência no mundo (substituindo- se os nomes por objetos simples), mas como sendo o seu uso em um determinado contexto (IF, § 43), podendo uma mesma palavra assumir sentidos diferentes dependendo das atividades com ela envolvidas; daí que nosso filósofo passará a falar em jogos de linguagem para ressaltar a multiplicidade de ações envolvidas no uso de uma mesma palavra. Outro conceito fundamental que irá introduzir é o de “semelhança de família”, ao observar que não há uma essência subjacente aos nossos conceitos, mas simplesmente relações de parentesco entre as diferentes aplicações de uma mesma palavra. Seu significado, portanto, será o conjunto aberto de sentidos da palavra aplicada em diferentes contextos, relacionados entre si em maior ou menor grau de parentesco, constituindo-se, assim, gradualmente, o significado da palavra em questão (IF, § 66-7). Portanto, uma palavra ou expressão linguística passa a ter sentido no interior de um “jogo de linguagem” e não mais exclusivamente ao representar um fato do mundo. Embora nosso filósofo não tenha apresentado nenhuma definição de jogo de linguagem nas IF, através de um diálogo com um interlocutor fictício que representa o essencialismo de Platão (como também a defesa de um ideal de exatidão presente no logicismo de Frege39), Wittgenstein nos brinda no § 23 das Investigações filosóficas com alguns exemplos do que passa a considerar como sendo um jogo de linguagem40: 1. Ordenar e agir segundo as ordens; 2. Descrever um objeto pela aparência ou pelas medidas; 3. Produzir um objeto de acordo com uma descrição (desenho); 4. Relatar um acontecimento; 5. Fazer suposições sobre o acontecimento; 39 Gottlob Frege fora seu grande mestre, tendo influenciado fortemente Wittgenstein no Tractatus. No § 23 das IF e nos parágrafos subsequentes, no entanto, nosso filósofo faz a terapia do ideal de exatidão defendido pelo lógico e matemático alemão, por este tê-lo generalizado indevidamente para toda a linguagem. 40 Em parte, porque uma tal definição iria na contramão de sua filosofia madura ao criticar o essencialismo platônico de nossos conceitos, que pressupõe uma referência última e absoluta para eles na forma de uma definição precisa, recorrendo a conceitos exatos. Nesta sua segunda fase, a exatidão de um conceito não é a priori, mas sim estabelecida a parte post com finalidades específicas (IF, § 65-71). 68 6. Levantar uma hipótese e examiná-la; 7. Apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e diagramas; 8. Inventar uma história; e ler; 9. Representar teatro; 10. Cantar cantiga de roda; 11. Adivinhar enigmas; 12. Criar uma piada; contar; 13. Resolver uma tarefa de cálculo aplicado; 14. Traduzir de uma língua para outra; 15. Pedir, agradecer, praguejar, cumprimentar, rezar. Como se vê nos exemplos precedentes, são diversas as atividades humanas envolvidas com a linguagem, nas quais, além das ações intrinsecamente ligadas a palavras, temos contextos distintos em que ocorrem os jogos de linguagem, os quais também envolvem interlocutores, sensações e efeitos imprevisíveis. Ao se ouvir uma piada, uma pessoa pode rir imediatamente após ouvi-la, enquantooutra pode levar um tempo considerável para entendê-la ou mesmo ficar sem entendê-la… No entanto, Wittgenstein não irá se interessar pelos efeitos empíricos dos jogos de linguagem nas pessoas, pois terá como foco o esclarecimento completo (e não definitivo) de problemas filosóficos da filosofia ocidental e que, segundo ele, poderiam retornar sob outras formas em outros contextos, dado que boa parte deles estaria atrelada a uma concepção exclusivamente referencial da linguagem41 ainda hegemônica no nosso modo de vida ocidental. É então que elabora seu novo método filosófico, denominado por ele terapia filosófica, relativizando pressupostos filosóficos que divergem entre si, até a completa dissolução do problema em questão. Já de posse de seu novo método, Wittgenstein passa, então, a descrever a Gramática dos usos das palavras42 com o objetivo não de elaborar teses sobre a linguagem, mas simplesmente para dissolver confusões do pensamento filosófico 41 A concepção referencial da linguagem presente, por exemplo, na obra de Agostinho, é criticada por Wittgenstein logo no início das IF e é explicitada por ele através nas seguintes afirmações: “Nesta imagem da linguagem encontramos as raízes da ideia: toda palavra tem um significado. Este significado é atribuído à palavra. Ele é o objeto que a palavra designa” (IF, § 1, grifo nosso). 42 Gramática não no sentido da sintaxe de uma linguagem, mas no sentido do conjunto de regras que seguimos para empregar palavras e expressões linguísticas no interior de nossos jogos de linguagem. Wittgenstein tem uma obra sobre a Gramática das cores, por exemplo, como também temos uma Gramática do som, dos números, e assim por diante. 69 que resultam da aplicação dogmática de conceitos como os de compreensão, identidade, pensamento, leitura, significado etc., quando estes são interpretados no vazio, ou seja, abstraídos dos jogos de linguagem nos quais foram gerados, ou nos quais são efetivamente utilizados, desconsiderando-se, assim, o chão áspero de nossas formas de vida. Segundo Moreno (1995), Wittgenstein caracteriza o processo de surgimento de imagens quando interpretamos mal nossas expressões cotidianas e tiramos daí “as mais estranhas conclusões” (IF, § 194). Estas conclusões abstraídas de um contexto, por sua vez, adquirem uma necessidade que nos leva a postular fundamentos extralinguísticos, presos a uma concepção referencial da linguagem. Não nos damos conta de que somos nós que estamos atribuindo necessidade a elas e é neste momento que se iniciam as confusões. Teríamos, então, duas características das Imagens43: “correspondem, por um lado, às más interpretações de nossas expressões habituais conduzindo, assim, a dificuldades insolúveis; por outro lado, possuem a força da necessidade” (Moreno, 1995, p. 37). Daí que a finalidade da terapia filosófica seria algo como “trazer de volta” o atrito da nossa linguagem, ou seja, apresentar outros sentidos possíveis e/ou efetivos de aplicação do conceito ou expressão que está sendo estranhamente aplicada, comparando-os entre si, relativizando-os, até a dissolução completa do problema desencadeado por uma determinada Imagem. Esse processo terapêutico aparece em várias passagens das IF, à medida em que são apresentadas teses filosóficas que se opõem a respeito de uma determinada questão, pertencentes a distintas vertentes filosóficas (o realismo, idealismo, mentalismo, behaviorismo, o logicismo, o pragmatismo etc.), dialogando com representantes destas vertentes, tais como Gottlob Frege, William James, Bertrand Russell, Platão e Agostinho, entre outros. É nesse sentido que Wittgenstein volta a usar o conceito de imagem, só que não mais para expressar a ideia da relação da proposição com o mundo como representação, como fizera no Tractatus. Agora passa a usar a palavra imagem para expressar definições dogmáticas de conceitos ou más interpretações de expressões linguísticas que “giram no vazio” causando confusões, ou seja, o termo Imagem (com “i” maiúsculo para diferenciar do sentido anterior apresentado aqui em nosso texto) passa a expressar uma determinada aplicação dogmática (sem atrito) de um conceito ou expressão filosófica que passa a comportar uma necessidade: deve ser assim, independentemente do jogo de linguagem em que estão sendo empregadas. No entanto, são vários os enunciados da nossa linguagem que também comportam uma necessidade, o que por si só não é um problema; pelo contrário, esses enunciados desempenham um papel fundamental na atribuição de sentido 43 É nesse sentido que também estamos utilizando a palavra Imagem com “i” maiúsculo, a saber, quando um determinado conceito é aplicado dogmaticamente, priorizando-se um determinado sentido/Imagem em detrimento de outras aplicações possíveis. 70 aos fatos do mundo. O que, então, distingue as Imagens de outros enunciados com função normativa? Antes de abordar esta questão, farei um pequeno parêntese para apresentar outra distinção fundamental que nos passa despercebida ao usarmos a linguagem, levando a várias confusões. Proposições empíricas versus gramaticais Wittgenstein observa que enunciados da linguagem com força normativa desempenham um papel bastante distinto das proposições empíricas que representam ou descrevem um fato possível do mundo, pois aquelas seriam proposições análogas a uma regra que aprendemos a seguir, que não descreve nada; apenas orienta a nossa ação. Segundo ele, uma regra é como um sinal de trânsito: não é verdadeira nem falsa. Podemos segui-la ou transgredi-la, mas a própria regra não representa algo no mundo que poderíamos verificar como sendo verdadeiro ou falso, tal como ocorria com as proposições significativas do Tractatus, as quais expressavam as proposições empíricas da linguagem; tampouco as proposições da nossa linguagem que desempenham o papel semelhante ao de regras são descritivas, daí que não cabe verificá-las no mundo. Passam, então, a ser denominadas por Wittgenstein de proposições gramaticais. Não cabe verificar, por exemplo, enunciados, tais como “esta é minha mão”, “isto é vermelho” (em resposta à questão “o que é vermelho?”, e apontando-se para um objeto vermelho), “todo objeto tem extensão”, “as sensações são privadas” (só eu sinto minha própria dor), “todo objeto é idêntico a si próprio”, “meu nome é ‘X’”, “eu existo”, “2 + 2 = 4”, “todo objeto é idêntico a si próprio”, “nunca fui à Lua” etc., exemplos de enunciados com força normativa dados pelo próprio Wittgenstein e que se caracterizam por não conseguirmos imaginar o seu contrário. Não consigo imaginar que 2 + 2 não seja 4, que eu não me chame Cristiane, que eu não exista, que esta não seja minha mão ou que algum dia eu tenha ido à Lua. Isso nos leva a um resultado terapêutico importante: a negação destas certezas simplesmente não faz sentido e, portanto, não cabe atribuir a elas um valor de verdade (V ou F), mas apenas delimitam o que faz sentido e o que não faz sentido. Em outros termos, esses enunciados passam a desempenhar a função de condição de sentido dos demais enunciados da linguagem, exercendo, assim, uma função transcendental44 (Moreno, 2012b), na medida em que passam a estabelecer o que faz, e o que não faz sentido dizer ou fazer no interior 44 Estamos utilizando o termo “transcendental” não no sentido kantiano de que haveria um sujeito transcendental puro, cujas estruturas da sensibilidade e categorias do entendimento teriam essa função. Segundo Moreno (2012), na perspectiva de Wittgenstein essa função passa a ser exercida dentro da linguagem, através do uso gramatical de determinadas proposições. De fato, uma proposição não é a priori gramatical ou empírica; é o seu uso que estabelece sua função gramatical ou empírica em determinado contexto. 71 de um determinado jogo de linguagem. Na verdade, na maior parte das vezes nem pensamos em determinados enunciados da nossa linguagem de tão óbvios que são para nós, tornando-se, de certo modo,invisíveis. São crenças que aprendemos a seguir como seguimos as regras do trânsito: se estamos dirigindo e vemos uma placa de contramão, automaticamente seguimos na direção permitida. Não cabe atribuir um valor de verdade à placa que indica a direção permitida; seguimos essa “regra” cegamente, agindo no espaço delimitado por elas. São como balizas para a nossa ação no mundo, delimitando o que faz e o que não faz sentido (IF, § 68). Eventualmente transgredimos algumas das regras que aprendemos a seguir, mas para fazê-lo pressupõe-se tê-las aprendido, mesmo que de modo tácito. Os conceitos de existência, pensamento, identidade, cor, sensação, número etc. passam a se conectar produzindo proposições gramaticais45 que se tornam imagens que conduzem o nosso pensamento. Essas proposições também se relacionam entre si, estabelecendo o fundamento do que faz sentido em nossas formas de vida, constituindo-se, assim, gradualmente, uma imagem de mundo (Weltbild). Essa imagem de mundo, por sua vez, pode ser vista como um fundamento sem fundamentos últimos extralinguísticos, o que não impede que possa ser vista como de fato um fundamento, na medida em que seus enunciados passam a desempenhar o papel de condição de sentido para o que dizemos, fazemos e sentimos. Um fundamento que poderia ter sido outro em uma outra forma de vida diferente da nossa e, portanto, um fundamento de natureza convencional46, que, embora arbitrário, comporta uma necessidade da qual não abrimos mão. Assim, diferentemente dos enunciados empíricos, os enunciados de natureza gramatical expressam um acordo na linguagem sobre definições e sobre os nossos juízos. Nas palavras de Wittgenstein, “os homens estão concordes na linguagem. Isto não é uma concordância de opiniões mas da forma de vida.” (IF §241) *** Como Wittgenstein observa na segunda fase de seu pensamento após o Tractatus, a linguagem está em ordem, agimos com palavras no nosso cotidiano seguindo regras indicativas ou normativas, as quais desempenham o papel de 45 A articulação desses conceitos produz enunciados gramaticais com força normativa, tais como “todo corpo tem extensão”, “ao se misturar amarelo com azul obtém-se a cor verde”, “a palavra mesa tem quatro letras”, “todo objeto é idêntico a si próprio”, “as sensações são privadas”, entre outras, que fazem parte da gramática da nossa forma de vida. 46 Lembrando que esse fundamento é constituído por proposições que comportam uma necessidade, o que descarta uma perspectiva relativista de Wittgenstein na qual tudo vale. O relativismo aqui é, digamos, gramatical, e não universal. 72 condição de atribuição de sentido aos fatos do mundo. O problema surge quando um filósofo se depara com uma de nossas certezas expressas linguisticamente e passa a aplicá-la dogmaticamente, pressupondo a existência de algo fora da linguagem à qual a proposição deve se referir; por exemplo, quando determinado filósofo atrelado a um modelo referencial da linguagem passa a acreditar platonicamente que o significado de vermelho deve se referir a algo em um mundo ideal, que seria a sua essência, e que se manifesta imprecisamente em objetos de cor vermelha. Ou então quando outro filósofo, diante da expressão “todo objeto é idêntico a si mesmo”, passa a procurar a identidade que estaria subjacente ao objeto, a essência daquele objeto, desconsiderando-se a multiplicidade dos jogos de linguagem em que o conceito de identidade é de fato empregado47. Enfim, é neste momento que começam a surgir confusões filosóficas de natureza conceitual, ao se pressupor que nossos enunciados devem sempre se referir a algo extralinguístico no mundo, seja este mundo empírico, ideal ou mental. É neste momento que se formam as Imagens que dirigem dogmaticamente o nosso pensamento, tornando-o confuso, expressas na forma de proposições gramaticais que passam a ser usadas descritivamente. Tendo em vista a distinção acima entre enunciados empíricos e gramaticais, também podemos caracterizar a terapia filosófica de Wittgenstein como uma atividade que tem como uma de suas finalidades precípuas dissolver Imagens que surgem quando empregamos uma proposição gramatical como se fosse uma proposição empírica, ou seja, como se aquela também devesse se referir a algo no mundo, ao não se discernir as funções descritiva e normativa de nossos enunciados em contextos específicos, generalizando-se a função descritiva para todos os enunciados da linguagem. Podemos agora retomar a questão levantada ao final do ítem anterior: um enunciado deixa de ser uma imagem e torna-se uma Imagem quando se pressupõe que necessariamente aquela imagem esteja se referindo a algo extralinguístico, que seria o fundamento último e absoluto de seu significado. Neste caso, ignora-se que a necessidade do enunciado em questão é atribuída por nós próprios, seres humanos, no contexto de uma forma de vida. Imagens�educacionais�e�suas�implicações�pedagógicas No campo da educação também nos deparamos com Imagens, em sua maior parte provenientes de diretrizes educacionais e de propostas metodológicas que ainda estão atreladas a uma concepção metafísica ou mentalista de determinados conceitos, 47 Por exemplo, jogos de linguagem que envolvem cores, sons, medidas, cálculos etc. Os critérios que aplicamos para afirmar que 2 + 2 é idêntico a 4 diferem dos que aplicamos para averiguar a identidade entre cores, ou de sons, e assim por diante. 73 como os de compreensão, conhecimento, pensamento, liberdade, avaliação, aprendizagem e ensino, entre outros. No caso do conceito de compreensão, por exemplo, um dos conceitos mais problemáticos em diversas teorias de aprendizagem da história da educação, são levantadas as seguintes questões: como saber se um aluno aprendeu algo de fato, ou seja, se houve compreensão, e não uma mera memorização? Como saber se o que o professor ensinou foi o que o aluno aprendeu? Como se dá a transmissão de sentidos? Ao procurarmos dar uma resposta a essas perguntas somos levados pelo modelo referencial da linguagem a procurar um significado para a palavra “compreensão” em um domínio mental, como se compreender algo devesse ter como referência algo mental ou cerebral que corresponderia ao ato de compreensão. Este pressuposto, por sua vez, conduz à ideia de que todos teríamos acesso imediato aos mesmos significados do que está sendo dito, por temos supostamente as mesmas estruturas mentais/cerebrais. Assim, por exemplo, se digo a palavra “vermelho”, todos que a ouvem seriam capazes de ver mentalmente a cor vermelha, independentemente de haver algum objeto vermelho ao nosso redor. Mas como saber se o que é vermelho para mim não é azul para você? E as questões filosóficas vão se sucedendo indefinidamente, procurando-se fundamentos definitivos em algum reino extralinguístico. Em meados do século passado, as ciências cognitivas passaram a procurar respostas para as questões acima, tendo como uma de suas vertentes alguns ramos da psicologia, como a psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget, que tinha como objetivo investigar como se dá exatamente a gênese do desenvolvimento mental da criança48; e mais recentemente, a neurociência toma para si a tarefa de descrever fisiologicamente a gênese de tais estruturas mentais e sua localização cerebral. Bem, o problema se avoluma quando essas elucubrações são transpostas para o campo da educação, como se tais investigações científicas pudessem dar conta dos problemas educacionais que envolvem a constituição de sentidos e de sua transmissão através da linguagem, resultando em diretrizes pedagógicas bastante confusas. Vejamos, então, como um dos resultados terapêuticos de Wittgenstein pode nos auxiliar a desatar o nó que vai se formando a partir das questões acima. Em sua crítica à concepção mentalista da compreensão, faz a seguinte admoestação: “Tente uma vez não pensar na compreensão como ‘processo psíquico’!” (IF §154), e, como também irá observar nas Fichas, tampoucose trata de um processo cerebral (F §§606-609). Em contraposição ao mentalismo e ao cientificismo, Wittgenstein nos mostra através 48 Talvez o psicólogo mais conhecido que se debruçou sobre estas questões foi Jean Piaget, que de uma perspectiva kantiana elaborou suas teorias psicogenéticas, as quais, ao serem transpostas para a educação, influenciaram fortemente várias teorias da aprendizagem, dentre elas, o construtivismo piagetiano (cognitivista), o sócio-interacionismo e mais recentemente aqui no Brasil, a pedagogia das competências. 74 de inúmeros exemplos que a compreensão está intrinsecamente relacionada com o domínio de técnicas linguísticas, que são aprendidas, e não intuídas (IF §150 e ss.), contrapondo, assim, teses mentalistas e behavioristas empregadas dogmaticamente, como também sugerindo outros modos de aplicação deste conceito, que também fazem parte da sua Gramática de usos (Gottschalk, 2012, 2022). Ao longo de sua descrição de conceitos psicológicos empregados dogmaticamente, diversos resultados terapêuticos vão emergindo que, a meu ver, interessam sobremaneira à educação, no sentido de possibilitarem prevenir novas confusões. Embora estes resultados possam ter a aparência de teses pertencentes a alguma teoria educacional, proponho vê-los como diretrizes educacionais que passaram pelo crivo da terapia wittgensteiniana. Dentre eles, irei destacar os seguintes, que, a meu ver, podem não só orientar o trabalho do professor no contexto escolar como também prevenir eventuais confusões nas práticas pedagógicas que se ancoram em teorias mentalistas do significado: I – Como se� ensina,� constitui� o� significado�do quê se ensina. Segundo o próprio Wittgenstein, ao se perguntar se estaria fazendo psicologia infantil, sua resposta é taxativa: “Estou fazendo a ligação entre o conceito de ensino e o conceito de significado” (Fichas, § 412). Como já observamos acima, os sentidos não estão dados previamente no mundo e tampouco em supostos estados mentais da criança, mas são constituídos gradualmente, através de um trabalho da linguagem. Em outra passagem das Fichas ele acrescenta: “Começar por ensinar a alguém ‘Isto parece vermelho não tem sentido. Tem de o dizer espontaneamente quando tiver aprendido o que significa ‘vermelho’, isto é, quando tiver aprendido a técnica de utilizar a palavra49” (F §418, grifo nosso). Uma vez aceita a convenção do que denominamos vermelho e se aprende a utilizá-la em outras situações por si só, passa-se a ser capaz de inferir outras relações que já estão estabelecidas na nossa gramática das cores na forma de proposições gramaticais, como, por exemplo: “Ao misturarmos vermelho com branco obtemos a cor rosa”, “O branco é mais claro que o preto” e assim por diante, passamos, então, a afirmar essas inferências com convicção. Neste novo 49 Ao ensinarmos uma criança pequena os nomes das cores, como a cor vermelha, pontamos para diversos objetos com diferentes tonalidades da cor vermelha e dizemos concomitantemente, “Isto é vermelho!”. Esta enunciação que é repetida várias vezes envolve uma ação (o gesto ostensivo) que faz a mediação entre o som empírico da palavra vermelho e o objeto empírico apontado, a cada vez que repetimos “Isto é vermelho”; até que a criança seja capaz de ver uma nova tonalidade de vermelho e dizer: “então isso também é vermelho?”. Neste momento a convenção que é aceita pela criança torna-se um conceito. É neste sentido que Wittgenstein afirma que houve o domínio da técnica de utilização da palavra vermelho. 75 nível de constituição dos sentidos, os enunciados acima passam a comportar uma necessidade: deve ser assim. Retomando o conceito de vermelho, não precisamos postular uma estrutura mental ou psicológica para explicar a possibilidade de uma criança ser capaz de identificar esta cor do mesmo modo que os outros a sua volta, simplesmente ela aprendeu através de um treino a utilizar esta palavra como esperamos na nossa linguagem, independentemente de eventuais estados mentais que estejam acompanhando esta aprendizagem. II- Só�há�dúvidas�se�houver�certezas. Wittgenstein também observa que a dúvida pressupõe a certeza, ou, em outros termos, só seremos capazes de transgredir nossas crenças ou de transformá-las se tivermos sido capazes de segui-las, o que envolve uma imersão nas práticas compartilhadas em uma forma de vida. Esse processo ocorre, também, na escola com a introdução de novos conceitos que não fazem parte do cotidiano da criança. Daí que o professor tem como papel fundamental introduzir seus alunos e alunas nos diversos jogos de linguagem que compõem a sua disciplina, condição para que possam atribuir sentido ao mundo em que vivem, em particular, ao serem apresentadas a eles outras proposições gramaticais (que também comportam uma necessidade), formando, assim, uma Gramática que passam a carregar dentro deles, digamos, mais ampliada, em relação ao que foi aprendido no seu cotidiano extraescolar. Consequentemente, a professora é muito mais do que uma mera mediadora ou facilitadora. Cabe a ela evitar a formação de um pensamento dogmático no contexto escolar, em todos os níveis de ensino, dando as condições para que seus alunos e alunas sejam capazes de reconhecer a natureza convencional das nossas crenças, que desempenham, por sua vez, o papel de regras de nossos jogos de linguagem, lembrando que estas crenças poderiam ter sido outras, em outra forma de vida. III- A�maior�dificuldade�de�compreensão�não�está�no�entendimento,�mas� na vontade. Uma vez aceitas as convenções da nossa linguagem, passamos a jogar os jogos de linguagem de nossa forma de vida. Uma criança que já domina a técnica da contagem antes mesmo de entrar na escola, precisará aprender outras técnicas pertencentes aos jogos de linguagem da aritmética para medir ou fazer cálculos com os números naturais. Em outras palavras, será apresentada a outras convenções no contexto da escola e terá que seguir novas regras. O problema surge quando ela não aceita as novas convenções, tendo que haver um trabalho de persuasão da professora para que a criança as aceite; e não esperar que alguma estrutura mental da criança se desenvolva naturalmente (como preconiza o construtivismo piagetiano), ou apresentando a ela materiais pedagógicos que, por si só, a levariam a aprender. 76 Mas uma vez disponibilizada a vontade de uma criança para aceitar novas convenções (que envolvem não só palavras mas também ações e fragmentos do empírico), como também para aprender novas técnicas (como a da mensuração com réguas ou fitas métricas, os algoritmos da soma, subtração, multiplicação e divisão, entre outras), as dificuldades de aprendizagem já serão de outra natureza, uma vez que podem ser resolvidas com explicações, justificativas e apresentando-se razões, em um segundo nível de articulação dos sentidos, em que se passa a operar com conceitos50. No entanto, uma explicação pode ser dada até um certo momento, a partir do qual já não há mais razões a serem apresentadas. Nas palavras do próprio Wittgenstein: “Se esgotei as justificativas, cheguei então à rocha dura, e minha pá se entorta. Estou inclinado a dizer então: “É assim mesmo que ajo”. (IF § 217). Ou seja, chegamos no terreno das convenções… A grande confusão surge ao se desconsiderar a natureza convencional de nossas proposições gramaticais, naturalizando-as, como se já estivessem potencialmente presentes em supostas estruturas mentais da criança, sendo que bastaria apresentar a ela “situações de aprendizagem” para que houvesse uma compreensão imediata de novos empregos de nossas palavras; como se a técnica de medição fosse algo natural na aplicação dos números naturais, ou que o significado da cor vermelha já existisse previamente na mente da criança (só faltando nomeá-la). *** Tendo em vista as considerações acima, parece-me que cabe fundamentalmente aos professores disponibilizarem a vontade de seus alunos e alunas para ver novos aspectosde determinados conceitos ao transpô-los para o contexto escolar como também para introduzir novos conceitos fundamentais de suas disciplinas. Apresentar ao estudante um novo sentido de um conceito, ou seja, outro modo de empregá-lo, possibilita uma nova compreensão do conceito, ampliando-se, assim, o seu espectro de aplicação, tecendo novas relações de semelhanças de família entre eles, e articulando-os com outros conceitos. O mesmo se aplica ao se ensinar conceitos de outras culturas que nos parecem estranhos. Através da imaginação para ver novos aspectos, promove-se uma mudança de atitude diante das diferenças aparentemente incomensuráveis entre culturas muito diferentes. Por exemplo, sugerindo-se o estabelecimento de ligações intermediárias entre os nossos próprios conceitos e os de outra cultura, propiciando-se, assim, uma mudança no nosso modo de pensar. Talvez seja esta a tarefa precípua de todo professor. E pensar aqui, pressupõe o pensamento 50 Esta sistematização em níveis de constituição do sentido foi proposta por Moreno (2012a) tendo em vista uma teoria própria sobre o significado linguístico, intitulada por ele de Epistemologia do Uso, inspirada na segunda fase do pensamento de Wittgenstein e na obra do epistemólogo francês Gilles-Gaston Granger. 77 humano, que envolve compreensão dos sentidos que estão sendo transmitidos, que são públicos, e não privados. Vejamos, então, dois exemplos de como a concepção mentalista da compreensão, quando invade o campo educacional, pode levar a confusões que poderiam ser evitadas, tais como a medicalização excessiva na educação e o uso indevido do chat-GPT em todos os níveis de ensino. Dois exemplos de confusões: a medicalização e o uso do chat-GPT na educação A concepção mentalista do conceito de compreensão continua muito presente nas teorias da aprendizagem, as quais pressupõem um mundo mental na criança que poderia ser descrito através de testes similares aos do pedagogo e psicólogo francês Alfred Binet, que tinha inicialmente como finalidade medir os coeficientes de inteligência da criança (QI) em crianças com dificuldades especiais de aprendizagem (Azanha, 2006). No entanto, logo o teste de QI passa também a ser utilizado para classificar os alunos em geral em “naturalmente dotados” e os que não poderiam ter uma “carreira aberta ao talento”, como observa o médico e educador Rômulo Caires (2024) em seu artigo “Quando a medicina e a psicologia entram na escola”. Surgem, então, os testes psicométricos, que têm sido empregados no Brasil com o objetivo de nortear as decisões a serem tomadas pelos sistemas de ensino, relegando-se a segundo plano (ou mesmo desconsiderando totalmente) o nosso longo passado colonial e escravocrata, que deu origem a uma profunda desigualdade social e étnica com reflexos imediatos na educação, que perduram até os dias de hoje. Ainda segundo Caires, mesmo findado os dias do racismo científico, A psicologia continuou postulada como guia máximo da prática pedagógica pelos principais nomes da “Escola Nova”, amplo processo de renovação da Educação Brasileira. Essa psicologia, entretanto, já não era mais a mesma do período anterior. Entrava em cena os motivos ambientais, as chamadas “deficiências culturais”, os “móveis inconscientes”, mas o que se manteve e será a tônica constante até os dias atuais é a ideia de que a saúde vem para sanar o que há de falho na educação (Caires, 2024, p. 2). Desta perspectiva medicalizante, a dificuldade de compreensão da criança (e subsequentemente de aprendizado) poderia ter como causa algum tipo de transtorno mental, recorrendo-se, então, a testes psicométricos, através dos quais, cada vez mais são diagnosticadas crianças com TDAH que passam a fazer uso da medicação Ritalina, mas com algumas diferenças: 78 Se nas escolas particulares e entre aqueles com melhores condições materiais o diagnóstico pode servir a práticas pedagógicas mais individualizantes, não podemos dizer que a experiência nas escolas públicas é a mesma. Observar essa diferença joga luz na própria dinâmica e estrutura do fenômeno da medicalização da educação, ou seja, a transposição de problemas educacionais para a gramática da medicina e da saúde, transformando problemas inseridos na totalidade social em questões médicas (Caires, 2024, p. 3, grifo nosso). Aqui Caires nos dá um exemplo bastante preocupante de como as autoridades têm feito uma “má interpretação” do conceito de avaliação, quando se passa a avaliar o aprendizado e o comportamento dos alunos a partir de critérios pertencentes a outros jogos de linguagem (no caso, determinados jogos de linguagem da psiquiatria e da psicologia) que não levam em conta o cotidiano escolar e suas efetivas práticas pedagógicas, como também o seu entorno e suas especificidades. Pelo contrário, impõe-se um campo de normalidade a partir de critérios cientificistas da psicologia e da psiquiatria que frequentemente desconsideram não só apenas fatores sociais e políticos, mas principalmente o que de fato ocorre no chão da escola pública, como a falta de valorização dos professores, baixos salários e péssima infraestrutura, sendo que a maioria das escolas públicas nem ao menos dispõe de uma biblioteca e, por vezes, nem de banheiros. Apesar de tantas variáveis envolvidas externamente e internamente à escola, elege-se, exclusivamente os critérios cientificistas da medicalização da educação, interpretando-se dogmaticamente os conceitos de compreensão, aprendizagem e de avaliação escolar, entre outros, resultando em diagnósticos psicológicos e médicos que acabam contribuindo para uma estigmatização da escola pública, entre outros equívocos e confusões. Recorrendo a uma terminologia wittgensteiniana, pode-se dizer que as regras dos jogos de linguagem pertencentes à medicina e à psicologia são transpostas para os jogos de linguagem específicos do campo da educação, desconsiderando- se as regras que seguimos no contexto escolar, bastante distintas das relações de causa e efeito características das ciências empíricas, como as do campo da medicina e da psiquiatria, e mesmo de determinadas vertentes da psicologia. As finalidades da educação têm fundamentos éticos e epistemológicos, que são expressos por regras de sentido, condições para descrevermos e agirmos sobre os problemas que de fato ocorrem no contexto escolar. As dificuldades de aprendizagem e de evasão escolar podem ter múltiplas razões: desde a falta de professores na escola, o que impossibilita o pleno acesso ao conhecimento em geral, até questões que passam pelas metodologias necessárias para a apresentação dos conteúdos curriculares, o que demanda professores especialistas em suas respectivas áreas. Compreender algo, como já foi mencionado, pressupõe o domínio de técnicas que necessitam ser 79 ensinadas como condição para o estabelecimento de regras internas de sentido e não pressupor estados mentais (a serem tratados com medicamentos) que seriam a causa empírica da compreensão ou incompreensão de conteúdos curriculares. Mais recentemente, a medicalização da educação parece estar dando lugar a um novo produto tecnológico apresentado como a nova panacéia para as dificuldades de aprendizagem na educação escolar. Diversos conglomerados educacionais privados passaram a oferecer um ensino personalizado, ganhando-se fortunas com plataformas digitais que dispõem de robôs de IA com a função de tutores, programados para avaliar os níveis de aprendizagem de cada aluno e, em seguida, apresentando a cada um deles determinadas sequências de conteúdos que possam