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07/10/2019 Notícias do fim do mundo - Revista de História
https://web.archive.org/web/20160413124355/http://rhbn.com.br/secao/capa/noticias-do-fim-do-mundo 1/3
Notícias do fim do mundo
Canudos foi um evento de mídia global, com ampla cobertura em jornais
europeus. Leitores ingleses souberam do fim do conflito antes dos brasileiros
Berthold Zilly
1/12/2014  
Se a Guerra de Canudos teve, como todas as guerras, traços arcaicos e bárbaros, ela também foi
extremamente moderna. Não apenas pelo emprego de avançada tecnologia militar, mas enquanto
guerra psicológica, orquestrada por ferrenha produção propagandística na imprensa brasileira. E
também na internacional.O telégrafo instalado pelo exército entre as vilas de Queimadas, estação
ferroviária mais próxima do teatro de guerra, e Monte Santo, base de operação das forças legais, a 70
km de Canudos, permitia a transmissao rápida de notícias para o país e para o mundo, mas também a
censura e as restrições ao trabalho dos correspondentes de guerra: só os bem-comportados podiam se
servir desse moderno e rápido meio de comunicação.
 
Tudo isso é conhecido. Surpreendente é saber que aquela guerra no distante sertão brasileiro, quase
fora da civilização, teve cobertura mundial. Durante meses as vicissitudes da quarta expedição
estiveram presentes na grande imprensa das Américas e da Europa, com mil detalhes, fatos, mentiras e
boatos, que as representações diplomáticas do Brasil tentavam manipular. As notícias saíam do sertão
para as redações de Salvador, São Paulo e principalmente Rio de Janeiro, eram transmitidas para as
agências noticiosas de Londres e só então seguiam para as redações de Berlim ou Paris, passando às
vezes por Nova York, Lisboa e Buenos Aires.  
 
O interesse da Europa por Canudos torna-se constante a partir da derrota da terceira expedição,
comandada pelo coronel Moreira César, em 3 de março de 1897, e vai até a vitória final do exército,
em 5 de outubro. Durante esses sete meses, o Vossische Zeitung, grande diário liberal berlinense,
publica 16 artigos ou notas dedicados à guerra brasileira, e sete ganham a primeira página. No mesmo
período, The Times, de Londres, produz 15 artigos direta ou indiretamente relacionados a Canudos.
Enquanto isso, em Paris, o Le Temps traz 22 matérias sobre o tema.
 
No Brasil, alguns poucos letrados indignaram-se diante do modo pouco civilizado com que a civilização
era imposta aos sertanejos, crítica que ganharia expressão de acusação e protesto com Euclides da
Cunha no livro Os Sertões (1902), mas que não teve repercussão na imprensa europeia da época. Esta
refletia a visão das elites do Brasil, embora deixasse transparecer também algum respeito pela
combatividade dos sertanejos. Em princípio, os três jornais europeus não contestam as afirmações e as
metas do governo, torcendo claramente pela vitória das armas legais. As únicas críticas referem-se aos
comunicados precipitados de vitória, aos erros de estratégia militar e às suspeitas de corrupção contra
o alto comando da quarta expedição. A principal fonte dessas objeções era o carioca Jornal do
Commercio, conhecido por seu ceticismo para com os republicanos extremistas e no qual escreveu, por
curto período, um dos poucos correspondentes críticos em relação ao exército, Manuel Benício,
obrigado pelo alto comando a abandonar o teatro de guerra em julho de 1897.
 
Tratar Canudos como uma insurreição era facilitado pelo fato de as palavras messias, fanático,
insurgente e rebelde serem facilmente traduzíveis. Mais complicado era explicar outro conceito-chave
da imprensa brasileira, o calunioso jagunço, descartado pelos europeus. Ainda assim os conselheiristas
eram desqualificados com expressões incriminadoras, como “salteadores” e “ladrões de gado”. Porém,
na escrita relativamente sóbria desses jornais, não  havia espaço para cobrir o exército com um manto
de heroísmo.
 
07/10/2019 Notícias do fim do mundo - Revista de História
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Se fossem deixados em paz, talvez os conselheiristas não se tornassem tão perigosos. Esta inteligente
observação sobre o caráter defensivo do movimento aparece no jornal alemão e no londrino, que
retoma a mesma ideia várias vezes depois. O Times mantém-se em descrença em relação à suposta
conspiração monarquista, posição nem sempre partilhada pelos outros jornais, que parecem mais
próximos do governo brasileiro. Em março, o Vossische Zeitung traduziu um artigo quase inteiro do
Times mas omitiu dois importantes elementos: o empastelamento de jornais monarquistas no Rio e a
avaliação do correspondente de que o apoio dos monarquistas ao Conselheiro carecia de evidências. 
 
