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Beauvoir - Deve-se queimar Sade

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DEVE-SE QUEIMAR SADE?
FAUT-IL BRÛLER SADE?
Simone de Beauvoir
1955
Voluntarioso, colérico, arrebatado, extremado em tudo, de um desregramento de imaginação 
quanto aos costumes como igual nunca houve, ateu até o fanatismo, eis em duas palavras como eu 
sou; e repito: matem-me ou aceitem-me assim, porque eu jamais mudarei.
Eles escolheram matá-lo, primeiro a fogo lento no tédio dos calabouços, depois pela calúnia 
e pelo esquecimento; esta morte, ele próprio a desejara: Uma vez fechada a cova, plantem-lhe 
em cima bolotas, a fim de que com o tempo... desapareçam da face da terra os vestígios da minha 
sepultura, tal como eu espero que a minha memória se apagará da lembrança dos homens. Das suas 
últimas vontades esta foi a única respeitada, porém muito cautelosamente: a lembrança de Sade 
foi desfigurada por lendas estúpidas1; seu próprio nome se diluiu em palavras sombrias: sadismo, 
sádico; seus diários íntimos perderam-se, queimaram-se os manuscritos — os dez volumes das 
Journées de Florabelle por instigação do próprio filho — seus livros foram proibidos; embora, nos 
fins do século XIX, Swinburne e alguns curiosos se interessem pelo seu caso, só com Apollinaire lhe 
será dado um lugar nas letras francesas; ainda assim, está longe de tê-lo conquistado oficialmente: 
é possível folhear obras alentadas e minuciosas sobre “as Idéias do século XVIII”, mesmo sobre “a 
Sensibilidade do século XVIII”, sem nelas encontrar uma única vez o seu nome. Compreende-se 
que, em represália contra este silêncio escandaloso, os devotos de Sade fossem levados a saudar nele 
um genial profeta: sua obra anunciaria ao mesmo tempo Nietzsche, Stirner, Freud e o surrealismo; 
mas este culto, baseado como todos os cultos num equívoco, divinizando o “divino marquês” acaba, 
por seu turno, atraiçoando-o; quando desejaríamos compreendê-lo, prescrevem-nos adorá-lo. Os 
críticos que não fazem de Sade um monstro nem um ídolo, mas apenas um homem, um escritor, 
contam-se nos dedos da mão. Graças a eles, Sade voltou enfim à terra, para nosso meio. Mas onde 
se situa ele justamente? Em que merece o nosso interesse? Seus próprios admiradores reconhecem, 
de bom grado, que a sua obra é na maior parte ilegível; filosoficamente, só escapa à banalidade 
para afundar na incoerência. Quanto a seus vícios, tampouco espantam pela originalidade; nesse 
domínio Sade nada inventou e, nos tratados de psiquiatria, encontramos em profusão casos pelo 
menos tão estranhos quanto o dele. Na verdade, não é como autor nem como pervertido sexual 
que Sade se impõe à nossa atenção: é pela relação que criou entre estes dois aspectos de si mesmo. 
As anomalias de Sade adquirem valor desde o momento em que, em vez de suportá-las como 
� O velho Sade mandando que lhe trouxessem cestos de rosas, respirando-as voluptuosamente e mergulhando-as em 
seguida, com um riso sardônico, na lama dos regatos; os jornalistas de hoje ensinaram-nos como se fabrica esta espécie 
de histórias.
um dado temperamento, elabora um imenso sistema a fim de reivindicá-las; inversamente, seus 
livros prendem-nos desde que compreendamos que, através das suas repetições, dos seus clichês, 
das suas inépcias, ele tenta comunicar-nos uma experiência cuja particularidade reside, todavia, 
no fato de ela querer-se incomunicável. Sade tentou converter o seu destino psicofisiológico 
numa opção ética; e desse ato, pelo qual assumia esta separação, pretendeu fazer um exemplo e 
um apelo: é por esse lado que sua aventura se reveste de larga significação humana. Poderemos, 
sem renegar a nossa individualidade, satisfazer nossas aspirações à universalidade? Ou é apenas 
pelo sacrifício das nossas diferenças que poderemos integrar-nos na coletividade? Este problema 
interessa a todos nós. Em Sade, as diferenças são levadas até o escândalo, e a imensidão do seu 
trabalho literário mostra-nos com que paixão ele desejava ser aceito pela comunidade humana: o 
conflito, a que nenhum indivíduo escapa sem mentir a si próprio, encontramo-lo nele na forma 
mais extrema. É o paradoxo, e em certo sentido o triunfo de Sade, que, por haver-se obstinado nas 
suas singularidades, nos ajuda a definir o drama humano em sua generalidade.
Para compreender a evolução de Sade, para apreender nesta história a parte de sua liberdade, 
para avaliar seus êxitos e derrotas, seria útil conhecer exatamente os dados de sua situação. 
Infelizmente, apesar do zelo de seus biógrafos, a pessoa e a história de Sade permanecem obscuras 
em muitos pontos. Não possuímos dele nenhum retrato autêntico, e as descrições que a seu respeito 
nos deixaram seus contemporâneos são muito pobres. Os depoimentos do processo de Marselha 
revelam-no, aos trinta e dois anos, “de bela aparência, rosto cheio, estatura média, vestindo um 
fraque cinzento e calções de seda cor de maravilha, com uma pluma no chapéu, a espada na cinta 
e uma bengala na mão”. Ei-lo aos cinqüenta e três anos, de acordo com um atestado de residência 
datado de 7 de maio de 1793: “Altura de cinco pés e duas polegadas, cabelo quase branco, rosto 
redondo, fronte descoberta, olhos azuis, nariz comum, queixo redondo”. Os sinais de 23 de março 
de 1794 são um pouco diferentes: “Altura de cinco pés, duas polegadas e uma linha, nariz médio, 
boca pequena, queixo redondo, cabelos loiro-acinzentados, rosto oval, fronte descoberta e alta, 
olhos azul-claros”. Perdera, então a sua “bela aparência”, tanto que escrevia alguns anos antes da 
Bastilha: Adquiri, por falta de exercício, uma corpulência tão grande que mal me posso mexer. É esta 
corpulência que começa por impressionar Charles Nodier quando encontra Sade, em 1807, em 
Sainte-Pélagie: “Uma obesidade enorme, que lhe embaraça os movimentos, impedia-o de mostrar 
um resto de graça e elegância de que se surpreendiam vestígios no conjunto das suas maneiras. Os 
olhos cansados conservavam, todavia, algo de brilhante e febril, reanimando-se de vez em quando, 
como a fagulha expirante de uma brasa extinta”. Estes testemunhos, os únicos que possuímos, mal 
nos permitem evocar um rosto singular; houve quem dissesse2 que a descrição de Nodier lembra 
Oscar Wilde envelhecido; mas também sugere Montesquieu, Maurice Sachs, lembrando em Sade 
qualquer coisa de Charlus; de qualquer modo é indício muito frágil. O mais lamentável ainda é 
que estejamos tão mal informados acerca de sua infância. Se tomarmos o relato de Valcour por 
um esboço de autobiografia, Sade teria conhecido desde cedo o ressentimento e a violência; criado 
junto de Louis-Joseph de Bourbon, que tinha justamente a sua idade, parece que se defendeu 
da arrogância egoísta do pequeno príncipe com fúrias e pancadas tão brutais que se tornou 
necessário afastá-lo da corte. Não assiste dúvida de que sua estada no triste castelo de Saumane e na 
� Desbordes: Le Vrai Visage du marquis de Sade.
decadente abadia de Ébreuil lhe haja marcado a imaginação; mas, a respeito dos seus curtos anos 
de estudo, da passagem pelo exército, da sua vida de gentil mundano e libertino nada sabemos de 
significativo. Podemos tentar inferi-lo da sua obra para a sua vida, como, aliás, fez Klossowski, 
que vê, no ódio votado por Sade à mãe, a chave dessa vida e dessa obra; mas ele induziu esta 
hipótese do papel representado pela mãe nos escritos de Sade; limitou-se a descrever sob certo 
ângulo o mundo imaginário do marquês; não nos revelou as suas raízes no mundo real. De fato, 
é a priori, segundo esquemas gerais, que suspeitamos a importância das relações de Sade com o 
pai e com a mãe; em seu pormenor específico, elas nos escapam. Quando começamos a descobrir 
Sade, ele já é homem feito e não sabemos como se tornou o que é. Semelhante ignorância impede-
nos de apreciar suas tendências e atitudes espontâneas; a natureza da sua afetividade, os aspectos 
singulares da sua sexualidade surgem-nos como dados que simplesmente nos cumpre constatar. 
Desta deplorável lacuna resulta que a intimidadede Sade nos escapará sempre; toda explicação 
deixará atrás de si um resíduo que apenas sua história infantil poderia esclarecer. Contudo, esses 
limites impostos à nossa compreensão não devem desanimar-nos, porque Sade, como dissemos, 
não se cingiu a sofrer passivamente as conseqüências de suas primitivas opções; o que nele nos 
interessa, muito mais do que suas anomalias, é a maneira como as assumiu. De sua sexualidade 
ele fez uma ética, e manifestou essa ética em uma obra literária; é por este movimento refletido 
da sua vida de adulto que Sade conquistou verdadeira originalidade. A razão dos seus gostos nos 
permanece obscura, mas é-nos possível perceber como converteu esses gostos em princípios e 
por que os afirmou até o fanatismo.
Superficialmente, aos vinte e três anos, Sade assemelha-se a qualquer dos filhos-família de seu 
tempo; instruído, aprecia o teatro, as artes, a leitura; perdulário, mantém uma amante, a Beauvoisin, 
e freqüenta as casas de rendez-vous; casa-se sem entusiasmo, de acordo com a vontade paterna, com 
uma jovem da pequena nobreza, porém rica, Renée-Pélagie de Montreuil. Nessa altura eclode o 
drama que repercutirá — e se repetirá durante toda a sua vida: casado em maio, é preso em outubro 
por excessos cometidos numa casa que visitava desde o mês de junho; os motivos dessa prisão são 
bastante graves para que Sade dirija ao governador do presídio cartas desvairadas, suplicando 
que sejam mantidos em segredo, do contrário, diz ele, estará irremediavelmente perdido. Este 
episódio nos faz pressentir que o erotismo de Sade já apresentava um caráter inquietador; hipótese 
confirmada um ano mais tarde, quando o inspetor Marais adverte as cafetinas para que não mais 
cedam mulheres ao marquês. Porém, o seu interesse reside menos nas informações que nos 
propicia do que na revelação que constituiu para o próprio Sade: no início de sua vida de adulto, 
ele descobre brutalmente que entre sua existência social e os prazeres individuais é impossível uma 
conciliação.