sanar suas dificuldades específicas em diferentes disciplinas do currículo escolar. Em princípio, esta nova tecnologia finalmente seria a realização do sonho da escola nova e das teorias de aprendizagens ativas, em que a criança é vista como o centro do processo, podendo aprender no seu ritmo e tendo um acompanhamento personalizado. Quanto ao professor, este passa então a desempenharum papel ainda mais burocrático, desresponsabilizado cada vez mais de seu ofício de ensinar, o que passa a ser visto pelos donos destas plataformas digitais surpreendentemente como positivo, argumentando-se que a relação da criança com o robô de IA a deixa mais à vontade, sem receios de errar… afinal, não é isso que determinadas teorias educacionais têm propagado? Que o aluno não erra, apenas formula hipóteses? Agora ele é livre para formulá-las, sem o constrangimento de ser corrigido pela professora na frente de seus colegas. São vários os pressupostos que permeiam esta nova modalidade de ensino, a meu ver bastante questionáveis. Mas o que considero mais preocupante, é a transferência da responsabilidade dos professores de uma turma para robôs “inteligentes” que propiciam atendimento individualizado para cada aluno, e que são programados para alcançar metas quantitativas decididas pelos tecnocratas da educação, à revelia de questões éticas, epistemológicas e de justiça social que permeiam as finalidades da educação. Mas mesmo parte da escola pública que ainda conta com professores humanos com autonomia para ensinar uma turma de crianças, ou seja, permanece o ensino coletivo e não preceptorial (sem os tais robôs), muitas delas têm se deparado com uma barreira ainda mais intransponível: o chat-GPT. Esse tipo de IA, grosso modo, pode ser descrito como um programa gerador de textos por meio de cálculos estatísticos que tem como objetivo a produção de um novo texto a partir de uma instrução dada pelo usuário (o prompt). Embora em algumas áreas o Chat-GPT sirva para determinadas finalidades que se beneficiam da velocidade com a qual cálculos são efetuados, envolvendo uma quantidade enorme dados, o uso que está sendo feito dessa tecnologia no âmbito escolar, a meu ver, já está se revelando extremamente 80 danoso; em particular quando os estudantes são poupados de pensar por si próprios e terceirizam seus trabalhos escolares e acadêmicos delegando ao “oráculo”51 do ChatGPT a sua realização. E a partir daí são vários os problemas e as confusões que podem ocorrer, tais como as fontes do texto final não serem confiáveis, o que propicia a propagação de fake news, sendo que estas, por sua vez, e pior ainda, ao não se ter instrumentos para validá-las, corre-se o risco enorme de serem naturalizadas pelos alunos; o texto final produzido pelo ChatGPT, muitas vezes, nem chega a ser revisado pelo aluno e é diretamente entregue ao professor, o que estimula a passividade do aluno e o priva de reflexão; e mesmo os que se dão ao trabalho de ler o texto gerado pelo ChatGPT passam a vê-lo como um conjunto de verdades inquestionáveis; ainda que algumas das afirmações produzidas não façam o mínimo sentido, como, por exemplo, as que estão sendo denominadas de “alucinações” do chat, quando o programa inventa fontes ou faz afirmações disparatadas52. Mas dentre todas as confusões acima apontadas, insisto, a consequência mais grave é a dos estudantes serem privados de um processo de compreensão dos sentidos dos textos que são gerados por tais algoritmos estatísticos, na medida em que não vivenciam o treino e o esforço necessário para aprender de fato os conteúdos em questão e muito menos exercitam minimamente uma reflexão crítica sobre eles. Tampouco têm a oportunidade de exercer sua imaginação e de elaborar um trabalho autoral, desenvolvendo seu próprio estilo de escrita. Estas são perdas enormes para a formação humana que, infelizmente, está sendo reduzida à preparação de uma massa de trabalhadores, dos quais, uma porcentagem mínima ocupará cargos de comando, aprofundando-se o abismo social já existente. Consequentemente, o risco é grande de haver um processo de emburrecimento progressivo dos estudantes, cuja “inteligência” é reduzida a saber operar tais chats. E mais uma vez, temos a presença insidiosa de uma concepção mentalista e referencial da compreensão, na medida 51 O “oráculo” do Google, ainda bastante utilizado, tinha até recentemente pelo menos o mérito de citar suas fontes, o que nos possibilitava checar determinadas informações. Infelizmente, nem isso se tem mais. 52 Nem estou mencionando os crimes cibernéticos propiciados pela IA, como golpes milionários e vídeos adulterados já classificados como crimes high tech, e, mais assustador ainda, o descontrole de alguns robôs físicos de IA, provavelmente devido a bugs do programa, sem mencionar ainda a desinformação e as ferramentas para disseminá- la por meio da IA em anos de eleições, como havia alertado o Fórum Econômico Mundial, quando dois bilhões de eleitores iriam votar em 58 países, entre outras notícias relatadas pelo jornalista e pesquisador Eugênio Bucci, em seu artigo “Riscos sobrepostos”: “Não há mais como não ver. Se os processos decisórios das sociedades democráticas forem abduzidos pela ignorância fabricada por Inteligência Artificial, a humanidade estará, sim, seriamente ameaçada.” Disponível em: https://aterraeredonda. com.br/riscos-sobrepostos/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_ campaign=novas_publicacoes&utm_term=2024-02-11. Acesso em: 15 fev. 2025. https://aterraeredonda.com.br/riscos-sobrepostos/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2024-02-11 https://aterraeredonda.com.br/riscos-sobrepostos/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2024-02-11 https://aterraeredonda.com.br/riscos-sobrepostos/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2024-02-11 81 que se faz um uso dogmático do conceito de inteligência artificial, como se a palavra “inteligência” designasse algo etéreo que estaria sendo rapidamente alcançado por meio de procedimentos algorítmicos fundamentados em modelos estatísticos cada vez mais complexos, de tal modo que a máquina (operada por estes algoritmos) estivesse perigosamente superando a inteligência humana, ou mesmo já a tendo ultrapassado, segundo algumas manchetes da mídia. Ora, em contraposição a esse uso referencial/mentalista do conceito de inteligência (que remonta aos primeiros procedimentos dos seguidores das ideias de Binet), basta lembrar que o pensamento humano (e analogamente o que se considera inteligência humana) não se reduz a um cálculo estatístico; pelo contrário, o cálculo matemático e/ou estatístico é apenas um de nossos jogos de linguagem, mencionado, entre tantos outros, no § 23 das IF. Desta perspectiva wittgensteiniana da linguagem, o pensamento humano pode ser visto como a capacidade de transitar por essa multiplicidade de jogos de linguagem, dominando técnicas que são aprendidas em meio a diversas atividades do mundo empírico e envolvendo não apenas palavras, mas também sentimentos, sensações, costumes e hábitos que fazem parte de uma forma de vida. Dito de outro modo, nosso pensamento só é possível no interior de jogos de linguagem orientados por regras intrinsecamente vagas, não redutíveis a cálculos exatos. Essa vagueza das regras é o que nos permite transitar de um jogo de linguagem a outro ou mesmo no interior de um mesmo jogo. Daí o pensamento ser algo que se dá em um espaço de possibilidades orientado por regras que não determinam nossas ações e decisões como falsas ou verdadeiras, mas apenas orientam o que faz, e o que não faz sentido, no interior de jogos de linguagem inventados pelo homem. Já um algoritmo de inteligência artificial só opera com dois valores de verdade: V ou F. São sistemas binários que não dão conta da vagueza das regras que seguimos, as quais acionamos em função do contexto/jogo de linguagem em que estamos imersos. Em outros termos, o pensamento inteligente humano só se manifesta no atrito de uma forma de vida, em que o cálculo (estatístico ou não) é apenas uma das técnicas que aprendemos a dominar. Portanto, a equiparação reducionista do conceito de inteligência com o que se denomina inteligência artificial (ou do conceito de pensamento ao que se denominapensamento de máquina) conduz a uma Imagem, ou seja, expressa uma má interpretação do uso que fazemos da palavra inteligência (ou de pensamento), o que, por sua vez, tem gerado novas Imagens e subsequentes confusões, em particular no contexto escolar. Por exemplo, as “alucinações” do chat-GPT podem ocorrer quando o algoritmo simplesmente não diferencia proposições que têm um uso descritivo das que têm um uso normativo na nossa linguagem, fonte da maior parte das confusões filosóficas tratadas terapeuticamente por Wittgenstein. Esta diferenciação só é passível 82 de ser feita no interior de um contexto que envolve interlocuções entre humanos, que estão vivenciando uma determinada situação no tempo e no espaço. Enquanto que os cálculos realizados por uma IA podem ser vistos como apenas mais um dos nossos múltiplos jogos de linguagem em que se manipula os símbolos integrantes do banco de dados para se gerar uma outra combinação dos mesmos símbolos. Sem que haja qualquer processo de verificação ou mesmo de checagem da pertinência dos dados que são manipulados estatisticamente para a produção do texto final, o único critério adotado pela IA para que um novo símbolo seja incorporado é a sua frequência probabilística, e não a natureza do jogo de linguagem em que determinada palavra ou expressão linguística está sendo efetivamente usada, a saber, se se trata de um uso empírico ou gramatical. Eis uma fonte de equívocos que só podem ser identificados por humanos, e não por máquinas. Assim, por mais complexo que seja um algoritmo de IA, este não é capaz de discriminar o contexto em que determinados enunciados são empregados e, portanto, pode não ser capaz de julgar ou mesmo de identificar o que é relevante em um texto (Kuusela, 2024); enquanto que os seres humanos nas situações efetivas de emprego de nossas palavras e expressões linguísticas (ainda) são capazes de acionar regras suficientes (e não exaustivas) pertencentes a um determinado jogo de linguagem para atribuir sentido ao que está sendo efetivamente enunciado (em tom normativo ou descritivo), em uma determinada cultura. Como já mencionamos, o pensamento humano está assentado em proposições gramaticais que, embora de natureza convencional, são importantes para nós em nossas formas de vida, e é a partir delas como pano de fundo que agimos, sentimos e pensamos com sentido. A máquina não opera com sentidos, apenas obedece a ordens de seus programadores automaticamente, o que impossibilita decisões e julgamentos que na forma de vida humana envolvem sentimentos, sensações, empatia, solidariedade e uma série de outros conceitos psicológicos e valores que fundamentam a ação dos seres humanos. Portanto, quando delegamos à IA nossos julgamentos e decisões é como se estivéssemos reduzindo nosso pensamento a um cálculo estatístico que, além de estar fundamentado em fontes que podem não ser fidedignas, produz um único tipo de “pensamento”, ignorando-se as demais funções da nossa linguagem, entre outras confusões, o que nos aproxima cada vez mais do que poderíamos chamar de uma pobreza do pensamento, ou como outros pesquisadores têm denominado, 83 sedentarismo cognitivo ou preguiça cognitiva53. Trata-se, portanto, de um reducionismo ingênuo e até mesmo perigoso considerar o cálculo estatístico de um Chat GPT como uma atividade, em si, inteligente, equiparando-a ao sentido humano de inteligência, na medida em que esta, diferentemente da IA, envolve a consideração de diversos elementos pragmáticos para lidar com as situações cotidianas de modo sensato, eventualmente até recorrendo a alguns cálculos, mas não se reduzindo a eles. Como já ressaltamos acima, o cálculo trata-se apenas de um instrumento que o homem inventou para determinadas finalidades. Diferentemente da exatidão presente neste cálculo, a maior parte de nossos jogos de linguagem estão ancorados em uma forma de vida na qual as regras são essencialmente vagas, condição para se passar de um jogo para outro, através de semelhanças de família não captadas pela máquina. Ser capaz de fazer essas transições pressupõe o domínio da técnica da comparação em situações concretas de vida, o que diferencia essencialmente o homem de um mero robô54. Pode-se, ainda, argumentar que a máquina “aprende”, mas em que sentido? Se considerarmos o aprendizado como um processo que nos habilita a atribuir sentidos aos fatos que nos rodeiam, a conteúdos escolares, a sensações próprias e a de outros, a ações que reconhecemos como éticas e outras imorais, entre vários outros fatos da vida humana, não cabe falar em aprendizado atribuído a uma máquina. O aprendizado humano, em particular no contexto escolar, envolve variáveis que não estão presentes em um programa de computador; entre elas o respeito ao professor, a solidariedade e o convívio com os colegas, o apoio e os incentivos que vem de casa e, fundamentalmente, os rituais da cultura escolar. Além do que, o aprendizado de um 53 Dentre os usos mais corriqueiros da IA apontados por diferentes pesquisadores e educadores, destacam-se os seguintes: fazer um resumo rápido de um artigo científico (para poupar tempo de leitura), resumir arquivos e ler as informações principais, corrigir a redação de seus próprios textos, captar ideias para um projeto acadêmico, pedir uma lista de perguntas e respostas para estudar para uma prova, entre outras formas, que segundo eles podem levar a uma dependência cognitiva (ao se reduzir o esforço mental para sintetizar informações e organizar pensamentos) com diversos impactos na aprendizagem, tais como, um enfraquecimento das habilidades de contra-argumentação, falta de espírito crítico, ausência de reflexão e de criatividade. Acesso em 12-07-2025: https://www.campograndenews.com.br/ educacao-e-tecnologia/uso-de-ia-pode-gerar-preguica-cognitiva-apontam-especialistas https://brasil61.com/n/uso-excessivo-de-ia-preocupa-educadores-e-cientistas-pelo- impacto-na-aprendizagem-bras2514284 54 Daí a dificuldade de se obter diagnósticos médicos ou psiquiátricos através de consultas em plataformas digitais recorrendo-se apenas à IA, dado que as informações fornecidas pelos usuários acerca dos sintomas que apresentam são, na maior parte, extremamente vagas; o que impossibilita a máquina operar com estas informações como sendo V/F, resultando em diagnósticos e tratamentos equivocados e até mesmo perigosos para o “paciente”, na medida que podem levá-lo à piora dos sintomas ou mesmo à morte. https://www.campograndenews.com.br/educacao-e-tecnologia/uso-de-ia-pode-gerar-preguica-cognitiva-apontam-especialistas https://www.campograndenews.com.br/educacao-e-tecnologia/uso-de-ia-pode-gerar-preguica-cognitiva-apontam-especialistas https://brasil61.com/n/uso-excessivo-de-ia-preocupa-educadores-e-cientistas-pelo-impacto-na-aprendizagem-bras2514284 https://brasil61.com/n/uso-excessivo-de-ia-preocupa-educadores-e-cientistas-pelo-impacto-na-aprendizagem-bras2514284 84 novo conceito em uma determinada disciplina pressupõe vários níveis de articulação do sentido, processo que envolve um tempo considerável para memorizar convenções (e a partir de um certo momento, ser capaz de aplicá-las em novos contextos), dominar novas técnicas e assim, gradualmente, os estudantes são introduzidos por seus professores a jogos de linguagem específicos de uma disciplina; enquanto que, uma informação gerada pelo Chat GPT, obviamente desprovida de todo este trabalho linguístico que a precede para dotá-la de sentido, torna-se vazia de significado para os estudantes, e é rapidamente esquecida por eles. Retomando a observação terapêutica de Wittgenstein: como se ensina constitui o significado do quê se ensina. Nem o próprio Chat GPT é programado para esclarecer os caminhos efetivamente envolvidos ao longo dos cálculos estatísticos utilizados para chegar a determinado resultado, e mesmo que fosse, seria humanamente impossível acompanhá-los. Em suma, os dois exemplos apresentados acima mostram quenão há panacéias médicas ou tecnológicas para os problemas da educação, mas talvez a terapia filosófica das Imagens educacionais possa ser um bom início para que nós, enquanto professores, coordenadores, diretores e os próprios estudantes, voltemos o nosso olhar para as especificidades de cada escola, tendo como finalidade encontrar nossas próprias soluções e/ou encaminhamentos, evitando-se, assim, soluções impostas externamente por lobbies do setor privado, sejam os do mundo farmacêutico ou os dos conglomerados das plataformas digitais na educação. Considerações�finais�preventivas A partir das ferramentas conceituais de Wittgenstein e de sua terapia filosófica, foram apresentados alguns resultados terapêuticos que, a meu ver, podem ser de interesse não só para a filosofia da educação, mas também relativizam determinadas diretrizes educacionais que levam a diversos equívocos com reflexos preocupantes nas práticas pedagógicas. Desta perspectiva filosófica wittgensteiniana, observamos que o modelo referencial da linguagem ainda é hegemônico nos discursos educacionais, em particular aqueles que estão atrelados a uma concepção mentalista dos conceitos psicológicos, como os de compreensão, aprendizagem e de avaliação. Foram então apresentados dois exemplos: o da medicalização abusiva de alunos diagnosticados com TDAH, por vezes recorrendo-se estritamente a testes psicométricos; e o uso, também problemático, do Chat-GPT, pelos estudantes para resolver tarefas escolares em geral. Contrapondo-me a estas práticas, procurei identificar algumas Imagens (no sentido técnico de Wittgenstein) de conceitos educacionais, tais como os de compreensão e de aprendizagem, que ainda são vistos por determinadas teorias educacionais como se tratando de um processo psicológico, desconsiderando-se os 85 fundamentos convencionais dos conteúdos escolares e a importância do professor para transmiti-los com sentido, em um contexto coletivo de ensino. Ainda de uma perspectiva wittgensteiniana, observamos que compreender/ aprender envolve um domínio de convenções e de técnicas compartilhadas de natureza convencional, que são aprendidas no chão da escola, ensinadas por um professor, e que não são passíveis de serem substituídas por modelos de linguagem de IA como o Chat GPT que, entre outros equívocos, eliminam o caminho a ser percorrido pelos estudantes em direção à constituição de sentidos, privando-os, assim, de desenvolver as capacidades de reflexão crítica e de discernimento. Concluo ressaltando a importância do ensino coletivo, em que os estudantes possam contar com seus professores e colegas de classe para exercer sua própria imaginação, aprender a argumentar, serem capazes de redigir textos autorais, tomar decisões ou fazer julgamentos com lastro na realidade empírica; evitando-se, assim, que recorram a um oceano de zilhões de informações não pertinentes para a constituição de sentidos que nos tornam verdadeiramente humanos. Post scriptum (Réplica a�Jeffrey�Stickney) Esta é uma resposta ao item intitulado Questions Arising at/from the Colloquium, inserido no capítulo de Stickney publicado neste volume, acrescentado ao texto original de sua conferência de abertura no colóquio Wittgenstein e Educação: questões contemporâneas, ocorrido na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, nos dias 8 a 10 de novembro de 2023. Ao longo deste colóquio, no qual eu também havia apresentado uma conferência, surgiram entre nós algumas divergências de interpretação de determinadas ideias de Wittgenstein, em parte por problemas técnicos de tradução e de áudio, em parte por serem questões que de fato demandam mais tempo de interlocução. Tendo em vista suprir essa lacuna, o professor Stickney generosamente fez a leitura de um texto meu que havia sido publicado um ano antes, intitulado “Unfounded foundations, grammatical relativism and Wittgenstein, the educator” (Gottschalk, 2022a), ao longo do qual apresento minhas discordâncias com a perspectiva pós-fundacionista atribuída a Wittgenstein, defendida por parte dos comentadores de sua obra, com os quais Stickney compartilha integralmente. Um dos pontos de discordância entre nós refere-se ao próprio termo “pós- fundacionista” (post-foundationalism) para caracterizar a concepção epistemológica de Wittgenstein após o Tractatus, e outro ponto de divergência refere-se à natureza da Gramática dos usos. Passo, então, a responder sucintamente este dois pontos, que a meu ver, demarcam as interpretações naturalista e transcendentalista da obra tardia de Wittgenstein. 86 O primeiro ponto a ser esclarecido refere-se a uma suposta contradição apontada por Stickney em meu texto, quando afirmo que “our philosopher [Wittgenstein] does not defend the existence of definitive, extralinguistic and universal ultimate foundations. But this does not mean that there are no ultimate foundations that guide our investigation, knowledge and rationality, within our form of life” (Gottschalk, 2022a, p. 33). Segundo Stickney, há uma contradição neste trecho, uma vez que, ora afirmo não haver fundamentos últimos definitivos, extralinguísticos e universais da linguagem para o segundo Wittgenstein, ora afirmo na frase seguinte que isso não significa que não haja fundamentos últimos que guiem nossa investigação, conhecimento e racionalidade, no interior de uma forma de vida. De fato, concordo com Stickney que voltar a falar em fundamentos últimos pode ser visto como uma contradição, talvez tivesse sido melhor deixar apenas o termo “fundamentos”. No entanto, há uma sutil diferença entre fundamentos últimos e definitivos, que pode esclarecer esta aparente contradição. No que se segue imediatamente ao trecho mencionado do meu texto de 2022, explicito o que seriam esses fundamentos “últimos” da perspectiva de Wittgenstein: além de serem distintos do que se considerou até o início do século passado como fundamentos de natureza metafísica, empirista ou mentalista, o que ele considerará como fundamento na segunda fase de seu pensamento passa a ser visto por ele como sendo de natureza linguística, expresso por nossas proposições gramaticais, que, embora sejam de natureza convencional, comportam uma necessidade da qual não abrimos mão. Essas proposições normativas, por sua vez, constituem uma Gramática que carregamos dentro de nós, que desempenha a função transcendental de delimitar o que faz, e o que não faz sentido. Isso não impede que em algum momento ou período da história determinadas proposições gramaticais passem a ter um uso empírico ou vice-versa, ou mesmo desapareçam e dêem lugar a outras. Neste sentido, pode-se dizer que Wittgenstein é relativista no âmbito gramatical, mas de modo algum um relativista universal. Como já apontado, segundo ele não há fundamentos definitivos, o que não impede de agirmos, pensarmos e sentirmos apoiados em fundamentos últimos, no sentido das justificativas terem um fim, como afirma no célebre parágrafo 217 das IF: “Se esgotei as justificativas, cheguei então à rocha dura, e minha pá entorta. Estou inclinado então a dizer: ‘É assim mesmo que ajo’” (meu itálico). Portanto, negar a existência de fundamentos epistemológicos em Wittgenstein é abrir um flanco para classificá-lo como sendo um relativista total, o que ele próprio contesta em várias passagens de sua extensa obra. Nas palavras do filósofo Arley Ramos Moreno, aludindo aos céticos e afastando Wittgenstein de uma tal perspectiva, “Wittgenstein does not suspend judgement as to fundamentals; on the contrary, he recognizes the fundamentals as being the limits of meaning and shows their conventional nature.” (Moreno apud Gottschalk, 2022a, p. 35). Em suma, 87 se não houvesse qualquer fundamento linguístico que desempenhasse a função transcendental de atribuição de sentido aos demais enunciados de uma língua, nada poderíamos expressar ou descrever significativamente. Daí que me cause estranheza o slogan tão amplamente difundido queWittgenstein seria pós-fundacionista (ou foundationless). Quanto ao termo “shallow ground” utilizado por Stickney já no título de sua conferência, que pode ser traduzido para o português como “fundamento superficial ou raso”, também nos causou estranheza, na medida em que as metáforas utilizadas por Wittgenstein para aludir aos fundamentos últimos de uma explicação linguística remetem ora ao que ele compara com o canal de um rio, ora com a dureza de uma rocha (para ficarmos apenas em duas metáforas), como vemos nos diversos parágrafos de Sobre a certeza mencionados pelo próprio Stickney (DC, § 96-97, 99) e, em particular, no § 217 das IF, mencionado acima. Bem, uma pá não se entorta ao se cavar um terreno arenoso ou argiloso, metáforas também utilizadas por Stickney em sua argumentação pós-fundacionista. Mesmo que a rocha dura possa em algum momento se desintegrar parcialmente em um desses materiais, de modo geral nossas formas de vida são expressas linguisticamente através de nossas certezas, as quais comportam uma necessidade (uma dureza) da qual não abrimos mão, como expus no meu texto em questão, recorrendo a exemplos do próprio Wittgenstein. Nesse sentido, a metáfora da rocha dura pode ser interpretada como aludindo a nossas ações (‘É assim que eu ajo’) cristalizadas na forma de proposições gramaticais no interior de múltiplos jogos de linguagem, constituindo-se, assim, uma Gramática de usos que carregamos dentro de nós, a qual, por sua vez, passa a desempenhar esse papel de fundamento, tão estável como uma rocha, tornando-se condição para que possamos atribuir sentido ao que dizemos, sentimos e fazemos na contingência de nossas vidas. Além do que, o fato das proposições gramaticais serem constituídas no uso da linguagem não invalida utilizarmos o termo “fundamento”, uma vez que se consolida um sistema aberto constituído por tais proposições intrinsecamente relacionadas entre si, e que passam a expressar uma imagem de mundo (Weltbild). Como mencionei acima, Wittgenstein também recorre à metáfora de um rio cujas águas fluem dentro de um canal, onde as proposições empíricas (V/F) fariam parte do fluxo do rio, enquanto que as gramaticais comporiam seu leito (o equivalente à rocha dura) na forma de canal. Mesmo que uma ou outra proposição gramatical possa ir para o “fluxo do rio” ou vice-versa (uma proposição empírica ir para o “leito do rio”), em um dado momento de seu enunciado é possível discernir se está sendo empregada normativamente ou descritivamente e, portanto, se estamos diante de um enunciado gramatical ou empírico. Essa alternância não invalida o fato de que se mantêm um corpo de proposições necessárias que desempenham o papel 88 de um fundamento estável e sólido em um determinado corte do tempo de nossa história natural. O segundo ponto questionado por Stickney no mesmo texto de 2022, e que está relacionado com o primeiro ponto, é quando me baseio no § 241 das IF para enfatizar a natureza não empírica (e, portanto, não social) da Gramática de nossas formas de vida: “the grammar of life forms is our language games, which we are gradually introduced to through agreements in language rather than through empirical sociological, psychological or historical processes” (Gottschalk, 2022a). Essa minha afirmação, segundo ele, entraria em contradição com o que digo em seguida, de que essa Gramática não é dada, mas sim uma construção que constitui nossa imagem de mundo. Como se estivesse implícito nesta afirmação que, por ser algo construído, a Gramática seria necessariamente social. Não que ao longo desse processo o social/empírico não tenha tido um papel importante. De fato, Wittgenstein não nega uma origem empírica de nossas proposições gramaticais. Mas essa origem não define a natureza da Gramática que passamos a carregar dentro de nós. No jogo de linguagem da dor, por exemplo, uma criança aprende o conceito de dor tacitamente, através dos usos que fazemos da palavra “dor”. Fragmentos/ elementos empíricos entram na linguagem como amostras ou paradigmas para o uso de palavras ou expressões linguísticas, ou seja, o empírico (a própria sensação de dor, ou a manifestação empírica de dor do outro) é apropriado pela linguagem, mas já como uma ferramenta da linguagem, processo ao longo do qual a linguagem produz, gradualmente, o conceito de dor. No final desse trabalho da linguagem, o conceito de dor adquire uma autonomia em relação ao empírico, ou seja, uma vez cristalizado na linguagem, não presta mais contas em relação ao empírico. Por exemplo, passamos a ser capazes de falar sobre a dor sem estarmos sentindo dor ou vendo alguém manifestando ter dores. Em um segundo momento, surgem enunciados gramaticais, tais como, “só eu sinto minha própria dor”, “as sensações são privadas” etc., que não descrevem nada, mas passam a ser condição para as descrições empíricas que envolvem a palavra “dor” (IF, § 300). Outro exemplo clássico é o do metro padrão. A barra de platina-irídio, que até o ano de 1960 serviu como padrão internacional para a unidade de medida um metro, não mede ela própria um metro, mas tornou-se uma ferramenta da linguagem para que pudessem ser realizadas mensurações empíricas a partir desta nova unidade, passando a ter um uso transcendental: diz o que é ser um metro. Em outras palavras, aquele objeto empírico ao fazer parte da Gramática dos usos, não é mais um objeto meramente empírico, na medida em que passa a desempenhar o papel de ferramenta linguística; e é nesse sentido que a Gramática não se trata de uma construção propriamente social, mas é resultado de um trabalho da linguagem em uso, que constrói paradigmas na linguagem. E é este trabalho da linguagem que 89 interessa a Wittgenstein descrever (tendo como finalidade a dissolução de problemas da filosofia tradicional), e não seu aspecto empírico ou social. Quanto à aproximação feita por Stickney de Wittgenstein com outros filósofos considerados pós-fundacionistas, observo que Wittgenstein recorre eventualmente a um uso primitivo de um conceito com finalidades terapêuticas, ou seja, para a dissolução de confusões filosóficas, comparando-o com os usos efetivos/atuais daquele conceito. Mas também imagina situações fictícias com o mesmo propósito (DC §63). Em outras palavras, não interessa a ele a genealogia do conceito em si, como interessou a Foucault e a outros pensadores, mas apenas como a Gramática opera quando está sendo acionada em uma forma de vida. Daí que a filosofia (como proposta por Wittgenstein) sempre terá trabalho pela frente, pois temos “recaídas” de tempos em tempos, na medida em que os problemas filosóficos ressurgem sob novas vestimentas. É esse momento sincrônico (e não diacrônico) da recaída que interessa de fato a ele, momento em que a terapia filosófica possibilita ver um problema conceitual por outros ângulos, sejam eles propiciados por um uso anterior do conceito ou por uma situação imaginada pelo filósofo para testar os limites do seu sentido. Enfim, agradeço muitíssimo a oportunidade de continuar o diálogo com o professor Stickney nessa seara wittgensteiniana filosófica e educacional, na qual são poucos os que se dispõem a ouvir, de fato, as vozes vindas dos trópicos. Referências AZANHA, José Mário Pires. 