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Viver Não é Sobreviver - Para Além da Vida Aprisionada (Peter Pal Pelbart)

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Viver não é sobreviver: para além da vida aprisionada - Peter pal 
Pelbart - primeira parte
por iza.sardenberg
15/07/2013 10:56:48
O "III Seminário Internacional A Educação Medicalizada: reconhecer e acolher as diferenças" fez jus 
ao nome. Produziu uma polifonia de vozes e pensamentos diferentes que se irmanaram em torno da 
busca de um comum: o desejo de uma vida mais potente.
As ruas do Brasil, recentemente, nos mostraram que isso é possível. E sabemos haver por todos os 
cantos uma irrupção de desejos que também pôde fertilizar o nosso III Seminário.
Uma primeira amostra disso será o compartilhamento da fala de Peter Pal Pelbart, filósofo e 
professor da PUC - SP, na abertura dos trabalhos do seminário em São Paulo.
Comporemos vários posts para dar vazão a todas as vozes que lá estiveram...
 
Viver não é sobreviver: para além da vida aprisionada 
 
A iniciativa presente é das mais necessárias e dignas e vamos ver se o que eu tenho a dizer pode 
contribuir um pouco para fortalecer este movimento tão importante.
Vou falar de algo simples que é a vida, não da vida em geral, mas da vida hoje, no contexto 
contemporaneo, frente a duas tendências contrapostas que nos obrigam a repensar esse termo tão 
antigo e cada dia mais invocado. A primeira dessas tendências pode ser formulada como segue: o 
poder tomou de assalto a vida, isto é, o poder penetrou todas as esferas da existência e as 
mobilizou e colocou prá trabalhar em proveito próprio. Desde os gens, o corpo, a afetividade, o 
psiquismo até a inteligência, a imaginação, a criatividade. Tudo isso foi violado e invadido, 
mobilizado e colonizado, quando não diretamente expropriado pelos poderes.
Mas, o que são os poderes? Digamos para ir rápido, com todos os riscos da simplificação, as 
Ciências, o Capital, o Estado, a Mídia, etc.. Mas, é uma resposta muito geral e excessivamente 
molar pois, no fundo, o poder é muito mais esparramado, disperso, infinitesimal e molecular do que 
esta frase poderia deixar supor. Em todo o caso, o que talvez seja relativamente novo é que estes 
poderes se exercem de maneira positiva. Eles investem cada vez mais a vitalidade social de cabo a 
rabo, intensificando-a, otimizando-a e, ao mesmo tempo, monitorando essa vitalidade social como 
que por dentro, pilotando-a e integrando os seus elementos, ou seja, não é mais um poder que 
reprime propriamente, mas que intensifica e incita.
Eu vou dar um pequeno exemplo: o trabalho dito imaterial, que hoje em dia ao invés de sapatos e 
geladeiras, produz sobretudo imagens, informações e serviços. Ora, esse trabalho, ou melhor, a 
produção desses bens requer dos trabalhadores de hoje não a sua força bruta, nem os seus 
músculos, mas a sua inteligência, a sua imaginação, a sua criatividade, a sua afetividade, a sua 
conectividade. Em suma, é a sua alma, é a sua vida que é requisitada no trabalho. Se antes, essas 
dimensões vitais e essa inventividade pertenciam sobretudo a uma esfera subjetiva e privada, no 
máximo ao campo das artes, elas são hoje um elemento essencial da produção e até mesmo a 
principal fonte de valor. Ao mesmo tempo, o que nós consumimos hoje em dia, mais do que sapatos 
e geladeiras, são estilos de ser, maneiras de viver, formas de vida, sentidos, subjetividade. Assim, 
de uma ponta a outra do circuito econômico, isto é, da produção até o consumo, o que nos é hoje 
extorquido e sequestrado, ora investido e intensificado, ora reformatado e revendido é a vida. Não 
há como deixar de surpreender-se com isso.
