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Vargas, Eduardo Viana - Antes tarde do que nunca

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Eduardo Viana Vargas 
ANTES TARDE DO QUE NUNCA 
Gabriel Tarde e a emergência das ciências sociais 
t u rlf • f av« n O f z anG aç 
l tinta ou à 16pl• no ta publloao 
720002411 
:opyri ght: © Ed uar lo Vi ana Vargas, 2000 
Capa, projeto gráfico e preparação 
Contra Capa 
ANTES TARDE DO QUE NUNCA: Gabriel Tarde e a emergência 
das ciências sociais - Eduardo Viana Vargas - Contra Capa 
Livraria; 2000. 
(Territórios sociais nº 3) 280 p.; 14 x 21 cm 
ISBN: 85-86011-33-9 
Inclui bibliografia e índice remissivo. 
Apoio 
Doutorado em Sociologia e Política 
FAFICH/UFMG 
2000 
Todos os direitos desta edição reservados à 
Contra Capa Livraria Ltda. 
<ccapa@easynet.com.br> 
-------------~ 1ua Barata Ribeiro, 370 - Loja 325 
MUSEU NAC! ONAL 22040-040 - Rio de Janeiro - RJ 
Tel ( 5 21) 236-1999 / Fax (55 21) 256-0526 
DEP, DE ANTRo,:·G.LOGIA . 
BIBLIOTEC,\ 
Nº REG. J 2 8 6 1 
Mudanças ambivalentes 
Um campo social em transformação 
No fim do século XVIII e durante todo o século XIX, a França 1"<11 
palco de uma série de mudanças históricas. São vários os fenôm eno~ 
que indicam essas mudanças. Entre os mais expressivos contam-se :1 
queda dos pilares do Antigo Regime (a Monarquia Absolutista, o Est:1 
do Católico e o Regime Feudal), o surgimento do capitalismo com o 
nova ordem de produção, a paulatina constituição de um aparelho de 
Estado laico e burocrático, a ascensão da burguesia, a emergência das 
"classes perigosas", o nascimento da grande indústria, o ativo processo 
de urbanização e o aparecimento das multidões citadinas. 
Essas mudanças, no entanto, não se processaram sem que se de-
sencadeasse uma violenta ruptura com relação aos códigos que regiam 
o campo social do Antigo Regime. Efetivando uma intensa deses-
truturação social e mobilizando novos e inusitados alinhamentos de 
forças, essa ruptura desenrolou-se experimentando uma dramática pas-
sagem, um salto trágico que pôs abaixo os códigos sociais que prevale-
ciam e tornou possível a emergência de um novo campo social no' sécu-
lo passado. É com relação à constituição desse novo campo social que 
se pode situar a liberação epistemológica das ciências sociais. 
O cenário desenhado na França a partir do fim do século XVIII e 
durante todo o século XIX é o de um campo social em profunda muta-
ção. Como apontou Eugen Weber, "o século XIX tinha o hábito de 
encerrar as coisas. A cortina caía rapidamente sobre os regimes, revo-
luções, classes dominantes e ideologias, erguia-se e depois baixava de 
novo" (1986: 9-10); mas ele "também gostava de inícios". E entre 
esses términos e esses inícios, deu-se a dramática passagem, a ruptura 
que consolidou o capitalismo como nova ordem de produção. Não 
que não houvesse justaposições, interações ou ecos com os códigos do 
Antigo Regime, pois a constituição de um novo campo social não se fez 
de maneira unívoca, acabada, sem oscilações ou sobressaltos. O mais 
marcante, porém, é que ela se deu por meio de um intenso processo de 
descodificação ou desterritorialização que impôs, de modo geral, um 
termo aos códigos sociais que prevaleciam, sem que novos códigos se 
implantassem de imediato com a mesma força e consistência dos 
64 
A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA FRANÇA 
11 11111 d· utrora. É necessário ressaltar, pois, que tal mutação fre-
111 1111 111 ·11r · e fez a partir de uma intensa desestruturação social, tendo 
111111li1 v •z 'S contribuído para fermentá-la. 
(\ i 11 stab ilidade aparece, por exemplo, nas diversas reviravoltas 
11111!1 h .i s 1u c freqüentemente resultaram de conflitos sangrentos: nos 
, 1 11 1 dL· ' 111 anos que se seguiram à Revolução de 1789, a França 
, t111 l1 • 't ll nada menos do que nove regimes de governo, sendo um 
1 11 11 1il nd , dois Impérios, três Monarquias e três Repúblicas, os quais 
11111du'l.ira111 mais de uma dezena de Constituições. Essa instabilidade 
1111 , 111hito dos regimes de governo, no entanto, é apenas um traço mais 
1 v1d1·11t , dos antagonismos que cortavam de alto a baixo o campo social 
l I i1 1 ll s do século passado. Segundo Ortiz: "pode-se ter um quadro da 
1 11 11 •, quando se sabe que, até 1870, a maioria das pessoas habitava a 
11 111 rnral e encontrava-se afastada dos destinos nacionais; em 1863, 
11111 quarto da população não falava sequer o francês, vivendo em co-
111t111idades que possuíam idiomas próprios. Era comum, pois, falar da 
,,. istência de 'duas Franças'. Uma civilizada, culta, herdeira da Revolu-
' o , do espírito iluminista; outra selvagem, rude, infensa às transfor-
111:1 ões, conservadora de um modo de ser característico do Ancien 
/~18 ime" (1989: 7). 
Mas se as oposições do tipo "campo/cidade", "selvagem/civilizado", 
" ·onservador/iluminista" ou "arcaico/moderno" podem compor um 
quadro verossímil de certos aspectos fundamentais do campo social 
francês da época, este não estava dividido apenas segundo oposições 
·omo essas. Para se ter um quadro mais preciso, é necessário levar em 
conta os duros conflitos de classe, por exemplo, entre a burguesia as-
cendente e o proletariado emergente (oposição constantemente 
deslocada pela intervenção dos "miseráveis", ou populações lúmpen), 
u ainda situações como as derivadas do intenso processo de urbaniza-
ção que, mudando a face da região parisiense, fez dela palco de um 
inquietante espetáculo em que a pobreza se imiscuiu e compôs grande 
parte das multidões anônimas e amotináveis que passaram a perambular 
por seus prósperos territórios. 
Comentando "a turbulenta história das primeiras décadas da 
[Terceira] República", Therborn afirma que ela "foi gerada num campo 
de três forças básicas[ ... ]. De um lado havia a direita anti-republicana, 
aprovada pela igreja e liderada pelos nobres proprietários de terra e 
pelos magnatas das finanças e da indústria [ ... ]. Eles estavam dividi-
dos por sua fidelidade a dinastias diversas (Bourbon, Orléans, 
Bonaparte), o que salvou a República durante o período de 1871-1877, 
65 
ANTES TARDE DO QUE NUNCA 
quando os monarquistas tinham maioria padamentar. O pólo .ºp.os-
to era constituído pelo movimento operário, que fora repnmid o 
nos anos 1870 depois do massacre dos Communards, quando entre 
vinte a trinta mil trabalhadores e outros oriundos das camadas mais 
pobres de Paris foram assassinados no Terror Branco_. Ele começou 
a reviver na década seguinte. Sindicatos foram organizados, peque-
nos grupos socialistas se reuniram, violentas lutas de classe [ .. . ] ocor-
reram [ ... ]. Entre esses dois pólos estava o território ocupado pela 
força que governou a República após o fracasso da tentativa mona~-
quista de tomar o poder em 1877. Ela era composta pel,os repub.h-
canos burgueses e pequeno-burgueses, que lutavam por uma soC1e-
dade sem Deus e sem Rei', como Jules Ferry uma vez afirmou, quando 
lhe perguntaram sobre seu programa político. Eles instituíram a re-
forma educacional [ ... ] e lutaram uma longa e cansativa batalha para 
a separação da Igreja e do Estado. Sob sua égide, a França avançou 
numa política vigorosa e brutal de conquistas i~perialistas e de ex-
pansão além-mar - a Tunísia, boa parte da Africa Ocidental, de 
Madagascar e da Indochina foram conquistados e ocupados nesta 
época" (1976: 262-3). 