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Em outros termos, persiste nessas teorias a ideia de que o significado de uma palavra esteja previamente no objeto ao qual ela se refere, como se a palavra tivesse como única função a nomeação de tal objeto. Em contraposição a esta concepção referencial da linguagem, Wittgenstein observa que o significado de uma palavra se constitui, gradualmente, ao longo dos usos que fazemos dela em diferentes contextos, e que ignorar o efetivo funcionamento da linguagem leva à formação de Imagens3 dogmáticas que levam a vários equívocos e confusões de natureza conceitual. Tendo como finalidade a dissolução de tais Imagens, Wittgenstein elaborou um “método” que passou a ser denominado de terapia filosófica (e não psicológica), por se tratar de um procedimento não canônico que varia caso a caso relativamente ao problema filosófico a ser enfrentado. Tanto a aplicação do método de Wittgenstein a questões educacionais como o que se considera seus “resultados terapêuticos” perpassam os textos desta coletânea, através de um diálogo polifônico dos autores com o filósofo terapeuta. *** O capítulo que abre esta coletânea, de autoria do filósofo da educação canadense Jeffrey� Stickney, apoia-se, predominantemente, nas passagens dos 3 A palavra Imagem está sendo entendida aqui não no sentido pictórico da palavra “imagem”, mas no sentido técnico da segunda fase do pensamento de Wittgenstein, a saber, passa a ser vista por ele como uma interpretação equivocada de determinadas expressões linguísticas ou decorrente de um uso dogmático de conceitos; por exemplo, ao se privilegiar um determinado sentido do conceito como sendo “o verdadeiro” em detrimento de outros possíveis. http://mundo.em 12 últimos escritos de Wittgenstein, publicados especialmente nas obras Investigações filosóficas e Sobre a certeza, para problematizar pesquisas empíricas e baseadas em evidências sobre a eficácia das pedagogias da educação para a sustentabilidade ambiental, denominadas aqui no Brasil de ecopedagogias. Ele argumenta que, quando estas pesquisas procuram demonstrar a “eficácia” de tais pedagogias, utilizam jogos de linguagem, por exemplo, das tecnologias educacionais, que diferem dos jogos que orientam as práticas da ecopedagogia; e que ignorar esta distinção conduz a confusões gramaticais, pois se passa a procurar relações causais no discurso das ecopedagogias como se o emprego de terminologia etiológica o tornasse um discurso verídico equivalente aos das ciências empíricas. Os argumentos apresentados por ele assinalam a importância de se ter o cuidado de distinguir o tipo de jogo de linguagem em que são feitas afirmações em torno da eficácia pedagógica, o que também se aplica a outras afirmações presentes no campo educacional que desconsideram outros usos possíveis da linguagem. Stickney também aborda em seu capítulo questões filosóficas que surgiram a partir de sua participação, via remota, no colóquio Wittgenstein e Educação: questões contemporâneas, realizado na FEUSP em 2023, apresentando argumentos em prol de uma posição epistemológica antifundacionista que tem sido atribuída a Wittgenstein, por parte de alguns dos comentadores da sua obra tardia. No segundo capítulo, Mirian Donat problematiza o conceito de humanização e ressalta a sua importância para a educação para muito além de finalidades tecnológicas e utilitaristas hegemônicas nas propostas pedagógicas vigentes. Nesse sentido, a imagem do humano como sendo aquele que detém uma racionalidade vista como superior às outras dimensões do humano passa a ser alvo da terapia wittgensteiniana, resultando na importância da busca pelo sentido da vida como condição para que sejamos humanos, o que envolve o reconhecimento mútuo na linguagem e o respeito pela palavra do outro. Daí que para que haja um “eu” deve haver previamente o “nós”, sendo, portanto, uma das tarefas da educação possibilitar que os estudantes, a partir de práticas compartilhadas, sejam autores de seu próprio texto, como também responsáveis por ele, promovendo-se, assim, a autonomia de cada um. No terceiro capítulo, Cristiane Maria Cornelia Gottschalk discorre sobre algumas das ferramentas conceituais do pensamento maduro de Wittgenstein, que, a seu ver, possibilitam tratar terapeuticamente conceitos educacionais polêmicos, como os de compreensão, conhecimento, pensamento, liberdade, avaliação, aprendizagem e ensino, entre outros, com a finalidade de prevenir confusões provenientes de diretrizes educacionais e de propostas metodológicas que ainda estão atreladas a uma concepção metafísica dos conceitos. Como exemplos de alvos terapêuticos, Gottschalk aborda a crescente medicalização de crianças diagnosticadas com TDAH através de testes psicométricos e, mais recentemente, o uso problemático da 13 inteligência artificial no contexto escolar, em particular, o Chat GPT. Ao final de seu capítulo neste e-book, foi incorporada uma resposta ao item “Questions Arising at/ from the Colloquium” do capítulo de Stickney, com a finalidade de esclarecer uma divergência entre os autores relativa à seguinte questão: teria sido o filósofo austríaco de fato um antifundacionista (Stickney) ou a Gramática dos usos teria ocupado o lugar de fundamentos epistemológicos e do significado em geral (Gottschalk)? No quarto capítulo, de autoria de Rosely da Silva Matos Liberatori, é abordado o conceito de cuidado no campo da enfermagem, em particular na formação dos profissionais de saúde, mostrando-se como o uso, por vezes dogmático, do conceito de cuidado, pode adoecer, ao invés de curar, indivíduos de comunidades que têm uma outra visão de mundo. Nas comunidades indígenas mencionadas por Liberatori, os relatos dos sonhos vividos, as rezas que acompanham o cuidado, entre outros procedimentos que, por vezes, são imprescindíveis para a cura de indígenas que, ao serem atendidos em hospitais das nossas cidades, com raras exceções, veem seus rituais simplesmente ignorados, o que pode dificultar muito a cura de suas enfermidades ou mesmo inviabilizá-las, em particular ao serem levados a hospitais que adotam exclusivamente os procedimentos canônicos da ciência ocidental. Daí a importância do estabelecimento de novas diretrizes nos cursos de enfermagem que levem em consideração outros sentidos da palavra cuidado, fundamentados em crenças tais como as de que o cuidado também envolve o entorno dos habitantes de uma comunidade, cuidando-se não apenas de cada um dos seus membros isoladamente, mas também, das florestas e dos rios que fazem parte do território em que se vive. No quinto capítulo, Eder Marques Loiola ressalta o uso dogmático de diretrizes e discursos educacionais que, sob o guarda-chuva de teorias pós- estruturalistas e de pós-verdade na educação, inspiradas nas ideias de Deleuze e Guattari, Foucault, Nietzsche, entre outros, passaram a criticar duramente práticas escolares denominadas tradicionais, sem considerar as práticas que efetivamente ocorrem no contexto escolar, fazendo a linguagem girar no vazio, como alertava Wittgenstein. Tendo em vista contrapor-se a elas, o autor recorre ao termo cunhado por José Mário Pires Azanha, abstracionismo pedagógico, para expressar a falta de atrito de teses educacionais descoladas das realidades efetivamente vividas no contexto escolar. Analogamente, o autor observa que aquelas teorias são aplicadas no vazio, o que conduz a uma miríade de confusões, pois acabam retirando dos professores sua autoridade e, por conseguinte, a possibilidade de um ensino que propicie as mínimas condições para que os estudantes sejam, de fato, inseridos nos múltiplos jogos de linguagem da nossa cultura. No sexto capítulo, Bárbara Nivalda Palharini Alvim Sousa discorre sobre a importância da matemática para a ampliação de nossa visãoO papel do método no ensino: da maiêutica socrática à terapia wittgensteiniana. ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v. 12, n. 1, p. 64-81, jul.-dez. 2010. DOI: https://doi.org/10.20396/etd.v12i1.842 GOTTSCHALK, Cristiane Maria Cornelia. 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Paralelamente a isso, busquei compreender como o conceito de cuidado, tão caro nos currículos e documentos oficiais dos cursos da área da saúde e, em particular, no curso de enfermagem, tem sido empregado. Para realizar essa reflexão, me inspirei nas ideias do filósofo Wittgenstein, na segunda fase do seu pensamento, particularmente, a partir das obras Investigações filosóficas e Cultura e Valor. Mas de que forma Wittgenstein poderia me ajudar nessa reflexão? Primeiramente porque estava muito incomodada com a ideia de que ensinar, em enfermagem, de forma geral, pudesse ser reduzido à aplicação de métodos e que os alunos deveriam construir seu próprio conhecimento em relação a como cuidar das pessoas, como se isso fosse possível sem a presença de um professor, um mestre, o qual acumula experiência e conhecimento. Ao consultar a literatura produzida sobre o tema de ensino em enfermagem, a primeira constatação que tive foi de que, na última década, os trabalhos publicados defendem o rompimento com o modelo de ensino baseado na transmissão de conhecimento. 92 Esse modelo está relacionado a aulas expositivas, ênfase na aprendizagem do conteúdo, memorização, repetição, avaliação por meio de provas, disciplinas, com ênfase no conhecimento socialmente produzido, ao passo que o ensino desejável para o século XXI é aquele em que o professor, agora chamado de facilitador, cria possibilidades para que os alunos se desenvolvam, considerando que, dessa forma, os alunos se tornariam críticos. O mote que representa essa linha de pensamento é o “aprender a aprender”! Aqui, abro um parêntesis para colocar o que penso sobre a expressão “aprender a aprender”, baseando-me na crítica feita por José Mário Pires Azanha, para o qual: Pode-se perguntar: o que há de errado em “aprender a aprender”? Ocorre que a expressão é um despropósito gramatical. Há verbos que não podem ter a si mesmos como seu objeto, é o caso de “aprender”. Literalmente, a expressão “aprender a aprender” é opaca, não diz nada, não significa nada, talvez por ser autorreferencial [...] nossa insistência no caráter defectivo da expressão deve-se também ao fato de que na sua ampla difusão em textos pedagógicos e até mesmo em documentos oficiais, ela é uma sementeira de confusão; professores sinceramente empenhados na melhoria de suas próprias práticas podem ficar desnorteados por não conseguirem atinar em como proceder para que seus alunos aprendam a aprender. Na sua interpretação literal, a expressão pode acabar conduzindo a uma paralisia pedagógica (Azanha, 2006, p. 17-18). Concordando com Azanha, acrescento que a expressão parece sinalizar para um esvaziamento de sentido do espaço escolar, da sala de aula e do papel do professor ao retirar dele o papel de alguém que, além de transmitir conteúdo, transmite experiências e vivências. Como nos lembra Azanha, ensinar não se reduz à aplicação de um método e, segundo John Dewey, os problemas no campo da educação não são resolvidos somente com a adoção de um novo modelo para o ensino, sendo necessário um exame crítico, pois uma atitude de liberdade reivindicada pelas abordagens consideradas progressistas pode se tornar tão dogmática quanto o modelo da escola tradicional, do qual se busca distanciar. Falando em dogmatismo, penso que Wittgenstein nos ajuda a refletir e ampliar nossa visão sobre como, muitas vezes, estamos agindo dogmaticamente ao empregar conceitos. Já apresentei minha motivação inicial para refletir sobre o uso dogmático do conceito de ensino e agora explorarei um pouco sobre o uso do conceito de cuidado. O conceito de cuidado está presente nas nossas vidas desde crianças. Quando uma mãe chama a atenção do filho para que ele não coloque o dedo na tomada a fim de que não leve um choque, ela costuma usar a expressão: Cuidado! Tire o 93 dedo da tomada senão vai se machucar! O emprego dessa expressão, dessa forma, tem a função de alertar. Emiti-la implica preocupação em proteger e acautelar. Em termos wittgensteinianos, estamos fazendo um uso primitivo que funciona como um sistema de comunicação, que vamos incorporando desde criança. Para Wittgenstein, o que confere sentido ao uso de um conceito é o acordo feito na linguagem pelos membros de determinadaforma de vida. Assim como um jogo, a linguagem tem regras constitutivas que ditam o que faz sentido (Glock, 1998, p. 225). Por linguagem, entende-se uma atividade humana composta de regras de natureza convencional em que as palavras, o não verbal, a escrita, a corporeidade, são meios que usamos para nos expressarmos e atribuirmos sentido aos fatos do mundo. A linguagem é, também, culturalmente situada. Dessa forma, ter uma linguagem é ter uma visão de mundo. Quando discutimos o conceito de cuidado, estamos pensando em um conceito que seja empregado a partir de regras pertencentes ao jogo de linguagem da ciência. O cuidado deve ser embasado cientificamente; isso é condição de sentido para podermos operar com o conceito de cuidado. Mas será que apenas as regras do jogo de linguagem da ciência são suficientes para um profissional de saúde operar com o conceito de cuidado? De que forma Wittgenstein pode nos ajudar a ampliar e adquirir a visão panorâmica desse conceito? Para responder a essas perguntas, tomei como base as ideias de Wittgenstein relacionadas com a cultura e, como tal, busquei entender quais são as regras adotadas por distintos grupos indígenas para conseguirmos perceber como os usos dos conceitos de ensino e cuidado são empregados. Desse modo, a filosofia wittgensteiniana nos ajudará a multiplicar pontos de vista, recorrendo a exemplificações e comparações. Para Wittgenstein, a linguagem não tem uma estrutura universal, mas é a partir dela, como elemento culturalmente condicionado, que são estabelecidos os sentidos das palavras. A filosofia wittgensteiniana se propõe a descrever as regras de uso das palavras. Ao descrevê-las, mostramos como são; não como deveriam ser. O significado de uma palavra, portanto, é o seu papel na vida dos grupos humanos pertencentes a uma forma de vida. Por forma de vida podemos entender a relação entre linguagem, hábitos, cultura e visão de mundo que caracteriza grupos sociais com práticas peculiares ao seu modo de operar com um conceito e, consequentemente, organizar a experiência que os circundam. O sentido está no uso e o uso é guiado por regras, normas e elementos culturais elaborados no interior dos jogos de linguagem que, em conjunto, constituem uma gramática que nos autoriza a usar o conceito com sentido, operando com força 94 normativa e constituindo uma visão de mundo. Assim, as palavras “cuidado” e “ensino” não têm um significado extralinguístico, que deveria ser buscado fora dos nossos jogos de linguagem, mas se dá no contexto em que as palavras são efetivamente usadas, ou seja, são mobilizadas de acordo com as regras que os membros de determinada forma de vida foram ensinados a seguir. Dessa perspectiva, o papel do professor passa a ser o de alguém que ensina os alunos a verem como a palavra funciona nos distintos jogos de linguagem. De acordo com Wittgenstein, Seguir uma regra é análogo a: seguir uma ordem. Somos treinados para isto e reagimos de um determinado modo. O modo de agir comum a todos os homens é o sistema de referência, por meio do qual interpretamos uma linguagem desconhecida (Wittgenstein, IF, § 206, 1999, p. 93). Ao seguirmos as regras, incorporamos em nossas vidas o significado de uma palavra, o que permitirá a compreensão, durante o uso, de quem as profere e de quem as ouve, permitindo nossa relação com o mundo. Podemos perguntar, então, o que é cuidado? Wittgenstein diria que a pergunta está mal formulada, pois sugere uma resposta única, pautada em uma essência de natureza ontológica das ações que podem ser descritas como cuidado. Assim, para podermos operar de outra forma com os conceitos, em geral é necessário que tenhamos acesso a outras convenções que relativizem os usos que estamos habituados a empregar. Por esse motivo, o exercício filosófico que será realizado aqui é o de propor um alargamento da nossa visão para outras regras de usos dos conceitos de ensino e de cuidado. Na medida em que vamos conhecendo outras formas de organizar a experiência em relação aos conceitos de ensino e de cuidado, perceberemos como nossa forma de operar com esses conceitos é de natureza convencional. O resultado é um ensino menos dogmático e mais compreensivo da realidade cultural e cotidiana, nos livrando, assim, do poder coercitivo sobre o pensamento, fazendo com que algo seja visto somente de uma perspectiva. Como diz a célebre frase de Wittgenstein, “os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo” (Wittgenstein, 1968, p. 111). 95 Compondo a gramática do conceito de cuidado: o cuidado entre o Céu e a Terra e as “bibliotecas vivas” Muitas regras para o uso dos conceitos acabam sendo invisibilizadas pelo pensamento hegemônico. Veremos, adiante, regras seguidas por alguns povos indígenas que nos farão perceber como eles concebem o cuidado e o ensino. Carregamos a herança, gestada em séculos passados, da divisão entre ser humano e natureza, subjetivo e objetivo, mente e corpo, ciência e senso comum. A partir dessa divisão, passamos a pensar de forma fragmentada e, consequentemente, sem perceber, tendemos a privilegiar alguns usos dos conceitos em detrimento de outros. Para começarmos a falar de jogos de linguagem do cuidado entre povos indígenas, adotarei a definição de cultura elaborada por Wittgenstein: “A cultura é uma observância. Ou, pelo menos, pressupõe uma observância” (Wittgenstein, 1980, p. 121). Cada grupo cultural organiza as experiências que fazem parte de suas vidas à sua maneira; por exemplo, o ato de parir, suas diferentes expressões de dor, cuidados com o corpo do recém-nascido, rituais quanto ao cuidado do corpo depois da morte, cuidados com a natureza, com o cosmos. Essas práticas são aprendidas e ensinadas em um contexto e podem ter uma força normativa expressa pelo verbal e pelo não verbal, ou seja, pela linguagem. Na cosmovisão indígena, não existe saúde se o território é destruído. Quando um rio morre, um indígena também morre. Matar o rio é uma forma de matar os indígenas. Além disso, a preservação do território implica preservação da vida como forma de garantir a subsistência dos descendentes, em uma relação de interdependência entre os demais seres vivos e não vivos. O território, a terra e a natureza não compõem apenas a geografia de onde habitam, mas apoiam seu mundo simbólico. Na cosmologia ameríndia, todos os seres são agentes do mundo. Cuidar, na cosmovisão indígena, significa, muitas vezes, um cuidado que integra o bem viver de todos da comunidade ao território. A relação que se estabelece com os recursos que se tem no entorno imediato, como as ervas e os rituais de agradecimento à Mãe Terra, além da fé em um ser superior, são regras para o enfrentamento dos momentos de enfermidade. A noção de corpo é elemento fundamental para compreender o conceito de cuidado, pois, nesses grupos, o corpo não se reduz a uma estrutura biológica constituída por elementos bioquímicos em reações fisiológicas de equilíbrio ou em reações fisiopatológicas, quando em desequilíbrio. O corpo coexiste com elementos da natureza, com os cosmos, com a espiritualidade; o corpo depende das forças dos homens e das forças dos espíritos para ser consolidado. As enfermidades 96 estão frequentemente associadas à transgressão das regras adotadas como normas de conduta do grupo avaliadas pelo seu líder, pajés ou xamãs, que indicarão se a enfermidade será tratada como doença de branco ou doença de índio. Para exemplificar, selecionei alguns trabalhos para que possamos conhecer regras para operar com os conceitos de cuidado e de ensino: Em 2012 o Blog da revista Premissas55 entrevistou o enfermeiro Sílvio Ortiz, pós-graduado em saúde pública e índio Guarani-Caiuá, morador da aldeia Jaguapiru, em Dourados. Ortiz atua como enfermeiro-intérprete no hospital universitário, facilitando a comunicação entre a população indígena e os profissionais do hospital. Ele nos conta que seu trabalho é de extrema importância, “jáque seu povo tem resistência ao ambiente hospitalar, que, na cultura indígena, é associado ao sofrimento e à morte”. A permissão para a realização de rituais de reza como condição para que os pacientes indígenas se sintam seguros e, acrescento, cuidados, durante uma internação hospitalar, tornou-se lei estadual nos hospitais do Mato Grosso do Sul. Segundo Ortiz, na cultura indígena o ritual de reza é considerado base para que o tratamento médico tenha sucesso. Em relação aos indígenas Kukama Kukamiria, apresentarei, a seguir, trechos que mostram como a mulher, nas fases de gestação, parto e puerpério, deve ser cuidada: As ligadas (tomar banho de diferentes folhas de plantas) é uma forma de cuidado que permite eliminar o frio, que pode acontecer quando elas (as gestantes) pegam chuva ou quando estão demasiado tempo na água, lavando roupa no rio, ou resfriadas. Esse cuidado evitará cólicas, e ajudará a mulher a se preparar para o momento do parto, quando o corpo deve estar em equilíbrio: nem frio nem quente, para que haja uma boa dilatação. A partir do sétimo mês da gestação, as sobadas (massagem terapêutica no ventre) é utilizada frequentemente como sinônimo de segurança para a mãe e bebê, cujo propósito é acomodar (endireitá-lo – posição cefálica) e também manter um ventre flexível e sem marcas (estrias) [...]. Nascido o bebê, a parteira realiza a higiene com água morna à parturiente, que fica em repouso por oito dias, com o cuidado de não estar exposta as correntes de ar e ambientes frios. A mulher tem um lenço amarrado na sua cabeça, coloca meias nos pés e algodão nos ouvidos. Durante esses dias os familiares podem ver a puérpera e o bebê; também são aceitas visitas de pessoas 55 Essa revista tem como objetivo levantar e discutir assuntos de relevância regional, externos à Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), porém com um “olhar” de fontes da universidade, servindo como um instrumento que favorece o conhecimento coletivo, como convite ao debate e ao diálogo com a sociedade. Disponível em: https:// revistapremissas.wordpress.com. Acesso em: 15 fev. 2025. https://revistapremissas.wordpress.com https://revistapremissas.wordpress.com 97 que tenham bom espírito (para evitar as kutipas) [...]. Cumpridos os oito dias, a parturiente e o bebê tomam banho, que consiste em um preparado de folhas de plantas fervidas feito pela parteira. Só então mãe e filho podem sair do quarto (uma divisão dentro da casa, preparada especificamente para o momento do parto e pós-parto) para integrar-se a todos os membros de sua família. Para ajudar a melhora da saúde do corpo, durante o período puerperal as mulheres costumam fazer um tratamento baseado em cascas de diversas árvores (maiteno, acapurana, cajazeiro, resina de muiratinga, unha de gato) [...] (Yajahuanca et al., 2014, p. 2843). Reconhecer essas práticas como regras para o uso do conceito de cuidado implica reconhecimento do papel da natureza, influência espiritual e habilidade manual e técnica das mulheres da tribo para que a gestação, parto e puerpério transcorram de maneira satisfatória, atendendo às regras culturais desse grupo. A importância dada aos banhos e chás com ervas, permite alargar nossa visão para compreensão do valor atribuído à natureza. Daí a necessidade de sua preservação, bem como de interditos que são colocados para que não aconteça a exploração do ambiente no entorno. O cuidado com a saúde e a proteção contra as enfermidades dependem, também, de uma relação estabelecida com os espíritos, que podem, em algumas ocasiões, gerar danos à mulher e à criança. Por isso existe o costume de ocluir orifícios de modo a evitar a possível penetração desses espíritos por essas vias. Algodões, tampões e demais substâncias usadas para oclusão expressam, simbolicamente, o cuidado com o corpo contra um invasor. Estudando os povos Kogui, Wiwa, Arhuaco e Kankuano, da Serra Nevada de Santa Marta, na Colômbia,56 León (2016) apresenta-nos que o papel que o humano cumpre na ordem cósmica para os indígenas dessa localidade funda-se no “cuidado do universo”, constituído por todos os seres por eles considerados ontologicamente “irmãos da existência” (León, 2016, p. 397). A seguir, apresento a descrição das regras adotadas pelos membros desse grupo para falar em cuidado do universo: Nós, indígenas da Serra Nevada, nos consideramos como os irmãos maiores da humanidade e nossa principal função é cuidar do universo e de todos os seres que lhe conformam. Ao falar em seres, nos remetemos não somente ao que os não indígenas consideram como seres vivos – animais, plantas, humanos, se não também a tudo que forma parte da natureza – ventos, águas, astros e demais fenômenos 56 Segundo nota apresentada pela autora, para esses povos, a Serra é seu território ancestral e o cenário do pensamento cosmológico que os configura como guardiões da Lei da Origem e irmãos mais velhos da humanidade: para eles a Serra Nevada de Santa Marta é o Coração do Mundo (Léon, 2016, p. 406). 98 existentes. Nessa medida, a relação que nós povos indígenas da Serra mantemos com a natureza remete a uma concepção de harmonia e relacionamento com ela considerando o homem um membro a mais; daí que em nossas histórias constantemente se fala que as árvores ou os animais também são gente e vice-versa. Para alcançar esta relação, consideramos a natureza como a Mãe Ancestral, como a mãe espiritual de tudo o que existe (Léon, 2016, p. 397). Nesse trecho, a palavra “cuidar” parece exercer uma função normativa, associada com a ideia de proteção: proteção do planeta, do universo, da humanidade, dos seres visíveis e não visíveis. Esses indígenas colocam-se como guardiões do universo, da natureza e dos povos que habitam o planeta Terra. Percebemos o vínculo entre cuidado humano e cuidado com a natureza; nessa perspectiva, perde lugar o antropocentrismo. Assim, começamos a perceber um cuidado motivado ecologicamente, que ganha força com a noção de território. No Hospital Makewe, da etnia Mapuche, localizado no Chile, o atendimento feito aos pacientes acontece na seguinte ordem: Os enfermos são visitados diariamente por uma equipe de saúde. Esta visita começa com uma saudação em Mapudungun57, logo conversam sobre os sonhos que os enfermos tenham tido, fala-se sobre a enfermidade com o enfermo e seus familiares presentes, os exames, os tratamentos a seguir e o prognóstico. Todos os enfermos têm indicações de água de ervas medicinais segundo sua enfermidade, massagem com pomadas de ervas, conselhos cinésicos etc. Quando os enfermos podem andar, podem participar de algumas ações do hospital, sobretudo em fazer cinesioterapia e psicoterapia a outros pacientes enfermos. As pessoas em reabilitação de consumo de álcool e outras drogas participam em alguns trabalhos administrativos, visitas comunitárias, reuniões de coordenação comunitária, visitas a especialistas Map uche e conversas sobre “Saúde e pensamento Mapuche” (Gobierno de Chile. Ministerio de Salud, 2011, p. 13, grifo nosso). 58 Vamos percebendo a importância do onírico como regra para se pensar o cuidado entre os Mapuche, que priorizam a descrição dos seus sonhos logo pela manhã, após acordarem, como meio de auxiliá-los no tratamento de suas enfermidades. Apresento, a seguir, a síntese de uma narrativa da cosmovisão indígena dos Yanomami, a partir das palavras de um de seus representantes, Davi Kopenawa, 57 Mapudungun: língua mapuche. 58 Disponível em: http://www.bibliotecaminsal.cl/wp/wp-content/uploads/2011/09/ Historia-Hospital-Makewe.pdf. Acesso em: 10 fev. 2020. 99 encontradas no livro A queda do céu.59 Penso ser possível depreender, desse relato, as regras que regem o conceito de cuidado, bem como as regras para o conceito de ensino. Os Yanomami relacionam-se com a natureza e com seus guardiões místicos – denominados xapiris60 – de maneira muito cuidadosa. O entendimento disso se contrapõe à ideia-chave da modernidade, o progresso,61como meta a ser atingida e à 59 O livro A queda do céu foi escrito pelo antropólogo francês Albert Bruce em 1976 a partir de uma pesquisa antropológica na aldeia. Com base nesse estudo etnográfico, a produção textual foi lida para o líder da tribo David Kopenawa, que solicitou que as palavras que fossem levadas ao mundo partissem da narrativa de sua história, biografia e ensinamento sobre a origem do mundo. O título remete à cosmovisão Yanomami da formação do mundo, em que Omama (força criadora) finca duas barras de ferro dentro do planeta Terra, as quais sustentariam o céu para que ele não desabasse sobre nossas cabeças. Com a devastação da floresta e exploração do solo pelos brancos, em busca de minérios de ferro e petróleo, essas barras poderiam ter suas estruturas abaladas, fazendo o céu ruir. Para sustentar o céu, os Yanomamis contam com a ajuda dos guardiões invisíveis que cuidam do planeta, denominados xapiris. As palavras de Omama foram: “Impeça as águas dos rios de afundá-la [a Terra] e a chuva de inundá-la sem trégua. Afaste o tempo encoberto e a escuridão. Segure o céu, para que não desabe. Não deixe os raios caírem na terra e acalme a gritaria dos trovões! Impeça o ser tatu-canastra Wakari de cortar as raízes das árvores e o ser do vendaval Yariporari de vir flechá-las e derrubá- las!”. Escavando tanto, os brancos acabarão arrancando as raízes do céu, e seremos todos, brancos e indígenas, dizimados. Com a fumaça dos minérios, do petróleo, das bombas e das coisas atômicas, os brancos farão adoecer a Terra e o Céu (Kopenawa; Albert, 2015, p. 85). 60 São os guardiões invisíveis, protetores, cuidadores da floresta, dos homens e do mundo, protegem da morte dançando e ensinando os xamãs as palavras certas para combater os males, as doenças e as epidemias (xawaras). Conta a história que a esposa de Omama, a mulher das águas, lhe disse assim: “Crie os xapiri, para curarem nossos filhos!”. Omama concordou: “Awei! São palavras sensatas (Kopenawa, 2015, p. 84). As armas dos espíritos xapiris para realizarem a cura são: espíritos macaco-aranha desfazem os nós dos laços de algodão que as mantêm presas, as mandíbulas dos espíritos dos peixes pequenos yaraka si que retalham os rastros de doença, como os peixinhos disputam os restos de caça abatida jogados nos igarapés, os espíritos abelha e formiga os devoram aos poucos, do mesmo modo que esses insetos se juntam sobre o sangue dos animais que estão sendo trinchados (Kopenawa; Albert, 2015, p. 53). Os espíritos poraquê, por fim, são capazes de fulminar a epidemia xawara com seus raios, ao passo que o espírito lua a dilacera com suas presas afiadas (Kopenawa; Albert, 2015, p. 129). 61 Na opinião do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do livro A queda do céu, é possível concluir que nos é apresentada a iminência da destruição do mundo, levada a cabo pela civilização que se julga a delícia do gênero humano – essa gente que, liberta de toda “superstição retrógrada” e de todo “animismo primitivo”, só jura pela santíssima trindade do Estado, do Mercado e da Ciência, respectivamente, o Pai, o Filho e o Espírito Santo da teologia modernista (Viveiros De Castro In: Kopenawa; Albert, 2015, p. 24). 100 noção de propriedade privada, como se fôssemos donos da terra. Entre os Yanomami essa relação se dá às avessas: é o povo que pertence à Terra. O que o líder indígena nos deixa são palavras de orientação para a preservação do planeta, palavras vindas através dos sonhos,62 quando em contato com o mundo de Omama. O onírico tem fundamental importância na filosofia Yanomami, pois é através dos sonhos que muitos xamãs recebem mensagens de cura, de cuidado e de prevenção de agravos ao seu povo, mensagens intermediadas pelos guardiões xapiris, que advertem sobre o cuidado em relação às epidemias (xawara).63 Quando começou a realizar palestras mundo afora para “alertar” os brancos sobre o perigo da “queda do céu”, Kopenawa relata que as características da vida nas cidades sequestram a possibilidade de se manter em tranquilidade: Para os que cresceram no silêncio da floresta, ao contrário, a barulheira das cidades é dolorosa. É por isso que, quando fico lá muito tempo, minha mente fica tampada e vai se enchendo de escuridão. Fico ansioso e não consigo mais sonhar, porque meu espírito não volta à calma (Kopenawa; Albert, 2015, p. 437). Para sonhar é necessário dormir e isso significa que o sono precisa ser de qualidade, sem interrupções; mais do que isso, é necessário preparo corporal e psíquico que leve a um estado de serenidade e calma, livrando da ansiedade que Davi acabava desenvolvendo quando se encontrava na cidade. 62 O sonho, particularmente o sonho xamânico induzido pelo consumo de alucinógenos, é a via régia do conhecimento dos fundamentos invisíveis do mundo, tanto para os Yanomami como para muitos outros povos ameríndios (Viveiros de Castro, Eduardo. In: Kopenawa; Albert, 2015, p. 38). 63 O termo xawara significa fumaça. Essa fumaça pode ser a fumaça da exploração dos minérios e metais, considerada inimiga e maléfica, pois está associada ao desenvolvimento de doenças entre esses povos, consequência da exploração do solo em busca de elementos para serem comercializados entre os brancos. “Omama enterrou os minérios para que ficassem debaixo da terra e não pudessem nunca nos contaminar. Foi uma decisão sábia e nenhum de nós jamais teve a ideia de cavar o solo para tirá-los da escuridão! Essas coisas maléficas permaneciam bem enterradas, e nossos maiores não ficavam doentes o tempo todo, como ficamos hoje” (Kopenawa, 2015, p. 363). “O que chamamos de xawara são o sarampo, a gripe, a malária, a tuberculose e todas as doenças de brancos que nos matam para devorar nossa carne”. Somente os xamãs conseguem ver os espíritos da epidemia, os quais eles denominam da seguinte forma: seres da tosse, thokori, que rasgam as gargantas e os peitos ou os seres da disenteria, xuukari, que devoram as entranhas e também os seres do enjoo, tuhrenari, os da magreza, waitarori, e os da fraqueza, hayakorari. Eles não comem caça nem peixe. Só têm fome de gordura humana e sede de nosso sangue, que bebem até secar (Kopenawa; Albert, 2015, p. 366). 101 A proteção dos corpos dos Yanomami provém do ar puro da floresta. Vemos que a floresta é personificada como agente de cuidado, de modo que, para os Yanomami, não é possível conceber a vida sem as florestas. Essa é uma regra que se impõe para manutenção da vida, do cuidado e da proteção dos homens, animais, plantas, pedras e seres invisíveis. As epidemias cortam as árvores, cortando também a vida dos Yanomami, pois fazem com que eles morram. Sendo assim, podemos afirmar que a floresta viva corresponde à vida, garantindo cuidado e proteção a todos os seus habitantes. A terra se machuca, sente dor, requer ser cuidada. Se os brancos contaminam as águas dos rios em busca de explorar o ambiente, a água fica doente, a floresta também fica doente. Por isso precisa ser cuidada e, caso adoeça, precisará ser curada. A cura pressupõe que algo ou alguém adoeceu; já o cuidado pressupõe mais que isso: seu sentido se estabelece na prevenção, na proteção, em evitar o sofrimento, passando a ser o cerne da preservação da floresta, dos homens e de toda a cultura desse povo. Quando Davi nos conta a respeito do preparo para se tornar xamã, percebemos que o processo dura muito tempo. Como ele mesmo diz, assemelha-se ao tempo que os filhos dos brancos levam para aprender a escrever. É um preparo que requer cuidado, cautela, tempo, entrelaçado por períodos de profundo silêncio; uma espécie de encontro consigo mesmo. Chama-nos a atenção a ideia de temporalidade apresentada como caminho longo a ser percorrido para atingir um objetivo, no caso, tornar-se xamã, além do papel fundamental dos “mestres” xamãs mais experientes, como aqueles que mostram os caminhos dos espíritos e os dos seres maléficos. O ensino, o tempo, o cuidado e a experiência dos xamãs maisvelhos se entrelaçam como elementos que permeiam a formação do futuro responsável pelo cuidado e pela cura dos membros do grupo. Isso nos permite descobrir aspectos que contribuem para alargar nosso pensamento em relação ao ofício de formar alguém para cuidar. Os mais velhos são o que podemos chamar de “bibliotecas vivas”. Conselheiros importantes para a salvação e preservação dos seres vivos e do planeta, possuem saberes que estão localizados no cotidiano, nas práticas, no corpo, nas palavras, no canto. Esse conhecimento é sua ciência e seu ensino baseia-se na transmissão oral. Existe uma transmissão de conhecimento que passa de geração em geração, corporificada e valorizada a partir da narrativa dos membros mais velhos do grupo, desvelando, assim, a importância da memória para a manutenção da cultura desse povo. Durante a transmissão das palavras para a escrita do livro A queda do céu, o líder Yanomami pede ao antropólogo que registre essas palavras em 102 peles64 de imagens; porém, para os Yanomami, as palavras ganham força no pensamento, não sendo necessário terem livros, pois as palavras estarão guardadas na mente e dessa forma não poderão ser destruídas. Para os Yanomami, somente pelo uso coerente entre fala e prática é possível entender o sentido da palavra. As longas conversas ao redor da fogueira e o tempo em que se leva para a formação de um xamã nos mostram como esse grupo atribui forte significado ao treinamento da escuta atenta por parte do aprendiz e a oralidade sustenta a transmissão de saber. Depreende-se, também, a importância da preparação e do treinamento para que alguém seja conhecido como portador de conhecimento profundo, isto é, um xamã. Quando Davi menciona o ensino das crianças, a mensagem é de que a mente se abre às palavras com o passar dos anos, quando se fixam nas pessoas, pois não nascem com elas, mas são transmitidas e ensinadas por uma autoridade adulta. Crianças e adultos saem para caçar e pescar juntos e as crianças se ocupam de imitar tudo que os adultos fazem. A partir dessas ações, considera-se que começam a pensar direito, tomando exemplos dos mais velhos e, também, das vozes da floresta para realizar suas próprias ações. Ensina-se as habilidades por meio da ação, do exercício, do cotidiano, de práticas que sustentam a sobrevivência, habilidade que está registrada nas mãos dos mais experientes. Palavras certas usadas cotidiana e rotineiramente vão entrando no pensamento e imprimindo significado no pensamento e no corpo das pessoas, de modo que quando outros Yanomami começam a se interessar pelas palavras dos brancos, Davi faz uma ressalva: Seu pensamento passava o dia todo tomado só pela palavra das mercadorias. Não paravam de pedir, em língua de fantasma: “Quero uma faca, um facão, uma bermuda, sandálias, cartuchos, biscoitos, sardinhas!”