O jovem Sade nada tem de revolucionário, sequer de revoltado; está perfeitamente disposto 
a aceitar a sociedade como ela é; obediente ao pai3, a ponto de receber dele, aos vinte e três anos, 
uma esposa que lhe desagrada, não encara outro destino além do que hereditariamente lhe está 
indicado: será marido, pai, marquês, capitão, castelão, tenente-general; não deseja absolutamente 
renunciar aos privilégios que sua condição e a fortuna da esposa lhe garantem. Contudo, isso 
� Klossowski admira-se de que Sade lhe não manifeste nenhum rancor; mas Sade não detesta espontaneamente a auto-
ridade; admite que um indivíduo use e abuse de seus direitos. Herdeiro dos bens paternos, apenas começa por se opor à 
sociedade num plano individual e afetivo, através das mulheres: esposa e sogra.
não mais o satisfaria; oferecem-lhe ocupações, cargos, honras, mas nenhum empreendimento, 
nada que interesse, que divirta, que agite; não quer ser apenas o personagem público cujas 
atitudes todas são comandadas pelas convenções e pela rotina, mas também um indivíduo vivo 
e, se há um lugar onde este possa afirmar-se, não é o leito onde o acolhe fatalmente uma esposa 
virtuosa, mas a casa escusa onde compra o direito de desencadear seus sonhos. Um desses sonhos 
é comum à maioria dos jovens aristocratas desse tempo; rebentos de uma classe decadente, que 
ainda não há muito detinha um poder concreto, mas que não mais possui qualquer influência real 
sobre o mundo, tentam ressuscitar simbolicamente, no segredo das alcovas, a condição de que 
conservam a nostalgia, a do déspota feudal solitário e soberano; as orgias do Duque de Charolais, 
entre outras, eram famosas e sanguinolentas, e é dessa ilusão de soberania que Sade, por sua 
vez, tem sede. O que se deseja quando se goza? Que tudo o que nos cerca apenas se ocupa de nós, 
pense em nós, se interesse apenas por nós... não há homem que não queira ser déspota quando... A 
embriaguez da tirania leva imediatamente à crueldade, porque o libertino, molestando o objeto 
de que se serve, experimenta todos os encantos que um indivíduo nervoso prova ao fazer uso das 
suas forças; domina, é tirano.
Na realidade, é uma proeza bem mesquinha chicotear, mediante retribuição ajustada, 
algumas mulheres; e que Sade atribua a isso tamanha importância é um fato que o põe desde 
logo em pauta. Surpreende que fora das paredes de sua “pequena casa” ele não pense de forma 
nenhuma em fazer uso das suas forças; não se lhe percebe nenhuma ambição, nenhum espírito de 
iniciativa, qualquer vontade de poder e não estou mesmo longe de imaginá-lo covarde. Não há 
dúvida de que ele sistematicamente imputa aos seus heróis todas as características que a sociedade 
considera como taras; mas descreveu Blangis com tal complacência que nos assiste o direito de 
supor que se tenha projetado neste, e tais palavras adquirem o tom direto de uma confissão: Um 
menino decidido teria assustado aquele colosso... mostrava-se tímido e covarde, e a idéia da luta 
menos perigosa, mas em igualdade de forças, levá-lo-ia a fugir até o fim da terra. Que Sade, ora por 
estouvamento, ora por generosidade, tenha sido capaz de extravagantes audácias, não contradiz 
a hipótese de uma timidez medrosa em relação aos seus semelhantes, e mais geralmente diante 
da realidade do mundo. Se fala tanto na fortaleza de alma, não é que a possua mas porque a 
inveja: na adversidade, lastima-se, agita-se, desnorteia-se. O temor à falta do dinheiro, que 
incessantemente o persegue, traduz uma inquietação mais difusa: ele desconfia de tudo e de 
todos porque se sente inadaptado. E o é: comporta-se desordenadamente, acumula dívidas, 
exalta-se despropositadamente, foge ou rende-se sem critério; cai em todas as armadilhas. Passa 
a desinteressar-se desse mundo a um tempo aborrecido e ameaçador que nada lhe propõe de 
válido e ao qual pede demais; irá buscar, alhures, a sua verdade. Quando escreve que a paixão do 
gozo subordina e reúne ao mesmo tempo todas as outras, dá-nos exata descrição de sua própria 
experiência; subordinou a sua existência ao seu erotismo porque este se lhe afigurou a única 
realização possível desta existência; se ele se lhe devota com tal ímpeto, imprudência e obstinação, 
é porque concede maior importância às histórias que através do ato voluptuoso ele próprio se 
relata do que aos acontecimentos contingentes: escolheu o imaginário.
Decerto, começou por julgar-se seguro em seus paraísos quiméricos que um compartimento 
estanque parecia separar do universo do sério. E talvez não houvesse estourado nenhum escândalo, 
não passasse de um devasso comum, conhecido nos locais especializados pelos gostos um tanto 
especiosos; nessa época, havia muitos libertinos que se entregavam às piores orgias, impunemente; 
mas parece-me que no caso de Sade o escândalo era fatal; há certos “pervertidos sexuais” aos 
quais se aplica exatamente o mito de Mr. Hyde e do Doutor Jekyll; esperam, de início, satisfazer 
os “vícios” sem comprometer seu personagem oficial; mas, caso sejam bastante imaginativos para 
pensar-se, acabam desmascarando-se por uma vertigem em que se misturam vergonha e orgulho: 
por exemplo, Charlus, apesar dos seus ardis e pelos seus próprios ardis. Em que medida houve 
provocação na imprudência de Sade? É impossível dizê-lo. Sem dúvida, quis afirmar a radical 
separação entre sua vida familiar e seus prazeres privados; e, decerto, não podia contentar-se com 
esse triunfo clandestino senão levando-o ao ponto-limite onde ele ultrapassava a clandestinidade. 
Sua surpresa se assemelha a de uma criança que bate num vaso até quebrá-lo. Brincando com 
o perigo, julgava-se ainda soberano; mas a sociedade espreitava-o; ela recusa qualquer partilha, 
reclama cada indivíduo sem reserva, e não tardou a apoderar-se do segredo de Sade e a integrá-lo 
na figura do crime.
Sade começou reagindo por súplicas, humildade e vergonha; pediu quelhe permitissem 
rever a esposa, acusando-se de tê-la ofendido gravemente; solicita um confessor e abre-lhe a 
alma. Isto não é pura hipocrisia; de um dia para outro operou-se uma terrível metamorfose: 
comportamentos naturais, inocentes, que até então não passavam de fontes de prazer, ei-los 
convertidos em atos puníveis, e o moço gentil transformou-se em cão sarnento. É provável 
que ele tivesse conhecido desde a infância — talvez através das suas relações com a mãe — o 
odioso dilaceramento do remorso; porém o escândalo de 1763 reaviva-o de maneira dramática: 
Sade pressente que doravante será um criminoso para o resto da vida. Pois atribui demasiado 
valor às suas diversões para encarar, por um instante sequer, a possibilidade de renunciar a elas, 
e não tardará a libertar-se da vergonha pelo desafio. É notável que o primeiro dos seus atos 
deliberadamente escandalosos se situe logo após a detenção: a Beauvoisin acompanha-o ao 
palácio de La Coste, e sob o nome de Mme de Sade dança e representa diante de toda a nobreza 
provençal, enquanto o capelão do marquês se vê constrangido a uma tácita cumplicidade. A 
sociedade negou-lhe qualquer liberdade clandestina, pretendeu socializar o seu erotismo: 
inversamente, a vida social do marquês desenrolar-se-á doravante num plano erótico. Visto não 
ser possível separar tranqüilamente o mal do bem, para se entregar alternativamente a um e a 
outro, é em face do bem e mesmo em função dele que cumpre reivindicar o mal. Que a sua atitude 
ulterior tem suas raízes no ressentimento, Sade no-lo confiou em várias oportunidades: Há almas 
que parecem endurecidas à força de serem suscetíveis de emoções e que vão às vezes demasiado 
longe: o que nelas tomamos por indiferença e crueldade não passa de um modo só delas conhecido 
de sentir mais vivamente que as outras4. E Dolmancé5 imputa seus vícios à maldade dos homens: 
Foi a ingratidão deles que secou meu coração, sua perfídia que destruiu em mim as virtudes funestas 
para as quais eu talvez tivesse nascido como vós... A moral demoníaca, que mais tarde ele erigirá 
em teoria, é inicialmente para Sade uma experiência vivida.
Foi através de Renée-Pélagie que Sade conheceu toda a sensaboria da virtude e o seu tédio: 
ele os confunde numa aversão que só um ser de carne e osso pode suscitar; mas o que também 
� Aline et Valcour.
� La philosophie dans le boudoir.
aprende de Renée com delícia, é que, sob a sua figura concreta, carnal, individual, o bem pode 
ser vencido em combate singular; a esposa não é para ele uma inimiga, mas, como todos os 
personagens de esposas que ela lhe inspirou, uma vítima de eleição: a que se deseja cúmplice. 