Contudo, apesar de o campo social francês do século passado 
estar cindido por uma oposição radical entre ricos e pobres, aristocra-
tas, burgueses e proletários, os alinhamentos de forças que o atr~vessa-
vam, bem como os antagonismos e as tensões que lhe eram propnos, 
não necessariamente se resolviam, ou não se resolviam de uma vez por 
todas na lógica das oposições de classe. É que, nesse campo, também 
' . . 
se entrecruzavam segmentos tão heterogêneos quanto a antiga ansto-
cracia predominantemente católica e provinciana, que lutava pelo res-
gate dos privilégios perdidos, a alta burguesia financeira eindustrial, 
que se tornou hegemónica com o capitalismo, a média e. baixa bur.gue-
sias em busca de ascensão e afirmação social, o proletanado mais 111te-
grado ao sistema econômico emergente e as "classes p~rigosas" ,ºu .º 
Jumpemproletariado, que continuamente punham em nsco a vigencia 
do novo sistema. A segmentaridade do campo social francês do século 
passado não se resumia a essa segmentação de natureza ec~?ômica. El.a 
compreendia ainda várias outras: algumas de natureza pol1t1ca, as quais 
distinguiam monarquistas, bonapartistas, liberais, republicanos mode-
rados e radicais, socialistas e anarquistas, entre outros; algumas de na-
tureza religiosa, com católicos, protestantes, judeus, agnósticos, ateus 
e outros; e outras de natureza sexual, como, por exemplo, os cortes de 
gênero e as lutas feministas. 
66 
A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA FRANÇA 
Essas segmentações de diferentes naturezas às vezes se recobriam 
umas às outras, de tal modo que a uma oposição de classe correspondia 
uma opção política e/ou religiosa, mas essa correspondência não era 
necessária, nem estrita. Isso porque os diferentes segmentos não eram 
completamente fechados em si mesmos - sendo sempre possível for-
mar dissidências - como também estavam sujeitos a alianças e 
enfrentamentos que mobilizavam, de modo heterogêneo e, po,r vezes, 
casual, uma multiplicidade de fatores, o que freqüentemente deslocava 
o sentido das composições e das lutas em curso. O mosaico que esses 
diferentes segmentos compunham era, então, o de um campo social 
complexo, tenso e fragmentado que, embora marcado por uma acen-
tuada distância entre ricos e pobres, nem sempre estava subsumido à 
dialética das oposições de classe. 
Diante de um campo social tão heterogêneo e em meio a inten-
sos processos de mudanças, não é de admirar que as últimas décadas 
do século passado tenham sido marcadas por grande ambivalência. 
Foram décadas de desenvolvimento, de conquistas técnicas que im-
plicaram expressivas alterações nas condições de vida e nos meios 
de existência de muitas pessoas. Foram anos que viram aparecer 
ou se difundir, numa escala sem precedentes, meios de transporte 
mais rápidos e baratos, novos modos de aquecimento e iluminação 
e mais acesso à alimentação, à água, ao vestuário e à informação; 
foram os anos das bicicletas e do transporte coletivo de massas, 
das lâmpadas elétricas e da produção padronizada de roupas, dos 
telégrafos e dos telefones, das máquinas de escrever e dos jornais 
de grande circulação. 
Foram ainda os anos da "revolução" promovida pela microbiologia 
pasteuriana que, em seus desdobramentos político-sanitários e retórico-
científicos, mudou profundamente as percepções e ações em torno da 
limpeza e da sujeira, da saúde e da doença e das formas de enunciação 
da "verdade". De um lado ou de outro, ela acentuou o trabalho de 
purificação do ambiente, dos corpos e dos fatos que, paradoxalmente, 
tornou possível a mobilização, em escalas sem precedentes, de híbridos 
ambientais, corporais e factuais. Essas conquistas, que não eram ape-
nas técnicas, possibilitaram, sob certos aspectos, a melhoria das condi-
ções de vida de muitas pessoas, mas não de todas, já que a maioria dos 
franceses continuava vivendo em condições quase medievais. Apesar 
disso, sob outros aspectos, elas também criaram inúmeros outros pro-
blemas e interditaram antigas alternativas de solução para questões de 
socialização, saúde pública, criminalidade, controle populacional e 
67 
ANTES TARDE DO QUE NUNCA 
ambiental etc., para não citar as mudanças mais diretamente ligadas à 
percepção e~ sensibilidade então em curso18 • . 
Esses mesmos anos de fin -de-siecle foram também anos de msta-
bilidade política e social, de depressão moral e econômica. Foram os 
anos da humilhante derrota francesa frente à Prússia na guerra de 1870, 
da violenta repressão ao levante popular da Comuna de Paris em 1871, 
da queda do Segundo Império e da difícil implantação da Terceira Re-
pública, das primeiras crises econômicas do capitalismo e, conse-
qüentemente, de desemprego, de violentas greves e manifestações ope-
rárias, da crise Boulangista de 1889 e do escândalo de espionagem 
internacional (mas que foi muito mais do que isso) do caso Dreyfus, 
em 1894-1905. Enfim, as mudanças históricas que mudaram o perfil da 
França ao longo do século XIX, e que fizeram seu fragmentado campo 
social passar por um violento processo de ruptura e mutação, deixaram 
como legado às últimas décadas do século a marca da ambivalência. A 
ambivalência atestava que, embora a França conhecesse certa prosperi-
dade, não deixava de estar imersa em um inquietante processo de 
desestabilização política, social, econômica e moral, que chegava a lançá-la 
à beira de uma guerra civil. Isso não quer dizer, porém, que a ambi-
valência fosse um fenômeno exclusivamente do fim de século. Ao con-
trário, desde a Revolução de 1789 a França conheceu a alternância de 
momentos de euforia desenvolvimentista e momentos de instabilidade 
ou comoção nacional. No entanto, nas últimas décadas do século pas-
sado, essa ambivalência, ou melhor, sua dimensão desestabilizante tor-
nou-se mais intensa e objeto de inúmeras preocupações e reações. 
As mutações das relações de poder 
Na investigação do processo de emergência das ciências sociais, é preci-
so não perder de vista que as mudanças históricas que sacudiram a Fran-
ça a partir do século XVIII não se realizaram sem que, c01icomitantemente, 
se processasse um radical deslocamento no âmbito das relações de poder. 
Pode-se mesmo dizer que, em boa parte, essas mudanças históricas se 
constituíram precisamente sobre esse deslocamento. 
18 Sobre Pasteur e a microbiologia, veja Latour (1984); sobre as atividades 
de purificação e hibridização da constituição moderna, veja Latour (1991); 
sobre as transformações da higiene corporal, veja Vigarello (1985); sobre as 
mudanças olfativas e a mania de desodorização, veja Corbin (1982) . 