. Suas antigas palavras sobre a floresta e as roças encolheram em suas mentes até silenciarem (Kopenawa; Albert, 2015, p. 353). Podemos perceber a importância das palavras, da linguagem, para manter acesa a chama que ilumina o pensamento Yanomami, de modo a não se deixar “contaminar” pelas palavras dos brancos. Na medida em que as palavras deixam de 64 Pele, aqui, refere-se a papel, pois, na cosmovisão Yanomami, as árvores são dotadas de vida e, por isso, seu casco é considerado uma pele, à semelhança da pele dos humanos ou dos animais. Dessa forma, escrevemos em folhas, que são parte da “anatomia” de um ser vivo, a saber: a pele. Essa vivacidade atribuída à arvore parece explicar por que esse povo não enfatiza a escrita na maneira como nós a conhecemos, pois, cada página ou livro escrito implica destruição de árvores. A árvore é elemento sagrado que deve ser preservado; não derrubado para registrarmos os fatos os quais devem ser guardados no pensamento ou inscritos no corpo das pessoas com tinta de urucum. “Imagem” refere- se à escrita ou aos desenhos feitos na pele, “no papel”. 103 ser usadas, de circular, de deixar de fazer parte das rodas de conversas, vão perdendo representação e expressividade no grupo. Desse modo, palavras relacionadas ao cuidado precisam se manter vivas, pois perder as próprias palavras significa levar um povo à morte. Ao disponibilizarmos nosso olhar para mais esses aspectos dos conceitos de cuidado e de ensino, que funcionam como normas para muitos povos indígenas, relativizamos nossa maneira de conceber esses conceitos, pois conhecemos novas regras, o que permite que os conceitos que dispomos se alarguem, caracterizando uma visão sinóptica. Considerações�finais Encaminhando para o término da apresentação panorâmica, o que pudemos perceber é a composição de uma paisagem em que encontramos amostras e exemplos de regras para operar com os conceitos de cuidado e de ensino. Essas regras podem ser ensinadas pelo professor ao se tentar fazer com o que os alunos vejam como cuidado outras regras de diferentes jogos de linguagens. A cada nova regra, vai se constituindo a gramática do conceito de cuidado que nos diz o que é cuidado em diferentes contextos, ampliando, assim, nossa capacidade de compreensão do mundo. Desta forma, considero importante deixar algumas perguntas para reflexão sobre o tema: Quais são as regras para o uso do conceito de cuidado que adotamos e incorporamos para nós mesmos, profissionais de saúde e do ensino, que cuidamos e ensinamos a cuidar? De que forma reforçamos ou rejeitamos a importância de alunos cuidarem de sua saúde física, mental e espiritual? O quanto ressaltamos esses aspectos no momento de definirmos os conteúdos programáticos, horários de aulas, estágios e a demanda de atividades didáticas? Quando afirmamos que o aluno deve buscar o conhecimento, a mensagem transmitida também não é, de certa forma, que ele está sozinho nesse processo e que isso pode tornar a aprendizagem mais difícil e desgastante? Enquanto professores, o quanto refletimos sobre a escassez dos recursos da Terra e entendemos o cuidado do meio ambiente como diretamente implicado no cuidado da nossa saúde? Por que o papel do professor, enquanto alguém que transmite conhecimento, tem sido relegado? Qual o lugar do ensino tácito, ligado a um saber fazer próprio de quem ensina com o corpo, com o gesto, com as mãos? A intenção dessa reflexão foi, portanto, disponibilizar a vontade do interlocutor para aceitar uma nova possibilidade de entendimento para os conceitos de cuidado e de ensino, reforçando a ideia de que o uso da palavra acontece sob as regras que os membros de determinada forma de vida foram ensinados a seguir, como produto cultural, ainda que o tomemos, muitas vezes, por natural. 104 A composição da visão panorâmica nos permite, em geral, uma experiência de alteridade, levando-nos a ver aquilo que desconhecíamos por nos encontrarmos aprisionados a uma imagem que somente permite ver o que está em conformidade com o que vivenciamos habitualmente, reconhecer os limites da nossa linguagem. É o que tenta nos ensinar Wittgenstein. Há que se garantir espaço para o ensino de distintos usos para os conceitos de cuidado e de ensino, além de problematizar os enunciados dominantes, permitindo o contato com palavras que não nos são familiares, e questionar a aceitação de pontos de vista que se propõem abrangentes e uniformizantes. A partir da proposta wittgensteiniana de visão panorâmica, concebo que a função do professor é ensinar com vistas a persuadir o aluno a considerar aspectos de um conceito que ele não está habituado a ver, dado que seu olhar tende a se direcionar ao que lhe é habitual, familiar. Sob essa perspectiva, mais próxima ao pragmático, ensinar pressupõe o ensino de uma linguagem, de códigos, por meio do treino, da memorização e do seguimento de regras de natureza convencional, que é necessário dominar. Essas regras nem sempre são passíveis de serem descobertas pelo aluno, na medida em que para ver um novo aspecto do conceito, eles precisarão aprender novas práticas. Aí, circunscreve-seo papel do professor: ensinar o aluno a ver diferentes aspectos de um conceito, pois vemos o mundo e organizamos o nosso entorno a partir dos conceitos que possuímos. Finalizo com uma frase de William Herschel: “Ver é... arte que precisa ser aprendida” (In: Hanson, 1967, p. 134). Referências AZANHA, José Mário Pires. A formação do professor e outros escritos. São Paulo: Senac, 2006. DEWEY, John. A educação tradicional frente à educação progressiva. In: ROSA, Maria da Glória de. A�história�da�educação�através�dos�textos. São Paulo: Cultrix, 1999. p. 298-306. GLOCK, Hans-Johann. Dicionário Wittgenstein. Tradução de Helena Martins. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. GOBIERNO DE CHILE. Ministerio de Salud. Hospital Makewe, Santiago de Chile, 2011. Disponível em: http://www.bibliotecaminsal.cl/wp/wp-content/ uploads/2011/09/Historia-Hospital-Makewe.pdf. Acesso em: 10 fev. 2020. HANSON, N. Russell. Observação e interpretação. In: MORGENBESSER, Sidney. Filosofia�da�ciência. 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É preciso “ikarar os kutipados”: interculturalidade e assistência à saúde na Amazônia Peruana. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 9, p. 2837-2846, 2014. 106 Capítulo�5 Uma boa analogia refresca o entendimento: Wittgenstein,�Frazer�e�o�abstracionismo�pedagógico Eder Marques Loiola Introdução São relativamente bem conhecidas as anedotas em torno da atividade de Wittgenstein como professor primário em vilarejos rurais da Áustria na década de 1920. A depender do aspecto ressaltado, essas narrativas podem ilustrar a decisão tomada pelo filósofo após a conclusão do Tractatus de se calar a respeito de questões éticas para propriamente experimentá-las na condução de sua vida, ou confirmar a coerência de sua atuação docente com os princípios da reforma pedagógica escolanovista em curso no país, ou, ainda, demonstrar a austeridade associada à personalidade do filósofo e professor em questões éticas e pedagógicas65. De todo modo, tais episódios parecem representar um vínculo frágil entre o autor e o campo educacional, talvez insuficiente para justificar a relevância de seus escritos para a compreensão de fenômenos educativos. Duas ressalvas parecem ainda corroborar essas dúvidas. Em primeiro lugar, como destaca, entre outros comentadores, David Stern, a produção do chamado segundo Wittgenstein, não procura apresentar e desenvolver teses a respeito de temas célebres na tradição de pensamento filosófico (Stern, 2004). Em suas palavras, as observações tardias do filósofo não pretendem se opor às “teorias polidas que filósofos profissionais normalmente produzem”, mas antes buscam tratar as confusões conceituais que suscitam o início da “teorização filosófica” (Stern, 2004, p. 55). Nesses termos, mais do que elaborar teses e argumentos a respeito do tema em discussão – por exemplo, a natureza do conhecimento, da aprendizagem etc. –, Wittgenstein procura esclarecer imagens e perplexidades que exercem atração sobre 65 Sobre a experiência de Wittgenstein como professor primário, ver MONK, Ray. The duty of genius. London: Vintage, 1991. 107 a reflexão filosófica, levando-a a descaminhos que ocultam as confusões linguísticas e conceituais que envolvem suas interrogações. Em todo caso, se os comentários tardios do filósofo devem ser considerados à luz desse propósito terapêutico geral, como depreender de seus escritos afirmações e argumentos positivos acerca da aprendizagem, do conhecimento e de tantos outros tópicos eventualmente relevantes nas práticas educativas? Dito de outro modo, se Wittgenstein não quer avançar propriamente nenhuma teoria sobre temas célebres na tradição filosófica em geral, com que direito podemos supor que ele tenha algo positivo a dizer sobre temas relevantes no campo particular da educação? Essa ressalva adquire ainda mais importância se considerarmos que as questões propriamente educacionais nunca foram objeto de interesse prioritário da produção de Wittgenstein. Certamente é possível encontrar trechos das Investigações filosóficas66 ou de outros escritos coetâneos que se referem a situações envolvendo, por exemplo, o adestramento ou treinamento de um aprendiz em alguma linguagem ou na realização de uma ação regrada. Tais cenários e exemplos construídos pelo filósofo não deixam de apresentar para leitores interessados na educação certo ar de família com práticas e interações correntes em escolas, como a explicação ostensiva do significado de uma palavra ou a prática de operações de adição (cf. IF, § 6, § 7, § 151). Não obstante, diversos comentadores nos lembram de que, nessas passagens, o interesse explícito de Wittgenstein não tem a ver, propriamente, com os problemas relativos à relação pedagógica eventualmente identificada na situação proposta67. Essas situações de jogos de linguagem construídos pelo filósofo servem antes à discussão de outros temas de natureza linguística e conceitual, como as condições em que palavras e gestos assumem significado e deixam de ser meros comportamentos empíricos, a ligação entre sons, gestos e determinados sentidos etc. – enfim, servem à discussão de temas que não se associam diretamente à reflexão pedagógica estrita. Essas ressalvas parecem, se não desautorizar, ao menos recomendar certo cuidado na apropriação de ideias de Wittgenstein para pensar questões pertinentes ao campo educacional. À luz das hesitações mencionadas, em que medida as observações de nosso filósofo apresentam algum interesse para compreender aquilo que se passa nas escolas? 66 Como é usual entre comentadores do texto de Wittgenstein, simplificamos a remissão ao texto de Wittgenstein, indicando as iniciais do título, seguidas da seção correspondente. As informações completas das obras consultadas, encontram-se nas referências bibliográficas, ao final do texto. Destarte, as Investigações filosóficas serão citadas como IF. 67 Ver, por exemplo, as considerações do prefácio ao volume A Companion to Wittgenstein on Education: Pedagogical Investigations, organizado por Michael A. Peters, Jeff Stickney, Springer Nature SIngapore, 2017, p. v-vi. 108 A expressão que dá título a este capítulo68 destaca um traço fundamental do estilo de investigação associado à produção intermediária e, sobretudo, tardia de Wittgenstein, isto é, seu caráter terapêutico, assinalado no efeito revigorante de uma boa comparação. Na minha argumentação, tentarei mostrar de que modo esse estilo de investigação pode inspirar trabalhos na linha de pesquisa em filosofia da educação, comprometidos com o combate a certo dogmatismo na interpretação dos sentidos atribuídos a determinadas práticas escolares. Meu argumento principal é que o estilo mesmo de Wittgenstein, caracterizado pelo uso de analogias, contrapontos, metáforas e distinções – em suma, toda sorte de comparação – pode inspirar abordagens que moderem a inclinação de trabalhos da filosofia da educação marcados, nos dizeres do filósofo, pela “dieta unilateral do pensamento”, isto é, pela inclinação à atribuição de significados exclusivistase unilaterais a gestos, ações, reações e atividades que ocorrem na experiência escolar (IF, § 593). Procurarei mostrar como os apontamentos de Wittgenstein à obra O Ramo de ouro, do antropólogo escocês James Frazer (1854- 1941), podem oferecer uma referência ou um objeto de comparação que lança luz sobre o modo como vemos a escola, chamando nossa atenção para os usos que fazemos dos conceitos para descrever suas práticas, bem como para a riqueza de aspectos da vida escolar, eventualmente ignorada por trabalhos de orientação abstracionista. O�abstracionismo�pedagógico Que trabalhos tenho em mente quando me refiro a descrições unilaterais e dogmáticas das práticas escolares? Refiro-me a exemplares contemporâneos daquilo que o grande educador e professor José Mário Pires Azanha (1931-2004) chamava de abstracionismo pedagógico (Azanha, 2011). Na definição de Azanha, o abstracionismo pedagógico era uma [...] expressão indicativa da veleidade de descrever, explicar ou compreender situações educacionais reais, desconsiderando as determinações específicas de sua concretude, para se ater apenas a “princípios” ou “leis” gerais que na sua abrangência abstrata seriam, aparentemente, suficientes para dar conta das situações focalizadas (Azanha, 2011, p. 42). A pretexto de oferecer descrições de situações educacionais reais, esses estudos limitam-se à transposição irrefletida de conceitos emprestados de teorias sociológicas ou filosóficas respeitáveis a temas educacionais específicos. Nessa operação, os tópicos investigados são abstraídos – isto é, separados, amputados – do contexto original da vida escolar e de suas práticas específicas e apresentados segundo categorias da 68 Trata-se de um aforismo de Wittgenstein transcrito em Culture and Value. Tradução livre do original em alemão: „Ein gutes Gleichnis erfrischt den Verstand“ (CV, p. 1). 109 teoria previamente esposada. Nas palavras de Azanha, “não obstante suas pretensões teóricas”, esse estilo de investigação limita-se a “utilizar a teoria disponível (ou melhor, contrafações esquemáticas dela) para efetuar operações ‘formais’ de classificação de ‘fatos’ da realidade como se essas operações constituíssem explicações” (Azanha, 2011, p. 42). Em linhas gerais, os trabalhos de orientação abstracionista procuram oferecer supostas descrições das práticas escolares por meio da projeção automática de conceitos e categorias extraídos de algum pensador de referência, desconsiderando as circunstâncias e contexto específico da experiência escolar. Trata-se de uma operação de decalque, como se o arranjo teórico e conceitual de algum pensador ou filósofo se imprimisse sobre a realidade escolar, ignorando seu uso específico nas circunstâncias escolares. Para usar os termos de Wittgenstein, é como se compreender a experiência escolar fosse simplesmente um caso de etiquetagem, de associação das práticas em jogo a um nome (IF, § 15). Tomemos o exemplo da disciplina escolar: A disposição de carteiras numa sala de aula, por outro lado, visa também à disciplinarização dos alunos e uma melhor possibilidade de controle por parte do professor, que domina geopoliticamente a classe, percebendo seu mapa geográfico e podendo armar uma estratégia/tática de aula. Mesmo no caso das pedagogias novas, que rompem com o tradicional enfileiramento de carteiras, permanece uma forma implícita de o general dispor seu exército no campo de batalha de sala de aula. Em outras palavras, a sala nunca é um caos, com os alunos ocupando o espaço desordenadamente, mas há sempre uma ordem implícita que, se visa a possibilitar a ação pedagógica, traz também consigo a marca do exercício do poder, que deve ser sofrido e introjetado pelos alunos (Gallo, 2008, p. 82). As tecnologias individualizantes utilizadas na escola, que nos parecem muito naturais, são na verdade bastante recentes: uma das mais simples e eficazes é a disposição estratégica da classe em filas. Essa disposição permite que todos os alunos sejam vigiados e controlados constantemente por um único professor. Tais tecnologias atingem os indivíduos em seus próprios corpos e comportamentos, constituindo- se numa verdadeira “anatomia política”, que individualiza a relação de poder. Essas estratégias de dominação, através da delimitação de espaços e da disciplina corporal, diferem quase nada em sua aplicação, seja nos exércitos seja nas escolas (Gallo, 2004, p. 92). O autor em questão recorre às técnicas e dispositivos disciplinares, como definidos por Michel Foucault em Vigiar e punir (2013), para descrever tecnologias individualizantes supostamente empregadas em escolas reais. É claro que se trata de uma interpretação possível e mesmo legítima dos usos que a disposição de lugares 110 em uma sala de aula ou em uma fila podem ter. Poderíamos, eventualmente, discutir o valor de verdade empírica dessa descrição geral, isto é, se de fato o professor da rede pública de ensino, por exemplo, consegue vigiar e controlar, ao mesmo tempo, 30 estudantes em uma sala de aula ou no pátio escolar, mantendo todos em seus respectivos lugares durante a aula ou o intervalo. Entretanto, não é esse meu interesse. Há, ao que parece, problemas propriamente conceituais associados à transposição de expressões retiradas de um pensador reconhecidamente interessante, como Foucault, e aplicadas de maneira apressada nos esforços de compreensão das práticas escolares. Trata-se das distinções eventualmente negligenciadas entre o uso teórico, com o qual o conceito é operado por Foucault, e sua extrapolação pelo pesquisador da educação interessado na descrição do sentido concreto assumido pelas práticas escolares em instituições existentes. Não tenho tempo ou condições de discutir nos limites deste texto o uso da noção de disciplina em Foucault. Para os propósitos modestos deste texto, o que me interessa destacar é que o próprio Foucault, no capítulo respectivo de Vigiar e punir, adverte o leitor de que seu propósito é traçar uma genealogia da sociedade disciplinar e da correspondente articulação de dispositivos mais ou menos acidentais de investimento político do corpo na modernidade. Dito de outro modo, a preocupação de Foucault nunca foi a descrição, propriamente, do sentido específico assumido pelas técnicas disciplinares na escola ou em qualquer outra instituição em particular. Pelo contrário, seu ponto de vista nunca fez distinções entre esses estabelecimentos, uma vez que o que lhe interessava observar era, de partida, o que as práticas disciplinares tinham em comum no exército, na prisão, na escola etc. Nas palavras do próprio Foucault, as disciplinas devem ser entendidas como: [...] uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral [...] Não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições disciplinares, no que podem ter cada uma de singular. Mas de localizar apenas numa série de exemplos algumas das técnicas essenciais que, de uma a outra, se generalizaram mais facilmente. Técnicas sempre minuciosas, muitas vezes íntimas, mas que têm sua importância: porque definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo, uma nova “microfísica” do poder (Foucault, 2013, p. 134, grifos nossos). Depreende-se disso que Foucault interessava-se pela escola apenas na medida em que constitui exemplar de uma instituição disciplinar, como lugar de exercício daquilo que lhe interessava descrever: a disciplina. Foucault não se preocupou 111 exatamente em descrever escolas, mas técnicas disciplinares. Transpor, de maneira automática e apressada, os conceitos de Foucault para, supostamente, descrever o que se passa nas escolas hoje é, a meu ver, um exercício de descrição pobre, que simplifica a complexidade douso dessas técnicas no contexto escolar. Dito de outro modo, tomar o exercício genealógico de Foucault como uma descrição da origem e do desenvolvimento uniforme das escolas até nossos dias, deixa intocada a importante interrogação sobre os sentidos propriamente escolares que as disciplinas podem adquirir em instituições de ensino reais. Mas o que essas considerações têm a ver com o estilo terapêutico do segundo Wittgenstein? Como as observações de Wittgenstein podem nos ajudar a moderar a inclinação de trabalhos abstracionistas empenhados em simplesmente projetar conceitos e modelos que tendem a simplificar ou distorcer as relações escolares? As críticas de Wittgenstein a Frazer Em certo sentido, o problema do efeito deformador da projeção do modelo sobre a realidade, aparece também nas críticas que Wittgenstein formula à obra de James Frazer, O Ramo de Ouro (1890)69. Frazer foi um antropólogo escocês que reuniu relatos de diferentes ritos e cerimoniais de povos chamados por ele de “primitivos” de diferentes regiões. Wittgenstein teve contato com a obra por volta do ano de 1931, quando a lia de maneira compartilhada com o amigo Drury, e depois nos anos 1940 (Klagge, 2021, p. 38). Nas sessões de leitura compartilhada, Wittgenstein ditava considerações e observações sobre o ponto de vista de Frazer que, a meu ver, projetam um cenário ou horizonte o qual, comparativamente, dão o que pensar a respeito daquilo que afirmamos sobre a escola. Podemos dizer que há dois pontos principais nos relatos de Frazer que chamam a atenção de Wittgenstein. Esses dois pontos referem-se ao traço dogmático evidente na descrição dos costumes compilados pelo antropólogo. O primeiro consiste no fato de que, segundo Wittgenstein, Frazer descreve os costumes dos povos estudados como hipóteses pré-científicas a respeito do curso da natureza. Na narrativa do antropólogo, as ações dos diferentes povos aparecem como intervenções sobre a realidade supostamente motivadas por concepções grosseiras e mistificadoras sobre o funcionamento da natureza e das relações sociais. Como resultado, suas práticas são figuradas para Frazer e seus contemporâneos como verdadeiros atos de “estupidez” (Wittgenstein, 2025, p. 9). Tomemos dois exemplos para ilustrar esse ponto. 69 As referências a Frazer se encontram nos comentários de Wittgenstein, publicados sob o título Bemerkungen über Frazers Golden Bough (Observações sobre o Ramo d’Ouro de Frazer, destarte OROF). Ver dados completos da obra nas referências. 112 Nos relatos reproduzidos por Frazer, determinadas comunidades da África organizavam rituais associados às chuvas. Segundo a interpretação sugerida pelo antropólogo, essas festividades seriam motivadas pela falsa concepção de que o rito fosse capaz de provocar precipitações. Nesses termos, o cerimonial é entendido como uma intervenção sobre a natureza, baseada numa hipótese equivocada sobre o regime de chuvas. Os relatos dão conta, também, de que certos povos indígenas americanos costumavam, em contextos de hostilidades, “perfurar o inimigo em efígie”, isto é, perfurar a imagem do inimigo gravada em alguma representação fabricada em madeira. Para Frazer, a prática atestaria a concepção corrente entre esses povos de que esse gesto poderia exercer efeitos práticos no enfrentamento das comunidades rivais. A perfuração, mais uma vez, teria como base uma hipótese errônea sobre o funcionamento das guerras e das relações sociais. Wittgenstein não poupa críticas às supostas explicações oferecidas pelo antropólogo. De modo geral, o filósofo evidencia o dogmatismo da atitude de Frazer, que insiste em reconhecer nos rituais ações motivadas por hipóteses e concepções sobre a realidade. Para Wittgenstein, É no entanto absurdo que se diga [...] que o característico dessas ações é que elas seriam aquelas que se originam de concepções errôneas sobre a física das coisas (Assim faz Frazer quando diz que a Magia é essencialmente uma falsa física ou uma falsa medicina/ terapêutica/ técnica etc.) (OROF, p. 14). Há um segundo ponto que desperta o incômodo de Wittgenstein: Frazer supõe que a identificação de causas ocultas seja capaz de dar sentido às práticas que observa, falhando em reconhecer as próprias ações como uma forma de linguagem, um símbolo expressivo. Dito de outro modo, é como se a obsessão com seu modelo de explicação – que lhe dizia que as ações ganham sentido, na medida em que exprimem hipóteses ocultas e pré-científicas sobre os fenômenos – impedisse o antropólogo de observar aquilo que está na superfície, à vista de todos. Esse é o exemplo do ritual do rei sacerdote de Nemi, cuja morte, segundo relatos, era decretada no auge de sua juventude. Segundo Frazer, o assassinato era explicável pela concepção de que o corpo jovem conservaria a saúde do rei na vida posterior. Para Frazer, o simbolismo exibido por ocasião de uma morte tão dramática só adquire sentido com a suposição de que, sob sua superfície, oculta-se a crença nas capacidades mágicas do corpo do rei. No entanto, Wittgenstein chama a atenção para o caráter expressivo do próprio rito que prescinde de qualquer causa oculta ou explicação. A morte nessas circunstâncias exprime, em si, um caráter trágico ou temível: 113 Mas a pergunta “por que isso ocorre?” só pode ser respondida na verdade por: porque isso é temível. Isto é, o mesmo que se nos apresenta nesse acontecimento como temível, grandioso, horripilante, trágico etc., não trivial e insignificante - isso deu vida a esse acontecimento (hat ins Leben gerufen) (BFGB, p. 194). Vemos, então, que Wittgenstein sublinha dois aspectos dos relatos de Frazer que mostram o dogmatismo transbordante em sua interpretação das práticas rituais: 1) a projeção da gramática da explicação científica de seu tempo como critério do sentido das ações observadas – para o antropólogo, o significado dos gestos rituais depende de concepções falsas que funcionam como motivos para o comportamento dos agentes; e 2) a necessidade de recorrer a supostas causas ocultas e desprezar as expressões visíveis do rito como símbolo ou uma forma de linguagem expressiva de valores e sentimentos. A seguir, procuro mostrar como Wittgenstein procede à terapia do dogmatismo de Frazer, exercício que, presumo, pode servir de inspiração para a reconsideração de interpretações abstracionistas das práticas escolares, como tentarei mostrar ao final. O efeito terapêutico da comparação com Frazer Guardadas as devidas diferenças, Frazer se encontra diante de um problema semelhante ao nosso quando somos convidados a atribuir sentido às práticas escolares – por exemplo, a disposição de lugares e a manutenção da disciplina em sala de aula. No nosso caso, quando acossados pelo abstracionismo pedagógico, tendemos, muitas vezes, a simplesmente projetar respostas e conceitos que dizem de maneira categórica e unilateral o sentido daquilo que observamos: a disciplinarização procura simplesmente docilizar e extrair a maior utilidade dos corpos. Qualquer outra justificativa ou consideração é simplesmente um pretexto pedagógico para a tarefa verdadeiramente operante em sala de aula: as tecnologias de poder/saber. De maneira análoga, Frazer recorre à gramática das ações motivadas por causas ou razões, com base em hipóteses e concepções, para atribuir sentido ao que não consegue reconhecer de familiar na superfície das ações dos povos ditos selvagens. Para usar a bela imagem de Wittgenstein (IF, § 194), não seríamos nós e Frazer talvez os verdadeiros selvagens que, observando aquilo com que talvez não tenhamos tanta familiaridade, precipitamo-nos a enquadrar o que vemos numa interpretação estranha, numa gramática alheia ao que de fato está em jogo na ação dos ritos e da escola? Wittgenstein mostra as limitações dogmáticas de Frazer de duas maneiras que, transpostas à vida escolar, podem apresentar certo interesse no esforço de vislumbrar 114 novos aspectos em gestos e ações que, nasinterpretações abstracionistas, aparecem dotados de um sentido unívoco, absoluto. Segundo meu argumento, é esse exercício característico da terapia da obra tardia de Wittgenstein que pode nos servir de inspiração para compreendermos a multiplicidade de sentidos das práticas escolares, ainda que as questões pedagógicas não tenham sido tema explícito de interesse do nosso filósofo. Uma das atitudes terapêuticas de Wittgenstein corresponde à proposição de novas comparações, de novos objetos com o que comparar o que se vê. Vimos que Frazer, na leitura de Wittgenstein, descreve os cerimoniais apresentados em seus relatos à imagem de ações motivadas por hipóteses e concepções sobre o curso da natureza e o funcionamento das relações sociais. O enquadramento do rito num arranjo ou numa gramática desse tipo, nos impede de perceber aspectos e matizes que podem, contudo, aflorar quando comparamos as mesmas ações com novas situações ou atividades. É o que ocorre, por exemplo, quando, em vez de procurar nessas práticas sinais de intervenções motivadas por hipóteses, Wittgenstein se esforça por vê-las como gestos expressivos de valores ou sentimentos semelhantes aos nossos: Quando estou furioso com algo, bato às vezes minha bengala na terra ou contra uma árvore, etc. Mas não acredito que a terra seja culpada ou que a bengala possa ajudar em algo. “Descarrego minha fúria”. E todos os ritos são desse tipo. [...] O importante é a semelhança do ato com meu ato de castigar; porém, mais do que essa semelhança, nada se pode constatar (OROF, p. 19). À primeira vista, as ações rituais relatadas por Frazer – como as festividades da chuva ou a perfuração do inimigo em efígie – pareciam estúpidas e grosseiras, uma vez que eram interpretadas pelo antropólogo como análogas a ações motivadas por concepções ou hipóteses sobre as causas da chuva ou dos ferimentos. Essa impressão, no entanto, é dissolvida quando tais atos são cotejados com outras modalidades de ação, como, por exemplo, o gesto de descarregar a fúria brandindo ou batendo uma bengala no chão – uma prática, presumidamente, usual entre os contemporâneos ingleses de Wittgenstein e Frazer. Ora, esse tipo de atividade não pressupõe hipóteses ou concepções a respeito da efetividade do gesto no curso das coisas. Trata-se simplesmente de um gesto ritual, mobilizado unicamente como símbolo ou expressão de fúria por determinadas comunidades em determinadas circunstâncias. De maneira semelhante, festejar as chuvas ou exprimir a hostilidade a um inimigo são condutas que não devem, necessariamente, supor a efetividade prática do gesto sobre a realidade. Se o caráter expressivo de hostilidade da perfuração em efígie nos parece evidente, o simbolismo das festividades da chuva é facilmente reconhecido se notarmos que, segundo o apontamento de Wittgenstein, esses eventos tinham lugar na temporada do ano em que ocorriam precipitações frequentes. Tal fato é suficiente 115 para mostrar que o propósito do rito não era, exatamente, provocar tais fenômenos, mas sim expressar gratidão ou simplesmente celebrar sua ocorrência. Outro exercício terapêutico proposto por Wittgenstein no combate ao dogmatismo de Frazer é a sugestão de ampliação do olhar do observador, de modo a relacionar práticas isoladas com sua vizinhança e circunstâncias, isto é, a consideração dos rituais à luz de seu “espírito” ou “natureza interna”. Nas palavras do filósofo, Quando falo da natureza interna do costume, me refiro a todas as circunstâncias nas quais ele é praticado e que não estão contidas no relato desse festival, pois elas não consistem tanto em determinadas ações que o caracterizam, mas sim naquilo que se poderia chamar o “espírito da festa” (Geist des Festes), que seria descrito ao se descrever o tipo de pessoas que dela participam, seus outros tipos de ação, isto é, seu caráter; os tipos de jogos que eles jogam em outras ocasiões (OROF, p. 22-23). O excerto refere-se às festividades de Beltane, um dos cerimoniais descritos pelo antropólogo no qual se encenava o sacrifício de um dos participantes em uma fogueira. O efeito provocado pela encenação da imolação no fogo impressiona tanto Frazer quanto Wittgenstein. Sem nos aprofundar nos detalhes do rito, o que nos interessa destacar na observação do filósofo é o fato de que o caráter expressivo ou simbólico dos gestos mobilizados naquela circunstância, não se encontra contido, propriamente, em qualquer ação ou objeto em particular; nem mesmo na própria ocorrência do fogo. Abstraídos de determinado entorno e de determinadas circunstâncias, nenhum fenômeno – seja um gesto, uma imagem, uma atitude ou expressão – exibe características cerimoniais. Assim como o fogo não é, em si, especialmente misterioso, tampouco o sofrimento encenado no sacrifício é a causa pontual da natureza cerimonial das festas de Beltane. Como nos lembra o filósofo, sofrimentos piores e situações de ocorrência de fogo em outras circunstâncias não nos causam impressão semelhante à do relato cerimonial (cf. Wittgenstein, 2025, p. 24). Se, como diz Wittgenstein, o “homem é um animal cerimonial”, sua capacidade de converter determinados fenômenos e objetos em símbolos cerimoniais não se deve a propriedades empíricas inerentes a um gesto, elemento natural, imagem, palavra ou qualquer outro instrumento linguístico mobilizado no rito individualmente. Diferentemente de ações propriamente “animais”, como se alimentar e reproduzir, a atitude cerimonial do homem “porta um caráter próprio” (Wittgenstein, 2025, p. 14). Esse caráter é exibido não pela mera presença de um gesto, imagem ou expressão em particular, mas por uma certa relação interna entre eles nas quais adquirem novos sentidos. Tal expressividade, porém, está ligada a determinadas circunstâncias e a um entorno que, embora fluidos, constituem o pano de fundo no qual um gesto ou 116 expressão ganha conotação simbólica. Em circunstâncias habituais, tirar o chapéu em um gesto longo podia indicar para as pessoas mais velhas apenas o cansaço de seu portador; já tirar um chapéu ao presenciar um cortejo fúnebre, como o descrito pelo poeta, significa coisa muito diferente70. Aliás, a atenção às circunstâncias e ao entorno dos rituais teria prevenido Frazer de oferecer interpretações precipitadas para os gestos que descrevia. Basta observar, por exemplo, que as festividades da chuva não eram celebradas em momentos de seca, o que anularia a validade da explicação do antropólogo, que as associava a intervenções sobre a natureza, motivadas por hipóteses pré-científicas sobre as causas das precipitações. De maneira semelhante, os mesmos povos indígenas que perfuravam o inimigo em efígie sabiam fabricar armas e construir moradias segundo procedimentos técnicos, e não por meio de gestos que personificavam o trabalho (OROF, p. 11). Apenas em determinadas circunstâncias, esses povos praticavam gestos simbólicos ou expressivos. De todo modo, porém, não precisamos procurar causas ocultas para explicar a natureza simbólica dessas ou de outras ações: suas circunstâncias, seu entorno, sua ligação interna em determinada configuração, é condição suficiente para compreendermos seu sentido. Dos rituais escolares Wittgenstein comenta em diversas ocasiões que o trabalho terapêutico do filósofo consiste em colecionar lembrança de fatos conhecidos por todos e dispô-los de uma maneira capaz de tratar nossas confusões conceituais (IF, § 127). A nosso ver, a compilação de reminiscências banais sobre o cotidiano escolar permite ver novos aspectos nas práticas escolares que podem pôr em questão interpretações absolutas do sentido que as técnicas disciplinares assumem em uma escola. Esse exercício pode cumprir uma tarefa terapêutica semelhante à delineada na crítica de Wittgenstein a Frazer, apresentando novos objetos de comparação e ampliando nosso olhar para as circunstâncias e o entorno específico das técnicas em questão. Menciono, a título de exemplo, doisaspectos geralmente ignorados nas descrições abstracionistas do uso da disciplina na escola. Em primeiro lugar, a suspeição sobre a disposição de lugares em uma sala de aula é presa a uma imagem que sugere sua comparação exclusiva com a configuração 70 Referência a um poema de Manuel Bandeira, intitulado “Momento num café”: Quando o enterro passou/ Os homens que se achavam no café/ Tiraram o chapéu maquinalmente/ Saudavam o morto distraídos/ Estavam todos voltados para a vida/ Absortos na vida/ Confiantes na vida./ Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado/ Olhando o esquife longamente/ Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade/ Que a vida é traição/ E saudava a matéria que passava/ Liberta para sempre da alma extinta. 