As relações de Blamont com a esposa refletem sem dúvida com bastante exatidão as de Sade 
com a marquesa; Blamont se compraz em acariciar a esposa no instante em que trama contra 
ela as mais negras maquinações; infligir um gozo — Sade compreendeu-o cento e cinqüenta 
anos antes dos psicanalistas, e são numerosas em sua obra as vítimas submetidas ao prazer 
antes de torturadas — pode ser uma violência tirânica, e o carrasco disfarçado em amante 
encanta-se com ver a apaixonada crédula, desfalecida de voluptuosidade e gratidão, confundir 
a maldade com a ternura. Unir alegrias tão sutis à realização de um dever social foi, decerto, 
o que animou Sade a dar três filhos à esposa. Mas obteve ainda outras vantagens: a virtude 
tornou-se aliada do vício e sua escrava. Durante anos, Mme de Sade acobertou as culpas do 
marido, ajudou-o corajosamente a fugir de Miolans, favoreceu o caso da irmã com o marquês 
e depois as orgias do castelo de La Coste; chegou a tornar-se ela própria criminosa quando, 
para anular as acusações de Nanon, escondeu talheres de prata em sua bagagem. Sade nunca 
lhe manifestou qualquer reconhecimento, e a idéia de gratidão é uma das que ele enterra mais 
obstinadamente; sem dúvida, experimentava por ela essa amizade ambígua que todo déspota 
dedica ao que é incondicionalmente seu. Graças a ela, não só pôde reconciliar o papel de 
marido, pai e fidalgo com seus prazeres, como ainda estabeleceu a irrecusável superioridade do 
vício sobre a bondade, a dedicação, a fidelidade e a decência, e ridicularizou maravilhosamente 
a sociedade, submetendo a instituição do casamento e todas as virtudes conjugais aos caprichos 
de sua imaginação e de seus sentidos. Se Renée-Pélagie é o êxito mais triunfante da Sade, Mme 
de Montreuil resume a sua derrota; ela encarna a justiça abstrata e universal contra a qual 
o indivíduo se despedaça; é contra ela que o marquês reclama mais acerbamente a aliança 
da esposa: ganhando o processo aos olhos da virtude, a lei perde muito do seu poder; pois 
suas armas mais temíveis não são a prisão e o cadafalso, mas o veneno com que infecta os 
corações vulneráveis. Sob a influência da mãe, Renée perturba-se; a jovem freira assusta-se; 
a sociedade hostil insinua-se no lar de Sade, arruína-lhe os prazeres, ele mesmo sofre sua 
influência; apostrofado, amaldiçoado, duvida de si; e aqui está o supremo crime cometido por 
Mme de Montreuil contra ele: um culpado é primeiramente um acusado; foi ela que fez de 
Sade um criminoso. Eis por que através dos seus livros nunca mais deixará de ridicularizá-la, 
de aviltá-la, de torturá-la; nela ele assassina suas próprias culpas. É possível que a hipótese de 
Klossowski tenha fundamento e que Sade tenha abominado a própria mãe: assim o sugere a 
natureza singular da sua sexualidade; mas essa inimizade talvez não permanecesse tão viva se 
a mãe de Renée lhe não houvesse tornado odiosa a maternidade; e, para falar a verdade, ela 
representou na existência do genro um papel assaz importante e atroz para permitir supor que 
dirigia esse ódio tão-somente contra ela. É de qualquer modo a ela que a filha brutalmente 
injuria nas últimas páginas da Philosophie dans le boudoir.
Se Sade foi finalmente vencido pela sogra e pela lei, tornou-se cúmplice dessa derrota. 
Qualquer que fosse a parte do acaso e a da sua imprudência no escândalo de 1763, o certo é 
que daí por diante ele buscou no perigo a exaltação dos seus prazeres; neste sentido, pode-
se dizer que desejou as perseguições, embora suportadas com indignação. Era brincar com o 
fogo escolher o domingo de Páscoa para atrair à sua casa de Arcueil a mendiga Rose Keller; 
chicoteada, aterrorizada, mal presa, ela fugiu nua, provocando um escândalo que Sade teve de 
pagar, com duas breves detenções.
Durante os três anos de exílio — entremeados de alguns períodos de serviço — que ele 
passou então nas suas terras de Provença, pareceu ajuizado; desempenhou conscienciosamente 
o papel de castelão e de marido: dá dois filhos à esposa, recebe a homenagem da comunidade de 
Saumane, cuida do seu parque, lê, faz representar comédias no seu teatro, uma das quais de sua 
autoria; todavia é mal recompensado por esta vida edificante: em 1771 prendem-no por dívidas. 
Solto, arrefece o zelo virtuoso; seduz a jovem cunhada, por quem parece ter tido, durante curto 
lapso de tempo, uma inclinação bastante sincera: professa, virgem, irmã de sua esposa, todos 
esses títulos emprestam à aventura um sabor picante. Apesar disso, vai procurar em Marselha 
outras distrações, e em 1772 “o caso dos bombons cantaridados” assume proporções imprevistas 
e terrificantes; enquanto foge para a Itália com a cunhada, é condenado a morte por contumácia, 
bem como seu criado Latour, e ambos são queimados em efígie na Praça de Aix. A jovem 
refugia-se num convento na França, onde acabará seus dias; ele enterra-se na Sabóia; apanhado 
e encarcerado na prisão de Miolans, a esposa ajuda-o a fugir mas, desde então, é um homem 
acuado. Quer percorrendo as estradas da Itália, quer escondido em seu solar, compenetra-se 
de que nunca mais lhe será permitida uma existência normal. De vez em quando, leva a sério 
seu papel senhorial; como um grupo de comediantes se instalasse nas suas propriedades paranelas representar O marido corno, espancado e satisfeito, irritado talvez por esse título, manda 
rasgar todos os cartazes por “escandalosos e atentatórios às liberdades da Igreja”; expulsa do seu 
domínio um certo Saint-Denis — contra o qual alimentava agravos — declarando: “Tenho direito 
de expulsar de minhas terras as pessoas que não têm eira nem beira”. Estes lances de autoridade 
não bastam para distraí-lo; tenta realizar o sonho que obsedará seus livros: na solidão do castelo 
de La Coste, instala um serralho dócil aos seus caprichos; com a cumplicidade da marquesa, reúne 
ali diversos criados bonitos, um secretário iletrado, mas de presença agradável, uma cozinheira 
e uma criada de quarto apetitosas, além de duas moçinhas fornecidas por cafetinas. Porém, o 
castelo de La Coste não é a inacessível fortaleza das Cent vingt lournées; a sociedade espreita-o. 
As moçinhas fogem, a camareira retira-se para dar à luz um filho cuja paternidade atribui ao 
marquês, o pai da cozinheira alveja Sade com um tiro de pistola, o lindo secretário é reclamado 
pelos pais. Só Renée-Pélagie se conforma exatamente com o papel que lhe consignou o marido; 
todos os demais reivindicam suas próprias existências e Sade compreende mais uma vez que lhe 
não é possível fazer desse mundo demasiado real o seu teatro.
Esse mundo não se limita a frustrar-lhe os sonhos: repudia-o. Sade foge para a Itália, porém 
Mme de Montreuil, que lhe não perdoa a sedução da filha mais nova, espreita-o; voltando à 
França, arrisca-se a ir a Paris, e a dama aproveita a ocasião para fazê-lo encarcerar no castelo de 
Vincennes em 13 de fevereiro de 1777. De volta a Aix, após o julgamento, refugia-se em La Coste 
onde ensaia, sob o olhar resignado da esposa, um idílio com Mlle Rousset, sua governanta. Mas a 
7 de novembro de 1778 está de novo em Vincennes, enjaulado, como uma fera, atrás de dezenove 
portas de ferro.
Começa então outra história; durante onze anos de cativeiro — primeiro em Vincennes, 
depois na Bastilha — agoniza um homem e nasce um escritor. O homem é logo quebrantado; 
reduzido à impotência, ignorando quanto tempo vai durar sua detenção, seu espírito extravia-se 
em delírios interpretativos: por meio de cálculos minuciosos, sem base em qualquer dado, tenta 
adivinhar qual será o termo do seu cativeiro. Intelectualmente refaz-se depressa, como prova sua 
correspondência com Mme de Sade e com Mlle Rousset. Mas a sua carne abdica; ele procura nos 
prazeres da mesa uma compensação para o jejum sexual; conta o seu criado Carteron que na 
prisão “fumava cachimbo como um corsário” e “comia por quatro”. Exagerado em tudo, segundo 
a sua própria confissão, torna-se bulímico; manda vir pela esposa enormes cestos de alimento e 
a gordura apodera-se dele. Em meio às suas queixas, acusações, justificações e súplicas, diverte-
se ainda um pouco a torturar a marquesa: finge-se ciumento, atribui-lhe negras maquinações, e 
quando ela o visita censura-lhe as vestimentas, exige-lhe aparência mais austera. Todavia, essas 
distrações são raras e muito tênues. A partir de 1782 é só à literatura que vai pedir o que a vida 
não mais lhe concede: a agitação, o desafio, a sinceridade e todas as alegrias da imaginação. E 
mesmo nisso, é exagerado: escreve do mesmo modo que come, com frenesi. Ao Diálogo entre um 
padre e um moribundo sucedem-se as Cent vingt Journées de Sodome, os lnfortunes de la vertu, 
Aline et Valcour. Segundo o catálogo de 1788, teria escrito então trinta e cinco atos de teatro, meia 
dúzia de contos, a quase totalidade de Portefeuille d’un homme de lettres; e sem dúvida a lista não 
está completa.
Quando recobra a liberdade, na sexta-feira santa do ano de 1790, Sade pode esperar, e espera, 
que uma nova era se abra para ele. A esposa reclama a separação; os filhos — um dos quais se 
prepara para emigrar e outro é cavaleiro de Malta — são-lhe estranhos, o mesmo sucedendo com 
a “rude camponesa” que tem por filha. Liberto da família procurará integrar-se, ele a quem a 
antiga sociedade tratara como pária, naquela que acaba de lhe devolver a dignidade de cidadão. 
Representam-se publicamente as suas peças, Oxtiern obtém mesmo grande êxito. Inscrito na 
Section des Piques, é nomeado seu presidente e redige com entusiasmo mensagens e petições. 