68 
A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS SOC IAIS NA FRANÇA 
As análises de Foucault são esclarecedoras a esse respeito. A par-
tir delas, percebe-se que tal deslocamento diz respeito ao paulatino 
abandono dos dispositivos políticos prevalecentes no Antigo Regime, 
os quais estavam ancorados no privilégio da regra jurídica da lei - que 
previa a defesa do corpo soberano e se fundamentava em seu direito de 
"causar a morte ou deixar viver" (Foucault 1976a: 128) - e se efetiva-
vam sob a forma de encenações majestosas que encontravam no cará-
ter espetacular dos suplícios públicos seu mecanismo privilegiado de 
visibilidade. Como disse Foucault (idem), "o poder era, antes de tudo, 
nesse tipo de sociedade, direito de apreensão das coisas, do tempo, dos 
corpos e, finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apode-
rar da vida para suprimi-la" . Em seu lugar, pouco a pouco se constituiu 
"uma nova economia do poder, segundo a qual se deve propiciar si-
multaneamente o crescimento das forças dominadas e o aumento da 
força e da eficácia de quem as domina" (Foucault 1976b: 188). Essa 
nova economia do poder, nomeada de disciplinar por Foucault, visava 
tanto a majoração e a multiplicação das forças empenhadas na produ-
ção, quanto sua ordenação e gestão, isto é, visava torná-las tão mais 
úteis, quanto mais dóceis. Com os dispositivos disciplinares, o direito 
do soberano de "causar a morte ou deixar viver" deu lugar à "adminis-
tração dos corpos e à gestão calculista da vida" (Foucault 1976a: 131). 
Daí a importância crescente assumida pela atuação da norma, já que os 
disfositivos d_iscipl_inares não tinham mais tanta relação com o código 
1und1co da lei, denvado da soberania, mas sim com o código da nor-
malização, cujo horizonte teórico passou a ser constituído pelo domí-
nio das ciências humanas (Foucault 1976b: 189). Por essa razão, já não 
é o corpo do soberano que deveser protegido, e sim o corpo da socie-
dade, que se torna, no decorrer do século XIX, o novo foco de atenção 
e princípio de articulação política. Será necessário defendê-lo "de modo 
quase médico": "a eliminação pelo suplício é, assim, substituída por 
métodos de assepsia", conclui Foucault (1975b: 145) 19. 
O deslocamento no âmbito das relações de poder resultou em seu 
exercício cada vez mais sutil, em níveis cada vez mais infinitesimais. 
Assim, a figura piramidal que articulava o campo social do Antigo Re-
gime e que mscre~1a em nomes próprios e letras maiúsculas as regiões 
onde o poder fazia emanar suas regras conheceu seus derradeiros es-
pasmos ao longo do século XIX. O poder já não pode mais ser exerci-
do em nome de Deus ou do Rei. No vazio aberto pelo esboroamento 
19 A esse respeito, ver também Foucault (1975a). 
69 
ANTES TARDE DO QUE NUNCA 
da monarquia divina e absolutista e do emaranhado de códigos sociais 
que regiam a vida no Antigo Regime, e que com ele ruíram, surgiu um 
novo problema: era necessário e urgente constituir um outro princí-
pio, um outro plano sobre o qual fosse possível exercer o poder de 
modo eficaz, isto é, de um modo que não só contivesse o processo 
ruinoso e desagregante decorrente da falência dos códigos sociais do 
Antigo Regime, mas também fosse capaz de garantir e levar adiante as 
transformações implementadas pelo capitalismo. Desde o final do sé-
culo XVIII, procurou-se esboçar os contornos desse outro princípio, 
desse outro plano. Ele, contudo, só seria definido de maneira precisa e 
consistente durante o período da Terceira República. Desde então, já 
não é mais em nome ou a favor de Deus ou do Rei que o poder deve ser 
exercido, mas cada vez mais e tão-somente a favor e em nome da soci-
edade. 
Essa talvez tenha sido a elaboração mais importante do século 
XIX francês. Num certo sentido, pode-se mesmo arriscar a dizer que 
foi nesse momento que se inventou a "sociedade", desde que por esta 
se entenda, por um lado, uma entidade abstrata criada para funcionar 
como princípio unificador do campo social e, por outro, uma realida-
de concreta definida pela intervenção contínua das relações de poder. 
Da defesa do corpo soberano à defesa do corpo social, foi o próprio 
princípio do exercício do poder que mudou; e mudou do mesmo modo 
com que passou a investir em um novo plano de atuação. 
É preciso ressaltar ainda que esse deslocamento no âmbito das 
relações de poder não se produziu de maneira tranqüila. Ao contrário, 
embora só tenha se tornado possível e necessário à medida que se pro-
duziu a ruptura com os códigos do Antigo Regime, ele muito fez para 
acentuar essa ruptura e, com isso, a grande instabilidade social que 
tomou conta do campo social francês do século passado. Por isso, um 
tema recorrente à época desse deslocamento dizia respeito à sensação 
de vácuo deixada pela ruína dos códigos sociais do Antigo Regime, 
sendo ela apreendida, sobretudo, sob a forma de uma intensa preocu-
pação moral. 
A inquietação moral com o que seria uma espécie "mórbida" de 
ausência de regras se fez presente ao longo de todo o século passado, 
mas se intensificou no período republicano. Nessa ocasião, o problema 
estava constituído aproximadamente da seguinte maneira: com a queda 
do Antigo Regime e de uma ordem social cuja moral estava fundamen-
tada em absolutos religiosos a partir de então rejeitados, era necessário 
constituir uma nova ordem social fundada em outros preceitos morais. 
70 
A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA FRANÇA 
No período republicano, esses preceitos se evidenciariam: tratava-se, 
então, de constituir uma moral puramente racionalista, isto é, uma 
moral que não estivesse mais fundada em profissões de fé, mas que se 
apoiasse exclusivamente em idéias, sentimentos e práticas sujeitas ape-
nas à jurisdição da razão. Foi sob a forma dessa intensa preocupação 
moral que o deslocamento no âmbito das relações de poder se fez acom-
panhar de um deslocamento não menos radical no âmbito dos ,discur-
sos da "verdade" . 
O deslocamento dos discursos da "verdade" 
O inquietante processo de desestruturação política, social, econômica 
e moral que traçou em relevo a instabilidade do mutante campo social 
francês do século passado se constituiu em uma das preocupações fun-
damentais dos intelectuais que moldaram a idéia laica do regime da 
Terceira República. Não foram poucas as tentativas de lidar com esse 
processo de desestruturação. O que é marcante, contudo, é o fato de 
que boa parte dessas tentativas fez do investimento na produção de 
saber um instrumento de natureza essencialmente estratégica para o 
dispositivo político que então se implantava. 
Que a época da Terceira República tenha sido fecunda em tentativas 
de lidar com esse processo de desestruturação mediante o investimento na 
produção de saber não quer dizer, no entanto, que outras demandas nesse 
sentido não tivessem sido feitas antes desse momento. Ver-se-á adiante 
que essas demandas se fizeram sentir ao longo de todo o século passado, 
ou mesmo um pouco antes. Se essas demandas e suas ancoragens socio-
políticas já se faziam sentir há bom tempo de forma mais ou menos consis-
tente, foi somente durante o período da Terceira República que se apre-
sentaram de forma extremamente aguda e tornaram o investimento na 
produção de saber um procedimento político sistemático. 
Um dos principais aspectos desse investimento - aspecto funda-
mental não apenas para a liberação epistemológica das ciências sociais, 
mas sobretudo para o posterior predomínio de determinados discursos 
relativos às ciências sociais em detrimento de outros - diz respeito ao 
fato de que as mudanças nas relações de poder anteriormente referidas 
se fizeram acompanhar de perto por um deslocamento não menos ra-
dical no âmbito dos regimes discursivos. 