Em abril, o jornal berlinense tenta explicar a espantosa derrota da expedição Moreira César sem
criticar demais o seu comandante, reduzindo seus erros à subestimação do número de inimigos. O
artigo exagera a quantidade de combatentes canudenses e de soldados mortos, tendência geral dos
jornais brasileiros e europeus. Enquanto no primeiro artigo os inimigos figuravam apenas como
fanáticos, no seguinte eles são chamados de rebeldes e insurgentes. A legitimidade de uma guerra
contra meros desgarrados mentais e ideológicos pode ser posta em dúvida, mas contra insurgentes não
há como hesitar, pois subvertem a ordem estabelecida, ameaçam a vida e as propriedades. O artigo
evoca o perigo, na realidade nunca existente, das capitais do litoral serem invadidas pelos seguidores
do Conselheiro, preocupação espalhada por alguns jornais brasileiros. 
 
O maior artigo publicado sobre Canudos fora do Brasil naquela época foi provavelmente o do Times de
12 de junho de 1897. Em carta, seu correspondente no Rio recorre a uma sintaxe elaborada e a um
raciocínio ora descritivo, ora analítico, para situar a guerra no contexto político e econômico nacional.
Atenua as alegadas superstições dos sertanejos e refuta a tese de Canudos ser uma revolução dirigida
contra o governo. Se ele é perigoso, isso se deve à repressão – mas agora que esta começou, tem que
ser levada até o fim. O correspondente mostra-se preocupado com o endividamento do Brasil, agravado
pelas altíssimas despesas com a guerra, o que prejudica, portanto, o crédito internacional do país.
 
O grande assalto fracassado do exército, em 18 de julho, passa quase despercebido pela imprensa
estrangeira, pois, devido à censura, nem os jornais brasileiros souberam explicar o que ocorreu
naquele dia. Artigo do Vossische Zeitung de 10 de agosto levanta pela primeira vez a tese do
comunismo como princípio de organização igualitária de Canudos, elogiando sua disciplina interna. Na
primeira página de 8 de outubro, o jornal alemão noticia a tomada de Canudos em longo artigo com um
balanço da guerra, mas recai em erros aparentemente já superados, como a tese da conjuração
monarquista – útil talvez para explicar a longa duração do conflito e o desempenho decepcionante do
exército. Os leitores alemães são informados do fim da guerra quase tão rápida e amplamente quanto
os brasileiros. Já os londrinos souberam da tomada de Canudos no dia anterior, 7 de outubro, algumas
horas antes dos brasileiros devido à diferença de fuso horário.
 
O Vossische Zeitung ainda ignorava, porém, a total destruição do arraial. Supunha a sobrevivência de
Canudos como cidade e Antônio Conselheiro mais tarde perante um tribunal. As matanças sumárias e o
extermínio a ferro e fogo de toda uma comunidade não entram na imaginação do redator alemão. A
biografia resumida do Conselheiro dá ênfase a seu papel de profeta, anacoreta (monges cristãos que
viviam solitariamente) e messias, juntamente com o de fanático, provavelmente uma tentativa de lidar
com um fenômeno social insólito inserindo-o na lógica do cristianismo. Chamar a guerra de conflito
entre brasileiros e fanáticos significa, implicitamente, excluir os canudenses da nação. Por outro lado,
enfocar a situação econômica como uma das causas da popularidade do Conselheiro é uma explicação
quase materialista, nãofrequente nos observadores brasileiros da época. A cena dos fanáticos
agarrando-se aos canhões atiçou a fantasia dos leitores, pois aparece em vários artigos e livros sobre a
guerra – é um topos, cena emblemática inspirada pelo romance Quatrevingt-treize, do francês Victor
Hugo (1874), relatada e ficcionalizada também por Euclides da Cunha. 
 
Entre os três artigos do Le Temps sobre a queda de Canudos, consta a observação verídica de que o fim
da guerra fora um  "massacre". Curioso é que o periódico mais citado por outros jornais, o The Times,
com correspondente próprio no Rio, pouco noticiou o fim da guerra, resumido apenas em notas nos dias
7 e 9 de outubro de 1897. O órgão central das elites europeias ficou devendo um balanço da guerra,
mas no geral sua cobertura foi a mais completa, ponderada e objetiva de todas, a mais confiável à luz
das pequisas modernas sobre Canudos.
 
07/10/2019 Notícias do fim do mundo - Revista de História
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Berthold Zilly é professor visitante da Univesidade Federal de Santa Catarina e tradutor de Os Sertões
para o alemão. 
 
Saiba mais:
 
BARTELT, Dawid. Sertão, República, Nação. Trad. de Johannes Kretschmer e Raquel Abi-Sâmara. São
Paulo: Edusp, 2009.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Campanha de Canudos. Org. de Leopoldo M. Bernucci. São Paulo:
Ateliê/ Imprensa Oficial do Estado, 2002.
CUNHA, Euclides da. Canudos. Diário de uma Expedição. Org. de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
GALVÃO, Walnice Nogueira.  No calor da Hora. A Guerra de Canudos nos jornais: 4a Expedição. São
Paulo: Ática, 1977.
ZILLY, Berthold. “Canudos telegrafado: a guerra do sertão como evento de mídia na Europa de 1897”.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 160, n. 405, p. 785-812. Rio de Janeiro:
IHGB, 1999.

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