Mas seu idílio com a Revolução dura pouco. Sade conta cinqüenta anos, um passado que o torna 
suspeito, um temperamento de aristocrata que seu ódio à aristocracia não abrandou; e ei-lo de 
novo dividido. É republicano, e teoricamente exige mesmo um socialismo integral e a abolição 
da propriedade: mas empenha-se em conservar seu solar e suas terras; esse mundo a que tenta 
adaptar-se é ainda um mundo demasiado real, cujas brutais resistências o ferem; e é um mundo 
redigido por essas leis universais que ele considera abstratas, falsas e injustas; quando em nome 
delas a sociedade se permite o assassínio, o marquês retira-se com horror. Compreende-o muito 
mal quem se admira de que, em vez de solicitar um posto de comissário do povo na província, que 
lhe permitiria torturar e matar, ele se tenha desacreditado pelo humanismo; supor-se que “amava 
o sangue” como se ama a montanha e o mar? “Derramar sangue” era um ato cuja significação 
podia, em certas circunstâncias, ser para ele motivo de exaltação; mas o que, sobretudo, pedia à 
crueldade era que ela lhe revelasse como consciência e liberdade, ao mesmo tempo em que como 
carne, indivíduos singulares e sua própria existência; julgar, condenar, ver morrer a distância 
pessoas anônimas, a isso se recusa. O que ele mais odiou na velha sociedade foi a pretensão desta, 
e da qual ele foi vítima, de julgar e punir: de modo algum poderia desculpar o Terror. Quando o 
homicídio se torna constitucional, passa a ser apenas a odiosa expressão de princípios abstratos: 
torna-se desumano. Eis por que, nomeado membro do júri de acusação, Sade engendra quase 
sempre desculpas em favor dos réus; recusou-se a prejudicar em nome da lei Mme de Montreuil 
e sua família quando a sorte de todos estava em suas mãos; foi mesmo obrigado a demitir-se da 
função de presidente da Section des Piques; escreveu a Gaufridy: Julguei-me compelido a passar a 
cadeira ao meu vice-presidente; eles queriam que eu cometesse um horror, uma desumanidade: nunca 
assenti. Em dezembro de 1793 foi encarcerado sob a acusação de “moderantismo”; solto trezentos e 
setenta e cinco dias depois, escreve com tédio: Minha detenção nacional, com a guilhotina debaixo 
dos olhos, fez-me cem vezes mais mal do que teriam feito todas as bastilhas imagináveis. É que, com 
essas grosseiras hecatombes, a política demonstra com excessiva evidência considerar os homens 
uma simples coleção de objetos, ao passo que Sade exige, ao redor de si, um universo povoado de 
seres singulares; o “mal” de que ele fizera seu refúgio desvanece-se quando o crime é reivindicado 
pela virtude; o Terror, que é exercido em sã consciência, constitui a mais radical negação do mundo 
demoníaco de Sade.
“O excesso de Terror embotou o crime”, escreveu Saint-Just. Não é apenas porque Sade está 
velho, gasto, que sua sexualidade adormeceu; a guilhotina assassinou a negra poesia do erotismo; 
para deleitar-se em humilhar a carne, exaltá-la, era preciso valorizá-la; ela não tem mais sentido 
nem valor quando os homens podem ser tranqüilamente tratados como coisas; Sade ainda saberá 
ressuscitar em seus livros a experiência passada; e reavivar seu antigo universo; porém não mais 
acredita nele em seu sangue e em seus nervos. Nada há de físico na ligação que o prende àquela a 
quem chama Sensible. Seus únicos prazeres eróticos, tira-os da contemplação de pinturas obscenas 
inspiradas em Justine com que ornamenta um gabinete secreto; recorda-se; mostra-se, porém, 
incapaz de qualquer arrebatamento e o simples encargo de viver acabrunha-o; liberto dos quadros 
sociais e familiares em que sufocava, mas cuja sólida moldura lhe eranecessária, arrasta-se da 
miséria para a doença; vendidos com prejuízos os bens de La Coste, depressa lhes devorou o 
produto; refugiado em casa de um rendeiro, e depois num celeiro com o filho de Sensible, ganhando 
quarenta soldos por dia como empregado no espetáculo de Versalhes, o decreto de 28 de junho de 
1799 que proíbe riscá-lo da lista dos emigrados onde ele fora inscrito quando nobre, arranca-lhe 
estas palavras desesperadas: A morte e a miséria, eis a recompensa que obtenho pelo meu intransigente 
apego à República. Recebe, entretanto, um certificado de residência e de civismo, e em dezembro 
de 1799 representa em Oxtiern o papel de Fabrício, mas já no começo de 1800 está no hospital 
de Versalhes, “morrendo de fome e de frio” e ameaçado de prisão por dívidas. É tão desgraçado 
no mundo hostil dos assim chamados livres, que seria lícito perguntar se ele não preferiu voltar à 
solidão e à segurança da prisão; podemos pelo menos dizer que, para ter a imprudência de fazer 
circular Justine, e a loucura de publicar Zoloé onde ataca Josefina, Mme Tallien, Tallien, Barras e 
Bonaparte, era necessário que a idéia de uma nova reclusão lhe não repugnasse demais. Secreto ou 
confesso, seu desejo é satisfeito; ei-lo em 5 de abril de 1801 encarcerado em Sainte-Pélagie, e é aí, e 
depois em Charenton — onde o acompanhará Mme de Quesnet que consegue um quarto próximo 
do seu, fazendo-se passar por sua filha — que terminará os seus dias.
Naturalmente, tão logo é preso e durante anos, Sade protesta e agita-se; mas ao menos pode 
dedicar-se outra vez e com displicência à paixão que substituiu nele a do gozo: escrever. Nunca 
parou. Ao sair da Bastilha a maior parte dos seus papéis perdeu-se, e ele julgou destruído o 
manuscrito das Journées de Sodome — um rolo de doze metros que escondera cuidadosamente e 
foi salvo, sem que ele o soubesse. Depois da Philosophie dans le boudoir, escrita em 1795, compôs 
nova súmula: a versão inteiramente desenvolvida e modificada de Justine, seguida de Juliette, 
que apareceu, renegada por ele, em 1797; publicamente mandou editar os Crimes de l’Amour. 
Em Sainte-Pélagie absorve-se numa obra imensa em dez volumes: Les Journées de Florabelle ou 
la Nature dévoilée; e cumpre atribuir-lhe também, embora o livro não tenha aparecido com seu 
nome, os dois volumes de La marquise de Canges.
É sem dúvida porque, daí em diante, o sentido existência reside definitivamente no seu 
trabalho de escritor, que Sade, em sua vida quotidiana, apenas deseja a paz. Passeia com Sensible 
nos jardins do asilo, escreve e promove a representação de comédias para os doentes: aceita compor 
um improviso para celebrar uma visita do arcebispo de Paris; no domingo de Páscoa distribui pão 
bento e recolhe esmolas na igreja da paróquia. Seu testamento prova que não renegou nenhuma 
de suas convicções; mas estava cansado de lutar. “Era polido até a obsequiosidade — diz Nodier 
— afável até a unção e... falava respeitosamente de tudo o que se respeita.” Segundo Ange Pitou, 
a idéia da velhice e da morte causava-lhe horror. “Aquele homem empalidecia à idéia da morte 
e desmaiava ao ver os seus cabelos brancos.” Morreu, contudo, serenamente, vitimado a 2 de 
dezembro de 1814 por “uma obstrução pulmonar em forma de asma”.
Da dolorosa experiência que foi sua vida, o traço mais relevante é que entre os demais homens 
e ele esta lhe não revelou nenhuma solidariedade. Nenhum empreendimento comum ligava entre 
si os últimos rebentos de uma nobreza decadente; Sade povoou a solidão a que o condenava o 
nascimento com jogos eróticos tão exagerados que seus pares se voltaram contra ele; quando 
um novo mundo despontou, arrastava atrás de si um passado pesado demais: um desacordo 
consigo mesmo, suspeito aos outros, esse aristocrata obcecado por sonhos de despotismo não 
podia sinceramente aliar-se à burguesia ascendente; embora a acuse da opressão em que o povo 
é mantido, este é-lhe todavia estranho; não pertence a qualquer das classes cujo antagonismo 
denuncia, é de si próprio o único semelhante. Se sua formação afetiva fosse diferente, talvez ele 
pudesse contrariar esse destino; mas, durante toda vida, surge como um egocêntrico inveterado; 
sua indiferença pelos acontecimentos exteriores, suas obsedantes preocupações de dinheiro, as 
cautelas maníacas de que cerca suas devassidões, o delírio interpretativo esboçado em Vincennes 
e o aspecto esquizofrênico de seus sonhos revelam um temperamento radicalmente introvertido. 
Esta coincidência apaixonada consigo mesmo, se porventura lhe marcou limites, deu, por outro 
lado, à sua vida o caráter exemplar que nos leva a interrogá-lo hoje.
Sade fez do erotismo o sentido e a expressão de toda a sua existência: não é, portanto, 
curiosidade ociosa tentar especificar-lhe a natureza. Dizer com Maurice Heine que ele tudo 
experimentou e tudo amou, é escamotear o problema; e a palavra algolagnia pouco nos adianta 
para a compreensão de Sade; ele tinha evidentemente uma idiossincrasia sexual bem definida, 
mas não é fácil apreendê-la; seus cúmplices e vítimas calaram-se; apenas dois escândalos ruidosos 
ergueram, rapidamente, a cortina atrás da qual se esconde habitualmente a devassidão; seus 
diários e memórias perderam-se, suas cartas são prudentes, e nos livros ele inventa-se mais do 
que se revela. Concebi tudo o que se pode conceber nesse gênero, mas naturalmente não fiz tudo 
o que concebi nem com certeza o farei jamais, escreveu ele; não foi sem motivo que se comparou 
à Psychopathologia Sexualis de Krafft-Ebing e ninguém pensaria em imputar a este todas as 
perversões que ele cataloga; do mesmo modo Sade estabeleceu sistematicamente, de acordo com 
as receitas de uma espécie de arte combinatória, um repertório das possibilidades sexuais do 
homem: é certo que não as viveu todas nem sequer as sonhou em sua própria carne. Não só conta 
coisas demais, como na maioria das vezes conta mal. Seus relatos se parecem com as gravuras 
que ilustram Justine e Juliette na edição de 1797: a anatomia e as posições dos personagens são 
desenhadas com um realismo minucioso, mas a serenidade desajeitada e monótona dos rostos 
tornam perfeitamente irreais suas horríveis bacanais; através das frias orgias que o autor concerta 
é difícil discernir uma confissão viva. Contudo, há em seus romances situações que ele trata com 
especial complacência, testemunhando por alguns dos seus heróis uma simpatia toda particular; 
a Noirceuil, Blangis, Gernande e, sobretudo, a Dolmancé ele emprestou muitos de seus gostos e 
idéias. Por vezes também numa carta, num incidente, no rodeio de um diálogo, irrompe uma frase 
imprevista e viva que não é o eco de qualquer voz estranha. São essas cenas, esses heróis e esses 
textos privilegiados que cumpre interrogar.
Popularmente, sadismo significa crueldade; fustigações, sangrias, torturas, mortes: o primeiro 
traço que fere na obra de Sade é realmente o que a tradição associou ao seu nome. O episódio 
de Rose Keller no-lo mostra chicoteando sua vítima com disciplinas e uma corda nodosa, e sem 
dúvida6 picando-a de canivetadas e derramando-lhe cera nas escoriações; em Marselha saca da 
algibeira um chicote de tiras de pergaminho com alfinetes entortados nas pontas e pede que lhe 
tragam varas de urze; em toda a sua conduta com a esposa manifesta evidente crueldade mental. 