Nesse período de inúmeras turbulências, quando a França, derro-
tada e às beiras da guerra civil, era sacudida, interna e externamente, 
por uma sucessão de crises, tratava-se antes de tudo de fazer passar sua 
71 
ANTES TARDE DO QUE NUNCA 
salvação política pela via do saber; e tratava-se de fazê-lo mediante o 
estabelecimento de novos saberes que não apenas informassem os no-
vos quadros políticos que então se constituíam, mas também fossem 
capazes de normalizar (tanto no sentido de tornar normal, quanto no 
de estabelecer a norma) o desestabilizado campo social francês do sé-
culo passado. Nesse contexto, o que se via não era uma série de acon-
tecimentos traumáticos servindo como meros "estímulos" a uma pro-
dução supostamente independente e desinteressada de saber; nem os 
problemas surgidos, quando situados em termos de saber, se resumiam 
a quiproquós ideológicos, em que a "verdade" seria politicamente en-
coberta para camuflar interesses de classe. 
Considerando-se, com Foucault (1977: 12-4), que o problema 
político diz respeito ao próprio estatuto da verdade, isto é, que "a ver-
dade é deste mundo", que ela é historicamente produzida e não existe 
fora dos regimes de poder, que está "ligada a sistemas de poder, que a 
produzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a repro-
duzem", pode-s,: dizer que, nesse contexto, o que estava em jogo era 
um investimento político na produção de saber, o qual implicava um 
profundo deslocamento no âmbito da economia dos discursos da ver-
dade. Em suma, tratava-se de implantar um novo regime discursivo em 
que apenas o discurso científico pudesse funcionar e ser acolhido como 
verdadeiro, isto é, um regime que atrelaria a ele os mecanismos e as 
instâncias, as técnicas e os procedimentos que capacitariam distinguir 
o falso e o verdadeiro; enfim, um regime que faria com que a 
"científicidade" de um discurso se tornasse o critério fundamental de 
avaliação de seu compromisso com a "verdade". 
Esse aspecto do investimento político na produçãode saber apa-
rece de forma clara no duro confronto entre o que ficou conhecido 
como a "tradição letrada" e o novo modo "científico" de produção de 
saber. Como assinalou Lepenies, essa competição "revela um dilema 
que determinou não só como a sociologia se originou, mas também 
como ela então se desenvolveu: ela oscilou entre uma orientação cientí-
fica que a levou a imitar as ciências naturais e uma atitude hermenêutica 
que desviou a disciplina para o reino da literatura. A controvérsia entre 
uma intelligentsia literária e uma intelligentsia devotada às ciências sociais 
foi, então, um aspecto de um complexo processo no curso do qual modos 
de procedimento científico tornaram-se diferenciados de modos literári-
os; e esse divórcio foi ideologicamente acentuado através do confronto 
entre a racionalidade fria e a cultura dos sentimentos" (1988: 1) . 
72 
A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS SOCIA IS NA FRANÇA 
Lepenies afirma ainda que as ciências se distanciaram da literatu-
ra no momento em que esta foi excluída "do cânon do conhecimento 
estabelecido" (ibid: 2-3 ). O distanciamento com relação à literatura 
acabou por se tornar um dos elementos fundamentais da estratégia de 
reconhecimento institucional das ciências sociais, especialmente da 
sociologia. Procedeu-se então ao desenvolvimento de "um processo de 
purificação intradisciplinar: disciplinas como a sociologia, que, inicial-
mente, não eram reconhecidas pelo sistema de conhecimento e al~eja-
vam sê-lo, buscaram fazer isso distanciando-se das formas literárias 
primitivas de sua própria disciplina [ ... ]. Desse processo surgiu uma 
competição entre uma intelligentsia literária composta de autores e 
críticos e uma intelligentsia científico-social" (ibid: 7). 
A constituição da sociologia como "ciência" (bem como a das 
outras "ciências" sociais) se deu, portanto, em meio a um confronto 
com as formas literárias de produção de saber. Esse confronto com a 
literatura, porém, apresentou-se ainda sob diversos outros modos, os 
quais ora se recobriam, ora não. Sucintamente, pode-se dizer que o 
deslocamento dos regimes discursivos implicava uma série de oposi-
ções dinâmicas em função das quais o discurso que se pretendia "cien-
tífico" e que encontrava seus índices de científicidade no privilégio do 
racionalismo, do rigor do método, da objetividade, da especialização e 
dos artigos de pesquisa, procurava se distanciar dos discursos 
"metafísicos" ou "teológicos", que se caracterizavam, entre outras coi-
sas, pelo privilégio da cultura dos sentimentos, da liberalidade retóri-
ca, da introspecção, do ecletismo, do amadorismo diletante e dos en-
saios mundanos2º. 
Essas oposições foram cruciais para a institucionalização da socio-
logia no sistema universitário reformado pelos republicanos porque 
permitiram contrapor o novo "espírito científico" à "tradição letrada" 
até então dominante nas Facultés des Lettres, vale dizer, naquelas que 
deram guarida à sociologia científica de Durkheim e de seus seguido-
res. E também porque permitiram desqualificar, em nome desse mes-
mo "espírito científico", os diversos discursos de cunho sociológico e 
de inspiração não durkheimiana produzidos quer em instâncias para-
universitárias, quer no próprio seio do sistema universitário, mas fora 
20 Além de Lepenies (1988), ver Chamboredom (1975: 14-5) e Clark (1973: 
255ss). 
73 
ANTES TARDE DO QUE NUNCA 
dasFacultés des Lettres, os quais foram desdenhados, a partir de então, 
como discursos ecléticos, obras de diletantes e de amadores. 
Cabe ressaltar ainda que o processo de institucionalização da so-
ciologia, assim como o de várias outras novas disciplinas que ingressa-
ram no sistema universitário francês na mesma época, está diretamen-
te relacionado com o forte movimento de especialização disciplinar 
que se tornou uma das faces mais marcantes das reformas educacionais 
republicanas. Como notou Apfelbaum, esse processo configurou-se com 
a entrada em cena de um "verdadeiro grupo profissional" que reivindi-
cava, em nome da conquista, sobre o plano institucional, da "emanci-
pação das ciências humanas e sociais", quer o "monopólio da produ-
ção e da reprodução de saber", quer o "poder de designar o que é 
relevante na psicologia ou na sociologia e o que delas está excluído" 
(1981: 397-8). 
Esse processo se configurou, portanto, com a entrada em cena de 
um grupo que se opunha às incursões de "diletantes" e de "amadores" 
nos seletivo~ e imaculados domínios da ciência. Se esse processo coin-
cidiu com a mudança do regime de qualificação dos saberes, continua 
Apfelbaum, foi porque ele traçou uma linha divisória que determinou 
a existência simultânea de "um saber legítimo instituído" e de "um 
saber desqualificado, inscrito em baixo-relevo" (idem). Além disso, esse 
processo marcou a necessidade de obediência aos novos padrões cien-
tíficos de produção de saber, seja para que os saberes pudessem con-
quistar legitimidade acadêmica, seja para que fossem reconhecidos e 
veiculados como "verdadeiros", tendo sido depositada a condição de 
validade desses saberes exclusivamente na sua concordância com rela-
ção ao sistema de avaliação tornado comum. 