A vampirização e a comercialização de formas de vida talvez explique uma parte da nossa 
claustrofobia contemporanea. Se antes ainda tínhamos espaços preservados da ingerência direta 
dos poderes, hoje estamos inteiramente submetidos. Se antes, o inconsciente e a natureza 
pareciam ainda domínios invioláveis para o capital, hoje mesmo eles foram incorporados e postos 
para trabalhar. Se numa sociedade dita disciplinar, ainda tínhamos a ilusão de transitar de uma 
esfera institucional para a outra, com uma margem de manobra e um respiro, digamos, da família 
para a escola, da escola para a fábrica, da fábrica para a caserna, da caserna para o hospital, numa 
sociedade do controle como a nossa, essa margem de manobra parece ter se esvaído. Em suma, o 
corpo, o psiquismo, a linguagem e a comunicação e mesmo a vida onírica, mesmo a fé, nada disso 
preserva já qualquer exterioridade em relação aos poderes, não podendo, portanto, servir-lhes de 
contrapeso ou de âncora crítica na resistência a eles. Os poderes operam de maneira imanente, não 
mais de fora, nem de cima, mas como que por dentro, incorporando, integralizando, monitorando, 
investindo de maneira antecipatória até mesmo os possíveis que vão se engendrando, ou seja, 
colonizando o futuro.
É onde intervém o segundo eixo que eu gostaria de desenvolver, sobretudo em autores da 
autonomia italiana. Autores que a partir de seu espinosismo e do seu marxismo singular, mesclaram 
sua bagagem de luta muito concreta nos anos sessenta na Itália a uma apropriação original da 
filosofia de Foucault e Deleuze. Eu resumo esse eixo da seguinte maneira: quando parece que está 
tudo dominado, no extremo da linha se insinua uma reviravolta que ressignifica a própria dominação 
como segunda. Eu explico: aquilo que parecia inteiramente submetido, como eu acabei de 
descrever, aquilo que parecia subsumido, controlado, dominado, isto é, a vida, revela no processo 
mesmo de sua expropriação, ela revela a sua positividade indomável.
Não se trata de romantizar a capacidade de revide e de resistência da vida nas relações de poder, 
mas sim de repensar a relação entre os poderes e a vitalidade social na chave da imanência. 
Poderíamos resumir este movimento do seguinte modo: ao biopoder, quer dizer, ao poder sobre a 
vida, responde a biopotência, isto é, a potência da vida. Só que este responde não quer dizer uma 
reação, já que a potência se revela como aquele avesso mais íntimo, imanente e coextensivo ao 
próprio poder. Daí a dificuldade de separar o joio do trigo, de saber de que lado estamos, onde está 
o poder e onde está a vida. Isso significa talvez que a própria vitalidade social, quando iluminada 
pelos próprios poderes que a vampirizam, aparece subitamente como uma potência que já estava lá 
desde sempre.
Potência primeira que o poder percebe e sobre a qual ele se constrói e se ancora. Potência primeira 
que goza virtualmente de uma força soberana e constitutiva, inaugural e indomável. Ou seja, aquilo 
que parecia inteiramente submetido ao capital ou reduzido à mera passividade, ou seja, a vida, 
aparece agora ela mesma como um capital, ou melhor, uma fonte maior de produção de valor, como 
reservatório inesgotável de sentido, de formas de existência, de direções que extrapolam em muito 
as estruturas de comando e os cálculos dos poderes constituídos que pensavam pilotá-la. Mesmo 
quando estes poderes se exercem nas suas modalidades mais acentradas, rizomáticas e 
imanentes, ou seja, as forças vivas presentes na rede social deixam de ser reservas passivas à 
mercê do monstro insaciável para se tornarem positividade imanente e expansiva que os poderes se 
esforçam para regular, dominar ou controlar.
Nessa perspectiva, a produção do novo já não aparece como exclusivamente subordinada aos 
ditames do capital, nem como proveniente do capital, muito menos dependentes da sua valorização. 
Essa produção do novo está disseminada por toda a parte e constitui uma potência psíquica e 
política, como diz o Maurício Lazaratto, baseado num sociólogo do século dezenove, chamado 
Gabriel Tarde. Todos e qualquer um inventam na densidade social da cidade novos desejos e novas 
crenças, novas associações e formas de cooperação. É uma maneira muito original de lera 
vitalidade social, que exige aqui um olhar menos reificado sobre os modos de dominação e como 
que os escova à contrapelo, reencontrando a potência de variação e a força-invenção de que esses 
poderes pretendem se apropriar. Força-invenção essa que não emana dos poderes.
Eu falei que a vida, ela mesma, tornou-se fonte de valôres. Em outros termos, se as maneiras de 
ver, de sentir, de pensar, de morar, de vestir-se tornam-se objeto de interesse e investimento do 
capital hoje em dia, elas passam a ser fonte de valor e elas mesmas se tornam um vetor de 
valorização. Eu dou um exemplo simples: um grupo de presidiários ficou famoso ao compor e gravar 
a sua música. O que eles estavam mostrando e vendendo era não só a sua música, nem só as suas 
histórias de vida escabrosas, mas o seu estilo, sua singularidade, a sua percepção, a sua revolta, a 
sua causticidade, a sua maneira de vestir-se, de morar na prisão, de gesticular, de protestar. Em 
suma, a sua vida. Seu único capital sendo a sua vida no seu estado extremo de sobrevida e de 
resistência. É disto que eles fizeram um vetor de valorização. É essa vida que eles capitalizaram e 
que assim se autovalorizou e produziu valor.