De resto, exprimiu com abundância do prazer que se pode experimentar fazendo sofrer os outros; 
mas, quando se contenta em reeditar a clássica doutrina dos espíritos animais, esclarece-nos 
pouco: Trata-se, apenas, de abalar a massa dos nossos nervos pelo choque mais violento possível; ora, 
não há dúvida de que a dor atuando muito mais intensamente que o prazer, os choques resultantes 
sobre nós dessa sensação produzida nos outros serão essencialmente de uma vibração mais forte. 
Sade não dissipa o mistério por que a violência de uma vibração se torna consciência voluptuosa. 
Felizmente,esboça alhures explicações mais sinceras. O fato é que a intuição original, a partir da 
qual se elaborou toda a sexualidade, e, portanto, toda a ética de Sade, é a identidade fundamental 
entre o coito e a crueldade. Seria a crise de voluptuosidade uma espécie de raiva se a intenção 
desta mãe do gênero humano não residisse em ser o tratamento do coito o mesmo da cólera? Qual 
é o homem bem constituído... que não deseja... molestar o seu gozo, então? Na descrição que nos 
dá do Duque de Blangis à beira do orgasmo, devemos sem dúvida ver uma transposição para 
o modo épico dos costumes do autor: Gritos pavorosos, atrozes blasfêmias lhe escapavam do 
peito inchado, seus olhos pareciam despedir chamas, espumava, relinchava..., chegava mesmo a 
estrangular. O próprio Sade, de acordo com o depoimento de Rose Keller, “se pôs a dar gritos 
agudos e medonhos” antes de cortar as cordas que imobilizavam sua vítima. A carta “Baunilha 
e manilha” confirma que ele experimentou o orgasmo como uma crise semelhante à epiléptica, 
agressiva e assassina como a raiva.
Como se explica esta singular violência? Tem-se perguntado se de fato Sade não seria 
sexualmente débil; muitos dos seus personagens — Gernande entre outros, tão do seu agrado 
— são mal servidos, têm grande dificuldade na ereção e na ejaculação; provavelmente Sade 
conheceu esses pavores; mas é o excesso de devassidão que parece tê-lo levado a essa semi-
impotência, que é também o caso de numerosos dos seus libertinos; entre estes, aliás, muitos são 
bem dotados e Sade alude com freqüência ao vigor do próprio temperamento. Pelo contrário, 
� As confissões de Sade não corroboram neste ponto o depoimento de Rose Keller.
a aliança de apetites ardentes com um “isolismo” afetivo radical é que se me afigura a chave do 
seu erotismo.
Desde a adolescência até suas prisões, Sade conheceu sem dúvida de maneira premente, até 
mesmo obsedante, as solicitações do desejo; em compensação há uma experiência que ele parece 
absolutamente ignorar: a da perturbação. Nunca a voluptuosidade surge em seus relatos como 
esquecimento de si, delíquio, abandono; comparem-se, por exemplo, as efusões de Rousseau com 
as frenéticas blasfêmias de um Noirceuil, de um Dolmancé, ou na Religiosa de Diderot as emoções 
da Superiora com os prazeres brutais das tríbades de Sade. No herói sádico, a agressividade do 
macho não é atenuada pela comum metamorfose do corpo em carne; nem um momento ele se 
perde em sua animalidade: permanece tão lúcido e tão cerebral que, em vez de o perturbarem 
em seus arrebatamentos, os discursos filosóficos são para ele um afrodisíaco. Naquele corpo frio, 
tenso, rebelde a todo enfeitiçamento, concebe-se que o desejo e o prazer se desencadeiem em crise 
furiosa: fulminam-no como uma espécie de acidente orgânico em vez de constituírem uma atitude 
vivida na unidade psicofisiológica do indivíduo. Graças a esse exagero, o ato sexual cria aquela 
ilusão de gozo soberano que o torna aos olhos de Sade o prêmio incomparável; mas falta-lhe 
uma dimensão essencial cuja ausência o sadismo se esforçará por compensar. Pela perturbação, 
a existência é empreendida em si e no outro ao mesmo tempo como subjetividade e passividade; 
através dessa unidade ambígua os dois comparsas se confundem; cada qual fica liberto da sua 
própria presença e atinge uma comunicação imediata com o outro. A maldição que pesa sobre Sade 
— e que só sua infância nos poderia explicar — é esse autismo que o impede de jamais se esquecer 
e de jamais realizar a presença de outrem. Se ele houvesse sido de temperamento frio, nenhum 
problema teria surgido; mas há instintos que o lançam para esses objetos estranhos aos quais é 
incapaz de se unir: precisa inventar maneiras singulares de apreendê-las. Mais tarde, quando seus 
desejos se embotarem, continuará a viver nesse universo erótico que pela sensualidade, pelo tédio, 
pelo desafio e pelo ressentimento se tornou o único válido a seus olhos: e suas manobras terão 
por fim, então, provocar a ereção e o orgasmo. Porém, mesmo no tempo em que estes lhe eram 
fáceis, Sade necessitava de rodeios para dar à sua sexualidade a significação que nela se esboçava 
sem chegar a completar-se: a evasão de sua consciência para sua carne, a apreensão do outro como 
consciência através da carne.
Normalmente, é pela vertigem do outro feito carne que cada qual se enfeitiça em sua própria 
carne. Se o indivíduo permanece fechado na solidão da sua consciência, escapa a essa perturbação 
e apenas consegue unir-se ao outro por meio de representações; um amante cerebral e frio espia 
avidamente o gozo da amante, e necessita afirmar-se como autor dele por não dispor de outro meio 
de atingir sua própria condição carnal; podemos qualificar de sádica esta conduta que compensa 
a separação por uma tirania refletida. Sade sabe, como vimos, que infligir o prazer pode ser um 
ato agressivo, e seu despotismo tomou por vezes esse aspecto; mas ele não o satisfaz. Em primeiro 
lugar repugna-lhe essa espécie de igualdade que cria uma voluptuosidade comum: Se os objetos 
que nos servem gozam, ei-los desde logo muito mais preocupados consigo mesmo do que conosco, 
e o nosso gozo, portanto, contrariado. A idéia de ver outro gozar como ele, leva-o a uma espécie de 
igualdade que prejudica os indizíveis encantos que o despotismo proporciona então. E, de maneira 
ainda mais categórica, declara: Todo o gozo partilhado se enfraquece. Além disso, as sensações 
agradáveis são demasiado benignas; é dilacerada e sangrenta que a carne se revela como carne da 
maneira mais dramática. Nenhuma espécie de sensação é mais ativa e mais incisiva que a da dor: 
suas impressões são firmes. Mas, para que através dos sofrimentos infligidos eu me torne também 
carne e sangue, é necessário que na passividade do outro eu reconheça minha própria condição, 
portanto que uma liberdade e uma consciência o habitem. O libertino seria realmente digno de 
lástima se agisse sobre um objeto inerte que nada sentisse. Eis por que as contorções e queixumes da 
vítima são indispensáveis à felicidade do carrasco: a ponto de Verneuil cobrir a esposa com uma 
espécie de touca que lhe ampliava os gritos; em sua revolta o objeto torturado afirma-se como meu 
semelhante e eu atingi, por seu intermédio, aquela síntese do espírito e da carne que a princípio 
se recusara.
Se o fim almejado é ao mesmo tempo escapar de si próprio e descobrir a realidade das 
existências alheias, há ainda outro caminho que se abre: fazer-se molestar por outrem. Sade não 
o ignora de modo algum e usa em Marselha chicotes e vergastas, tanto para flagelar como para 
se fazer flagelar; trata-se, sem dúvida, de uma das suas práticas mais comuns e todos os seus 
personagens se fazem alegremente chicotear: Ninguém duvida hoje de que a flagelação tenha um 
efeito decisivo na restauração do vigor extinto pelo excesso de voluptuosidade. Há outra maneira 
ainda de realizar a passividade: em Marselha, Sade faz-se sodomizar por seu criado Latour, que 
parece muito acostumado a prestar-lhe esse gênero de serviço; seus heróis imitam-no à porfia; e 
ele declarou abertamente, nos termos mais vivos, que o auge do prazer se alcança combinando a 
sodomia ativa e passiva. É essa a perversão de que fala com maior freqüência e agrado, até mesmo 
com apaixonada veemência.
Para quem gosta de classificar os indivíduos com etiquetas bem definidas, propõem-se 
desde logo duas perguntas: Sade seria sodomita? Seria no fundo masoquista? No que concerne à 
sodomia, seu aspecto físico, o papel desempenhado por seus criados, a presença em La Coste do 
lindo secretário iletrado, a enorme importância que em seus escritos concede a essa fantasia e o 
ardor de suas justificativas, tudo confirma ser esse um dos aspectos essenciais da sua sexualidade. 