Não por acaso, o deslocamento dos regimes discursivos, mediante 
o qual o discurso "científico" passou a ser considerado o único dotado 
de "verdade", se constituiu, em sua forma mais consistente, paralela-
mente às mudanças dos regimes de poder que, embora viessem se pro-
cessando há longa data, se cristalizaram a partir do período republica-
no. Como insinuou Chamboredon (1975:15), a renovação científica 
parece ter ocupado na ordem do saber uma posição homóloga à que a 
reconstrução republicana ocupou na ordem do poder. 
Num plano mais geral, poderíamos ser tentados a ver, nesse des-
locamento dos regimes discursivos e nessa especialização do saber, os 
resultados da ação do "progresso científico" ou, como disse Max Weber, 
dessa "fração, a mais importante, do processo de intelectualização que 
sofremos há milhares de anos" (1922: 165). Nesse caso, então, a 
74 
A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA FRANÇA 
institucionalização das ciências sociais no quadro das reformas repu-
blicanas se constituiria como um desdobramento particular de um 
movimento mais geral de "crescente intelectualização e racionaliza-
ção" da vida, o qual se fundamentaria no postulado de que "se quisés-
semos, poderíamos ter esse conhecimento [maior ou geral das condi-
ções sob as quais vivemos] a qualquer momento" (idem, grifo do autor). 
Ainda nesse caso, tal crescente racionalização significaria, como afir-
mou Weber em uma passagem célebre, "que o mundo foi dese~cantado" 
(idem). 
No entanto esse deslocamento dos regimes discursivos e a especia-
lização disciplinar que lhe é correlata também podem ser interpretados 
como resultantes da ação de um conjunto de práticas de "purificação" que 
não apontam exatamente para o "desencantamento do mundo", mas 
antes para novas modalidades de "encantamento". Essas novas moda-
lidades de encantamento se evidenciariam, por exemplo, sob a forma 
da crença, arrogante e "moderna", segundo a qual os ocidentais seri-
am, em razão de seu conhecimento científico, absolutamente diferen-
tes e superiores a todos os demais povos que já habitaram e habitam a 
face da terra . Como afirmou Latour em um texto tão instigante quanto 
polêmico, a grande partilha entre "nós" e "eles" suposta nessa crença é 
a exportação daquela outra estabelecida entre os "humanos" e os "não-
humanos", partilha esta que se tornou a condição de possibilidade da 
política e da ciência "modernas" (1991 : 96). 
Nesse caso, talvez se possa dizer que a institucionalização das 
ciências sociais no quadro das reformas republicanas se constituiu como 
um desdobramento particular não da "crescente intelectualização e 
racionalização" da vida, mas de um processo de partilha mais amplo,que, entre outras coisas, faz andar juntos certo zoneamento ontológico 
da realidade e a criação das disciplinas científicas especializadas em 
enunciar a "verdade" a respeito de cada domínio ontológico. Ainda 
nesse caso, nenhuma outra disciplina ou saber não científico teria com-
petência para ultrapassar as fronteiras desses domínios, estando inter-
ditadas a partir de então as possibilidades de serem pensadas as mistu-
ras e os híbridos, a não ser como pureza deteriorada ou ainda não 
conquistada. Entretanto, como indicou Latour, esse mundo que separa 
nitidamente as coisas e as pessoas, a ciência e a política, a natureza e a 
sociedade, enfim, esse "mundo moderno jamais existiu, no sentido de 
que jamais funcionou de acordo com as regras de sua Constituição" 
(ibid: 44). 
75 
Quando saber também é poder 
A salvação política investida na produção de saber 
O deslocamento dos regimes discursivos não foi o único aspecto do 
investimento político na produção de saber em curso na França da 
virada do século XIX. Ele se acompanhou de um deslocamento não 
menos expressivo no âmbito dos temas desses discursos, os quais pas-
saram a visar intensamente, embora não exclusivamente, tanto uma 
radical reforma do sistema de ensino francês, como a produção de 
saberes relativos ao "social" ou a constituição do "social" como objeto 
privilegiado de saber. 
As repercussões da humilhante derrota francesa frente à Prússia 
na guerra de 1870 esclarecem a necessidade de um sistemático investi-
mento político na produção de saber, assim como as direções tomadas 
por esse investimento. Após a guerra, um discurso largamente veicula-
do na França enunciava, nos termos de Ernest Renan21 , que a vitória 
alemã tinha sido "a vitória da ciência". Um ano antes de Renan, Émile 
Boutmy atestara o sucesso científico-militar alemão ao afirmar em um 
de seus projetos de fundação da École Libre des Sciences Politiques: "a 
Universidade de Berlim [ .. . ] triunfou em Sadowa, já se disse com pro-
funda razão" 22 • Nessa época, o contraste entre os dois países era 
marcante : de um lado, a derrota francesa em Sedan, quando Napoleão 
III capitulou, assinalava o declínio sociopolítico francês, também evi-
denciado pela queda do Segundo Império, pela Comuna de Paris e 
pelo início da conturbada implantação da Terceira República; do ou-
tro, a vitória militar prussiana indicava o apogeu do processo de unifi-
cação sociopolítica da Alemanha, que já vinha se delineando ao menos 
desde a vitória sobre os austríacos em Sadowa, em 1866, quando a 
Prússia tornou-se líder da Confederação do Norte e anexou vários ter-
ritórios importantes. Nesse contexto, atribuir o sucesso prussiano à 
ciência que lá se desenvolvia equivalia a atribuir o fracaso dos france-
ses ao estado declinante de seu pensamento. 
21 1Ll Réforme Intellectuelle et Mora/e (Paris, 1872: 55), apud Lukes (1977: 86). 
22 Quelques Idées sur la Création d 'une Faculté Libre d'Enseignement Supérieur 
(Paris, Lainé, 1871: 5), apud Damamme (1987: 33). 
76 
A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA FRANÇA 
Esse declínio foi amplamente testemunhado. Durkheim chegou 
inclusive a falar de "uma espécie de entorpecimento mental", de um 
estado de estagnação, de retração ou de "acalmia intelectual que de-
sonrou o meio do século", e que seria o responsável pela desorganiza-
ção moral do país (1900: 121 -2 e 136). É na seqüência do diagnóstico 
do fracasso que o investimento político na produção de saber aparece 
como o elemento essencial de um receituário de cura capaz de reorga-
nizar o desestruturado campo social francês. Além do já referido deslo-
camento dos regimes discursivos, e estreitamente articulado com ele, 
esse investimento se desenvolveu em duas direções principais. 
De um lado, ele apontou a necessidade urgente de uma reforma 
radical do sistema de ensino francês. Como disse Renan, "se queremos 
nos recuperar de nossos desastres, imitemos a conduta da Prússia. 
A inteligência da França declinou: nós devemos fortificá- la. Nosso sis-
tema de ensino, sobretudo na educação superior, necessita de reformas 
radicais" (1872: 55ss,apud Lukes 1973: 86). Em Boutmy, essa questão 
foi posta da seguinte maneira: "é preciso estar cego para não ver a 
ignorância francesa atrás da louca declaração de guerra que nos con-
duziu aonde estamos. Diz-se por todos os lados que é preciso refazer 
homens, isto é, restaurar nos homens o culto das coisas elevadas ou o 
gosto dos estudos difíceis. É seguramente uma necessidade premente, 
mas antes não é preciso criar a elite que, pouco a pouco, dará o tom 
para toda a nação? Refazer a cabeça do povo, tudo nos leva a isso. A instru-
ção superior toca, então, de muito perto, o primeiro, o mais urgente de 
nossos problemas políticos" (1871: 5-6, apud Damamme 1987: 33). 