117 espacial do presídio e do quartel. Contudo, uma análise que se detém na homologia entre a disposição geométrica das cadeiras numa sala de aula e a distribuição das células prisionais não difere muito da opinião de alguém que encarasse o pôquer e a tranca como jogos iguais por usarem baralho e envolverem sequências de cartas. Assim como uma mesma sequência de cartas representa coisas diferentes nesses jogos, uma sequência de carteiras pode ter diferentes significados se observada exclusivamente como exemplo de uma tecnologia da fabricação de corpos dóceis, conforme certas interpretações da obra foucaultiana, ou se observada como prática no âmbito do jogo escolar, a despeito de suas inegáveis semelhanças. Ao comparar os dispositivos disciplinares de controle do corpo a técnicas empregadas na prisão e no exército, esquece-se do fato banal de que a disciplina, em uma escola, geralmente não é o conteúdo principal ou exclusivo de uma atividade ou lição. Todo mundo que já esteve ocupado com o ensino sabe que se trata de um recurso ou saber professoral utilizado pontualmente pelo professor – e raramente respeitado pelos estudantes. Dispomos os lugares dessa maneira quando queremos concentrar a atividade do estudante na realização de uma leitura ou atividade individualizada. Em alguns casos, porém, a disposição dos estudantes em um espaço linear pode ser um problema para a realização da atividade. Tal é o caso da leitura em voz alta compartilhada de um texto. Quando dispostos em fileiras, separados em lugares respectivos, o estudante do fundo da sala não retém a mesma atenção dos colegas, em comparação com a situação em que o leitor se vê diante dos colegas sentados em círculo. No fundo, esquece-se de que a disposição geométrica de uma sala pode até ser um dispositivo de docilização do corpo. O que importa destacar, contudo, é o uso singular e pedagógico de tal docilização. Na escola, esse dispositivo não é, necessariamente, um instrumento de exercício puro e simples de um domínio interpessoal entre professor e estudantes. Trata-se antes, de um recurso pedagógico, comparável a outros recursos do ensino como a lousa e um livro, empregados, igualmente, para reter a atenção necessária do estudante em sua iniciação em práticas que julgamos relevantes em nossa forma de vida, como a concentração da atenção e a leitura de um texto. Se comparamos o controle do corpo a uma matéria do ensino, seu uso não nos parece tão problemático. Isso nos leva ao segundo ponto lembrado por Wittgenstein: a centralidade das circunstâncias. A disposição de lugares e a disciplina em geral não podem ser separadas e abstraídas de seu entorno, isto é, do espírito que envolve a experiência escolar e que está à mostra, visível para um olhar atento. Uma fila, uma carteira não são objetos isolados: mantêm conexões com as demais atividades, ações, reações, lugares, enfim, com o entorno da vida escolar. Deter-se na semelhança entre a disposição de lugares na escola e na prisão é deter-se, nos dizeres de Azanha, no “vestíbulo de 118 uma autêntica descrição” (Azanha, 1995, p.71). Tomadas isoladamente, a fila e a disposição de lugares parecem, realmente, semelhantes na prisão e na escola. Porém, se mudarmos nossa perspectiva para abarcar as circunstâncias e as vizinhanças dessas práticas, veremos que tal comparação é, no mínimo, discutível. Mencionemos apenas um único exemplo: Na escola sempre há, nos dizeres de Masschelein e Simons, “algo” sobre a mesa que justifica e esclarece o uso da disciplina e a disposição dos lugares em sala de aula (Masschelein; Simons, 2017). O uso da fila, das carteiras, não é arbitrário ou decisão de um voluntarismo cego do poder professoral. A disciplina entra no jogo escolar e dispõe, de fato, dos corpos dos estudantes, mas apenas na medida em que isso é parte da prática do estudo. Um livro, uma equação, sempre se interpõem entre o estudante e o suposto panóptico. E se observamos o professor no uso dessa técnica, veremos que o objetivo do professor, geralmente, não é vigiar a disposição do corpo pura e simplesmente, mas perceber se ela é usada como meio adequado na realização da atividade proposta. Um estudante quieto e parado em sua carteira que não realiza a atividade é, também, um estudante indisciplinado, do ponto de vista escolar. Enfim, a comparação imediata e isolada do controle do corpo na escola e na prisão obscurece diversos aspectos do espírito da escolarização. Perguntas simples dariam a ver a diversidade de aspectos da disciplina nas duas instituições: A disciplina é transmitida ao preso, assim como o professor espera transmitir técnicas e hábitos de controle do corpo para seus estudantes? A disciplina na escola e na prisão tem a mesma duração? Desperta as mesmas reações? Pode-se interromper a disciplina da mesma maneira nos dois lugares, com as mesmas punições? Vai-se à escola com o mesmo propósito com que se vai à prisão? Pode-se sair de lá do mesmo jeito? Essas perguntas retóricas servem, apenas, para chamar a atenção para a necessidade de olharmos para as circunstâncias pertinentes à atribuição de sentido de práticas que não podem ser separadas de seu entorno, justamente porque tal entorno é próprio da forma de vida que constitui seu sentido. Em vez de supor que é detentor do verdadeiro saber que explica o que o professor está, de fato, fazendo em sala de aula – disciplinando corpos sob o pretexto de educar –, seria interessante que os filósofos da educação observassem, com atenção, de que maneira o que o professor faz pode ser expressão significativa de linguagens e formas de vida que têm lugar na escola e oferece critérios de sentido diferentes daqueles que a gramática do pesquisador quer lhe impor. Essas ressalvas podem ter, para nós, um alcance ético próprio da terapia wittgensteiniana, uma vez que põem em questão a maneira como nos dirigimos à escola e nos fazem rever afirmações que eventualmente denunciam nossa cegueira para a diversidade de aspectos exibidos na experiência cotidiana da instituição. 119 Referências AZANHA, J. M. P. Educação: temas polêmicos. São Paulo: Martins Fontes, 1995. AZANHA, J. M. P. Uma ideia de pesquisa educacional. São Paulo: Edusp, 2011. FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 41. ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. GALLO, S. Deleuze e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. GALLO, S. Repensar a educação: Foucault. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 29, p. 79-97, jan./jun. 2004. KLAGGE, J. C. Wittgenstein’s Artillery: philosophy as poetry. Cambridge: MIT Press, 2021. MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. MONK, R. The duty of genius. 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Apresenta-nos a questão, “Como os usos da matemática podem auxiliar na constituição de diferentes modos de ver o mundo?”, para em seguida considerar a atividade epistêmica de constituição da significação por meio da tese linguístico-epistêmica de Arley Ramos Moreno e elementos da filosofia wittgensteiniana. O debate é fomentado por meio de elementos que articulam os usos da matemática na Educação Matemática e sua importância para a formação do sujeito, bem como para a constituição de seus modos de ver o mundo a partir de instrumentos linguísticos. Outras questões sobre a importância da linguagem matemática, a disseminação de seus usos na sociedade e a importância da retomada da autonomia dos professores, apontam para o enfrentamento de problemas educacionais contemporâneos e para os desafios colocados pelos novos modelos de formação, de modo que os usos da matemática feitos pelos alunos sejam amparados na introdução dos paradigmas necessários para jogar os jogos de linguagem da matemática. O sétimo capítulo, de autoria Dorival Rodrigues da Rocha Júnior, reafirma os fundamentos de natureza convencional de nossos saberes e critica o utilitarismo do currículo da matemática na BNCC, em particular como tem sido proposta a alfabetização da matemática, ao se ignorar a natureza convencional de seus objetos. Mais uma vez (não só no ensino de modelos matemáticos como apontado por Palharini no capítulo anterior), tudo se reduz a hipóteses, naturalizando-se em sala de aula os enunciados matemáticos que, como Wittgenstein observa em seus escritos sobre os fundamentos da matemática, não têm nada de natural; pelo contrário, foram sendo inventados pelos matemáticos desde os seus primórdios, ou seja, são de natureza convencional. Embora a matemática tenha, evidentemente, um uso empírico e, portanto, possa ser útil para resolver problemas de outras áreas do conhecimento, seus enunciados têm uma função normativa e não descritiva. Conclui então, que considerar uma proposição matemática como sendo uma proposição empírica, descritiva, só leva a uma proliferação de confusões, condenando os alunos a não aprenderem matemática. O oitavo capítulo, de autoria de Marília Maria Polerá Sampaio, questiona as atuais diretrizes educacionais que têm reduzido drasticamente o ensino de gramática do português nos currículos escolares. Em particular, tece críticas contundentes à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que praticamente extingue a nomenclatura característica das aulas de gramática, dificultando, assim, o aprendizado de regras gramaticais que são de natureza convencional e que, ao não serem dominadas 15 pelos alunos, impedem a compreensão e interpretação de textos literários, entre outras dificuldades de aprendizado da língua portuguesa no contexto escolar. O nono capítulo, de autoria de José Estevão Moreira, proporciona uma reflexão sobre o ensino de música no contexto escolar, em uma perspectiva não dogmática de seu ensino, ao se considerar seus múltiplos jogos de linguagem em que o silêncio passa a ter o seu devido lugar, para além de um ensino restrito ao aprendizado de partituras. O autor aborda uma articulação da tríade filosofia, linguagem e educação musical, a partir da perspectiva filosófica de Wittgenstein e das observações antropológicas de Seeger sobre a música, de modo a colaborar com o debate contemporâneo em torno da educação musical. O décimo capítulo, de autoria de Solange de Araújo Gonçalves, questiona práticas que preconizam o protagonismo do aluno, visto por ela como um novo termo incorporado nos documentos em voga associado a uma suposta liberdade do aluno para escolher seus itinerários formativos, como foi proposto na recente reforma do ensino médio. Faz-se aqui, também, um uso dogmático do conceito de liberdade ao se reduzir o sentido desse conceito ao exercício de uma suposta capacidade de escolha de conteúdos ainda não conhecidos pelos alunos, ou seja, uma escolha sem que eles tenham sido previamente introduzidos aos diversos jogos de linguagem da nossa cultura. Por fim, o décimo primeiro capítulo, de autoria de Luís Fabiano de Oliveira e de Samuel Edmundo Lopez Bello, relaciona de modo instigante os estudos da performance aos jogos de linguagem de Wittgenstein, abrindo novas possibilidades de se ver a docência como performance, para além das práticas já consolidadas. *** Convidamos os leitores a também dialogarem com Wittgenstein através dos capítulos que se seguem, à medida em que os autores vão como que “dissolvendo” determinadas questões educacionais que estão atreladas a um modelo referencial da linguagem, processo terapêutico que, a nosso ver, é condição para se fomentar atitudes e práticas no contexto escolar que estimulem a imaginação, a reflexão e o pensamento crítico, humanizando-se, assim, de fato, nossas crianças e adolescentes. Em suma, esperamos que estes diversos diálogos com Wittgenstein, inspirem vocês leitores, a lutar por uma educação que combata o dogmatismo do pensamento tão fortemente presente nas sociedades de hoje. 16 Capítulo�1 Embracing the Shallow Ground of Cherished Eco- pedagogies during a Climate Crisis: Thinking with Wittgenstein�about�the�Efficacy�of�Place-based�Education Jeff Stickney Introduction:�Pedagogical�efficacy�as�our�problem-space The topic-space for this paper is recurring calls for more empirical, evidence- based research on the efficacy of environmental sustainability education (ESE) pedagogies, such as are used increasingly in initial education programs at many universities (Evans et al., 2017; Evans, 2020; Karrow; Evans; Harwood, 2022, p. 5). The good intent behind these calls from valued colleagues is to shore up these eco-pedagogies in order to ensure continued funding for ESE courses in university teacher education programs. To be clear, my concerns in this response paper are minor given our shared sense of urgency to address the climate crisis (Besley; Peters, 2019; Standish, 2020; Stickney; Skilbeck, 2020). Of course, it is also not unreasonable of my ESE colleagues to want to assure their faculties and students that cherished pedagogical approaches have merit (e.g., Birdsall, 2022). However, herein lies the problem in that giving such assurances can be exceptionally difficult or even impossible. It is difficult even to demonstrably prove the self-evident benefits of doing inquiry and problem-based learning, but especially so when it comes to more esoteric pedagogies like place-based learning, on which I focus as an exemplary case.4 Addressing the Sao Paulo University Faculty of Education’s colloquium on “Wittgenstein and Education” (November 8, 2023), I am using this case to bring forward philosophical arguments I could not easily share with an ESE audience, 4 At the colloquium I had addressed arts-based learning as well, but have simplified the investigation here by focusing on one eco-pedagogy. On February 6th, 2024 I gave a talk at my campus on combining arts- and place-based environmental education. 17 based on my reading of Ludwig Wittgenstein’s later work. In my title I claim to be “Thinking with Wittgenstein”, so I will first clarify what that means. I will then elucidate my claim that these eco-pedagogies necessarily rest on ‘shallow ground,’ drawing on Wittgenstein’s arguments in his later works, especially Philosophical Investigations and On Certainty. I then contrast the kinds of certainty we can hope to obtain from environmental science versus place-based education, and briefly consider the consequences of conceptual confusion around efficacy in ESE. Thinking with Wittgenstein I should not likeem: https://www.unicamp.br/~joaojose/observacoes_ramo_de_ouro. pdf. Acesso em: 15 fev. 2025. WITTGENSTEIN, L. Philosophische untersuchungen/Philosophical investigations. 4. ed. [S. l.]: Wiley-Blackwell, 2009. https://wittgensteinproject.org/w/index.php/Main_Page https://www.unicamp.br/~joaojose/observacoes_ramo_de_ouro.pdf%3e.%20Acesso%20em%2031/01/2024 https://www.unicamp.br/~joaojose/observacoes_ramo_de_ouro.pdf%3e.%20Acesso%20em%2031/01/2024 120 Capítulo�6 Wittgenstein na Educação Matemática: dos usos da matemática à ampliação dos “modos de ver” o mundo Bárbara Nivalda Palharini Alvim Sousa Introdução Na contemporaneidade, diferentes olhares se voltam para o campo educacional e para os elementos que balizam a constituição de significados em matemática. No âmbito da Educação Matemática, os pressupostos para o ensino e a aprendizagem da matemática se baseiam em práticas que, desde o início da escolarização, enfatizam o desenvolvimento de competências e habilidades de matemática a partir da facilitação e promoção de cenários de investigação, análise e reflexão de problemas contextualizados por meio de dados reais, ou simulados, e provenientes do interesse dos alunos (Brasil, 2017). O protagonismo dos alunos é ressaltado por meio de práticas lúdicas que enfatizem o educar por brincadeiras, rodas de conversas, atividades investigativas e da promoção de ambientes que colocam o aluno no centro dos processos de ensino e de aprendizagem. Nesse contexto, a significação em matemática é um dos problemas educacionais associados à Educação Matemática. Parte desse problema se desenha nas políticas públicas, como o currículo indicado pela Base Nacional Comum Curricular para a Educação Básica (BNCC) que prescreve um conjunto de orientações para a formação básica, em diferentes áreas do conhecimento. Críticas associadas à substituição de conteúdos pelo desenvolvimento de habilidades e competências são recorrentes no cenário nacional (Ortega, 2022; Cyrino; Grando, 2022). Com a promessa de uma formação para a vida, os alunos devem ser hábeis no uso da matemática, enfatizando, assim, uma visão pragmática e utilitária dos conhecimentos. Os usos da matemática em sociedade são importantes e permitem que os sujeitos participem do dia a dia da comunidade. No entanto, a significação em matemática está associada ao desenvolvimento de uma base epistemológica em relação 121 às regras e conceitos matemáticos, aos modos que se acessa o conhecimento e a como esse conhecimento se mobiliza no decorrer da vivência dos sujeitos. Os primeiros contatos do sujeito com a matemática ocorrem no cotidiano, mas é no ambiente escolar que esse corpo de conhecimento é formalmente apresentado aos sujeitos. No trânsito entre a vida e as vivências escolares pode ocorrer um atrito, visto que a prática do dia a dia com matemática pode divergir da instrução e do treinamento necessário para o uso de conceitos matemáticos como eles foram convencionados na forma de vida dos matemáticos. No entendimento da matemática e de como a conceituamos, Wittgenstein a trata como uma atividade humana, uma invenção. Nesse ínterim, os objetos matemáticos não têm uma existência a priori; eles são constituídos no exercício do matemático e seus símbolos, proposições, axiomas e regras de inferência e transformação não tem significado fora do uso que deles fazemos. Ao mesmo tempo em que não se descola a matemática de seu uso cotidiano, os objetos matemáticos e o uso que deles fazemos no dia a dia se diferenciam. Assim, no ambiente escolar, professor e alunos têm acesso a diferentes modos de ver a matemática e os papéis nos usos da matemática em situações de ensino e aprendizagem são, também, diferentes. Emergem, então, problemas associados à significação que estão diretamente relacionados ao modo como aprendemos sobre matemática ou ainda, o modo como atribuímos sentido aos objetos matemáticos. As perspectivas para a aprendizagem em matemática, ainda hoje, se baseiam em uma tradição cartesiana do conhecimento, como: uma epistemologia genética para o conhecimento como descrita por Piaget; a perspectiva sociointeracionista de Vygotsky; a teoria da aprendizagem significativa; o estudo da neurociência e suas implicações para a aprendizagem; entre outros. Neste texto, aborda-se um novo modo de ver os processos de constituição da significação de conceitos, a partir de uma perspectiva não cartesiana do conhecimento. Trata-se de exemplares do contato dos sujeitos com a linguagem matemática desde as primeiras experiências dos sujeitos com o mundo no âmbito escolar para abordar a atividade epistêmica de constituição da significação, de acordo com Moreno (1995). Esse novo modo de ver é possível a partir dos escritos de Wittgenstein (2013), em articulação com a tese epistêmico-filosófica de Moreno (1995) e acredita-se ter o potencial de ampliar o entendimento dos problemas educacionais acerca da significação em matemática. A discussão aqui pautada é de natureza conceitual. A partir das considerações filosóficas de Moreno relativas ao conceito de uso em Wittgenstein, busca-se uma base teórico-filosófica para elucidar a significação em matemática que nos permite ampliar os modos de ver a constituição do sentido, com o pressuposto de que as proposições matemáticas expressam certezas que fundamentam nosso conhecimento empírico. 122 Para me ater a este cenário, volto meu olhar para os usos da matemática e sua atuação nos modos de organização das experiências dos sujeitos com o mundo através da linguagem. Para tratar dos usos da matemática neste texto, abordo os primeiros anos escolares e práticas investigativas em atividades de modelagem matemática, visto que as contas de arme e efetue foram substituídas por problemas e práticas contextualizadas. Nesse sentido, para o debate trago elementos que articulam os usos da matemática na Educação Matemática e sua importância para a formação do sujeito, bem como para a constituição de seus modos de ver o mundo. E, neste cenário, detalho a questão: “Como os usos da matemática podem auxiliar na constituição de diferentes modos de ver o mundo?”. Por uma teoria do conhecimento com inspiração em uma perspectiva wittgensteiniana: ampliando os modos de ver na Educação Matemática Na Educação Matemática, para além dos usos da linguagem como representação e comunicação, a constituição do sentido por meio das relações linguísticas estabelecidas com o mundo toma espaço na literatura. De acordo com Wittgenstein (1996, p. 335, tradução nossa), “A linguagem [...] se refere a uma maneira de viver. Para descrever o fenômeno da linguagem é preciso descrever uma prática; não é como descrever algo que acontece uma única vez. Não importa a que nos referimos”. Nesse contexto, a perspectiva do filósofo associada aos usos da matemática e aos jogos de linguagem é utilizada com diferentes finalidades. A perspectiva wittgensteiniana sobre linguagem e matemática é abordada na etnomatemática (Vilela, 2010; Knijinik; Wanderer, 2007, 2013; Zanon, 2013; Wanderer, 2013); nas reflexões sobre a natureza do conhecimento matemático (Gottchalsk, 2008); no uso e aprendizagem de regras (Silveira, 2008; Silva, 2011; Silveira; Silva, 2013); na abordagem de provas e demonstrações (Durand-Guerrier, 2008; Jourdan, 2009; Gottschalk, 2014; Oliveira; Silveira, 2016); no uso dos símbolos (Skovsmose, 2012); entre outros. Como fio condutor, é possível dizer que as pesquisas se amparam em uma perspectiva do conhecimento que não se assenta, exclusivamente, em uma visão cognitivista como as que dominam, por décadas, o campo educacional. Para Silveira (2008, p. 1), “os pesquisadores em Educação não se preocupam apenas com problemas cognitivos, imersos em uma filosofia da consciência, pois perceberam que é preciso analisar os problemas de significação das palavras e outros tipos de representação, amparados na filosofia da linguagem”. Nesse sentido, é por meio de uma perspectiva wittgensteinianaque a constituição do sentido e o problema de significação é investigado em relação ao ensino e à aprendizagem de matemática. 123 Para dar sequência ao argumento defendido neste texto, as considerações estão pautadas na tese linguístico-epistêmica do conhecimento que parte da Filosofia tardia de Wittgenstein, que se debruça sobre um exame do funcionamento da linguagem em diferentes setores de nossa experiência com o mundo (Wittgenstein, 2013), e da tese defendida por Moreno que se propõe ao exame da função epistêmica do processo de constituição da significação (Moreno, 1995, 2012). Wittgenstein, em suas Investigações filosóficas, nos auxilia a entender como ocorre o aprendizado da linguagem a partir da concepção de uso e na articulação do significado, associado a esses diferentes usos que fazemos dos conceitos nos diferentes jogos de linguagem (Wittgenstein, 2013). Alguns dos conceitos de sua filosofia tardia amparam a elaboração de uma teoria do significado com ampla aplicabilidade no campo educacional; em particular, os conceitos de seguir regras, jogos de linguagem e gramática. Para Hamlyn (1989), o tratamento do conceito de seguir regras em Wittgenstein é importante para detalhar os modos de proceder no âmbito educacional e o contexto social é colocado como um dos pré-requisitos para que uma criança adquira um sentido normativo que, por sua vez, é essencial para o conhecimento. Assim, é na negociação com o mundo, nos acordos em nossas formas de vida, que aprendemos diferentes modos de ver. Parte dos escritos do filósofo sobre a aprendizagem da linguagem estão associados a aprender a seguir regras e à compreensão do sentido de uma regra. A terapia wittgensteiniana incide sobre asserções mentalistas e realistas para terapeutizar termos como a compreensão de uma regra de um golpe só, ter em mente uma regra, entre outros (Wittgenstein, 2013, §, p. 143- 155, §, p. 185-242). Para Wittgenstein, o saber está associado a um domínio de técnicas que só é possível a partir do uso das palavras em diferentes contextos. Assim, compreender não necessariamente depende de um estado mental, psíquico ou de natureza cognitiva, mas do domínio gramatical, do domínio de técnicas de natureza convencional, definidas em nossas formas de vida. O conceito de uso emerge na constituição da significação e na atribuição de sentido que os sujeitos dão aos fatos do mundo. Wittgenstein reflete que é o modo como usamos a palavra que mostra seu significado (IF, § 43). Nesse contexto, o saber está associado ao modo como usamos a expressão constantemente, o modo como nos foi ensinado (IF, § 190), nas convenções que fomos treinados. Seguir uma regra é, portanto, algo público, que não fazemos uma única vez (IF, § 199) e baseados em uma interpretação (IF, § 202); pressupõe uma regularidade (IF, § 208) e concordância, mesmo que em algum momento a intenção seja transgredi-la. A aprendizagem das regras matemáticas, por sua vez, está associada, também, às especificidades dos jogos de linguagem que circundam a matemática. 124 Pela natureza de suas proposições, muitas vezes, no âmbito educacional, a função normativa dos enunciados matemáticos é ignorada e o foco incide sobre uma possível função descritiva desses enunciados, como se algo os correspondesse no mundo empírico (Sousa, 2023). Na matemática, as proposições desempenham o papel de regras, são determinadas proposições de sentido, proposições gramaticais. O uso que fazemos das proposições depende da necessidade de cada jogo de linguagem em que estamos. Podemos usá-las em contextos estritamente matemáticos ou ainda para tecer relações sob a forma de modelos matemáticos para abordar a organização de brinquedos, construção de casas, entre outros. Nesses espaços da sociedade, a matemática nos auxilia na organização de nossas experiências e para tratar de problemas matemáticos ou para solucionar problemas não matemáticos, e seu uso feito respeitando seus procedimentos e técnicas internos à sua gramática. Ao considerar este arcabouço filosófico e outros conceitos wittgensteinianos, emergem as condições de possibilidade da significação, evidenciadas como linguísticas. Moreno sistematiza esses elementos e aborda uma teoria do conhecimento de natureza pragmática e convencional que nos permite tratar da atribuição de sentido aos fatos do mundo. O sentido é constituído a partir de atividades linguísticas que incorporam elementos do mundo físico, sentimentos, estados mentais, entre outros. Para Moreno (1995), existem duas etapas de articulação do sentido que se constituem da introdução de paradigmas por meio de instrumentos da linguagem, etapa em que se faz a atribuição de nomes como etiquetas e a definição de seu sentido; e a etapa em que ocorre a ampliação do sentido linguístico por meio de normas e uso dos conceitos em diferentes jogos de linguagem. Nessa segunda etapa, temos a criação de expressões linguísticas portadoras de necessidade, normas de sentido. O olhar para os primeiros anos escolares nos remete à primeira etapa de articulação do sentido, à introdução de paradigmas na linguagem nas diferentes experiências que temos com o mundo. A atividade epistêmica de constituição da significação abrange a construção de regras de sentido, o que distancia Moreno de Wittgenstein. Em Moreno, temos uma reflexão epistemológica em que o conhecimento é possível a partir do trabalho com a linguagem; “trata-se de conceber o conhecimento como o conjunto das atividades correlativas de construção de relações internas de sentido e de sua aplicação, sob a forma de regras” (Moreno, 2012, p. 75). Nesse contexto, conhecer “é construir regras de sentido e operar com elas, aplicando-as aos objetos de pensamento” (Moreno, 2014, p. 3). Em síntese, “o paradigma corresponde a uma técnica de uso da linguagem em que são ativadas palavras e objetos previamente organizados através de outras 125 técnicas” (Moreno, 1995, p. 18). Esses instrumentos linguísticos apresentam, entre si, relações internas de sentido, normas linguísticas que nos permitem atribuir sentidos aos conceitos convencionados em nossas formas de vida. Lançando um olhar sobre a constituição dos sentidos a partir dos usos da matemática Os fundamentos da matemática são, nesse contexto, de natureza convencional (Wittgenstein, 1996). Essas convenções, por sua vez, a partir de uma transposição didática, chegam no âmbito educacional na forma de definições, teoremas e regras matemáticas que nos auxiliam a organizar nossas experiências com o mundo e, nos primeiros anos escolares, precisam se articular com usos da matemática, como usos dos conceitos de geometria; a classificação, comparação e agrupamento de objetos; o uso do conceito de proporcionalidade; àqueles associados à numeração e à contagem; noções de espaço e forma; ordenação; tratamento da informação; e, operações numéricas no domínio da aritmética. Nessa perspectiva, a atividade realizada pelo matemático não é a mesma atividade desenvolvida em sala de aula por alunos e professores. Enquanto os conceitos matemáticos são inventados pelos matemáticos, na sala de aula, definições, regras e propriedades são introduzidas pelos professores como leis a priori e são gradativamente construídas pelos alunos a cada ato de interpretação. Muitas vezes, no âmbito educacional, a partir de perspectivas construtivistas para o trabalho com conceitos matemáticos, a função normativa dos enunciados matemáticos é ignorada e o foco incide sobre uma possível função descritiva desses enunciados, como se algo os correspondesse no mundo empírico, como se a matemática pudesse ser incorporada às brincadeiras e aos usos compartilhados, e não como se seus usos estabelecessem relações de sentido com a organização daquelas experiências das crianças com o mundo. A matemática auxilia e dá sentido ao trabalho dos alunos. Eles, no entanto, não se preocupam com a formalização matemática, mas precisam do auxílio dos professores paraque apresentem a eles esse modo de ver o mundo. Segundo Wittgenstein, todas as proposições da matemática desempenham papel análogo ao de regras, organizando a experiência empírica de determinados modos, mas não se referem a nada no mundo empírico; elas são vistas por ele como sendo proposições gramaticais. As proposições gramaticais também podem ter um uso empírico, ou seja, serem aplicadas aos fatos do mundo, dependendo da necessidade em cada jogo de linguagem. O início da escolarização contempla a introdução de paradigmas que podem permitir a atribuição de sentidos aos conceitos matemáticos. Atividades investigativas 126 podem, em certa medida, atuar como pontes para a introdução de paradigmas na linguagem matemática – o que já foi sinalizado por Gottschalk (2018). Moreno (1995, p. 18) indica que as relações entre linguagem e mundo são feitas por meio de paradigmas, instrumentos que nos permitem falar sobre o mundo. Nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, é comum o ato de contar histórias e a dinâmica de rodas de conversas, para