Nas periferias das grandes cidades brasileiras, isto se amplia cada vez mais, uma economia 
paralela, libidinal, grupal ou de gang, estética, monetária, política, feita destas vidas extremas. É 
claro que num regime de entropia cultural como é o nosso, essa “mercadoria” interessa pela sua 
estranheza, aspereza, diferença e visceralidade, ainda que também possa ser transformada em 
mero exotismo de consumo descartável. É o caso do meu segundo exemplo, que é quase um 
contraexemplo: alguns anos atrás, eu fui contactado por uma ONG de índios prá ajudar na vinda à 
São Paulo de duas tribos do Xingú. Queriam marcar presença na comemoração dos quinhentos 
anos do descobrimento, porém queriam marcar presença a seu modo, apresentando a força de seu 
ritual e oferecendo ao presidente de então uma carta aberta em que declaravam nada ter a 
comemorar. Eu acompanhei a viagem das duas tribos, Xavante e Meinar, que não se conheciam 
entre si, uma tribo mais guerreira e a outra mais espiritual, num ônibus desde o Xingú até São 
Paulo. Muitos deles nunca tinham visto uma cidade e, na minha qualidade de acompanhante e de 
testemunha, eu segui o olhar deles sobre a cidade: de medo, de espanto, de fascínio. E eles 
queriam que a sua apresentação para os brancos fosse um gesto de afirmação cultural, uma aposta 
em sua sobrevivência no futuro. Mas, como evitar que o sentido ritual e político daquela 
demonstração, uma vez levada a um palco iluminado, não se diluísse numa mera 
espetacularização, inclusive televisiva?
A forma de vida que queria salvaguardar-se correu o rico de ser vista como folclore. É o que 
aconteceu com a maravilhosa exposição de arte indígena que tive o privilégio de visitar junto com os 
índios. Na saída dessa exposição, o cacique me desabafou, num rompante de niestzchianismo 
tropical: “tudo isto é para mostrar a vaidade de conhecimento do homem branco, não a vida dos 
índios”. Nunca ficou tão claro prá mim o quanto a assepsia do museu encobre de violência e 
genocídio: as paredes brancas, a superfície lisa, as curvas e os corrimões metálicos, a luminosidade 
cuidada. Tudo ali ocultava o quanto cada objeto exposto era o expólio de uma guerra. Não havia 
uma gota de sangue em toda a exposição. A morte foi expurgada dali, mas também ali, nessa 
museologização da cultura indígena, reencontramos o nosso vampirismo insaciável.
Quero acrescentar um último exemplo. Arthur Bispo do Rosário é um dos mais destacados “artistas” 
da atualidade no Brasil. Se é que se pode chamar o seu trabalho, feito todo ele ao longo de dezenas 
de anos de vida no hospício, de artístico. Ele, que tinha uma única obsessão na vida, a de registrar 
a sua passagem pela Terra para o dia de sua ascenção aos céus, momento para o qual ele 
preparou seu magestoso manto. Manto da apresentação, onde está inscrita parte da história 
universal. Os museus, os críticos de arte, os colecionadores, os psicanalistas, o mercado, tomaram 
de assalto essa vida singular e também o seu diálogo com Deus e toda essa missão celestial tornou-
se objeto de contemplação estética, como era de se esperar. Embora tenha semeado nos modos 
de conceber a relação entre arte e vida a sua dose de estranheza.
Bem, destes tres exemplos saíram destinos variados: um bandido vira pop star dentro da cadeia; um 
outro recusa justamente o mercado, com o qual ele mantém uma distância crítica; o louco é 
catapultado para a esfera museológica; o índio se indigna com o modo como os brancos empalham 
os signos de sua vida. Muito grosseiramente, eu diria que em todos eles o que está em jogo são 
formas de vida ou a vida. Mas, ora a vida funciona como um capital, no sentido mais radical da 
palavra, como fonte de valor, ora a vida é vampirizada pelo capital, chame-se ele de mercado, mídia 
ou sistema da arte. Quando a vida funciona como capital, no sentido de fonte de produção e valor, 
ela é capaz de reinventar as suas coordenadas de enunciação e é capaz de fazer variar suas 
formas. Quando ela é vampirizada pelo capital, ela é rebatida sobre a sua dimensão nua, como diz 
Agamben, de mera sobrevida, com o que nos transformamos, por exemplo, numa espécie de gado 
cibernético ou cyberzumbis, como formulou Chatelêt no seu belo texto "Pensar e Viver como 
Porcos".