Em um artigo sobre a vida universitária em Paris, Durkheim, por sua 
vez, registrou: "estava-se no dia seguinte da derrota. Todos os bons cida-
dãos só tinham um pensamento: refazer o país. Para reconstruí-lo, era 
preciso instruí-lo. Uma sociedade que aspira a governar-se a si mesma 
tem, antes de mais nada, necessidade de 'luzes'. Uma democracia seria 
infiel a seus princípios se não acreditasse na ciência. [ ... ] Constituir cen-
tros de alta cultura onde a ciência encontrasse tudo o que lhe fosse ne-
cessário para se elaborar e de onde ela pudesse se difundir sobre o resto 
da nação, tal foi a tarefa que se impôs" (1918: 465). 
A demanda por uma reforma radical do sistema de ensino fran-
cês, cujo caráter eminentemente político articulava-se com a pregnância 
do discurso científicó, não cairia no vazio. Ao contrário, um de seus 
resultados mais expressivos apareceria durante a década de 1870 com 
o início das reformas do sistema de ensino público levadas a cabo pelo 
governo republicano; essas reformas, que serão analisadas adiante, 
77 
ANTES TARDE DO QUE NUNCA 
desempenharam um papel fundamental no processo de insti-
tucionalização das ciências sociais. Convém lembrar, todavia, que essa 
demanda não teve a produção de seus resultados limitada apenas ao 
âmbito das ações do Estado francês ou à institucionalização das ciênci-
as sociais; também podem ser creditadas à sua ação o aparecimento e/ 
ou a consolidação de inúmeras escolas religiosas ou particulares de 
ensino superior, tais como as Faculdades Católicas ou as diversas insti-
tuições de ensino parauniversitárias referidas anteriormente, ainda que 
ideologicamente muitas dessas escolas ou instituições tenham assumi-
do orientações por vezes francamente divergentes com relação às par-
tilhadas pelos republicanos. 
De outro lado, o investimento político na produção de saber se 
ligou à natureza do campo social francês. Traçando, à sua maneira ou a 
seu favor, a história da sociologia francesa no século XIX, Durkheim, 
cuja viagem à Alemanha após a guerra de 1870 muito contribuiu para 
determinar a via predominante pela qual a sociologia se desenvolveria 
na França, pôde precisá-la: "foi somente no pós-guerra que o desper-
tar [ da sociologia] teve lugar. [ ... ] A organização, aliás toda de fachada, 
que constituía o sistema imperial, acabava de desmoronar; tratava-se 
de reelaborar uma outra ou, antes, de fazer uma que pudesse subsistir 
de outro modo que não por artifícios administrativos, isto é, que esti-
vesse verdadeiramente assentada na natureza das coisas. Para isso, era 
necessário saber o que era essa natureza das coisas; como conseqüên-
cia, a urgência de uma ciência das sociedades não tardou a se fazer 
sentir" (1900: 122-3). 
É, portanto, com relação às metamorfoses do campo social fran-
cês do século XIX que se deve situar o expressivo investimento na 
constituição do "social" como objeto privilegiado de saber ou na pro-
dução de saberes relativos ao "social". Deve-se, contudo, ter em vista 
que o "social" não existia antes, desde tempos remotos (ou míticos),como uma matéria ainda não descoberta e que a "ciência", enfim liber-
ta de seus obscurantismos, enfim "positiva", teria resgatado das 
profundezas do desconhecido ou da ignorância. O "social" não é um 
objeto natural. Ele é, ao contrário, o resultado de uma produção recen-
te e bem datada que articula a liberação epistemológica das ciências 
sociais e a implantação de novos dispositivos de poder. 
A expressividade do investimento político na produção do "social" 
como objeto privilegiado de saber (e na produção de uma ciência que 
tem por competência a análise do "social") foi bem marcada pela 
78 
A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA FRANÇA 
sensação, corrente no final do século XIX, de que "a sociologia estava 
na moda" 23, seja sob a forma mais mundana das "questões sociais" 
amplamente debatidas pelos jornais da época (os quais se faziam cada 
vez mais presentes na vida cotidiana das populações urbanas), seja sob 
a forma mais seletiva das polêmicas travadas nas diversas e recém-
criadas instituições de ensino, sociedades de erudição e revistas 
especializadas parauniversitárias, seja sob a forma institucionalizada 
de disciplinas universitárias. 
Nesse sentido, é fundamental frisar que uma das principais ra-
zões de a sociologia "estar na ordem do dia" (em particular a sociolo-
gia que encontraria guarida no sistema universitário francês) ligava-se 
à sua participação, ao lado da pedagogia, na intensa preocupação mo-
ral que marcou o século XIX na França, particularmente o período 
republicano, uma vez que foi sob a forma de intensa preocupação moral 
que as mutações que alteraram de forma radical o panorama francês 
seriam apreendidas por seus contemporâneos. 
Essa inquietação apresentou-se aproximadamente da seguinte ma-
neira: desde a Revolução de 1789, mas acima de tudo a partir da Tercei-
ra República, a moral que regulamentava os antigos códigos sociais viu 
desabar seu fundamento religioso e, com isso, as bases de sua própria 
sustentação. Considerando a implicação da ruína do fundamento religi-
oso da moral na violenta ruptura com relação aos códigos sociais que até 
então articulavam o campo social francês, o problema passou a ser a 
constituição de uma nova ordem moral que, não estando mais funda-
mentada em princípios religiosos ou metafísicos, fosse adequada aos novos 
tempos marcados pela separação formal entre a Igreja e o Estado. Foi 
nesse contexto que se deu o investimento, tornado sistemático pelos re-
publicanos, na constituição de uma moral que fosse integralmente laica, 
racionalista. E foi em boa parte para suprir essa demanda por uma nova 
ordem moral de cunho marcadamente secular que se articulou quer a 
investida republicana no domínio da pedagogia, quer o projeto (particu-
larmente caro a Durkheim) de constituir a sociologia como disciplina 
rigorosamente científica. Neste sentido, a sociologia e a pedagogia esta-
vam na ordem do dia porque uma e outra faziam as vezes de panacéias 
quase unanimemente reconhecidas para sanar os graves problemas mo-
rais e sociais com os quais os franceses se defrontavam. 
23 Ver Durkheim (1895b: 74) e 1àrde (1898b: 1), entre outros. 
79 
ANTES TARDE DO QUE NUNCA 
Embora passasse por quase todos os discursos de cunho socioló-
gico então produzidos, mas não com a mesma intensidade, a inquieta-
ção moral atravessou sobretudo os discursos que se tornaram domi-
nantes e que tinham como objetivo constituir a sociologia como disci-
plina reconhecidamente científica. A inquietação moral, porém, fez 
mais do que isso. Ela produziu e sustentou sua dominância, fazendo 
com que eles tirassem boa parte de sua força enunciativa do argumen-
to de que seria necessário preservar a nova ordem moral da religião ou 
de outros obscurantismos. Assim, ao viabilizarem a fundamentação ci-
entífica da nova ordem moral, permitindo a substituição eficaz da an-
tiga moral fundamentada em absolutos a partir de então recusados, 
esses discursos afirmavam a ambição de poder que a pretensão de o 
saber converter-se em ciência traz consigo. 