a partir do interesse dos alunos introduzir conceitos matemáticos (Jocoski, 2020). A contação de histórias pode se caracterizar como um jogo de linguagem da infância que visa auxiliar os professores a introduzir elementos da linguagem matemática, como, por exemplo, as formas geométricas, que podem ser citadas no decorrer da história. Cabe, a partir disso, que os professores se organizem para tratar das formas geométricas como proposições matemáticas e não como linhas de um barco, de um castelo ou de uma casa. O uso da linguagem, no sentido da representação e da descrição, precisa ser reconhecido e o professor, ao focar a atividade e as proposições matemáticas, é o responsável por chamar a atenção para o que é um quadrado, um triângulo ou um retângulo. Nesse momento, por meio do gesto ostensivo, o apontar para a forma se torna um paradigma na linguagem e o aluno tem a possibilidade de atribuir sentido ao quadrado, ao triângulo ou ao retângulo em matemática. O gesto ostensivo é indicado por Moreno (1995) como um instrumento linguístico ou ainda de acordo com Wittgenstein (2013, § 7), um dos jogos preparatórios para o uso dos conceitos. Nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, a constituição do sentido por meio de instrumentos linguísticos é o que permite a conexão entre linguagem e mundo. O gesto ostensivo como técnica linguística de apresentação da linguagem matemática faz parte da aprendizagem linguística e as atividades investigativas podem servir para apresentação do papel normativo da matemática em nossas formas de vida. A manipulação de formas concretas, como a construção de modelos, o uso de material dourado, entre outros, pode ser o ponto de partida para o registro matemático e para a interpretação da matemática como ordenação, classificação, comparação e proporcionalidade. Gottschalk (2010, p. 77) indica que “não é a experiência empírica (ou mental) que nos induz a certas ações significativas no jogo de linguagem, mas a aceitação de determinadas regras intrínsecas àquele campo do saber”. Assim, a partir das situações de ensino os alunos precisam aceitar as regras para que a constituição de sentidos passe do uso gesto ostensivo, da denominação, para a descrição de conceitos, para o uso e comparação por meio de semelhanças e diferenças em diferentes contextos de aplicação. O mesmo acontece com o ensino dos conjuntos numéricos. Inicialmente por meio do gesto ostensivo e da relação com as atividades diárias na escola, os conjuntos e suas especificidades são introduzidos no corpo de conhecimento dos alunos. Em 127 uma brincadeira de amarelinha, quando os alunos perguntam “onde é o dois?” (Belo, 2016), a resposta dos colegas pode servir para o sentido e para que as sequências de números sejam apresentadas. Esses números, por sua vez, são modelos de apresentação de ordem e de quantidades. Eles se tornam paradigmas, instrumentos linguísticos que podem vir a permitir a compreensão futura de regras matemáticas para adição e multiplicação. Esses conceitos convencionados na forma de vida dos matemáticos, podem, neste sentido auxiliar na organização das experiências dos sujeitos com o mundo (Tortola; Sousa, 2023). Outro uso recorrente nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental é o jogo de linguagem da denominação. Para Wittgenstein (2013), esse uso é preparatório para o tratamento de conceitos e para atribuição de sentidos. Os diferentes instrumentos linguísticos utilizados nos primeiros anos escolares são aqueles que permitem aos sujeitos estabelecer relações entre suas experiências com o mundo e a linguagem científica, por exemplo. Palavras�finais�e�os�desafios�impostos�pelas�prescrições�para�Ensino�de� Matemática O foco na linguagem e nas relações de sentido estabelecidas pode auxiliar na ampliação dos modos de ver o mundo, incorporando a linguagem científica para além do utilitarismo e de seus usos descritivos, auxiliando no desenvolvimento do sujeito e na sua participação ativa na sociedade. Quando a linguagem é vista como constitutiva do sentido, ou seja, sendo o que dá possibilidade para o pensamento e para a aprendizagem, em particular da matemática, um modo de ver o mundo se abre para os sujeitos. A linguagem não é mais aquilo que apenas comunica o que pensamentos, mas o que dá condições a essa comunicação. A questão colocada no início do texto – “Como os usos da matemática podem auxiliar na constituição de diferentes modos de ver o mundo?” – é respondida com a perspectiva teórico-filosófica acerca da constituição do sentido a partir de instrumentos linguísticos, por exemplo. Como então disseminar os usos da matemática na sociedade? Como abordar os problemas a partir desse modo de ver panorâmico, que não desconsidera, mas tira o foco da caixa-preta (geralmente, amparada em teorias cognitivistas)? A Educação vive uma era em que novos desafios se colocam para professores e alunos, bem como para a constituição da escola. É preciso expertise e alternativas para tratar de temas como Empreendedorismo, Robótica, Educação Financeira, Educação Estatística, Educação Ambiental, Projeto de Vida, o uso obrigatório de plataformas digitais. Vivemos um momento em que o protagonismo do aluno 128 é importante, mas perde-se de vista a autonomia do professor. Nos perguntamos como formar professores e como formar alunos na estrutura escolar que temos, com prescrições que visam o futuro, mas no modelo de escola do século passado. Este texto sugere olhar para a ampliação dos modos de ver o mundo, independentemente dos usos da matemática, a partir de como são constituídas as relações internas de sentido. E, mesmo que o protagonismo dos alunos seja enfatizado, sugere-se, ainda, que a autonomia dos professores seja retomada de modo que os usos da matemática feitos pelos alunos sejam amparados pela introdução dos paradigmas necessários para jogar os jogos de linguagem da matemática. Referências BELO, C. B. Modelagem matemática na educação infantil: contribuições para a formação da criança. 2016. 121 f. 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Dissertação (Mestrado) – Curso de Ensino de Ciências Exatas, Centro Universitário Univates, Lajeado, 2013. 131 Capítulo�7 Uma crítica wittgensteiniana ao utilitarismo do Currículo de matemática na BNCC Dorival Rodrigues da Rocha Jr. Introdução A intenção deste capítulo é abrir as portas para discussões relacionadas às políticas e diretrizes vigentes na educação, com foco na educação matemática do ensino básico. É numerosa a produção científica sobre a atual Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A pedagogia de competências presente no documento é apresentada como uma saída à discrepante defasagem educacional e diferença social presente no país. Contudo, esse modelo que prevê métodos de mensurabilidade e checagem torna-se um instrumento de controle reducionista que proporciona um instrumento de pressão sob o docente (Gumbowsky, 2022). A concepção utilitarista das competências desvirtua a natureza da linguagem matemática defendida por Wittgenstein. Para esse autor, a matemática é vista como uma linguagem que desempenha função normativa, fundamentada em convenções. Nesse sentido, Wittgenstein pode ser visto como um respiro de superação dessa ideologia mercadológica da educação. Teremos como foco neste trabalho uma análise bibliográfica, principalmente, do documento da Base Nacional Comum Curricular e os documentos que embasaram a sua construção, seguido de uma crítica sob o ponto de vista de Wittgenstein, na sua segunda fase. Veremos que a elaboração da base traz, em si, ideias de documentos como o Pisa, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O uso desses documentos evidencia uma tendência em privilegiar formas de avaliação em massa da educação e, para além disso, esses documentos privilegiam uma maneira específica de enxergar a educação e o papel dela como formadora de cidadãos. O que queremos dizer é que essa entidade tem uma visão própria do mundo e sua organização e uma visão própria dos países em desenvolvimento, que é o caso do Brasil. 132 A BNCC trará a matemática como intrínseca à atividade humana; uma visão instrumentalista da disciplina. A partir daí, já temos uma escolha ideológica que guiará o documento e suas “habilidades e competências”. A partir dessa tomada de decisão já temos um problema de ensino-aprendizado. Esse modo de ver a educação matemática, como derivada de fenômenos, que pode ser abstraída de observações e padrões, vem do construtivismo. O empenho, neste capítulo, é evidenciar esse modo de enxergar o ensino da matemática com uma escolha e essa escolha traz implicações para o processo de ensino-aprendizagem, como veremos com Wittgenstein. Essa escolha ideológica distorce o caráter de linguagem da matemática, o que traz problemas ao seu ensino e sua aprendizagem. A�Matemática�na�BNCC�e�sua�escolha�ideológica O caráter empírico da matemática, presente nos textos diretores da educação, põe uma carga de frustração e culpa no docente, que se vê incapaz de, como está na Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2018), fazer o papel de guia, enquanto os alunos devem ser capazes de identificar, descobrir, reconhecer e deduzir certezas e conceitos matemáticos por meio de observações e ainda trazerem essas deduções advindas da experiência para seu cotidiano, como se ali já estivessem. O apagamento do caráter convencional da matemática acaba criando uma defasagem na formação docente, que tenta se adequar às diretrizes que demoniza o ensino instrucional e paradigmático da matemática. A possibilidade do uso de um conceito na matemática não advém de uma existência etérea a priori dos objetos matemáticos, mas da aplicação de técnicas aprendidas e ensinadas que envolvem treino e repetição. No seu quarto parágrafo da área da matemática, a Base Nacional Comum Curricular destrincha suas expectativas e ambições para o Ensino Fundamental. Destaco o trecho em que se afirma que a matemática do ensino básico “precisa garantir que os alunos relacionem observações empíricas do mundo real a representações e associem essas representações a uma atividade matemática…” (Brasil, 2018, p. 265). E prossegue dizendo que o Ensino Fundamentaldeve ter compromisso com o Letramento Matemático, ressaltando que nesse momento a Base tira do Pisa (OCDE, 2013) essa definição, onde diz-se que o letramento é: [...] a capacidade de indivíduos de formular, empregar, e interpretar a matemática numa variedade de contextos, e não ser entendida como sinônimo de conhecimento básico e habilidades de nível inicial. O letramento matemático tem a intenção de descrever a capacidade, de indivíduos, de raciocinar matematicamente e usar conceitos, 133 procedimentos, fatos e ferramentas matemáticas para descrever, explicar e prever fenômenos (OCDE, 2013, p. 25).71 Uma leitura desse documento evidencia o caráter instrumental que essas políticas adotam, tendo em vista o aprendizado da Matemática. Uma política de desenvolvimento de competências que ignora as subjetividades da vida escolar, e as características de cada disciplina, subordinando a educação às demandas socioeconômicas (Ortega, 2022). Não que a matemática não se preste a esse papel; contudo, seria esse o objetivo do ensino de matemática? Quero problematizar a visão que relativiza a posição do docente dentro da educação e, de maneira mais abrangente, reduz a produção e o fazer matemática a um empirismo que não faz jus ao saber matemático como uma invenção humana. O letramento matemático tem como objetivo a inserção da capacidade de análise, descrição de fenômenos e tomada de decisão. Contudo, a crítica sobre este texto, e tantas outras diretrizes, é quanto à ausência de como chegar lá e nessa ausência se cria essa leitura em que esse objetivo específico se confunde com a educação matemática em si. Como inserimos jovens nas regras e objetos da matemática? Como se gera sentido no fazer matemática dentro da sala de aula? Meu empenho é em abrir a discussão de como galgamos o caminho para a escola e a educação matemática conseguirem entregar indivíduos matematicamente letrados. Analisando o uso de palavras e termos específicos no documento diretor da educação básica, encontramos trechos, como na unidade temática Números, dizendo que o aluno deve ter “desenvolvimento de habilidades [...] por meio da identificação e compreensão do sistema de numeração decimal” (Brasil, 2018, p. 268). Estabelecer o processo de aprendizagem da matemática por meio de identificação escancara uma visão platônica da matemática e também o viés construtivista do processo de ensino-aprendizagem que está ali proposto. Essas eventuais aplicações no mundo empírico são uma possibilidade do fazer matemático (mais do que isso, diria que foi uma escolha) e o ensino dessa matéria não deveria se reduzir às aplicações, apagando a sua natureza normativa e sua função de condição de sentido para os enunciados empíricos. Como descreve Gottschalk (2023, p. 10), “O fato de a matemática ter um uso na realidade empírica não justifica o salto dado por alguns cientistas de que se estaria descrevendo algo subjacente a um fato empírico que equivale a uma certeza matemática. Estas certezas independem do empírico”. 71 “the capacity of individuals to formulate, employ, and interpret mathematics in a variety of contexts, not be perceived as synonymous with minimal, or low-level, knowledge and skills. Rather, it is intended to describe the capacities of individuals to reason mathematically and use mathematical concepts, procedures, facts and tools to describe, explain and predict phenomena.” (OECD, 2013, p. 24). 134 O�ensino�de�matemática�como�linguagem Tomarei mão das considerações do filósofo Wittgenstein sobre a natureza da matemática para analisar os caminhos da política educacional reforçada pela BNCC, evidenciando como esse viés precariza a existência do professor e distorce a natureza da matemática. A visão de que o objetivo da educação matemática é gerar indivíduos capazes de descrever fenômenos e usar ferramentas é limitante para o educador e, além disso, ambígua, no sentido que não esclarece meios de alcançar esse objetivo e maquia o caráter de linguagem da matemática. E é trazendo esse caráter de linguagem de volta aos holofotes que Wittgenstein pode nos ajudar, trazendo mais clareza de como se dá a dinâmica da linguagem e a geração de sentido. A matemática não explica, e tampouco descreve, fenômenos, o que torna o discurso da educação por competências vazio quanto aos caminhos que pretende traçar no processo de ensino-aprendizagem de matemática. A matemática gera sentido por meio de um sistema interno de regras que constitui uma forma de pensar autônoma em relação ao mundo empírico. De maneira mais sucinta, a matemática não descreve um mundo mental ou um reino ideal, mas só faz sentido porque o sujeito a aceitou e aprendeu seus objetos e regras. Sem esse arcabouço linguístico, alguém não tem capacidade de enxergar conceitos e objetos matemáticos por meio de abstrações, de observações, identificações e reconhecimentos, como é feito nas ciências naturais. O Letramento Matemático, definido pelo Pisa e abraçado pela BNCC, quando diz sobre “a capacidade de formular, empregar e interpretar a matemática…” (OECD, 2013, p. 25), está embasado em uma visão construtivista da matemática que traz confusão para o processo de ensino-aprendizagem, criando essa expectativa sobre o aluno e desvalorizando a presença do professor. Silva (2022, p. 169) afirma que “não se pode esperar que aprendizes que não ainda conhecem determinados usos possam descobrir ou deduzir conteúdos”. À luz da filosofia de Wittgenstein, conseguimos enxergar uma saída à essa visão embutida na formação de educadores por tanto tempo e difundida pelos formadores de políticas públicas. Resta-nos indagar por que, apesar das evidências (até mesmo por essas avaliações de massa), ainda se acredita que a visão empírica da matemática é indiscutível. A organização de políticas por meio de habilidades e competências, uma urgência do modo de vida de mercado, uma visão liberal do modo de viver e organizar a vida, não deixa espaço para o conhecer, enfatizando, pelo contrário, um suposto “reconhecer”. Essa linguagem implica um papel do aluno como único componente no processo de ensino-aprendizagem, o que apaga a presença do professor. 135 É patológico o uso excessivo da palavra reconhecer. Voltando no trecho “Identificar as características do sistema decimal posicional” (Brasil, 2018, p. 286), reconhecer 2 + 3 = 5, reconhecer polígonos, em que momento acontece o conhecimento (a apresentação explícita) desses objetos para esses aprendizes? O professor é posto como mediador e está quase que completamente apagado desses documentos. Essa posição cria uma dinâmica de expectativa-frustração na relação professor-aluno. Enquanto essas pedagogias dizem aos futuros educadores que devem se colocar como mediadores e facilitadores, aos alunos é delegada uma suposta capacidade inata de aprendizagem que desconsidera nossas formas de vida. Há, sim, a possibilidade de reconhecer padrões, números, formas etc.; contudo, isso só acontece com maturidade e anos de treinamento, ao ponto que se torna quase impossível vislumbrar maneiras diferentes de se ver e viver o mundo. Isso só é alcançado depois de anos de prática com as regras que nos foram passadas por alguém já ancião na nossa comunidade. Dito isso, dentro da visão filosófica de Wittgenstein a maneira como entendemos o mundo se dá pela constituição de jogos de linguagem, que por sua vez constituem sentido pelo seu uso! Nos disseram que 2 + 2 = 4 e pelo uso exaustivo dessa regra somos como que impedidos de pensar de outra maneira. O uso de jogos de linguagem gera significado e é nesse segundo momento com o conceito assentado que ele pode ser reconhecido fora do jogo da matemática. Quando o texto norteador dos educadores e sistemas educacionais espalhados pelo país diz que “a aprendizagem em Matemática no Ensino Fundamental – Anos Finais também está intrinsecamente relacionada à apreensão de significados dos objetos matemáticos. Esses significados resultam dasconexões que os alunos estabelecem entre os objetos e seu cotidiano” (Brasil, 2018, p. 298), inverte-se completamente a natureza da matemática. Os significados são gerados pela linguagem e suas proposições gramaticais, não o reverso como se lê anteriormente. Vislumbrar um conceito tão trivial como a contagem como sendo convencional pode ser um desafio mental para indivíduos inseridos no nosso modo de vida. Ponhamo-nos, contudo, em um exercício de estar na posição de uma criança que não conhece as regras de maneira clara e é dita para reconhecer em um grupo de frutas um número, todavia essas frutas se parecem tão diferentes: uma menor, outra maior; uma mais corada, outra mais esverdeada... Por que seria natural retirar esses fatores para que possamos enxergar apenas a quantidade? 2 são 2 só quando se parecem? Uma maçã e uma laranja são 2? Para nós, parece trivial, mas isso só acontece porque aprendemos a reconhecer objetos e ideias similares através de diversas técnicas de apresentação de objetos que passam a ter uma função paradigmática. Como ilustra Gottschalk (2023, p. 11): 136 Nos níveis mais iniciais, por exemplo, podemos introduzir o conceito de triângulo para uma classe de alunos apontando para figuras triangulares desenhadas na lousa ou para objetos triangulares e dizendo concomitantemente: “Isto é um triângulo!”, “Aquilo também é um triângulo!”, e assim por diante. Em outras palavras, através do gesto ostensivo estas figuras entram para a linguagem matemática como amostras do que é ser um triângulo. O som da palavra “triângulo” emitido por nós simultaneamente apontando para as figuras triangulares faz com que se estabeleça gradativamente uma relação de sentido entre a palavra “triângulo” e o objeto apontado (Gottshalk, 2023, p. 11). Ainda segundo a BNCC, “espera-se que eles [os alunos] desenvolvam a capacidade de identificar oportunidades de utilização da matemática [...] obter soluções e interpretá-las segundo os contextos das situações. A dedução de algumas propriedades e a verificação de conjecturas, a partir de outras [...]” (Brasil, 2018, p. 265). No entanto, não há menção em estabelecer definições, sistematizar regras e praticar; muito menos ensinar! Não se promove a atividade de ensino nos textos que deveriam fomentar a educação do país. A palavra reconhecer aparece 49 vezes na parte de matemática da BNCC, obrigando os professores a se adequarem às orientações desse documento que pressupõem uma concepção mentalista e empirista do saber matemático. “O caráter convencional da matemática indica que as proposições matemáticas devem ser ensinadas, que não são óbvias ao aprendiz” (Silva, 2022, p. 175). Há em jogo não só as ideias, mas a implementação dessas ideias, e muitas verbas e treinamentos e avaliações são direcionadas nesse sentido. Devemos, como educadores, aceitar essas diretrizes sem uma avaliação crítica sobre as consequências destes esforços públicos? Wittgenstein interpretou a matemática como um jogo de linguagem no qual conceitos ganham significado através de seus usos em contexto e práticas particulares. Esse caminho se torna mais interessante e eficaz quando observamos como a visão da matemática platônica, e sua aplicação construtivista, cria confusões. O significado de termos e símbolos estão diretamente ligados a seus papéis dentro dos jogos de linguagem da matemática. Uma analogia amplamente conhecida usada por Wittgenstein, sob um olhar pedagógico e dentro de uma sala de aula, seria considerar a repercussão de dar um tabuleiro com suas peças para uma turma de Anos Finais do Ensino Fundamental sem lhes apresentar qualquer regra ou objetivo. Certamente sairá dali diversos jogos e é isso que, de fato, acontece dentro de uma sala de aula diariamente quando se tenta ensinar matemática por meio de descobertas empíricas. Há uma confusão por uma parcela dos aprendizes que nesse processo de descobrirem por si, ou exploração, acabam por não adquirirem os conceitos e processos necessários para o entendimento da matemática. Portanto, tendo em vista a prevenção de tais 137 confusões, em boa parte das vezes, o ensino explícito desses termos e regras torna-se condição para o entendimento e a compreensão. Considerações�finais A BNCC põe a matemática sob uma perspectiva instrumentista. É problemático ver a matemática sob uma ótica empirista, em que são criadas necessidades sobre o aluno que ele não será capaz de entregar, já que, como vimos com ajuda de Wittgenstein, a matemática é um jogo de linguagem que funciona pelo seu uso, e não por uma existência exterior. Dentro do conceito de jogos de linguagem, vemos como retirar palavras ou objetos dos seu uso gera mal-entendimentos, semente para confusões por parte dos estudantes e também dos educadores que foram formados sob essa mesma perspectiva construtivista e empirista. O significado está no uso em cada situação e compreender esses usos em contextos específicos que trará um letramento, ou seja, uma fluência desses símbolos e significados. O texto da BNCC faz uma clara escolha em termos teóricos para embasar suas propostas. Essa escolha privilegia a aplicação, e o aprendizado pela experimentação. Contudo, pudemos ver que isso cria desafios para o docente, que deve guiar, não deixando claro o que deve ser ensinado explicitamente. Não é intenção desta discussão a retirada das aplicações como parte do currículo, mas evidenciar como há uma inversão de ordem, no que diz respeito ao aprendizado das regras do jogo da matemática. Sustenta-se, com esse texto, uma abordagem de ensino explícito, na qual conceitos e regras sejam sistematicamente ensinados dentro de seus respectivos contextos. Isso ajudaria a prevenir confusões geradas ao pôr o aluno como agente, e não como aprendiz em processo de aprender nosso modo de vida, e como navegar dentro dos diferentes contextos e, como diria Wittgenstein, jogos. Referências BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: MEC, 2018. GOTTSCHALK, Cristiane Maria Cornelia. Apontamentos para o ensino da matemática escolar sob inspiração wittgensteiniana. Revista de Educação Matemática, São Paulo, v. 20, p. 1-20, 2023. 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Partimos do pressuposto de que a Base, como fizeram os Parâmetros Curriculares Nacionais, de 1998, apresenta-se como uma “Contraposição em relação à concepção de ensino que pretende modificar” (Pietri, 2007). Desse modo, reconhecemos, no discurso implícito à Base, uma negação da Gramática enquanto conhecimento a ser discutido nas escolas. Ademais, apontamos a existência de uma visão de “professor” e de “aluno” ali estereotipadas: “ele [o professor] não sabe usar as ferramentas de produção. Em geral os alunos sabem, e ele não” (Rojo, 2015). Notando-se, em falas como as de Rojo, que se tem uma visão generalizada de um “aluno” que acessaria com facilidade aparatos tecnológicos previstos atividades sugeridas pelas Base, diferentemente de seu professor. Objetivos 1. Analisar trechos da BNCC de Língua Portuguesa, procurando discutir o discurso que sustenta sua forma de compreender o Ensino de Gramática. 140 2. Sustentar uma posição segundo a qual, embora possamos e devamos criticar o ensino tradicional de gramática em determinados aspectos, não devemos procurar eliminá-lo, tampouco com base em discursos utilitaristas e sim, apresentar proposições de ensino. 3. Inspirados no conceito wittgensteiniano de jogos preparatórios, refletir sobre a importância do ato da nomeação em nosso contexto de análise. 4. Apresentar relatos de experiência como exemplificação de nossas reflexões. Exemplos da negação da Gramática enquanto conhecimento a ser discutido nas escolas A exemplo do que nos referimos quando falamos em negação da Gramática como conhecimento a ser discutido nas escolas, discurso amplamente difundido e replicado pelos documentos oficiais que permeiam a educação básica, citamos as ideias a seguir, de Possenti: Ter uma concepção clara sobre os processos de aprendizagem pode ditar o comportamento diário do professor de língua em sala de aula. Por exemplo, se ele dá aos alunos exercícios repetitivos (longas cópias, exercícios estruturais, preenchimento de espaços vazios etc.), é porque está seguindo (saiba ou não – daí a importância de ter ideias claras!) uma concepção de aquisição de conhecimento segundo a qual�não�há�diferenças�significativas�entre�os�homens�e�os�animais� em nenhum domínio de aprendizagem ou de comportamento. [...] (Possenti, 2000, p. 20, grifos nossos). Desse modo, notamos que para um renomado e influente autor da área de ensino de língua materna no Brasil, um professor que lança mão de exercícios em que se pede ao aluno que complete lacunas, por exemplo, está seguindo uma concepção de aquisição de conhecimento segundo a qual não há diferenças significativas entre os homens e os animais, ou seja, de maneira bastante contundente, refere-se à atividade como totalmente desprovida de reflexão crítica. Ainda para Possenti: Para verificar o quanto ensinamos coisas que os alunos já sabem, poderíamos fazer o seguinte teste: ouvir o que os alunos do primeiro ano dizem nos recreios (ou durante nossas aulas), para verificar se já sabem ou não fazer frases completas (e então não precisaríamos fazer exercícios de completar), se já dizem ou não períodos compostos (e não precisaríamos mais imaginar que temos que começar a ensiná-los a ler apenas com frases curtas e idiotas), se eles sabem brincar na língua do “pê” (talvez então não seja necessário fazer tantos exercícios de divisão silábica), se�já�fazem�perguntas,�afirmações,�negações�e�exclamações� (então, não precisamos mais ensinar isso a eles), e assim quase ao infinito. Sobrariam apenas coisas inteligentes para fazer na aula, como ler e 141 escrever, discutir e reescrever, reler e reescrever mais, para escrever e ler de forma sempre mais sofisticada etc. (Possenti, 2000, p. 20, grifos nossos). Assim, se justifica a que nos referimos quando falamos nesta recusa ao Ensino de Gramática: para Possenti, a prática de exercícios estruturais como completar frases ou separar sílabas, por exemplo, poderia ser substituído pela simples escuta do que falam os alunos pelos corredores da escola e, tendo o professor compreendido o fato de que seus alunos já dominam estruturas linguísticas complexas, uma vez que falam e são compreendidos, sobrar-lhe-ia tempo em aula para que lhes ensinasse apenas coisas inteligentes, tais como leitura e escrita. Em nossa dissertação de Mestrado72, exploramos com maior detalhamento a repercussão de autores como Possenti em documentos oficiais, tais como os PCNs e, por consequência, a BNCC. No presente momento, dada a urgência da discussão sobre as ideias propagadas pela Base, atemo-nos a discutir alguns trechos desse documento e como aborda o lugar que deve ocupar a nomenclatura gramatical nas aulas de língua portuguesa. O lugar da gramática na Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Fundamental Anos Finais Como se sabe, o texto da BNCC para Língua Portuguesa tem como fio condutor o estudo dos gêneros textuais, que variam de acordo com os chamados campos de atuação. Apenas com fins de demonstração de tais conceitos, um exemplo de campo bastante trabalhado no Ensino Fundamental Anos Finais (de 6º a 9º ano) é o campo jornalístico-midiático. Os gêneros textuais relativos a esse campo são, por exemplo, as notícias, reportagens e crônicas. Há outros campos que norteiam o documento, como o campo de atuação da vida pública, o campo das práticas investigativas e o campo artístico-literário. Quanto ao conhecimento linguístico, a Base defende que este deva se dar sempre em função de uma determinada prática de linguagem. Com essa terminologia, refere-se a quatro grandes eixos: produção de textos, oralidade, leitura e análise linguística-semiótica. É o que se atesta em: Também, como já mencionado, nos Anos Finais do Ensino Fundamental, os conhecimentos sobre a língua, sobre as demais semioses e sobre a norma-padrão se articulam aos demais eixos em que se organizam os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento de Língua Portuguesa. Dessa forma, as abordagens linguística, 72 SAMPAIO, Marília Maria Polerá. Reflexões�filosóficas�sobre�o�papel�da�gramática� nas aulas de língua portuguesa. 2022. Dissertação (Mestrado em Cultura, Filosofia e História da Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022. DOI: 10.11606/D.48.2022.tde-19052022-103412. Acesso em: 15 fev. 2025. 142 metalinguística e reflexiva ocorrem sempre a favor da prática de linguagem que está em evidência nos eixos de leitura, escrita ou oralidade (Brasil, 2018, p. 156, grifos nossos). Assim, reiterando que, para a Base, os conhecimentos linguísticos não devem ser tomados como uma lista de conteúdos dissociados das práticas de linguagem (Brasil, 2018, p. 139). A exemplo disso, já em uma primeira leitura da tabela descritiva das competências e habilidades a serem desenvolvidas com o 6º e 7º anos, pode-se perceber que, mesmo em termos quantitativos, a análise linguística-semiótica perde espaço para os três outros eixos. A gramática, a saber, quando está presente, corresponde a esse eixo, contudo, por vezes, encontramos páginas inteiras em que os objetos do conhecimento associados ao eixo da análise linguística-semiótica não são, de fato, conteúdos gramaticais: Figura 1: Excerto da BNCC de Língua Portuguesa – Eixos Fonte: Brasil (2018, p. 168). Cujas habilidades correspondentes são: Figura 2: Excerto da BNCC de Língua Portuguesa – Habilidades Fonte: Brasil (2018, p. 169). Corroborando, assim, com o próprio nome escolhido para o eixo, a análise linguística-semiótica pode tratar de temas diversos, como progressão temática e textualização, por exemplo, temas que, a princípio, seriam pertinentes a uma aula de produção de texto. 143 Seguindo-se com a análise das colunas, nota-se que a descrição dos conteúdos foi substituída pela terminologia objetos do conhecimento, conforme se poderá ver a seguir. Nessa coluna, chama-nos mais uma vez a atenção o fato de um item como elementos notacionais da escrita corresponder aoeixo da análise linguística-semiótica, uma vez que não dialoga diretamente com temas que se poderia encontrar em Gramáticas, tal como progressão temática e textualização. Dessa forma, notamos que não faltam exemplos para demonstrar a perda de espaço da morfologia e da sintaxe nesse documento. Figura 3: Excerto da BNCC de Língua Portuguesa – Habilidades – 2 Fonte: Brasil (2018, p. 171). 144 Não à toa escolhemos essa página, senão para demonstrar o lugar da gramática no quadro de habilidades do novo documento normativo. Observamos que a terminologia gramatical está presente: reconhecer, em textos, o verbo como núcleo das orações; identificar [...] a estrutura básica da oração: sujeito, predicado, complemento (objeto direto e indireto) são habilidades que requerem, explicitamente, conhecimentos de sintaxe. Não se pode deixar de reconhecer o fato de que a metalinguagem típica das gramáticas está presente no documento: objeto direto e indireto, verbos transitivos e intransitivos, sujeito simples e composto, e assim por diante. O problema parece estar no espaço destinado a esses temas para o trabalho em sala de aula, uma vez que o documento assume a centralidade do texto como ponto de partida, permeio e objetivo final para todas as atividades em Língua Portuguesa. A contradição, no entanto, reside no fato de que conceitos gramaticais são conceitos complexos e exigem do aluno uma boa dose de abstração. Por exemplo, quando lhes dizemos que em “Joana leu um livro”, “um livro” é objeto direto de “leu”, não faltam perguntas sobre o porquê da terminologia “direto”, já que há a palavra “um” entre “leu” e “livro”, o que não lhes podemos responder senão com mais metalinguagem, ou seja, falando-lhes explicitamente sobre o conceito de preposição, do qual “um” não faz parte. Ou ainda podem perguntar- nos se “livro” é chamado pela gramática de “objeto” pelos mesmos motivos pelos quais conhecemos a palavra “objeto” do ponto de vista semântico e, se sim, então por que em “Eu tive uma ideia” insistimos em chamar a palavra “ideia” de “objeto”, gramaticalmente? Por fim, fica a questão do como ensinar que o documento da Base não responde ao professor: entendemos que devemos evitar o quanto possível a supostamente obsoleta aula das listas de conteúdos e substituí-la pela centralidade do texto sempre. Contudo como fazê-lo, se a habilidade requerida em uma determinada aula for, por exemplo, Analisar as funções e as flexões dos substantivos e adjetivos e dos verbos nos modos indicativo, subjuntivo e imperativo [...]