Sem dúvida as mulheres desempenharam grande papel tanto em sua vida como em sua obra; ele 
freqüentou numerosas prostitutas, mantevea Beauvoisin e outras amantes de menor importância, 
seduziu a cunhada, reuniu mulheres e moçinhas no solar de La Coste, flertou com Mlle Rousset e 
acabou seus dias ao lado de Mme Quesnet, sem falar dos laços impostos pela sociedade, embora 
alterados a seu modo, que o uniam a Mme de Sade. Porém, que relações teve com elas? É de 
notar que nos dois únicos testemunhos recolhidos sobre sua atividade sexual não se percebe 
que Sade tenha “conhecido” normalmente suas companheiras; no caso de Rose Keller saciou-
se chicoteando-a, mas não lhe tocou; à prostituta de Marselha propôs deixar-se “conhecer por 
trás” pelo seu criado, ou então por ele; como a mulher recusasse, limitou-se a alguns contactos, 
enquanto se fazia “conhecer” por Latour. Seus personagens divertem-se de bom grado em deflorar 
moçinhas: esta violência sangrenta e sacrílega lisonjeia a imaginação de Sade; mas, mesmo quando 
pervertiam uma virgem, preferiam, no mais das vezes, tratá-la como a um rapaz do que fazer 
correr seu sangue; vários dos seus personagens manifestam profunda repugnância pela “frente” das 
mulheres; outros são mais ecléticos, mas não deixam dúvidas sobre suas preferências. Sade jamais 
gabou essa parte do corpo feminino que As Mil e Uma Noites tão jovialmente celebram; manifesta 
apenas desprezo pelos pobres efeminados que possuem normalmente suas esposas. Teve filhos 
com a mulher, mas já vimos em que condições; e dadas as singulares farras a que se entregava em 
La Coste, quem prova que ele próprio tenha engravidado Nanon? Naturalmente, não poderíamos 
atribuir a Sade as opiniões que professam em seus romances os pederastas especializados; mas o 
argumento que ele põe na boca do bispo das Journées de Sodorne está bastante próximo da sua 
alma para que o possamos considerar uma confissão; no que respeita ao prazer, diz ele: O rapaz é 
muito melhor que a moça; considerai-o pelo lado do mal, que é quase sempre o verdadeiro atrativo 
do prazer; o crime parecer-vos-á maior com um ser inteiramente da vossa espécie do que com um 
que o não é, e desde esse momento o gozo será dobrado. Pouco importa que Sade tenha escrito à 
esposa que o seu único erro foi amar demais as mulheres; trata-se de carta oficial e hipócrita; e é 
por uma dialética romanesca que ele lhes dá em seus livros os papéis mais triunfantes: a maldade 
estabelece nelas impressionante contraste com a doçura tradicional do seu sexo; quando superam 
pelo crime sua abjeção natural, demonstram, com mais espalhafato que os homens, que nenhuma 
situação poderia impedir a explosão de um temperamento audacioso; e se imaginariamente se 
tornam os carrascos mais magníficos, é porque na realidade são vítimas natas: servis, lamurientas, 
mistificadas, passivas, através de toda a obra salientam o desprezo e a repugnância que na verdade 
causavam ao autor. Seria a mãe que Sade detestava nelas? Podemos também perguntar se o 
marquês não odiaria esse sexo por considerá-lo não o seu complemento, mas o seu duplo, e do 
qual nada podia receber; seus grandes celerados têm mais calor e vida que seus outros heróis, 
não só por motivos estéticos, mas porque lhe são mais próximos. Não creio de modo algum, que 
esteja retratado, como se pretendeu, na choramingas Justine; mas Juliette, que sofreu os mesmos 
tratos que a irmã em seu orgulho e prazer, retrata-o certamente. Sade sente-se mulher e ofende-o 
nas mulheres não serem o macho que ele deseja: à maior e mais extravagante de todas, a Durand, 
dota-a de um clitóris gigantesco que lhe permite comportar-se sexualmente como um homem. 
É impossível especificar em que medida as mulheres foram para Sade outra coisa que 
sucedâneos ou joguetes, mas o que estamos no direito de afirmar é que sua sexualidade era 
essencialmente anal. O apego de Sade ao dinheiro confirma-o; as histórias de caça a heranças 
representaram papel enorme em sua vida; o roubo surge em sua obra como uma conduta sexual 
cuja evocação basta para provocar o orgasmo. E se se recusa a interpretação freudiana da cupidez, 
há um fato inequívoco que Sade abertamente reconheceu: sua coprofilia. Em Marselha oferece 
pílulas a uma mulher dizendo-lhe “que isso a excitaria a soltar gases”, e mostra-se decepcionado 
por não recolher o benefício previsto; é de admirar que os dois caprichos sobre os quais tentou 
explicar-se mais profundamente sejam a crueldade e a coprofagia. Até que ponto se lhe entregava? 
Há muita distância entre as práticas esboçadas em Marselha e às orgias excrementícias das Journées 
de Sodome; mas a importância que concede a estas, o cuidado com que lhes descreve os ritos e 
sobretudo os preparativos, provam que não se trata aqui de frias invenções sistemáticas senão 
de fantasmas afetivos. Por outro lado, a extraordinária bulimia de Sade prisioneiro não poderia 
explicar-se apenas pela ociosidade; comer só pode ser um substituto da atividade erótica quando 
permanece como equivalência infantil entre as funções gastro-intestinais e as funções sexuais, 
o que certamente se perpetuou em Sade; ele liga estreitamente a orgia alimentar à orgia erótica: 
Não há paixões que melhor se aliem à luxúria do que a bebedeira e a glutoneria, observa; e esta 
confusão acaba-se nos fantasmas de antropofagia: beber sangue, engolir esperma e excrementos, 
comer crianças, é saciar o desejo pela aniquilação do seu objeto; o gozo não comporta troca, dom, 
reciprocidade ou gratuita magnificência: seu despotismo é o da avareza que opta por destruir o 
que não pode assimilar.
A coprofilia de Sade tem ainda outro sentido: Se é a coisa suja que mais agrada no ato de 
lubricidade, quanto mais essa coisa for suja, mais deve agradar. Entre os atrativos sexuais mais 
evidentes, Sade coloca a velhice, a feiúra, o fedor; esta ligação da porcaria com o erotismo é 
nele tão original quanto a da crueldade e explica-se de maneira análoga. A beleza é demasiado 
simples, apreendemo-la por um julgamento intelectual que não arranca a consciência à sua 
solidão nem o corpo à sua indiferença; ao passo que a porcaria avilta; o homem que vive na 
porcaria, como aquele que fere ou se deixa ferir, realiza-se como carne; é na sua desgraça e na 
sua humilhação que esta se torna um abismo onde se submerge o espírito e onde se reúnem os 
indivíduos separados; zurzido, penetrado, esporcalhado, só desse modo Sade consegue abolir 
sua presença obsedante.
Todavia ele não é masoquista no sentido popular da palavra; zomba rudemente dos homens 
que se tornam escravos de uma mulher. Abandono-os ao vil prazer de carregar as algemas com 
que a natureza lhes dá o direito de subjugar os outros; que esses animais vegetem na baixeza, que 
os avilta. O universo do masoquista é mágico, e daí por que é quase sempre fetichista; os objetos, 
sapatos, peles, chicotes — estão carregados de eflúvios que têm o poder de o transformar em 
coisa; e é isso o que ele explicitamente procura: abolir-se tornando-se objeto inerte. O mundo 
de Sade é essencialmente racional e prático; os objetos — materiais ou humanos — que servem a 
seus prazeres, são utensílios sem mistério, e ele vê claramente na humilhação um ardil orgulhoso; 
Saint-Fond, por exemplo, declara: A humilhação de certos atos de libertinagem serve de pretexto ao 
orgulho. E em outro ponto Sade diz do libertino que o estado de aviltamento que caracteriza aquele 
em que o mergulhais castigando-o, agrada-lhe, diverte-o, deleita-o e ele goza consigo mesmo o ter 
ido bastante longe para merecer um tratamento assim. Há, no entanto, entre essas duas atitudes 
um íntimo parentesco; se o masoquista quer perder-se, é para fascinar-se pelo objeto com que 
pretende confundir-se, e este esforço o reconduz à sua subjetividade; exigindo que o parceiro 
o maltrate, tiraniza-o; suas exibições humilhantes, as torturas sofridas, também humilham e 
torturam o outrem; inversamente emporcalhando e ferindo, o carrasco emporcalha-se e fere-se, 
participa dessa passividade que ele revelae, procurando apreender-se como causa dos tormentos 
que inflige, é enquanto instrumento, portanto como objeto que ele se atinge; estamos, portanto, 
autorizados a unificar estas condutas sob a designação de sadomasoquismo; resta apenas considerar 
que, a despeito da generalidade do termo, elas podem concretamente oferecer grande diversidade. 
Sade não é Sacher Masoch. O que o caracteriza especialmente é a tensão de uma vontade que se 
aplica a realizar a carne sem se perder nela. Em Marselha, ele faz-se chicotear, porém, de vez em 
quando, corre até a estufa e marca à faca, no tubo, o número de chicotadas que acaba de receber: a 
humilhação volve-se imediatamente em fanfarronada; sodomizado, fustiga ao mesmo tempo uma 
mulher; e é essa uma de suas fantasias favoritss: zurzido e penetrado, zurzir e penetrar no mesmo 
instante uma vítima submissa.
Já tive ocasião de dizer que desconheceria o sentido e o alcance das singularidades de Sade, 
quem se limitasse a considerá-las simples dados; elas estão sempre carregadas de significação ética. 
A partir do escândalo de 1763, o erotismo de Sade deixa de ser apenas uma atitude individual: é 
também um desafio à sociedade. Numa carta à esposa, explica como transformou seus gostos 
em princípios: Estes princípios e gostos foram por mim levados até o fanatismo — escreve ele — 
e o fanatismo é obra das perseguições dos meus tiranos. A intenção suprema que anima toda a 
atividade sexual é que ela se quer criminosa: crueldade ou imundície, trata-se de realizar o mal. 
Sade imediatamente experimentou o coito como crueldade, despedaçamento e crime; e, por 
ressentimento, reivindicou-lhe teimosamente o negrume; visto que a sociedade se alia à natureza 
para o querer criminoso em seus prazeres, ele fará do próprio crime um prazer. O crime é a alma 
da lubricidade. Que seria um gozo desacompanhado do crime? Não é o objetivo da libertinagem que 
nos move, é a idéia do mal. No prazer de torturar e injuriar uma bela mulher — escreve ele — há 
a espécie de prazer que dá o sacrilégio ou a profanação dos objetos oferecidos ao nosso culto. Não 
foi por acaso que, para chicotear Rose Keller, escolheu o domingo de Páscoa; e foi no instante 
em que propôs ironicamente confessá-la que a sua excitação sexual atingiu o paroxismo; não há 
afrodisíaco mais poderoso que o desafio ao Bem: Os desejos que experimentamos pelos grandes 
crimes são sempre mais violentos, que os que experimentamos pelos pequenos. Sade pratica o mal 
para se sentir culpado, ou escapa à culpabilidade assumindo-o? Reduzi-lo a qualquer dessas 
atitudes seria mutilá-lo; ele não assenta na abjeção complacente nem na imprudência estouvada; 
mas oscila contínua e dramaticamente, entre a arrogância e a má consciência.
Entrevemos, assim, o alcance da crueldade e do masoquismo de Sade. Este homem que aliava 
a um temperamento violento — logo enfraquecido, ao que parece — um “isolismo” afetivo quase 
patológico, procurou um sucedâneo da perturbação através das dores sofridas ou infligidas. Sua 
crueldade tem um sentido muito complexo. Em primeiro lugar, surge como a realização extrema 
e imediata do instinto do coito, sua assunção total; afirma a radical separação do outro objeto, 
e do indivíduo soberano, visa a destruição ciumenta do que se não pode avaramente assimilar, 
mas sobretudo, mais do que a coroar impulsivamente o orgasmo, tende de maneira premeditada 
a provocá-lo; permite apreender através do outro a unidade consciência-carne e projetá-la em si; 
enfim, reivindica livremente o caráter criminoso que a natureza e a sociedade consignaram ao 
erotismo. Por outro lado, fazendo-se sodomizar, flagelar, aviltar, Sade chega também à revelação 
de si mesmo como carne passiva; sacia o desejo de autopunição e aceita a culpabilidade a que 
o votaram, tornando logo da humildade ao orgulho pelo desafio. Na cena sádica completa, o 
indivíduo dá asas à sua natureza sabendo-a má, assumindo-a agressivamente como tal; confunde 
a vingança com o crime e transforma este em glória.