A dissociação da moral e da religião, ou essa substituição dos 
discursos teológicos ou metafísicos pelos discursos científicos na fun-
damentação da nova ordem moral, crucial tanto para o desenca-
deamento das reformas pedagógicas, quanto para a constituição e a 
legitimação do discurso científico da sociologia, foi responsável tam-
bém por uma das grandes ambivalências da pretensão científica do 
novo discurso sociológico. Mais uma vez, a ambigüidade aparece de 
forma clara em Durkheim, cuja ambição intelectual sustentava-se, tal 
como a ambição política dos republicanos, no tripé formado pela socio-
logia, pela pedagogia e pela moral laica. 
Comentando que "esta demanda [ ... ] por uma moral laica deve 
ser posta em relação com a crise da tradição espiritualista e a necessi-
dade de novas formas de moralização, ligadas à generalização do ensi-
no primário", Chamboredon afirma que "se os historiadores fornece-
ram o conteúdo e os símbolos (acontecimentos, anedotas, persona-
gens) de uma tradição republicana e laica, a sociologia durkheimiana 
parece ter podido fornecer o fundamento de uma moral republicana" 
(197 5: 17). Daí derivaria a dualidade do projeto durkheimiano, uma 
vez que sua "vontade de fundar uma moral positiva contra os absolu-
tos revelados pela consciência ou pela tradição" tornou-se inseparável 
da "intenção de reencontrar na Sociedade o absoluto das antigas mo-
rais" (idem). Não sem razão Durkheim seria chamado de "teólogo da 
religião civil francesa" (Bellah 1973: XVII). É também para essa dire-
ção que apontam as ácidas críticas que Paul Nizan endereçou a ele. 
Comentando a introdução da sociologia como matéria obrigatória 
nas Écoles Normales d'Instituteurs, Nizan cita a passagem em que 
80 
A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA FRANÇA 
Thibaudet24 afirmou que "através dela o Estado forneceu aos instrutores, 
nas suas escolas, o que a Igreja, nos seus seminários, fornecia aos ad-
versários dos instrutores, uma teologia", acrescentando Nizan que "a 
manutenção secreta desta atmosfera religiosa está no fundo da refor-
ma escolar da República" (1932: 138 e 145). 
Foi com as reviravoltas das relações de poder que produziram um 
novo campo social na França do século XIX, com o deslocamento dos 
regimes discursivos e o investimento político na produção de saber, no 
bojo da articulação saber/poder empenhada na formação de uma mo-
ral laica, que se deu a liberação epistemológica das ciências sociais e a 
constituição, em particular com Durkheim, de uma zona ontológica 
específica do social. Nesse ponto, o exercício de uma economia moral 
e laica do poder investiu diretamente na produção de um saber especí-
fico sobre o social. 
Deste modo, pode-se dizer que, quando Durkheim se lançou à 
tarefa de fazer ler "nos domínios mal partilhados" do conhecimento 
onde "jazem os problemas urgentes" e onde "os professores 'devoram-
se,entre si"' a tabuleta com a palavra Sociologia, segundo a fórmula de 
Goethe apropriada por Mauss (1934: 211), o que estava em pauta, 
paralelamente à reforma educacional que se instituía (e da qual 
Durkheim foi um fervoroso teórico e defensor), era a afirmação de 
uma estratégia disciplinar que tanto se configurou de maneira endógena 
à "ciência", com o estabelecimento de fronteiras em seus "domínios 
mal partilhados", quanto se estendeu à sociedade como um todo sob a 
forma de uma pedagogia laicizada implementada por meio da reforma 
educacional republicana. Numa sociedade em que nem Rei nem Deus 
são considerad?s como fontes legítimas do poder, este assume outra 
configuração . E no terreno social, concebido como zona ontológica 
específica, e também naquele do saber que pretende falar em seu nome 
que, a partir de então, terão lugar os embates de poder: há uma socie-
dade a ser reordenada, a ser educada. 
A crise alemã do pensamentofrancês 
A partir do que foi exposto, pode-se perceber que os objetivos que se 
impunham a uma França sacudida, interna e externamente, por uma 
24 La République des Professeurs: 222-3. 
81 
ANTES TARDE DO QUE NUNCA 
sucessão de crises eram, entre outros, reparar o desastre da derrota 
militar constituir uma nova organização que pudesse substituir a do 
Segundo Império e fosse "fundada na natureza das ~oisas", e criar, uma 
elite que desse o tom à nação, enfim, (re)fazer o pais. Para alcanç~-los, 
muitos franceses acreditaram que a orientação de Renan devena ser 
seguida: "se queremos nos recuperar de nossos desastres, imi.temos a 
conduta da Prússia". Por isso, é necessário esclarecer o que ficou co-
nhecido como a "crise alemã do pensamento francês" (Digeon 1959). 
A princípio pode parecer estranho que o inimigo de ,gu,erra tor~e-
se O modelo a ser seguido no pós-guerra. O recurso frances a expenen-
cia alemã, todavia, não era infundado. Ao derrotar a França, a Prússia 
não apenas serviu como uma espécie de cat~lisador dos . pr~blemas 
enfrentados pelos franceses, como também smahzou a direçao para 
superá-los, o qual dizia respeito a procedimentos que já ~ram familia-
res à Alemanha pré-unificada e foram, em parte, responsaveis pelo su-
cesso de seu processo de unificação: o maciço investimento na i.nstru-
ção, na formação científica e no conhecimento da so.ciedade. Mais uma 
vez o contraste entre os dois países foi marcante, pois enquanto a Fran-
ça estava longe de seu apogeu intelectual e político, a Alen_ianha. en,c~n-
trava-se no ponto culminante de seu processo de umhcaçao, CUJO ex1to 
podia ser medido não só por suas repetidas vitórias militares, como 
também pelo fato de ela ter se tornado o principal pólo de. produção 
intelectual e de atração de universitários da Europa. Além disso, como 
notou Foucault (1974: 80-1), foi na Alemanha, antes mesmo de o ser 
na França e na Inglaterra, e, ainda que paradoxalmente, em boa parte 
por ela até então estar fragmentada em unidades muito pouc,~ '.',esta-
tais", que primeiro se formou o que se pode chamar de uma c1enc1a 
de Estado", isto é, tanto um conhecimento que tem por ob1eto o Esta-
do, quanto a constituição do Estado como instrumento e lugar de pro-
dução de conhecimentos específicos. 
O fascínio francês pela experiência educacional e científica alemã 
expressou-se de diversas formas. Seus traços mais marcantes foram as 
viagens de diversos intelectuais franceses à Alemanha (Durkhe1m entre 
eles) patrocinadas pelo governo francês após a guerra de 1870; o cará-
ter modelar que a experiência pedagógica alemã emprestou às refor-
mas educacionais que estavam em curso na França republicana; e o 
efeito distintivo, prestigioso, "científico" e "atual" atribuído às refe-
rências às obras alemãs que tornaram solidários psicólogos, historia-
dores, geógrafos, filósofos e sociólogos da "Nova" Sorbonne (aSorbonne 
82 
A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA FRANÇA 
reformada pelos republicanos que acolheu a sociologia durkheimiana) 
e que logo se tornariam um critério de diferenciação entre os grupos 
universitários e parauniversitários franceses, de tal forma que, à medida 
que decrescia o recurso a elas, maior era a distância mantida com 
relação ao establishment universitário e aos discursos tidos como 
científicos. 
A respeito do efeito distintivo atribuído às obras aleµiãs, a pu-
blicação de um artigo de Simmel no primeiro número da Année 
Sociologique é bastante reveladora. Num certo sentido, ela pode ser 
interpretada como uma espécie de endosso trocado, pois marca não 
só a reunião de trabalhos de sociólogos emergentes na França e na 
Alemanha em um projeto editorial ambicioso, como também a exis-
tência de certa afinidade entre as preocupações de Durkheim e Simmel. 