Seria o caso agora de percorrer as duas vias maiores que eu indiquei: o poder sobre a vida e a 
potência da vida, ou seja, o biopoder e as biopotências como numa fita de Moebius. Há uma 
espécie de reversibilidade entre ambos. A partir dessa espécie de explanação um pouco genérica 
poderíamos perguntar o seguinte: dado que o poder se encontra por toda parte e que a biopotência 
é disseminada por todo lado, dada essa força-invenção presente em todo lugar, que novas redes de 
vida vão surgindo? Que novas possibilidades de criar laço ou distância surgem a cada dia? Em que 
sentido, por exemplo, o conceito de multidão, proposto por Tony Negri a partir de Espinosa, poderia 
ajudar a pensar as sociabilidades emergentes neste contexto descrito.
A idéia de multidão é o contrário da idéia de massa. A multidão é heterogênea, plural, desprovida de 
centro, de líder, de hierarquia, de uma direção unívoca, aliás, como se viu nas manifestações 
recentes no Brasil. Ora, o que é comum na multidão tão heterogênea? Uma certa vitalidade 
constituída de linguagem, de inteligência coletiva, de inventividade, de afetação recíproca, de 
sensorialidade alargada. Poderíamos perguntar o que quer a multidão. Mais saúde, mais educação, 
mais serviços, menos corrupção, mais transparencia, uma reforma do sistema político, ou algo mais 
radical do que isto, menos quantificável, portanto, menos negociável, menos traduzível numa bateria 
de propostas já previamente pronta. A saber, novas maneiras de exercer a sua potência, novos 
modos de fazer valer seu desejo, novas formas de expressar sua libido coletiva, de redesenhar a 
lógica da cidade, da coexistência, a lógica da ruptura, do dissenso, inclusive da irrupção do novo.
A multidão é um termo que tenta conjugar essas duas coisas: por um lado, o comum, por outro a 
singularidade. A multidão é um conjunto de singularidades que não se tornam homogêneas, que 
não são reduzidas a uma unidade. A multidão é justamente essa conjunção quase impensável de 
multiplicidade e variação. É aquilo com o que o poder não sabe muito bem o que fazer. Ele tenta 
regulá-la, tenta contê-la, modulá-la. Não tem nada a ver com a massa, a unidade, a medida, a 
soberania no sentido clássico da palavra. E a multidão tem muito menos a ver com tudo aquilo que 
pretende representá-la. Figuras políticas, midiáticas, que ora tentam falar em seu nome, ora tentam 
expropriá-la da sua potência. Daí porque parte de uma resistência hoje passa pelo êxododestas 
instâncias que tentam falar em nome de um comum. E a resistência passa pela experimentação 
concreta e imanente, pela constituição de novos espaços e novos tempos, pela invenção de novas 
formas de cooperação e associação, pela constituição também de novos desejos, novas crenças, 
como dizia o Gabriel Tarde.
Ora, nada disso é simples. Novos desejos... Eu vou me permitir um pequeno desvio a respeito 
dessas expressão enigmática, mesmo que esse desvio soe totalmente deslodado neste contexto. 
Uma autora espanhola, chamada Beatriz Preciado (?), que a nossa editora n-1 vai publicar em 
breve, denuncia o que ela, Preciado, chama de regime farmacopornográfico. Ela mostra como 
"durante o século XX, a libido, a consciência, a mesmo a heterossexualidade, a homossexualidade 
foram sendo "transformadas em realidades tangíveis, em substancias químicas, em moléculas 
comercializáveis, em corpos, em biotipos humanos, em bens de intercâmbio gestionáveis pelas 
multinacionais farmacêuticas". O êxito da ciência estaria em transformar a depressão em Prozac, a 
masculinidade em testosterona, a ereção em Viagra, etc. Diante dessa molecularização, e o termo é 
concreto, não é uma metáfora, do biopoder, mesmo reconhecendo o valor da teorização dos 
italianos que eu mencionei há pouco, ela considera provocativamente que a descrição dos teóricos 
italianos se detém quando chega à cintura, donde a pergunta dela que vou ler para vocês rirem um 
pouco: "mas, se fossem na realidade os corpos insaciáveis da multidão, seus paus e seus clitóris, 
seus ânus e seus hormónios, suas sinapses neurosexuais, seu desejo e sua sexualidade, sua 
excitação e sedução, o prazer da multidão, fossem eles o motor da criação de valor na economia 
contemporânea? Se a cooperação fosse uma cooperação masturbatória e não simplesmente uma 
cooperação entre cérebros?"