? O vigente documento da Base Curricular, como vimos, aponta para caminhos que certamente gerarão contrassensos. Em primeiro lugar, por basear-se na teoria das competências de Philippe Perrenoud73 e listar uma vasta lista de habilidades concernentes a cada área do conhecimento, embora não haja, nesse documento, fundamentação teórica para o conceito de habilidade. 73 Referimo-nos às ideias do sociólogo Philippe Perrenoud, amplamente divulgadas no Brasil na década de 1990, que serviram como referencial para a formulação da matriz do Exame Nacional do Ensino Médio e, posteriormente, da BNCC. 145 O segundo problema que procuramos demonstrar através dessa breve leitura de trechos da Base é o lugar conferido à análise linguística – uma vez que o conceito de gramática foi, de fato, excluído de sua terminologia: além de contar com número menor de ocorrências, se comparado ao dos demais eixos, a análise linguística funde- se com a semiótica, o que gera espaço para que temas diversos estejam ali contidos. É fato que os currículos de Língua Portuguesa vêm buscando por renovação e parece- nos que boa parte dos teóricos e professores acreditam que essa renovação deva ser inversamente proporcional ao tempo que devemos nos dedicar ao ensino de uma gramática que consideram “tradicional”. Contudo questionamo-nos a respeito da possibilidade de trabalho com uma gramática reflexiva que não parta, em primeiro plano, das nomenclaturas das partes do discurso, ou seja, é possível que se faça o que propõe a Base quando nos indica que o aluno deva identificar ou reconhecer determinada estrutura linguística, sem que antes se nomeie explicitamente tal estrutura? Para esta reflexão, buscaremos inspiração em ideias wittgensteinianas. Como seria possível jogar xadrez sem antes conhecer os nomes das peças e a função de cada uma no jogo? Inspirados no § 31 das Investigações filosóficas de Wittgenstein, lembramo-nos da necessidade de se nomear as peças do jogo antes que se comece, de fato, a jogar. Em outras palavras, o jogo de xadrez só pode, de fato, ser colocado em prática mediante a algumas condições de sentido para que isso aconteça. Essas condições, no caso do xadrez ou de quaisquer outros jogos que, decerto, contam com suas próprias regras internas de funcionamento, iniciam-se com o ato da nomeação. Este seria, para o filósofo Arley Ramos Moreno, o 1º nível da constituição dos sentidos, o nível da “etiquetagem”, a saber: Etiquetagem e de definição do sentido: Esta seria uma fase elementar de introdução do aprendiz a uma linguagem, que envolve técnicas de ensino ostensivo. Atribui-se nomes a diferentes objetos como se fossem etiquetas (Gottschalk, 2020, p. 115). Para que essas “etiquetas” passem a ter um sentido público a uma comunidade de falantes é preciso que se tenha contato com diversas referências que passam a ter função paradigmática. Também inspirados em Moreno, compreendemos o conceito de paradigma como uma técnica de uso da linguagem que, imbuída de outras técnicas, compõe esse sentido que será compartilhado. Para exemplificar, citamos as diferentes aplicações da palavra rei, para que possamos, adiante, retomar o exemplo já anteriormente apresentado da figura do rei no xadrez: imagine-se uma criança que está em fase de aquisição de linguagem e vê, em um livro, a imagem de 146 um personagem que porta coroa, mastro e capa típicos dos reis da Era Moderna. Seus pais apontam para o livro e repetem a palavra rei. Neste primeiro nível, a criança ainda não compreende o sentido dessa palavra. Caso pergunte “O que é rei?” os adultos poder-lhe-iam responder com “É o homem mais poderoso da corte”, por exemplo. E, assim, estariam apresentando a ela uma das aplicações possíveis da palavra rei. Percebemos, assim, que o sentido da palavra “rei” vai sendo constituído através de seu uso: um falante da língua pode perfeitamente conhecer as aplicações de “rei” tanto em seu sentido literal, referente à monarquia, quanto nos figurados, que demonstramos anteriormente e, ainda assim, se não tiver contato com a aplicação específica que se faz no contexto do xadrez, não saberá que “rei” também significa “uma peça de um jogo de tabuleiro, chamado xadrez”. E é aqui que pensamos poder refletir a respeito do uso das nomenclaturas gramaticais, uma vez que a Gramática é a ciência milenar de se dividir o discurso humano em partes, identificar suas funções e nomeá-las: há algo em comum entre as Gramáticas, que sobrevive através dos tempos: a Gramática não deixa de ser uma tentativa de sistematização e nomeação das partes do discurso. Relatos de experiência: como a nomenclatura gramatical auxilia no processo�reflexivo�de�compreensão�de�texto Ao ler-se o primeiro capítulo de Memórias póstumas de Brás Cubas com uma turma de alunos de curso popular preparatório para o ingresso em exames vestibulares, deparamo-nos com o trecho em que diz o narrador: eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor. A turma, que em sua maioria ainda não conhecia o enredo da obra, rapidamente fez a associação com a palavra “póstuma”, do título, e, após a discussão, compreendeu que se tratava de uma “narração após a morte”74. Na ocasião em questão, recebemos questionamentos como: iii. “Em ‘autor defunto’, qual é o adjetivo e qual é o substantivo?” iv. “Em ‘defunto autor’, ‘autor’ é adjetivo?”75 Talvez as preocupações dos estudantes sejam consideradas “prescritivistas”por grande parte dos educadores contemporâneos. No entanto observamos que a associação semântica com uma palavra do título do livro, “póstuma”, acaba por dar conta de responder-lhes à questão. Entretanto isso não significa que os alunos se deram por satisfeitos com a compreensão global do que se estava discutindo e fizeram perguntas explícitas sobre nomenclaturas gramaticais e funções morfológicas das palavras. 74 Uso entre aspas as palavras empregadas pela aluna, na ocasião (Aula ministrada em 2015, em curso pré-vestibular de cunho popular, no município de Taboão da Serra-SP). 75 Em ambas as ocasiões tomamos nota das dúvidas que aqui apresentamos. 147 Podemos nos questionar a respeito de quais são os motivos que levaram esses alunos a fazer tais perguntas e não outras e se estamos, de fato, conduzindo-lhes de forma que façam conclusões mais centradas no sentido apenas da nomenclatura. No entanto as dúvidas dos alunos indicaram-nos que talvez não seja possível desconectar completamente o sentido da nomenclatura, como esperam as pedagogias mais modernas. A reflexão sobre o sentido de autor defunto × defunto autor pode ter a ganhar quando se diz que, tanto no primeiro quanto no segundo caso, o substantivo precede o adjetivo, como ocorre geralmente em português e, portanto, em tão poucas palavras, Machado consegue nos comunicar que Brás Cubas nunca fora autor em vida; pelo contrário: é um defunto que escreve. Assim, o que proporciona a reflexão linguística é o domínio da regra gramatical e sua aplicação pertinente em determinado contexto. Nesse sentido, podemos relatar mais um exemplo. A discussão se deu com uma turma do 1º ano do Ensino Médio em uma aula sobre pronomes, assunto previsto no currículo da série. Escolhemos trabalhar com o seguinte exercício, proposto pelo vestibular da Fuvest em 2014: Figura 4: Exercício Fuvest – 2ª fase Fonte: Disponível em: https://acervo.fuvest.br/fuvest/2014/fuv2014_2fase_dia1.pdf. Acesso em: 15 fev. 2025. https://acervo.fuvest.br/fuvest/2014/fuv2014_2fase_dia1.pdf 148 Consideramos esse exercício bastante reflexivo, mobilizador de conhecimentos distintos e de reflexão crítica pelos seguintes motivos: em primeiro lugar, o aluno deve fazer a leitura integral do excerto e da nota de rodapé para resolvê-lo, não se tratando, portanto, de um exercício de gramática descontextualizada. Além disso, deve recorrer a conhecimentos históricos e geográficos, pois lhe é fornecida a informação de que Rubem Braga fora um correspondente brasileiro na Segunda Guerra Mundial e que a crônica é desse período. Contudo cabe ao aluno fazer as seguintes associações: a) A Segunda Guerra Mundial ocorreu na Europa, portanto no hemisfério norte. b) As estações do ano são inversas, de acordo com os hemisférios. Portanto, em abril é primavera no hemisfério norte. c) Os pronomes demonstrativos “este”, “esta”, “isto”, de acordo com a norma- padrão do português brasileiro, devem ser empregados para referir-se àquilo que está próximo do enunciador, no que concerne a tempo ou espaço, e não se considerando os critérios de anáfora ou catáfora –retomada ou anunciação de um referente no texto. Assim, é correto o uso de “este” em “neste tempo de primavera”, o que é questionado pelo item b do exercício da Fuvest. A esse respeito, observamos que apenas o apontamento c, acima descrito, é um conhecimento gramatical descritivo, ou seja, uma regra gramatical. Contudo, sem ela o raciocínio não estaria completo e o estudante não poderia responder à questão. Em termos wittgensteinianos, poderíamos dizer que a regra é condição para a compreensão do sentido do texto em questão. Considerações�finais Aludindo à comparação que Wittgenstein faz com os jogos e, por conseguinte, à importância de se nomear as peças antes de se começar a jogar, podemos afirmar que nosso contraponto à forma como se vê o ensino de Língua Portuguesa, hoje, em documentos, por exemplo, como o da BNCC, é o seguinte: ao se desconsiderar a nomenclatura gramatical da prática pedagógica estar-se-ia pulando uma etapa da aquisição de conhecimento, o “1º nível” para Moreno, que é o da “etiquetagem”. Abordamos os níveis para a constituição dos sentidos, de acordo com Moreno, e o primeiro deles, nesta teoria, é o nível da etiquetagem ou nomeação: sem ele, como dissemos, torna-se impossível jogar quaisquer jogos e para isso exemplificamos com a figura do rei no xadrez: antes de tudo é preciso que o futuro jogador saiba os nomes das peças, como assim se convencionou dentro dessa prática. Por isso, apresentamos um relato de experiência em que o domínio das regras, nesse caso, gramaticais, era 149 condição para a compreensão do sentido do texto discutido em aula. Dessa forma, pensamos que o conhecimento da regra gramatical tenha proporcionado uma reflexão crítica e oportuna ao educador que visa preparar seus estudantes para serem leitores autônomos. Sendo assim, concluímos que o ato da nomeação é de suma importância para a reflexão linguística em língua materna: tendo em vista a especificidade dessa disciplina escolar, sabemos que o aluno já se comunica, fala e é compreendido por seu entorno, como diz Possenti. No entanto, analogamente à metáfora dos jogos a que nos referimos anteriormente, pode-se dizer que, no contexto da sala de aula de língua portuguesa, jogar o xadrez com destreza não se resumiria a falar e ser compreendido: seria, também, aprofundar a reflexão sobre o mundo e, por sua vez, sobre a língua que falamos. Referências BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: MEC, 2018. GOTTSCHALK, Cristiane Maria Cornelia. A persuasão como estratégia de ensino. In: MENDONÇA, Samuel; GALLO, Silvio. A escola: problema filosófico. 1. ed. São Paulo: Parábola, 2020. p. 111-123. MORENO, Arley Ramos. Por uma epistemologia do uso – um aspecto do conceito wittgensteiniano de uso: construção do signo e construção do sentido. In: MORENO, Arley Ramos (org.) Wittgenstein e seus aspectos. Campinas: Unicamp: Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, 2015. p. 89-115. (Coleção CLE). MORENO, Arley Ramos. Wittgenstein: os labirintos da linguagem. Campinas: Unicamp, 2000. PIETRI, Emerson de. Circulação de saberes e mediação institucional em documentos oficiais: análise de uma proposta curricular para o ensino de língua portuguesa. Currículo sem Fronteiras, v. 7, n. 1, p. 263-283, jan./jun. 2007. ISSN 1645-1384. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola? Campinas: Mercado das Letras: Associação de Leitura do Brasil, 1996. VICENTINI, Luiza; ZANARDI, Juliene Kely. Entrevista com Roxane Rojo, professora do Departamento de Linguística Aplicada da Unicamp. Palimpsesto, Rio de Janeiro, n. 21, p. 329-339, jul./dez. 2015. Disponível em: http://www.pgletras.uerj.br/palimpsesto/ num21/ entrevista/Palimpsesto21entrevista01.pdf. Acesso em: 15 fev. 2025. ISSN: 1809-3507. 150 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações� filosóficas. Tradução de Marcos G. Montagnoli. 9. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2014. 151 Capítulo�9 Educação Musical é preciso? Para quê? José Estevão Moreira Introdução Há, aproximadamente, dez anos, era publicado o livro Investigações filosóficas sobre Linguagem, Música e Educação (Moreira, 2014), fruto de uma pesquisa de mestrado na qual lançamo-nos aos estudos das ideias de Wittgenstein, notadamente nas Investigações filosóficas, com o objetivo de refletir sobre a educação musical. Hoje, passada uma década, retomamos as “buscas” por alguma nova compreensão ou aprofundamento nas ideias do filósofo, aplicadas, novamente, à educação musical, agora no âmbito do Grupo FELP – Filosofia, Educação, Linguagem e Pragmática. Neste contexto de imersão, em conjunto com outros pesquisadores que partilham de um mesmo referencial teórico, temos a oportunidade de entrar em contato direto com uma comunidade que está dedicada a pensar a relação entre filosofia eeducação e, dentro deste universo, nos estudos da filosofia da linguagem e ainda mais especificamente, da pragmática wittgensteiniana. As temáticas já abordadas pelo grupo e em andamento versam sobre o papel dos conceitos psicológicos na aquisição de conhecimentos e formação de valores; o ensino e aprendizagem dos direitos humanos no contexto escolar, a alfabetização matemática e da língua materna, o ensino e aprendizado de conceitos fundamentais da matemática, química e física; o ensino de filosofia no ensino médio; o conceito de autoridade docente; as noções de conhecimento em Pierre Lévy; a educação musical na escola pública; as múltiplas significações do conceito de cidadania; a pesquisa em filosofia da educação; os conceitos de competência e de habilidade como propostos na pedagogia das competências subjacente à matriz do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem); o desenvolvimento do espírito crítico; e uma reflexão filosófica educacional sobre as atuais concepções pedagógicas no ensino da enfermagem; tendo todas estas temáticas 152 como metodologia comum a terapia filosófica de Wittgenstein, e como objetivo geral a dissolução de confusões de natureza conceitual no campo da educação (In: sítio web do Grupo FELP). Essa riqueza caleidoscópica de diferentes abordagens da perspectiva de Wittgenstein oferece muitas outras possíveis perspectivas da própria educação musical. Na ocasião da pesquisa de mestrado, havia à disposição os artigos da profa. Cristiane Gottschalk e de outros pesquisadores, como um corpus representativo das principais questões sobre filosofia da linguagem de Wittgenstein, aplicada à educação. Entretanto o contato mais direto com a professora-pesquisadora e com o grupo nos possibilitou um novo olhar sobre as “mesmas coisas” (sic). Melhor dizendo, uma perspectiva renovada, com novos elementos, um novo ver-como, no sentido wittgensteiniano, conceito este que pode ser entendido “não como um processo mental, mas como o domínio de técnicas, que dependem de hábito e educação” (Silva; Abreu da Silveira, 2014). Gilbert Ryle, em seu texto Ensino e Treinamento (Ryle, 1967), propõe uma reflexão sobre como se dão as condições de possibilidade para ensinar um indivíduo a fazer coisas que não tenha aprendido previamente. Ryle salienta que se uma criança que aprendeu a ler algumas palavras e, a partir de então, aprende “por conta própria a ler outras palavras”, essa ideia de aprendizagem se afasta completamente do processo que ocorre com um autodidata, pois que tratar-se-ia de alguém que aprendeu algo sem contato com professores, sendo ele próprio o seu mestre; portanto, prescindindo da crítica, do conselho e do estímulo de qualquer pessoa – tendo contato apenas com autores, livros e artigos. “Entra em contato com [estas fontes] aleatoriamente: não tem ninguém que lhe indique se são bons, triviais, antiquados ou tendenciosos” (Ryle, 2009 [1967], p. 73). Nesse sentido, podemos dizer que a pesquisa de dez anos atrás, embora estivesse submetida aos processos acadêmicos, com os devidos ritos da pesquisa científica, escrutinada, poderá ser, agora, aprofundada em outros níveis, quer seja pelo tempo de desdobramento e maturação das ideias desde o início da caminhada, quer seja, principalmente, pela convivência com diversos usos da filosofia posterior de Wittgenstein no FELP. Filosofia,�Música�e�Educação Na relação entre Filosofia, Música e Educação, podemos problematizar algumas perguntas que se enunciam, por vezes, de forma automática, mas que podem nos ajudar a perceber determinados condicionamentos cognitivos. De antemão, cumpre ressaltar que as problematizações aqui realizadas não são, necessariamente, as principais temáticas enunciadas no campo da filosofia, música e educação. Trata- 153 se apenas da problematização dos próprios enunciados, em si mesmos, em sua materialidade, para, a partir daí, analisar seus implícitos – como que estabelecendo as regras de um jogo que pretendemos aprender a jogar, em uma nova modalidade. Assim sendo, as perguntas abaixo servirão, adiante, como objetos de uma análise demonstrativa das possibilidades de aprofundamento que a filosofia pragmática de Wittgenstein nos possibilitará abordar: • O que é música? • O que é isso que chamam de música? • O que se quer dizer quando alguém diz “música”? • Existe a música? • O que se quer dizer quando se diz “linguagem musical”? • Música é linguagem? • O que é linguagem? • O que se quer dizer com o termo “linguagem”? • Como a filosofia da linguagem pode ajudar? Tais perguntas, como dissemos, não representam, necessariamente, o campo da pesquisa em educação musical. São somente alguns exemplos que serão utilizados para fins de uma análise que poderá ser desenvolvida com outras, uma vez estabelecidos os procedimentos. Entretanto, a princípio, o primeiro procedimento que poderíamos realizar seria separar em três núcleos: filosofia + música + educação (não necessariamente nessa ordem, ainda que a escolha pudesse evidenciar algum tipo de preferência). Essa tríade muito profícua precisa ter um “som fundamental”. Fazendo um paralelo com a teoria musical tradicional, podemos estabelecer uma hierarquia na qual o som fundamental de um acorde de três sons é aquele que dá nome ao acorde (ex.: ré maior, dó maior, ré menor etc.). Quando o som fundamental está no baixo (nota mais grave de um acorde), ele tem mais força e é mais proeminente. Mesmo quando há inversões das mesmas notas da tríade o som fundamental continua presente, embora possa dar outras funções e sonoridades ao acorde. Se, por outro lado, esses sons estão organizados em um sistema atonal, por exemplo, sem uma hierarquia definida, também temos, da mesma forma, possibilidades de diferentes sonoridades mais “exóticas” ou até mesmo completamente dissonantes, com efeitos que podem incomodar o ouvinte não familiarizado. O que se pretende dizer com essa analogia é que qualquer abordagem mais avant-garde da música, no campo da teoria, deve partir, necessariamente, do mais básico dos básicos: um acorde consonante de três sons, em sua posição mais basilar. Neste sentido é que a filosofia será a nossa nota fundamental. A música e a educação serão as outras duas notas que ressoarão em 154 conjunto com este som fundamental. Comecemos, portanto, pela perspectiva filosófica. Adiante trataremos panoramicamente de uma abordagem sobre a música – tendo as primeiras constatações como base – e, por fim, quais seriam algumas possíveis implicações para a educação; mais especificamente analisando o próprio conceito de “educação musical”. Filosofia:�a�pragmática�wittgensteiniana�como�chave�de�leitura Ludwig Wittgenstein foi um filósofo muito proeminente em sua vida e um grande expoente da linguistic turn, tendo publicado e interagindo com importantes pensadores da Filosofia Analítica, tais como Russell, Frege, dedicando-se ao estudo da lógica nos princípios de seu percurso acadêmico. Com a publicação de sua obra Tractatus Logico-Philosophicus (1921), acreditou ter “resolvido” de vez os problemas filosóficos, pois que sobre estes, segundo o autor, “repousa sobre o mau entendimento da lógica de nossa linguagem” (Wittgenstein, 2008, p. 131), posição que, tempos depois, capitulou. Após a publicação do Tractatus – que influenciou, aliás, o Círculo de Viena, conjunto de filósofos que aplicava as postulações de Wittgenstein à filosofia, e que também ficaram conhecidos. Após a publicação do Tractatus, dedicou-se ao magistério por aproximadamente seis anos, período o qual tem sido visto com muito interesse por estudiosos de Wittgenstein, chamando a atenção para esta etapa da vida do filósofo, que apresenta sinais de um encaminhamento a um novo ponto de virada do que estaria por vir (Reis; Oliveira apud Gottschalk, 2020, p. 43). Nesse período, Wittgenstein, como professor de crianças, criou uma atividade com seus alunos que consistia na produção de um dicionário composto por palavras familiares aomy writing to spare other people the trouble of thinking (PI, viii).5 The work of the philosopher consists in marshalling reminders for a particular purpose (PI, § 127). What does it mean to “think with Wittgenstein” about justification for eco- pedagogies? Wittgenstein did not advocate for one method,6 but does ask us to shift our approach in Philosophy from an explanatory to an expository one (PI, § 109). Embarking on this investigation, I have ensured that it is a genuine problem: that my description of the situation reflects a real instead of hypothetical issue arising within educational discourses. “Don’t imagine a description which you have never heard, which describes an attitude in unheard of detail. [...] An attitude is pretty well described by the position of the body. “This is a good description. But accurate?”” (CV, § 11, p. 35). My work in Philosophy of Education (Stickney, 2022a) consists of finding rich contexts within educational discourses, such as in judging the soundness of pedagogies (Stickney, 2009, 2017a) or reading silence in the classroom (Stickney, 2022b) where I can apply the philosophies of Wittgenstein and Foucault, following Hacking in Philosophy of Science, Tully and Taylor in Political Philosophy, or Zerilli and Scheman in Philosophical Feminism. A challenge in undertaking this kind of investigation is that it involves monitoring closely our usage of ordinary language in teaching and in conducting research on learning. “Conversation, the application and interpretation of words flows on, and only in the flow of life does a word have its meaning” (Z, §135).7 5 Following convention, titles for Wittgenstein’s works are abbreviated (PI = Philosophical Investigations, RFM = Remarks on the Foundation of Mathematics, OC = On Certainty, WL =Wittgenstein’s Lectures, CV = Culture Value, PO = Philosophical Occasions), with section (§) or page number (p.), with full citation and initials (e.g., RFM) in the References. 6 There is not a philosophical method, though there are indeed methods, like different therapies (PI, § 133). 7 Words only have meaning in the river of thought and life (Z, § 174; cf. § 173). 18 In this case, I attend to show how we talk about and practicing different “currents” of eco-pedagogy (cf. Sauvé, 2005), trying to gain what Wittgenstein called an Übersicht or perspicacious overview. A main source of our failure to understand is that we do not command a clear view of the use of our words – our grammar is lacking in this sort of perspicuity. A perspicuous representation produces just such an understanding which consists in “seeing connexions.” Hence the importance of finding and inventing intermediate cases. The concept of a perspicuous representation is of fundamental significance for us. It earmarks the form of account we give, the way we look at things. (Is this a “Weltanschauung”?) (PI, § 122). Instead of only inventing thought-experiments or focusing on rudimentary cases of language usage, as Wittgenstein does in his Philosophical Investigations (Stickney, 2005), here we are seeking a perspicuous view of the way our words are used within contemporary language-games of ESE and their connections to various forms of knowledge (RFGB, p. 133 on seeing links) – especially in what many would describe as “less rigorous” and “more subjective” practices like place-based education. Less frequent calls for more research on problem-based or inquiry learning shows prevalent, taken-for-granted values and established certainties in educational discourses, implicitly supporting these types of inquiry/research-based academic learning. “The aspects of things that are most important for us are hidden because of their simplicity and familiarity. (One is unable to notice something—because it is always before one’s eyes.).” (PI, § 129). In the space afforded here I am entertaining one case of entanglement where talk of effective eco-pedagogies leads researchers into a flight from the “rough ground” on which we actually teach ESE (cf. PI, §107), rhetorically boosting hopes for some kind of pedagogical science (Standish, 1995). “What we do is to bring words back from their metaphysical to their everyday use.” (PI, § 116). I am leveraging this survey by having spent many years working in the field, teaching ESE and also publishing on place-based learning (Stickney, 2020a, b, c; 2023a; 2024). Insider perspective lends a tremendous advantage, making it possible to offer immanent critique where non- practitioners lack needed background, experience or expertise. The aim however is not to intervene in the field, so as to fix these problems (PI, §124-6, 132-3), thinking we could then shore up the foundations of these educational practices though conceptual hygiene. Recall how Analytic Philosophers of Education approached Wittgenstein’s challenge (Marshall; Smeyers, 1995; Peters, 1995; Peters; Burbules; Smeyers, 2008; Peters; Stickney, 2019); my aim is rather to therapeutically dissolve some of these problems of justification that haunt us (PI, § 133). 19 Philosophical problems […] are not empirical problems: they are solved, rather, by looking into the workings of our language, and that in such a way as to make us recognise those workings: in spite of an urge to misunderstand them. The problems are solved, not by giving new information, but by arranging what we have always known. Philosophy is a battle against the bewitchment of our intelligence by means of language (PI, § 109). [...] the results of philosophy are the uncovering of one or another piece of plain nonsense and of the bumps that the understanding has got by running its head against the limits of language (PI, § 119). As a philosopher of education, I am also following an approach Jose Medina (2002, 2006) recommends, taking up a position at the margins of this ESE community to gain added ethnographic perspective on where practitioners hit ‘bumps’ in making truth claims. “If we look at things from an ethnological point of view, does that mean that we are saying that philosophy is ethnology? No, it only means that we are taking up a position right outside so as to be able to see things more objectively.” (CV, p. 37e). “Shallow Ground” in Wittgenstein’s Post-foundational Epistemology My argument is that when talking about the “effectiveness” of eco-pedagogies we are using a different language-game, with a different degree of certainty than when we talk empirically about the ‘effectiveness’ of say technologies. The distinction I am drawing here is that assaying ‘efficacy’ in relation to place-based pedagogy operates more like judgments of a performance than in the more refined empirical or scientific sense. As Forster (2004, p. 174) notes, in Wittgenstein’s transition from the earlier Tractatus to his later Investigations, he moved away from earlier positivistic notions of finding meaning through verification (accurate depictions), often inquiring instead, “How is the word learned?”: “Asking whether and how a proposition can be verified is only a particular way of asking “How d’you mean?” The answer is a contribution to the grammar of the proposition.” (PI, § 353). This anti-verification turn in Wittgenstein’s later thinking has particular relevance to judging pedagogical efficacy. Naturally, we want to provide assurances that our instructional practices have value, worthy of attention and meriting tuition. “But can we verify them?” – Wittgenstein turns attention instead to how we learn and teach them. With Philosophers of Education, I want to venture into what my reference in the title to shallow ground meant in terms of Wittgenstein’s post-foundational 20 epistemology and how it applies to eco-pedagogies. In saying that attempts to justify place-based pedagogies rest on ‘shallow ground’ I am alluding to a phrase in the Philosophical Investigations that most people are unfamiliar with, on ‘reasons soon giving out’cotidiano das famílias. Assim, a criança poderia ter consciência da forma correta de se escrever determinada palavra, sendo “plenamente responsável pela ortografia de seu próprio texto, pois lhe fornece um meio mais seguro de descobrir e corrigir seus erros, sempre que quiser fazê-lo”, palavras estas que profere no prefácio de seu dicionário (Wittgenstein apud Gottschalk, 2020, p. 43). E as palavras elencadas por Wittgenstein eram escolhidas levando em consideração o uso de tais palavras pelas crianças e esta atenção com o uso, evidencia sinais de características fundamentais para a filosofia posterior de Wittgenstein. Em 1929, após a experiência no magistério, Wittgenstein retoma os estudos na Universidade de Cambridge e a partir de então começa a produzir mais escritos que se afastam da sua primeira “imagem” de linguagem (tema que trataremos em um capítulo específico da tese). Dentre estas pesquisas, destaca-se a publicação póstuma das Investigações filosóficas, precisamente a obra que será importante para o presente artigo. 155 Entretanto, o objetivo desta pesquisa não é realizar um aprofundamento exegético na obra do filósofo, no sentido de que não se pretende aprofundar em seus problemas filosóficos, mas sim apoiarmo-nos em suas reflexões para desenvolvê-las no campo da Educação e, mais especificamente, no campo da Educação Musical. Apesar de ter sido professor de crianças, trabalhando sob os auspícios da reforma educacional austríaca (Reis apud Gottschalk, 2020, p. 51), Wittgenstein não desenvolveu uma filosofia da educação propriamente dita. Por outro lado, seus estudos sobre as condições de possibilidade nas quais ocorre a comunicação e a aprendizagem de regras, em contextos nos quais a linguagem é posta em uso, são muito profícuos para desdobramentos em pesquisas que tratem de ensino, aprendizagem, cultura, linguística, psicologia, antropologia, sociologia, semiologia e áreas afins. É comum o uso da expressão “segundo Wittgenstein” para se referir à fase posterior do filósofo, que culmina nas Investigações Filosóficas, após uma profunda guinada em relação à sua primeira fase – representada pelo Tractatus Logico- Philosophicus, mas é um processo que ocorre lentamente, durante a década de 30, com “profundas consequências, não apenas na sua concepção de linguagem, mas, também, na de filosofia” (Moreno, 1995, p. 12). Enquanto no Tractatus Wittgenstein defende uma “concepção de proposição como Imagem (Bild) lógica dos estados de coisas” (Moreno, 1995, p. 11), nas Investigações essa concepção passa a ser considerada sob um novo ponto de vista, com uma nova interpretação, sendo [...] uma dentre as muitas [imagens] possíveis, e, consequentemente, a posição exclusivista e essencialista do Tractatus passa a ser interpretada como o resultado da fixação do pensamento em uma concepção limitada e limitadora da linguagem (Moreno, 1995, p. 12). Se, por um lado, as ideias do primeiro Wittgenstein eram corroboradas pelos positivistas lógicos do Círculo de Viena, que concordavam que “linguagem” seria algo fechado com um escopo muito definido, por outro lado a concepção do segundo Wittgenstein traz uma percepção geral completamente diferente. E pelo fato de que os positivistas lógicos estavam interessados na estruturação da imagem única e unívoca de linguagem, as observações de Wittgenstein, acabam ressoando em uma tonalidade completamente diferente. A linguagem passa a ser considerada como um caleidoscópio de situações de uso das palavras em que o contexto pragmático não pode mais ser eliminado. A palavra “linguagem” indica, a partir de então, um conjunto aberto de diferentes atividades envolvendo palavras, uma “família” de situações em que usamos palavras relativamente a circunstâncias extralinguísticas (Moreno, 1995, p. 19). E para tanto, Wittgenstein lança mão de um método que consiste em apresentar os conceitos utilizando comparações, paralelos, perguntas que parecem 156 “óbvias”, apontamentos para situações cotidianas, enfim, uma série de recursos que possibilitam que as Investigações filosóficas possam ser compreendidas em diferentes aforismos. O próprio autor afirma, em seu prefácio, que tentou organizar o livro em uma sequência que se fez impossível de concatenar e que suas observações seriam um “conjunto de esboços”. As observações filosóficas deste livro são, por assim dizer, um conjunto de esboços de paisagens que surgiram a partir dessas longas e complexas jornadas. Os mesmos pontos, ou praticamente os mesmos, foram repetidamente abordados, sempre a partir de diferentes perspectivas, e sempre foram esboçadas novas imagens. Um sem-número delas eram mal desenhadas, ou pouco características, maculadas por todas as falhas de um mau desenhista. E uma vez que estas foram eliminadas, restou um número de imagens passáveis, as quais precisaram, então, ser ordenadas e frequentemente aparadas de modo que pudessem oferecer ao observador uma imagem da paisagem. Assim, este livro é, na verdade, apenas um álbum (Wittgenstein, 2022, p. 18). Desse modo, o filósofo empreende a sua jornada com uma série de aforismos, comparações, alegorias, polifonias (na medida em que recorrentemente fala com outras vozes em contraponto), exemplificações, descrições e elucidações que vão se constituindo como uma terapia filosófica, acessando tudo o que está visível e que pode ser também observado pelo seu interlocutor. Através de analogias (como a da linguagem com o jogo) Wittgenstein coloca em ação o que ele denomina de “terapia filosófica”. Ao descrever as regras que seguimos ao aplicar as palavras em contextos específicos, relativiza usos dogmáticos de nossos conceitos e, consequentemente, confusões de natureza conceitual são dissolvidas. Com este objetivo primeiro, de esclarecimento conceitual, a terapia filosófica recorre a exemplos (método da exemplificação), diálogos polifônicos com interlocutores representantes de posições filosóficas mentalistas ou behavioristas, dentre outras; emprego de analogias e metáforas, entre outros recursos terapêuticos, que mostram os preconceitos a que estamos submetidos devido a uma concepção referencial da linguagem, ou seja, quando estamos presos à imagem agostiniana de que haveria significados extralinguísticos por trás do uso de nossas palavras (Gottschalk, 2017, p. 7). A atenção de Wittgenstein se volta para os usos cotidianos da linguagem nos quais ficam evidentes, em situações nas quais a linguagem é colocada em jogo, um acordo entre os participantes que aprendem a jogar com regras de cada contexto. E tais regras são, também, compartilhadas pelos participantes desses contextos. [...] [Há] inúmeras espécies diferentes de emprego daquilo que chamamos de “signo”, “palavras”, “frases”. E essa pluralidade não 157 é nada fixa, um dado para sempre; mas novos tipos de linguagem, como poderíamos dizer, nascem e outros envelhecem e são esquecidos [...]