Embora existam, sob vários aspectos, diferenças importantes entre as 
sociologias desses autores, Simmel deixou claro, já na questão abor-
dada pelo título do seu artigo - "Como as formas sociais se man-
têm" - a existência da afinidade capaz de justificar a acolhida de 
Durkheim e a publicação de seu artigo naAnnée. Como destaca logo 
110 primeiro parágrafo: "as ciências em via de formação têm O privi-
légio, mediocremente invejável, de servir de abrigo provisório a to-
dos os problemas que pairam no ar, ainda sem haver encontrado seu 
verdadeiro lugar. Pela indeterminação e fácil acesso de suas frontei-
ras , elas atraem todos os 'apátridas' da ciência, até que haja contraído 
suficientemente força para repelir de si todos esses elementos estra-
nhos; a operaçã? é, às vezes, cruel; contudo poupa bastantes decep-
ções no futuro. E assim que a Sociologia, essa nova ciência, começa a 
se livrar da confusa massa de problemas que se associavam a ela: ela 
se resolve em favor de não mais naturalizar o primeiro a chegar, e, 
embora ainda se discuta a respeito da extensão de seus domínios, são 
visíveis os esforços realizados com o fim de demarcar-lhe os contor-
nos" (Simmel 1898: 46) . 
Se a experiência educacional e científica alemã exerceu forte in-
fluência sobre os intelectuais franceses, seja inspirando as reformas 
educacionais, seja legitimando o deslocamento do pensamento francês 
rumo ao discurso científico, é preciso não perder de vista que a atitude 
francesa diante dessa experiência nunca foi exclusivamente admirativa 
e positiva (Weisz 1977: 209-11). Inicialmente, porque a influência dos 
modelos alemães se manifestou de modo bem mais sutil e limitado do 
que teria acontecido se estivesse em jogo uma mera reprodução: de 
83 
ANTES TARDE DO QUE NUNCA 
acordo com Weisz, as universidades alemãs exerceram sua influênci,a 
mais corno símbolos legitimando o conjunto das aspirações umvers1ta-
rias francesas e menos corno modelos estruturais concretos a serem 
copiados. Além disso, se as universidades alemãs serv~ra1:1 corno 
contraponto inspirador às universidade.s francesas, ,ª.adrn1raçao .pelas 
realizações alemãs não deixou de suscitar um espmto de nvah~a~e 
entre os franceses, posto que assinalava a derrocada da p.roe~menoa 
intelectual francesa. Como notou Weisz (idem), essa adm1raçao-nvah-
dade foi responsável por uma ambivalência fundamenta!. do movimen-
to de reforma educacional, pois os reformadores frequentemente s.e 
referiam aos sucessos alemães para justificar suas reivindicações parti-
culares ao mesmo tempo que defendiam com vigor a qualidade do 
ensino e da ciência francesa contra todos seus detratores. 
Essa relação arnbivalente pode ser percebida, por exei:nplo, n.a 
posição que Durkheim manteve c~m :dação às _ciências sooa1s, pois 
enquanto se valia da experiênc'.a c1ent1fica al~m~ para demarcar urna 
posição de distanciamento crítico com relaçao as outras abordagens 
sociológicas francesas contemporâneas, não se cansava de a6rmar que 
a sociologia era uma ciência eminentemente francesa (D~rkhe1m 189~b: 
105ss· 1900: 134-5). Parcialmente em razão dessa pos1çao de Durkhe1m, 
de todo modo como sinal da ambivalência das relações entre intelectuais 
franceses e alemães na virada do século XIX, Simrnel não publicaria 
mais naAnnée Sociologique. 
Além disso, cabe registrar a total falta de interesse mú:uo entr.e 
Max Weber (1864-1920) e Durkheim. Até onde sei, Weber prna1s ci-
tou Durkheim, e este, como indicou Lukes (1973: 397), citou Web:r 
apenas uma vez, na resenha que publicou no volume X~I da Annee 
Sociologique, de 1913, sobre o "Primeiro Congresso Alemao de Soc10-
logia", que contou com a colaboração de Weber, part1C1pante ativo da 
"organização de urna sociedade sociológica" na Alemanha desde 1908 
(Gerth & Wright Mills 1946:35). Embora provavelmente conheces-
sem mal ou ignorassem, mais ou menos deliberadamente, os trabalhos 
que um e outro desenvolviam, certamente os dois não se desconhec_i-
am seja porque Durkheim esteve na Alemanha em 1885-1886'. se1a 
porque Simmel (18 5 8-1918) escreveu naAnnée~ocjologique e fo1 hdo 
por Weber, seja porque Weber conhecia as referencias de Tarde, amda 
que polêmicas, a Durkheim. . 
Contrastando com seu desinteresse por Durkhe1m, Weber certa-
mente foi mais simpático com relação a Tarde, ainda que tenha con~e-
dido muito mais atenção a trabalhos de outros autores. Weber cita 
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A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA FRANÇA 
Tarde, por exemplo, em momentos tão decisivos para a elaboração de 
sua teoria sociológica quanto aquele em que ele se pôs a definir os 
"conceitos sociológicos fundamentais" ou, mais precisamente, quando 
enunciava justamente o conceito de ação social, central para sua socio-
logia (Weber 1918: 14). Note-se ainda que Simmel, que colaborou 
com aAnnée, também orientou as atividades desenvolvidas pelo soció-
logo norte-americano Robert Erza Park (1864-1944) quando este este-
ve na Alemanha. Em 1904, ano da morte de Tarde, Park apresentou 
em Heidelberg uma dissertação sobre opinião pública intituladaMasse 
und Publikum, tema que já havia notabilizado Tarde (Lurie 1968: 416) , 
tendo sido ele um dos primeiros a fazer o pensamento de Tarde cruzar 
o Atlântico. 
Por fim, há que se destacar que se o recurso à experiência educa-
cional e científica alemã foi decisivo para marcar o deslocamento em 
direção ao discurso científico-racionalista nas primeiras décadas do 
período republicano, ele não se deu de modo unívoco, sem ambigüida-
des. Além disso, com o crescimento das hostilidades entre França e 
Alemanha nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial a 
situação mudou drasticamente. Referindo-se às viagens dos intelectu~is 
franceses para a Alemanha, Lepenies afirma: o que "inicialmente tinha 
sido uma peregrinação e uma marca de distinção tornou-se, primeiro, 
assunto de rotina, depois um dever e finalmente um sacrifício" (1988: 75). 
Enfim, o recurso às experiências alemãs como estratégia de distinção 
no front francês, inicialmente eficaz, acabou voltando-se contra si mes-
mo com o recrudescimento das relações entre os dois países, quando 
aqueles intelectuais mais afinados com as obras alemãs passaram a ser 
postos sob suspeição. A esse respeito, outra vez ainda a posição de 
Durkheim é exemplar. Como Lepenies assinalou, "estava claro que 
Durkheim e seus seguidores germanizaram a Sorbonne", mas "como 
os atrativos da Alemanha declinaram, houve um crescimento dos ata-
ques domésticos a Durkheim, que foi denunciado como um represen-
tante do agora odioso espírito alemão" (1988: 75). A situação chegou a 
tal ponto que em 1916 "o nacionalista e anti-semita Libre parole ca-
ricaturou-o [Durkheim] como um Boche25 com um nariz de papelão e 
acusou-o de ser um agente do ministro da guerra alemão" (ibid: 77-8). 
25 Expressão popular e pejorativa usada pelos franceses para designar os 
alemães. 
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