Há um ato que se propõe como a mais extremada realização simultânea da crueldade e do 
masoquismo, porque o indivíduo nele se afirma de maneira privilegiada como tirano e como 
criminoso: é o assassínio. Tem-se sustentado muitas vezes que ele constitui o supremo arremate 
da sexualidade sádica. A meu ver, essa opinião baseia-se num mal-entendido. Sem dúvida é com 
o fim apologético, que Sade em suas cartas se defende tão energicamente de nunca ter sido um 
assassino, mas penso que a idéia repugna-lhe sinceramente. É verdade que ele sobrecarrega seus 
relatos de monstruosas hecatombes, mas isso por não haver perversidade cuja significação abstrata 
apresente evidência tão fulgurante quanto o assassínio; ele representa a reivindicação exasperada 
de uma liberdade sem lei e sem temor. Além disso, o autor, prolongando indefinidamente no papel 
a agonia da sua vítima, pode eternizar o instante privilegiado em que um espírito lúcido habita 
um corpo que imaterialmente se degrada, insufla ainda um passado vivo no despojo inconsciente. 
Mas, na verdade, que faria um tirano desse objeto inerte que é um cadáver? Naturalmente, há 
na passagem da vida para a morte qualquer coisa de vertiginoso, e o sádico a quem fascinam os 
conflitos da consciência e da carne, de bom grado se verá autor de tão radical metamorfose; mas, 
se é normal que ele realize na ocasião essa experiência privilegiada, não é possível que ela lhe 
proporcione a satisfação suprema; essa liberdade que se pretendia tiranizar até o aniquilamento, 
aniquilando-se deslizou para fora do mundo onde a tirania a dominava; se os personagens de 
Sade multiplicam indefinidamente as matanças, é porque nenhuma consegue satisfazê-lo; 
concretamente, elas não trazem qualquer solução para os problemas que atormentam o libertino, 
pois o fim que este persegue não é apenas o prazer; ninguém empreenderia tão apaixonada e 
perigosamente a busca de uma sensação, tivesse ela a violência de uma crise epiléptica; mais 
do que isso, o traumatismo final deve garantir, pela sua evidência, o êxito de uma empresa cujo 
risco o ultrapassa infinitamente; porém na maioria dos casos, ao contrário, ele a interrompe sem 
concluí-la, e, quando se prolonga por um assassínio, este apenas logra confirmar a derrota. Blangis 
estrangula com uma fúria que é a do próprio orgasmo, e há desespero nessa raiva em que o desejo 
se apaga sem saciar-se; os prazeres que ele premedita são menos selvagens e mais complexos. Entre 
outros, um episódio de Juliette é significativo; excitado pela conversa da jovem, Noirceuil que 
pouco apreciava os prazeres solitários, ou seja, aqueles a que a gente se entrega só com um parceiro, 
logo chamou os amigos. Nós não somos suficientes... Não, deixa-me... Minhas paixões concentradas 
num único ponto são como os raios do astro reunidos pela lente incendiadora, queimam logo o objeto 
sobre o qual incidem. Não é por escrúpulo abstrato que ele se proíbe tal excesso, é antes a certeza de 
que após o espasmo assassino achar-se-ia frustrado. Nossos instintos nos indicam fins impossíveis 
de alcançar se nos limitamos a seguir-lhes os impulsos imediatos; é preciso superá-los, refleti-los 
e inventar engenhosamente os meios de satisfazê-los. É a presença de consciências estranhas que 
nos ajudará a tomar, em relação a eles, o recuo necessário.
A sexualidade em Sade não é da competência da biologia: é um fato social. As orgias em que 
ele se compraz são quase sempre coletivas; em Marselha reclama duas mulheres e é acompanhado, 
pelo criado; em La Coste organizara um serralho e, nos seus romances, os libertinos formam 
verdadeiras comunidades. A vantagem consiste em primeiro lugar no número de combinações 
que assim se oferece aos seus desregramentos, mas essa socialização do erotismo tem razões 
mais profundas. Em Marselha chama ao criado “Senhor Marquês” e prefere vê-lo “conhecer” 
com o seu nome uma mulhera “conhecê-la” ele próprio; a representação da cena erótica tem 
mais interesse a seus olhos do que a experiência divina. Nas Journées de Sodome, os caprichos são 
quase sempre contados antes de postos em prática; por esse desdobramento o ato converte-se em 
espetáculo visto a distância no momento em que é executado; assim conserva a significação que 
um arrebatamento solitário e bestial obscureceria; porque se o devasso coincidisse exatamente 
com seus gestos, e a vítima com suas emoções, liberdade e consciência se perderiam no desvario 
da carne, sendo esta apenas sofrimento imbecil e aquele voluptuosidade convulsiva; graças aos 
testemunhos reunidos em torno deles, mantém-se uma presença que ajuda o indivíduo a estar 
ele próprio presente. É através das representações que Sade espera atingir-se, e para se ver é 
necessário ser visto; tiranizando uma vítima, ele é objeto para os que o observam; inversamente, 
contemplando numa carne que violenta as violências que ele suporta, recupera-se como indivíduo 
no seio da sua passividade; a confusão do para-si e do para outro se realiza. Os cúmplices são 
singularmente necessários para dotar a sexualidade de uma dimensão demoníaca; é por eles 
que o ato cometido ou suportado reveste uma forma segura em vez de se diluir em momentos 
contingentes; tornando-se real, toda perversidade se evidencia possível, comum, a gente 
familiariza-se tão intimamente com ele que se tem dificuldade em julgá-lo condenável; para se 
espantar, se apavorar, é necessário contemplar-se de longe, através de olhos alheios.
Mas este recurso a outrem, embora precioso, não basta ainda para suprimir as contradições 
que implica a tentativa sádica; falhando em apreender na experiência vivida a unidade ambígua da 
existência, jamais se conseguirá reconstruí-la intelectualmente. Por definição, uma representação 
nunca poderia coincidir com a intimidade da consciência nem com a opacidade da carne, e 
muito menos poderia reconciliá-las; uma vez dissociados, estes dois momentos da realidade 
humana opõem-se, e quando se persegue um, o outro furta-se. Se inflige sofrimentos demasiado 
intensos, o indivíduo desvaira-se, abdica, perde a soberania; um excesso de grosseria provoca o 
enjôo que contraria o prazer; a crueldade é praticamente difícil de exercer a não ser em limites 
muito modestos, e teoricamente implica uma contradição que traduz a destas duas passagens: 
Os atrativos mais divinos são nulos quando a submissão e a obediência no-los não vêm oferecer, e: 
Cumpre violentar o objeto do nosso desejo; o prazer é maior quando ele se rende. Onde encontrar 
assim livres escravos? A solução é recorrer ao compromisso; com mulheres estipendiadas e 
abjetamente concordantes, Sade ultrapassa um pouco os limites convencionados; contra uma 
esposa que guarda em sua obediência uma certa dignidade humana, ele permite-se algumas 
violências, mas o ato erótico ideal nunca será realizado. É este o sentido profundo das palavras 
que Sade coloca na boca de Jérôme: O que fazemos aqui não é sequer a imagem do que desejaríamos 
fazer. Não que proezas verdadeiramente extraordinárias estejam praticamente proibidas, mas 
mesmo as que se poderiam evocar nos delírios mais extremos acabariam decepcionando o seu 
autor: Atacar o sol, privar dele o universo ou utilizá-lo para incendiar o mundo, isso sim, seriam 
crimes! Mas se este sonho parece apaziguador, é porque o criminoso nele projeta sua destruição 
juntamente com o universo; sobrevivendo, ele se encontraria frustrado. Nunca o crime sádico 
se evidenciaria adequado à intenção que o anima; a vítima nunca é mais que um análogo, o 
indivíduo apenas se realiza como imagem, e a relação de ambos não passa da paródia do drama 
que os poria realmente em luta na sua incomunicável intimidade; por isso o bispo das Cent 
vingt journées nunca cometia um crime sem conceber outro no mesmo instante. O momento 
da conspiração é para o libertino um momento privilegiado, porque ele pode ignorar então o 
desmentido que fatalmente lhe oporá a realidade; e se o relato desempenha nas orgias sádicas 
um papel primordial, despertando facilmente sentidos sobre os quais já não atuam os objetos de 
carne e osso, é porque estes não se deixam integralmente atingir senão em sua ausência. Com 
efeito, há apenas um modo de se satisfazer com os fantasmas que cria a devassidão: jogar com a 
própria irrealidade deles. Escolhendo o erotismo, Sade escolheu o imaginário; só no imaginário 
conseguirá instalar-se com segurança, sem arriscar decepções, como, aliás, o repete ao longo 
da sua obra: O gozo dos sentidos é sempre regido pela imaginação. O homem só pode aspirar à 
felicidade utilizando todos os caprichos da imaginação. É por ela que escapará ao espaço, ao 
tempo, à prisão, à polícia, ao vazio da ausência, às presenças opacas, aos conflitos da existência, 
à morte, à vida e a todas as contradições. Não é pela crueldade que se realiza o erotismo de Sade: 
é pela literatura.