Mais radicalmente a questão se amplia: "ousemos as hipóteses: as verdadeiras matérias primas do 
processo produtivo atual são a excitação, a ereção, a ejaculação, o prazer e o sentimento de 
autocomplacência e de controle onipotente. O verdadeiro motor do capitalismo atual é o controle 
farmacopornográfico da subjetividade, cujos produtos são a serotonina, a testosterona, os 
antiácidos, a cortisona, os antibióticos, o estradiol, o álcool e o tabaco, a morfina, a insulina, a 
cocaína, o viagra e todo aquele complexo material-virtual que pode ajudar na produção de estados 
mentais e psicossomáticos de excitação, relaxamento e descarga, onipotência de controle total. 
Aqui inclusive o dinheiro se torna o significante abstrato e psicotrópico. O corpo adicto e sexual, o 
sexo e todos os seus derivados semióticos são hoje o principal recurso do capitalismo pós-fordista". 
Dificilmente se encontrará descrição mais provocativa sobre o niilismo biopolítico e capitalístico 
contemporianeo. Não por acaso, rigorosamente fiel à lógica de Moebius que eu descrevi no início, a 
autora, ao mesmo tempo chama a atenção para a matéria que está aí sendo vampirizada pelo 
capitalismo. Diz ela: "é a força orgásmica" ( ela ainda dá o nome em latim, porque quando criança 
estudou em colégio religioso, onde ela pôde, como mocinha, paquerar todas as mocinhas livremente 
). Diz ela: "essa potentia gaudeme ( ? ), que é a potência de excitação global de cada molécula viva 
que, espinosamente falando, tende a uma ampliação ilimitada e dificilmente pode ser reduzida a um 
objeto privado e comercializável, dada justamente essa sua natureza expansiva e que tende ao 
comum. Mas, o biopoder se acapara desse corpo tecno-vivo, diz ela, desse tecno-eros e o que 
estaria em jogo aí seria precisamente a força orgásmica, que segundo ela não pode ser pensada 
como uma matéria inerte ou passiva a não ser quando ela é reduzida pela farmacopornografia, 
quando é expropriada e reduzida ao que se poderia chamar de vida nua.
Bom, é óbvio que a descrição de Preciado, num certo sentido, crava na carne do presente e 
percorre a latitude do biocorpo, às voltas com o que ela chama, a seu modo sempre polêmico, de 
lucro ejaculante, do qual estariam por ora excluídas massas inteiras do planeta, para o bem e para o 
mal.
Em todo o caso, para aleem da descrição viva de um contexto que nosso pudor tem dificuldade de 
nomear, Preciado teve o mérito de oferecer o próprio corpo como uma espécie de laboratório, em 
que ela experimenta voluntariamente certas derivas da sensibilidade e do erotismo a partir de um 
protocolo de intoxicação voluntária à base de gel de testosterona. Ela esclarece em seu livro, que 
pode ser lido como um manual de bioterrorismo de gênero na escala molecular, bem como um 
exercício de desmontagem da subjetividade. Bom, se o capitalismo mobiliza tudo prá interromper, 
ou melhor, ao mesmo tempo vampirizar e interromper a proliferação das intensidades do desejo... 
Se o capitalismo esmaga as virtualidades não finalizadas do desejo, seria preciso retomar tudo isso 
à luz de uma perspectiva que justamente coloca no centro a questão do desejo.
O desejo, segundo Deleuze e Guattari, é o irracional de toda a racionalidade. Implica uma ruptura 
de causalidade. Rompe com causas e metas. A única causa do desejo é uma ruptura de 
causalidade e embora se possa e se deva assinalar nas séries atuais os fatores objetivos que 
tornaram possível tal ruptura, com elos mais frágeis, só o que é da ordem do desejo e de sua 
irrupção dá conta da realidade.
 
veja o final da palestra no próximo post a ser publicado aqui:
http://www.redehumanizasus.net/63635-viver-nao-e-sobreviver-para-alem-da-vida-aprisionada-
segunda-parte
 
Iza Sardenberg
Tags: biopoder biopotência multidão regime fármacopornográfico vida vida nua biopolítica 
Estado/Cidade: São Paulo/São Paulo

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