. O termo “jogo de linguagem” deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida (Wittgenstein, 2022, § 23, p. 37, grifos nossos). Isso quer dizer que cada forma de vida tem as suas próprias regras que são construídas no próprio devir da vida, nas jogadas sucessivas, na aprendizagem por novos participantes do jogo, na atualização das regras etc. A estratégia na construção de seu conceito de jogos de linguagem é um dos motes para o desenvolvimento de sua teoria sobre os usos da linguagem. A própria ideia de jogo não tem um ou mais usos predefinidos, mas situações não previstas (não prescritas) onde os usos da palavra “jogo” diferem, mas guardam uma “semelhança de família”. Parte deste importante conceito está sintetizado no § 66: Considere, por exemplo, as atividades que chamamos de “jogos”. Refiro-me aos jogos de tabuleiro, de cartas, de bola, de luta e assim por diante. O que é comum a todos eles? – Não diga “É necessário que haja algo comum a eles, do contrário eles não se chamariamand then quickly hitting bedrock. How can he know how he is to continue a pattern by himself – whatever instruction you give him? – Well, how do I know? – If that means “Have I reasons?” the answer is: my reasons will soon give out. And then I will act, without reasons. (PI, § 211) If I have exhausted the justifications I have reached bedrock, and my spade is turned. Then I am inclined to say: “This is simply what I do.” (PI, § 217). In historical context, Wittgenstein is seen here moving away from his earlier position in the Tractatus, where words were said to picture (empirically mirror) things or states of affairs, to his later work in the Investigations where words gain meaning through usage, contextually bundled with practices or myriad language- games founded thinly upon forms of life. “For a large class of cases—though not for all—in which we employ the word “meaning” it can be defined thus: the meaning of a word is its use in the language”. (PI, § 43). The paradigm case is someone speaking fluently without pausing to consider the grammatical rules to which they generally, autonomically adhere. Likewise, the listener is not verifying the expressions heard, although grammatical slips will, of course, stand out. […] not only do we not think of the rules of usage – of definitions, etc. – while using language, but when we are asked to give such rules, in most cases we aren’t able to do so. We are unable clearly to circumscribe the concepts we use; not because we don’t know their real definition, but because there is no real ‘definition’ to them (BB, p. 25). This quote (PI, § 217) has a more specific context, however, in Wittgenstein’s discussion of rule-following, which runs approximately from PI, §141-242, referring to groundlessness when carrying out or extending a number series: such as adding 2 to the hundreds (102, 202 etc.), but lacking certainty as to what to do when reaching 1000. “This was our paradox: no course of action could be determined by a rule, because every course of action can be made out to accord with the rule”. (PI, § 201). The simplified case has wide applications in Wittgenstein’s thinking, extending to how we see or regard things (PI, p. 194-214; cf. Mulhall, 1990, 2001; Stickney, on “Seeing Trees”, 2020a) and make judgements (PI, p. 227, § 242-2), and generally to variable degrees of certainty in knowing what is felicitous performance of norm-governed practices (Medina, 2005, 2006; Stickney, 2021, on reading silence 21 in classrooms). Charles Taylor (1995, p. 178) gives the prescient example of young people engaged in social dance, switching dance styles in unison without verbal communication (e.g., from samba to tango; Stickney, 2014, on judging choreography). The common denominator is that in these cases there is some arbitrariness but also considerable expertise when it comes to judging who is complying with the implicit rules, as one can offer many reasonable interpretations: When I follow a sign-post, the connection between it and my action is not mediated by an interpretation of sign-posts that I acquired when I was trained in their use [...]. I have further indicated that a person goes by a sign-post only in so far as there exists a regular use of sign-posts, a custom (PI, § 198). What this shews [sic] is that there is a way of grasping a rule which is not an interpretation, but which is exhibited in what we call “obeying a rule” and “going against it” in actual cases (PI, § 201). The point here is that the person(s) acting or judging are not engaged in ratiocination or performing thoughtful interpretation, but rather responding immediately in a second-nature way – based upon prior enculturation and training. In his late posthumously published work On Certainty, Wittgenstein extends this conversation of post-foundationalism: “The difficulty is to realize the groundlessness of our believing” (OC, § 166). He also likens our instantaneous but nevertheless certain response to signs and expressions as being more of an “animal reaction” than an interpretation. Now I would like to regard the certainty not as something akin to hastiness or superficiality, but as a form of life. (That is badly expressed and probably badly thought as well.) (OC, § 358). But that means that I want to conceive it as something that lies beyond being justified or unjustified; as it were, as something animal (OC, § 359). I want to regard man here as an animal; as a primitive being to which one grants instinct but not ratiocination. As a creature in a primitive state (OC, § 475). The indeterminacy of rules provides a situation in which we see relevance for and of education, as this philosopher who trained and taught in early child education (Savickey, 2017; Stickney 2017b) falls back upon his experience in classrooms in resolving the paradox “that no course of action could be determined by a rule because every course of action can be made out to accord with the rule” (PI, § 201). I cannot describe how (in general) to employ rules, except by teaching you, training you to employ rules (Z, § 318). 22 Any explanation has its foundation in training. (Educators ought to remember this.) (Z, § 419).8 Questions Arising at/from the Colloquium Referring back to the colloquium in the Faculty of Education at São Paulo University (2023), in the Question & Answer session after my keynote talk on November 8th and again in my closing Q&A session on the 10th our host Cristiane Gottschalk asked why I referred to “shallow ground” in talking about bedrock certainties, also sharing her concern about my reference to “Wittgenstein’s post- foundationalism”. These questions were hard to answer in the colloquium as I had trouble understanding the concerns, unable to hear the quieter English simultaneous translation under the louder Portuguese query. Three weeks later, Dr. Gottschalk kindly shared her recent paper (2020, appearing in English), in which she criticizes Michael Peter’s 1984 doctoral dissertation, published by Springer (Peters, 2020). Although invited to contribute to that special issue in which her paper appeared I declined as I had worked closely with Michael from 2014-2020 on book projects (Peters, Stickney, 2017, 2018a, b): also contributing a co-authored chapter for the Cambridge History of Philosophy that grew out of his dissertation, in which we discussed the post- foundationalism of Dewey, Wittgenstein, and Foucault (Peters; Stickney, 2019). Let me now respectfully clear up some confusion that may have resulted from the post-keynote discussion, before sharing an abridged version of my talk. I say “shallow” ground as in PI, § 111 & § 117 (above), the emphasis is on justification soon giving out, and then (implicitly) quickly hitting bedrock, as it is in his later remarks on ‘evidence not going far’ in On Certainty: What kind of grounds have I for trusting text-books of experimental physics? I have no grounds for not trusting them. And I trust them. I know how such books are produced – or rather, I believe I know. I have 8 In the Question & Answer session after my talk Dr. Gottschalk asked why I did not used the word “dressage” instead of “training”. (N.b., Elizabeth Anscombe’s consistent translation was ‘training’.) “Dressage”, I replied, pertains more to horses than persons, and is not used by Wittgenstein. In the Preliminary Notebooks (BB) Wittgenstein does talk about animal training but in PI, § 5, he is clearly discussing how we train children in language or mathematics, which we could also extend to musical training without reading this pejoratively (learning-by-doing the times-table or doing scales). On training, see Stickney, 2008a. 23 some evidence, but it does not go very far and is of a very scattered nature. I have heard, seen and read various things (OC, § 600). “Shallow” seems to sum up nicely the spatial and temporal dimensions of Wittgenstein’s metaphors, which I will unpackfurther below. In the Q&A session the metaphor of bedrock also seemed to be causing some confusion. As I tried to say (through our hard-working translators) after my talk, we have to be careful not to read too much from the varied geologic senses of the term; bedrock is not necessarily deep underground, for instance in mountain or shield regions where it may be on the surface, nor especially “hard” as is the case with igneous granite – the matter of hardness having been given special emphasis by Dr. Gottschalk in the colloquium Q&A. Relatively soft layers of limestone or sandstone can form the shallow bedrock, right under the soil layer, only harder than the loose granules that compact and cement together in these sedimentary rocks. Avering a search for dictionary-type definitions or seeking underlying, hidden explanations, Wittgenstein’s approach calls for us to look instead at words on the surface of usage. Philosophy simply puts everything before us and neither explains nor deduces anything. Since everything lies open there is nothing to explain. For what is hidden, for example, is of no use to us (PI, § 126). Here is how Wittgenstein actually describes the sedimentation process in On Certainty: It might be imagined that some propositions, of the form of empirical propositions, were hardened and functioned as channels for such empirical propositions as were not hardened but fluid; and that this relation altered with time, in that fluid propositions hardened, and hardened ones became fluid (OC, § 96). The mythology may change back into a state of flux, the river-bed of thoughts may shift. But I distinguish between the movement of the waters on the river-bed and the shift of the bed itself; though there is not a sharp division of the one from the other (OC, § 97). And the bank of the river consists partly of hard rock, subject to no alteration or only to an imperceptible one, partly of sand, which now in one place, now in another gets washed away, or deposited (OC, § 99). Wittgenstein says “hardened”, but only partly harder than surrounding sand: hard enough though to channel the river of thought, even though it too erodes over time and is replaced by newly sedimented rock. In § 98 he clarifies that “the same proposition may get treated at one time as something to test by experience, 24 at another as a rule of testing.” Gottschalk (2020) wisely refers us to David Stern’s (1991) insightful discussion of these Heraclitan metaphors, giving us the distinction between empirical propositions and grammatical ones, the latter being the hardened bedrock on which our spade is turned. They are close at hand in the sense of being ever present in grammatically guiding our thinking, and yet go unnoticed in our daily speaking and thinking. “But I did not get my picture of the world by satisfying myself of its correctness; nor do I have it because I am satisfied of its correctness. No: it is the inherited background against which I distinguish between true and false”. (OC, § 94; cf. § 140). Much as we gradually learn through experience how to read emotions on faces (PI, p. 127-8), we learn these channeling bedrock concepts informally as we are acculturated into a culture and initiated into the grammar of its language and practices. “The propositions describing this world-view might be part of a kind of mythology. And their role is like that of rules of a game; and the game can be learned purely practically, without learning any explicit rules.” (OC, § 95). But bedrock is only one metaphor of several that Wittgenstein employs. Wittgenstein also refers to hinge propositions (OC, § 341), which implies close attachment, as does axis of rotation (OC, § 152) and scaffolding (OC, § 211). I do not explicitly learn the propositions that stand fast for me. I can discover them subsequently like the axis around which a body rotates. This axis is not fixed in the sense that anything holds it fast, but the movement around it determines its immobility (OC, § 152). That is to say, the questions that we raise and our doubts depend on the fact that some propositions are exempt from doubt, are as it were like hinges on which those turn (OC, § 341). That is to say, it belongs to the logic of our scientific investigations that certain things are in deed not doubted (OC, § 342). The common thread here is that these guiding, grammatical propositions – ones that we internalize informally rather than through instruction; ones that we seldom notice in the flow of speech and thought – offer intra-linguistic guidance in terms of what we count-as or hold to be true, giving minimal basis in the absence of extra-linguistic foundations. Giving grounds, however, justifying the evidence, comes to an end; – but the end is not certain propositions’ striking us immediately as true, i.e., it is not a kind of seeing on our part; it is our acting, which lies at the bottom of the language-game (OC, § 204). Professor Gottschalk asked in the Q&A why I join Michael Peters (and others) in referring to Wittgenstein as being a “post-foundationalist” thinker, if we recognize the role played by bedrock or hinges (as we obviously do)? Here is the published form of her challenge, which strikes me as a straw man argument as I cannot locate 25 anyone in the field who takes the extreme position of denying in Wittgenstein’s later epistemology some minimal “fundament” in language. Based on the reasons above, I disagree with Peters’s [sic] assertions regarding Wittgenstein’s supposed anti-foundationalism. Although in fact it is not about an extralinguistic foundation, I think that this does not authorize us to understand that for Wittgenstein there are no foundations. He only denies the existence of definitive and extralinguistic foundations, and emphasizes the importance of the existence of foundations in language as a condition for the constitution of meanings, and consequently, in a way, for the constitution of multiple rationalities. Rationalities that could be others, in another form of life (2020, p. 35). The mistake here would be to suggest that Peters or I are saying there is absolutely no foundation when using the term “post-foundational”, for as she concedes it is only an extra-linguistic foundation that is being dismissed: not only by us, but by those (generally) following the linguistic turn in philosophy (Rorty, 2009). It could be that reading the words “post- or “anti-” before “foundationalism” is more problematic in translation into Portuguese, but I hope to show here that there really is no disagreement of substance between us on this significant matter; in fact, it appears there is common accord on what kind of minimal basis we are left with by Wittgenstein, after he removed extra-linguistic foundations. Like everything metaphysical the harmony between thought and reality is to be found in the grammar of the language (PG, p. 161; cf. PI, § 371-373). Here we see that the idea of “agreement with reality” does not have any clear application (OC, § 214-215). Here again is where this matter arises in Gottschalk’s recent paper (2020, p. 33), which carries the same oxymoron in its title: “Unfounded foundations”. Obviously, our philosopher does not defend the existence of definitive, extralinguistic and universal ultimate foundations. But this does not mean that there are no ultimate foundations that guide our investigation, knowledge and rationality, within our form of life (2020, p. 33). The apparent contradiction around her repetition of the words “ultimate foundations” is not as problematic as it might appear, as she basically agrees with Peters and I (Rorty, 2009, and many others) when conceding that “obviously” there is no extralinguistic foundation. The polemical tone seems hyperbolic given this underlying agreement, as nobody seriously reading Wittgenstein that I know of denies intra-linguistic and practice-based support, and her cleverwordsmithing 26 of “unfounded fundament” for bedrock resonates with “post-foundational” when we compare Wittgenstein’s later epistemology with extra-linguistic sources of knowledge such as empiricism (sense data) and rationalism (intuition). Charles Taylor observed (1995) that Wittgenstein based his otherwise foundationless epistemology on a linguistic apriori, his first philosophy (Garver, 1994) resting upon forms of life as the only ground on which our world-picture of reality rests. It is this holistic perspective we need to bring into our present investigation, distinguishing more carefully cases regarding the empirical validation of scientific reports on climate change, from cases where judgements are passed upon certain teaching practices performed fluently/felicitously (or not).9 Instead of the unanalysable, specific, indefinable: the fact that we act in such-and-such ways, e.g., punish certain actions, establish the state of affairs thus and so, give orders, render accounts, describe colours, take an interest in others’ feelings. What has to be accepted, the given – it might be said – are facts of living // forms of life (RPP, I, § 630; see PI, p. 226). When Gottschalk wrote that “Grammar is not given, but rather a construction that constitutes our worldpicture (Weltbild)” (2020, p. 33), I do not think she meant to disagree with this philosophical sense of forms of life being “given” (a priori), but rather meant to say that grammar is not given by nature (and therefore beyond correction, PI, p. xii) – which makes sense in terms of Wittgenstein’s later philosophy. The Grammar of uses we carry within us can be seen as part of deep agreements in language, shared by a language-speaking community within a particular culture. It is not an agreement of an empirical historical-sociological nature, or as Wittgenstein says, an agreement of opinions, but something deeper: […]. In other words, the grammar of life forms is our language games, which we are gradually introduced to through agreements in language rather than through empirical sociological, psychological or historical processes (Gottschalk, 2020, p. 33, emphasis added). I agree with Gottschalk here, up to the bolded text, that bedrock propositions are not mere opinions, which of course vary among members of the same form of life; Wittgenstein makes this distinction at the end of his rule-following arguments 9 Following a rule is analogous to obeying an order. We are trained to do so; we react to an order in a particular way. But what if one person reacts in one way and another in another to the order and the training? Which one is right? The common behaviour of mankind is the system of reference by means of which we interpret an unknown language (PI, § 206). 27 in shallowly grounding agreement in judgments in forms of life (also quoted by Gottschalk, p. 33). “So you are saying that human agreement decides about what is true and what is false?” – It is what human beings say that is true and false; and they agree in the language they use. That is not agreement in opinions but in forms of life (PI, § 241). If language is to be a means of communication there must be agreement not only in definitions but also (queer as this may sound) in judgments (PI, § 242). But I do not fully understand what she meant by further adding that “It is not an agreement of an empirical historical-sociological nature” (2020, p. 33). This comes out again below, while rightly clarifying that grammar is a social construct. In other words, the grammar of life forms is our language games, which we are gradually introduced to through agreements in language rather than through empirical sociological, psychological or historical processes. Grammar is not given, but rather a construction that constitutes our worldpicture (Weltbild) […] (2020, p. 33). The processes through which persons are gradually acculturated into a language and into world-pictures, internalizing its bedrock, do not operate outside the social worlds in which they exist; in fact, their normative effect is clearly contingent on cultural and even disciplinary practices occurring at particular places and times in history (viz., Foucault, 2002, p. 143 on historical a priori; Stickney, 2012, p. 654). To borrow on Rorty (1989), our solidarities (what unites us) are highly contingent. As bedrock, what was once an empirical proposition has now hardened into a grammatical one, as she agrees, but being an intra-linguistic ground, bedrock propositions are necessarily laden with socio-cultural and historical content, and as such – not being determined by nature and therefore not absolutely right concepts (PI, p. xii) – are subject to change and correction over time. Declaring that “The words we call expressions of aesthetic judgements play a very complicated role, but a very definite role in the, in what we call the culture of period,” and pondering: “What we now call a cultured taste perhaps did not exist in the Middle Ages,” Wittgenstein concludes: What belongs to a language-game is a whole culture. In describing musical taste you have to describe whether children give concerts, whether women do or whether men only give them, etc. (LC, p. 8, noting how women came to join choirs in bourgeois circles in Vienna). For how can it be explained what “expressive playing” is? Certainly not by anything that accompanies the playing.—What is needed for 28 the explanation? One might say: a culture.—If someone is brought up in a particular culture—and then reacts to music in such-and-such a way, you can teach him the use of the phrase ‘expressive playing’ (Z, § 164). Cultural-historical trends and shifts inform the contemporary language- games of a given period, providing new discursive possibilities and limit-conditions on how people speak and think. This is why Wittgenstein, like Foucault, employs a neo-Nietzschean genealogical approach, and why Ian Hacking (2002) used both in his philosophy of science. One of the most important methods I use is to imagine a historical development for our ideas different from what actually occurred. If we do this, we see the problem from a completely new angle (CV, p. 37e). If we imagine the facts otherwise than as they are, certain language- games lose some of their importance, while others become important. And in this way, there is an alteration – a gradual one – in the use of the vocabulary of a language (OC, § 63; cf. § 65). Wittgenstein invites us to consider how our thinking could be otherwise with different concepts and education (PI, p. xii.; OC, § 298). In the Q&A I gave the example of how our concept of a “family” has changed remarkably over the last century. As well as religious forms of life in which people are acculturated and trained to react differently to paintings of the last judgement (LC, p. 53-55), there are Indigenous forms of life in which the grammar of their language allows them to speak of the memory of water and ice (Sheridan, Longboat, 2014), which would register as nonsensical to those not initiated into these cultures and therefore lacking their bedrock certainties. I hope that this lengthy digression helps readers to see that there is basic agreement between Professor Gottschalk and I on the main issues concerning limited foundations in Wittgenstein’s later thinking, but that different sematic preferences (post-foundational versus unfounded foundation) may give the wrong impression of a polemic and deeper discord. I am grateful for her invitation to speak at the colloquium and to contribute this revised version of my talk as a chapter in this E-book. I also appreciate her invitation to help promote Wittgenstein studies in Philosophy of Education, as I do Professor João José R. L. de Almeida at Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas/SP, Brasil (Stickney, 2020c). 29 Assaying the shallow ground of place-based eco-pedagogies Thechallenge in our problematic is to achieve emancipation from an enthralling picture about “verifying” eco-pedagogies without then falling into epistemic relativism: i.e., suggesting that ESE researchers do not need secure connections to the world and to facts as we commonly know them. The kind of relativity that Wittgenstein entertained in his later remarks pertains to the relative certainty that various claims or assertions have, given the language-game they belong to (see Stickney, 2008b). I can be as certain of someone else’s sensations as of any fact. But this does not make the propositions “He is depressed”, and “25 × 25 = 625” and “I am sixty years old” into similar instruments. The explanation suggests itself that the certainty is of a different kind. – […] The kind of certainty is the kind of language-game (PI, p. 224). Similar to the case of being certain that a person is depressed in seeing their facial expression and bodily comportment, without then being able to say what it is exactly in their persona and posture that elicits “depression”, instead of doubting whether place-based education are effective – of this I have no doubt – I am at a loss to explain how I know this or to give sufficient reasons as to why I am certain. It is also hard to teach others these practices. There are different registers of meaning when it comes to the kinds of learning we are engaged in and their efficacy, whether formal or informal (see Stickney, 2023b). The epistemic situations are quite different when it comes to claims for the veracity of environmental science as opposed to claims for the efficacy of various eco- pedagogies. Let’s consider the difference between skepticism regarding claims made by environmental scientists about the imminent danger of global warming, and then regarding claims about the efficacy of ecstatic and emplaced eco-pedagogies.10 The cohesion and veracity of climate science Throughout my education I have gradually acquired a world-picture (Weltbild): one with which environmental-scientific facts cohere. These facts are beyond reasonable doubt, as Wittgenstein dialogically illustrates. 10 It is clear that our empirical propositions do not all have the same status, since one can lay down such a proposition and turn it from an empirical proposition into a norm of description (OC, § 167). 30 I learned an enormous amount and accepted it on human authority, and then I found some things confirmed and disconfirmed by my own experience (OC, §161).11 In general I take as true what is found in text-books, of geography for example. Why? I say: All these facts have been confirmed a hundred times over. But how do I know that? What is my evidence for it? I have a world-picture. Is it true or false? Above all it is the substratum of all my enquiring and asserting. The propositions describing it are not equally subject to testing (OC, § 162). Doesn’t testing come to an end? (OC, § 164). In saying that: “The propositions describing it are not equally subject to testing” (OC, § 162), we find the problem-space for this investigation: how claims to the veracity of environmental science offer more rigorous empirical tests than those for the efficacy of eco-pedagogies. It is currently unreasonable to doubt that we are indeed hurtling toward catastrophe by not heeding repeated warnings about the danger of increasing levels of anthropogenic greenhouse gases and the harms of rapid deforestation. These facts may come under further scrutiny and refinement in the future, but it is reasonable to assent to them now (viz., pragmatist fallibilism).12 Although I do not corroborate the findings of earth scientists, I have good reason to trust their reports and acknowledge the validity of dire warnings about the future. ““We are sure of it” does not just mean that every single person is certain of it, but that we belong to a community which is bound together by science and education”. (OC, § 298). If somebody tells me that they think that global warming is a hoax, I try to bring them into accord with this picture by offering the most obvious evidence of warmer temperatures and more forest fires every year, never delving deeply into the science in my retort but suggesting that a vast data-base of atmospheric and oceanographic science gives further foundation for my fears. “In answering the question I should have to be imparting a picture of the world to the person who asked it. If I do answer the question with certainty, what 11 Wittgenstein was not condoning authoritarian, dogmatic approaches to teaching such as conditioning or indoctrination. The effect of making men think in accordance with dogmas, […]. It is not a wall setting limits to what can be believed, but more like a brake which, however, practically serves the same purpose; it’s almost as though someone were to attach a weight to your foot to restrict your freedom of movement (CV, p. 28e). 12 Whatever may happen in the future, however water may behave in the future, – we know that up to now it has behaved thus in innumerable instances. This fact is fused into the foundations of our language-game (OC, § 538). 31 gives me this certainty?”. (OC, § 233).13 Although limited in my ability to produce all the facts, the person expressing doubt will seem to be outside my “community bound together by science and education”. Limited in my ability to argue the science (only partially absorbed as a student and Geography teacher), I feel the person who distrusts it is ungrounded – alien. They seem “intellectually very distant from us” (OC, § 108).14 But how does this one belief hang together with all the rest? We should like to say that someone who could believe that does not accept our whole system of verification. This system is something a human being acquires by means of observation and instruction. I intentionally do not say “learns” (OC, § 279). After he has seen this and this and heard that and that, he is not in a position to doubt whether [...] (OC, § 280). In the course of becoming educated we gradually come into coherence or alignment with the system of knowledge/verification that binds us together, even though we are incapable of demonstrating proofs for every proposition tied up in this vast web (spanning the liberal arts). All testing, all confirmation and disconfirmation of a hypothesis takes place already within a system. And this system is not a more or less arbitrary and doubtful point of departure for all our arguments: no, it belongs to the essence of what we call an argument. The system is not so much the point of departure, as the element in which arguments have their life (OC, § 105). I am taught that under such circumstances this happens. Not that that would prove anything to us, if it weren’t that this experience was surrounded by others which combine with it to form a system…. But in the end I rely on these experiences, or on the reports of them, I feel no scruples about ordering my own activities in accordance with them. – But hasn’t this trust proved itself? So far as I can judge – yes (OC, § 603). Not being whimsical, Wittgenstein’s interlocutor asks the fundamental question of epistemology: “When are we ‘objectively certain’”? Wittgenstein 13 Earth’s long existence is something we know based on historical evidence (OC, § 187- 190); however, “I cannot say of this [evidence] that it is definitely correct” (OC, § 188). 14 If people do not share our common agreements in judgement (PI, § 241-2) and rules for weighing evidence, we have trouble “finding our feet” with or under-standing them (Z, § 390). While at school our children get taught that water consists of the gases hydrogen and oxygen, or sugar of carbon, hydrogen and oxygen. Anyone who doesn’t understand is stupid. The most important questions are concealed (CV, p. 71e). 32 answers carefully: “There are countless general empirical propositions that count as certain