Pode parecer à primeira vista que Sade escrevendo outra coisa não fez mais do que reagir, 
como tantos outros, à sua situação de prisioneiro. A idéia não lhe era inteiramente estranha: uma 
das peças representadas em La Coste, em 1772, era sem dúvida de sua composição, e o cofre que a 
continha, arrombado graças à Mme de Montreuil, incluía, redigidas pela sua mão, certas “pequenas 
folhas” que eram provavelmente notas sobre a sexualidade; por outro lado esperou quatro anos, 
depois de preso em Vincennes, para empreender uma obra verdadeira. Em outro calabouço da 
mesma fortaleza, Mirabeau que também gemia: “Estou enterrado vivo num túmulo”, procurava, 
escrevendo, uma diversão: traduções, correspondência brejeira, ensaios sobre os mandatos de 
prisão, tentava simultaneamente matar o tempo, distrair a carne e minar a sociedade hostil; Sade 
obedece a motivos análogos, entretém-se, e mais de uma vez compondo seus romances acabou 
dando o seu safanão; também ele quer vingar-se dos seus carrascos; escreve à esposa com jovial 
azedume: Aposto que você imaginou fazer maravilhas reduzindo-me a uma abstinência atroz quanto 
ao pecado da carne. Pois bem, enganou-se... o que fez foi levar-me a criar fantasias que terei de 
realizar. Mas se foi seu encarceramento que o levou a essa decisão, esta tem contudo raízes muito 
mais profundas. Sade sempre se contou histórias através dos seus desregramentos, mas a realidade 
que servia de modelo às suas fantasias, embora emprestando-lhes sua espessura perturbava-as 
também com suas resistências; a opacidade das coisas submerge-lhes as significações, e são estas, 
pelo contrário, que a palavra retém; uma criança já sabe que os rabiscos nas paredes são mais 
obscenos que os órgãos ou gestos que evocam, porque a intenção pornográfica neles se afirma 
em sua pureza; de todos os sacrilégios, a blasfêmia é o mais fácil e seguro; os personagens de Sade 
tagarelam incessantemente, e no caso de Rose Keller ele próprio se compraz em longos discursos. 
O escrever, melhor ainda que o falar, é suscetível de dar às imagens a solidez de um monumento, 
resiste a todas as contestações. Graças a ela, a virtude conserva seu funesto prestígio no instante 
em que é denunciada como hipocrisia e tolice; o crime em sua grandeza permanece criminoso; 
num corpo agonizante a liberdade pode ainda palpitar. A literatura permite a Sade desencadear 
e fixar os seus sonhos, e também sobrepujar as contradições implícitas em qualquer sistema 
demoníaco; mais do que isso ela própria é um ato demoníaco, pois que exibe agressivamente 
fantasias criminosas; é isso que lhe empresta seu valor incomparável. Se acharmos paradoxal que 
um “isolista” tenha se comprometido tão apaixonadamente num esforço de comunicação, é porque 
compreendemos mal Sade; ele nada tem do misantropo que prefere à sua espécie os animais e as 
florestas virgens; separado dos outros, obceca-o essa inacessível presença; se no mais recôndito da 
sua vidareclama como testemunhas consciências estranhas, é natural que deseje expor-se diante 
do vasto público a que pode pretender um livro.
Seu intuito seria apenas escandalizar? Em 1795, escreveu: Vou oferecer-vos grandes verdades; 
serão ouvidas; serão refletidas; se nem todas agradarem pelo menos restarão algumas e terei 
contribuído em algo para o progresso das luzes e ficarei satisfeito. E em La nouvelle Justine: É mau 
amar os homens ocultando-lhes verdades tão essenciais, quaisquer que sejam os resultados. Depois 
de haver presidido a Section des Piques e redigido em nome da coletividade discursos e petições, 
pôde, em suas horas mais otimistas, gabar-se de ser um dos porta-vozes da humanidade; da sua 
experiência retinha então, não o aspecto maldito mas a autêntica riqueza. Esses sonhos logo se 
dissiparam, mas é excessivamente simples enclausurar Sade no satanismo; nele a sinceridade 
mistura-se inextrincavelmente à má-fé; agrada-lhe que a verdade escandalize, mas também, 
se se resolve ao escândalo, é porque este manifesta a verdade; no momento em que reivindica 
arrogantemente seus erros, dá a si mesmo razão. Ao público que deliberadamente ultraja, quer 
também transmitir uma mensagem: seus escritos refletem a ambivalência de sua relação com o 
mundo dado e com outrem.
O que mais deveria surpreender é o modo de expressão que ele escolheu; ele, que cultivou tão 
ciosamente sua singularidade, seria de esperar que procurasse também traduzir sua experiência 
numa forma singular, como fez, por exemplo, Lautréamont. Mas em primeiro lugar o século 
XVIII oferecia poucas possibilidades líricas; Sade odiava a enfadonha sensibilidade que então 
se confundia com a poesia; os tempos não estavam maduros para um “poeta maldito”. E nada 
predispunha Sade a grandes audácias literárias; um verdadeiro criador deve — pelo menos em 
certo plano, em certo momento — ter-se radicalmente libertado do dado e emergir para além dos 
outros homens numa total solidão. Porém em Sade há uma íntima fraqueza que sua arrogância 
mal disfarça; a sociedade instalou-se em sua alma mesmo sob a figura da culpabilidade; não 
dispõe dos meios nem do tempo para reinventar o mundo, o homem e a si mesmo; tem demasiada 
pressa, pressa de se defender. Já disse que escrevendo ele procura antes de tudo conquistar uma 
boa consciência; para isso tem de obrigar os outros a absolvê-lo e mesmo a aprová-lo; argumenta 
em vez de se afirmar, e para se fazer ouvir toma da sociedade formas literárias e doutrinas 
experimentadas. Formado por um século racionalista, nenhuma arma lhe parece mais segura que 
o raciocínio. Ele, que escreveu: Todo o princípio de moral universal é uma verdadeira quimera, 
submete-se docilmente às convenções gerais da estética contemporânea e às pretensões da lógica 
universal. Assim se explicam sua arte e seu pensamento; quando se reivindica, é sempre tentando 
no mesmo movimento desculpar-se. Sua obra é um empreendimento ambíguo para ir até ao 
extremo do crime, abolindo a sua culpabilidade.
Portanto, é normal e evidente que o gênero favorito de Sade seja a paródia. Ele não procura 
instituir um universo novo: limita-se a levar ao ridículo, pela maneira como o imita, aquele que 
lhe é imposto, e começa por fingir acreditar nas quimeras que o povoam: a inocência, a bondade, 
a dedicação, a generosidade e a castidade; quando em Aline et Valcour, em Justine e nos Crimes de 
l’Amour pinta untuosamente a virtude, não se trata apenas de uma manobra prudente; as “gazes” 
com que veste Justine são mais que um artifício literário: cumpre dar uma realidade à virtude se 
queremos divertir-nos em humilhá-la. Defendendo seus contos da pecha de imoralidade, Sade 
escreve hipocritamente: Quem se gabará de fazer ressaltar a virtude, quando as feições do vício que 
a cerca não são fortemente acentuadas? Mas ele entende tudo ao contrário: como conceder ao vício 
seu sabor se o leitor não é seduzido pela miragem do bem? É muito mais voluptuoso ludibriar 
as pessoas honestas do que escandalizá-las e, traçando no papel perífrases açucaradas, Sade 
saboreou os agudos prazeres da mistificação. Infelizmente ele diverte-se em geral mais do que nos 
diverte; quase sempre sua linguagem tem a mesma frieza e sensaboria dos contos edificantes que 
decalca, e os episódios desdobram-se segundo convenções igualmente sensaboronas. Contudo foi 
pela paródia que Sade logrou seus mais vibrantes êxitos artísticos. Precursor do romance negro, 
como notou Maurice Heine, ele é demasiado racionalista para se abismar no fantástico; quando se 
abandona às extravagâncias da imaginação, não sabemos o que mais admirar nele: se a veemência 
épica ou a ironia; o milagre é que esta se revela bastante sutil para não arruinar seus delírios; 
pelo contrário, empresta-lhes uma seca poesia que os defende contra nossa incredulidade. Este 
sombrio humor que ele sabe na oportunidade voltar contra si mesmo, é mais que um simples 
processo; confundindo a vergonha e o orgulho, a verdade e o crime, Sade é habitado pelo gênio da 
contradição; é quando escarnece que ele é mais sério, e quando sua má-fé salta aos olhos é que ele 
é mais sincero; seus exageros ocultam freqüentemente ingênuas verdades, ao passo que através de 
raciocínios ponderados nos dá verdadeiras enormidades; seu pensamento emprega-se em frustrar 
quem quisesse fixá-lo e desse modo ele atinge seu objetivo que é preocupar-nos. Sua própria forma 
tende a desconcertar-nos; fala com voz monótona e enleada, e começa a entediar-nos quando de 
repente, amarga, sardônica, obscena, uma verdade ilumina esses nevoeiros que lhe ressaltam o 
fulgor brutal; então, na sua jovialidade e violência, na sua arrogância e crueza, o estilo de Sade 
torna-se o de um grande escritor.
Entretanto ninguém pensaria em colocar Justine ao lado de Manon Lescaut ou das Liaisons 
dangereuses. Paradoxalmente, é a própria necessidade da obra de Sade que lhe consignou os limites 
estéticos: ele não tomou diante dela o recuo indispensável a um artista; para enfrentar a realidade 
propondo-se recriá-la, faltava-lhe o afastamento necessário; ele não enfrentou a si mesmo: limitou-
se a projetar para fora de si seus fantasmas; suas narrativas têm a irrealidade, a falsa exatidão e a 
monotonia dos devaneios esquizofrênicos: é para deleite próprio que as relata, e não se preocupa 
em impô-las a um leitor. As resistências do mundo não são sequer evocadas, nem as outras, mais 
patéticas ainda, que Sade encontrava no segredo de sua alma. Cavernas, subterrâneos, castelos 
misteriosos, o arsenal do romance negro toma nele um sentido singular, simboliza o isolamento 
da imagem; a percepção remete à totalidade do dado, portanto aos obstáculos que este envolve; 
a imagem é perfeitamente dócil e plástica, nela só encontramos o que lá foi posto, é o domínio 
encantado de onde nenhum poder lograria desalojar o déspota solitário; é ela que Sade imita no 
momento em que pretende emprestar-lhe literariamente uma opacidade. Por isso não se ocupa das 
coordenadas espaciais e temporais em relação às quais todo o acontecimento verdadeiro se situa; 
os lugares que evoca não são deste mundo, e mais do que aventuras são quadros vivos que neles se 
desenrolam; a duração não atua sobre o universo de Sade; não há futuro algum da sua obra nem 
na sua obra. Não só as orgias para que nos convida não se passam em parte alguma ou em tempo 
algum, como ainda, o que é mais grave, não põem ninguém em jogo; as vítimas são imobilizadas 
em sua abjeção lacrimosa, e os carrascos em seu frenesi; o autor sonha-se complacentemente 
neles em vez de lhes emprestar sua densidade viva; eles não conhecem o remorso, escassamente a 
saciedade, ignoram a mágoa, matam com indiferença, são abstratas encarnações do mal. Porém, 
não se erguendo sobre nenhum fundo social, familiar ou humano, o erotismo perde seu caráter 
extraordinário, deixa de ser conflito, revelação, experiência privilegiada; não

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