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Gerd Bornheim, Os filósofos pré-socráticos, Introdução, p. 11-14 Aristóteles, em sua Metafísica, chamou os filósofos pré-socráticos de phy- sikoi, físicos. A expressão não é incorreta, mas presta-se facilmente a equívocos. A “física” pré-socrática nada tem a ver com a física na acepção moderna da palavra, assim como a physis não pode ser traduzida sem mais pela palavra natureza. Hoje, a natureza tende a confundir-se sempre mais com o objeto das ciências da natureza, com algo que pode ser dominado pelo homem, que pode ser posto a seu serviço e canalizado em termos de técnica. Desta forma, a natureza transforma-se em expressão da vontade de poder. Mas não é dentro desta perspectiva que podemos aceder ao conceito pré- socrático de natureza. A física dos primeiros filósofos gregos não é uma disciplina que se contraponha a outras disciplinas, como a Lógica, a Ética ou a Física tal como se a compreende hoje. Se chamarmos, com Aristóte- les, de física a filosofia pré-socrática devemos entender por esta expressão o saber do ente na sua totalidade. Como a physis é o conceito fundamental de todo o pensamento pré-socrá- tico, cabem aqui algumas breves observações introdutórias ao tema. Etimologicamente, physis é um abstrato formado pelo sufixo sis e pela raiz verbal phy; na voz ativa: phúein, na voz média [reflexa]: phúestai. Patzer analisa a palavra em função de Homero, e constata que estas duas formas verbais são aplicadas preferencialmente ao mundo vegetal. Na voz ativa significa produzir (como o bosque que na primavera produz folhas), e na voz média significa crescer (aos ciclopes, “tudo cresce sem semente e sem arado”)1 [neste caso, não há agente determinado]. O reino vegetal se- ria, assim, o originário, estendendo-se, mais tarde, o significado do verbo a ponto de assumir uma amplidão máxima. Jaeger diz que a palavra physis designa o processo de surgir e desenvolver-se, razão pela qual os gregos a usavam frequentemente com um genitivo [complemento possessivo, que 1 H. Patzer, Physis. Grundlegung zu einer Geschichte des Wortes [trad. aproximada: Physis. Apontamentos fundamentais para uma história da palavra]. Habilitationsschrift, Marburg, 1940, pág. 3 ss. indica posse: o surgir e o desenvolver-se de algo ou alguém]. E acrescenta Jaeger: “Mas a palavra abarca também a fonte originária das coisas, aquilo a partir do qual se desenvolvem e pelo qual se renova constantemente o seu desenvolvimento; com outras palavras, a realidade subjacente às coi- sas de nossa experiência”2. Burnet, por sua vez, afirma que “na língua filo- sófica grega, physis designa sempre o que é primário, fundamental e per- sistente, em oposição ao que é secundário, derivado e transitório”3. Já por estas sumárias indicações percebe-se a densidade filosófica que acompanha a palavra physis, conceito complexo do qual depende a com- preensão que se possa ter do pensamento pré-socrático. Insistindo um pou- co mais no problema, podemos destacar três aspectos fundamentais da physis: 1) A palavra physis indica aquilo que por si brota, se abre, emerge, o desa- brochar que surge de si próprio e se manifesta neste desdobramento, pon- do-se no manifesto. Trata-se, pois, de um conceito que nada tem de estáti- co, que se caracteriza por uma dinamicidade profunda, genética. “Dizer que o Oceano é a gênese de todas as coisas é virtualmente o mesmo que dizer que é a physis de todas as coisas”, afirma Werner Jaeger referindo-se a Homero4. Neste sentido, a physis encontra em si mesma sua gênese; ela é arké, princípio de tudo aquilo que vem a ser. O pôr-se no manifesto en- contra na physis a força que leva a ser manifesto. Por isto pode Heidegger dizer que “a physis é o próprio ser, graças ao qual o ente se torna e perma- nece observável”5. 2) Em nossos dias, a natureza se contrapõe ao psíquico, ao anímico, ao es- piritual, qualquer seja o sentido que se empreste a estas palavras. Mas para os gregos, mesmo depois do período pré-socrático, o psíquico também pertence à physis. Esta importante dimensão da physis pode ser melhor 2 Werner Jaeger, La Teologia de los primeros Filosofos griegos, trad. de José Gaos, Fondo de Cultura Económica, 1952, pág. 26. 3 J. Burnet, L’Aurore de la Philosophie Grecque [A aurora da Filosofia Grega], ed. francesa de Aug. Reymond, Payot, Paris, 1952, pág. 13. 4 Op. cit., p. 26. 5 Martin Heidegger, Einfuehrung in die Metaphysik [Introdução à Metafísica], Tuebingen, ed. Max Niemeyer, 1953, pág. 11. 1 compreendida a partir de sua gênese mitológica. Já afirmamos que os deu- ses gregos não são entidades sobrenaturais, pois são compreendidos como parte integrante da natureza. Em Homero, por exemplo, a presença dos deuses aparece como superior aos homens e ao mesmo tempo como algo que lhes é próximo: os deuses estão presentes em tudo o que acontece e tudo acontece como que através dos deuses. Esta presença transparece ain- da em Tales, na frase que lhe é atribuída: “tudo está cheio de deuses”. Evi- dentemente, com o surto da Filosofia a atitude do homem frente às coisas sofre uma transformação, acentuando-se a exigência de racionalidade. Se- gundo Jaeger, Tales emprega a palavra deus “em um sentido um tanto dis- tinto daquele em que a empregariam a maioria dos homens”6. Os deuses de Tales não vivem em uma região longínqua, separada, pois tudo, todo o mundo que rodeia o homem e que se oferece ao seu pensamento, está cheio de deuses e dos efeitos de seu poder. “Tudo está cheio de misterio- sas forças vivas; a distinção entre a natureza animada e a inanimada não tem fundamento algum; tudo tem uma alma7. Esta ideia da alma, de forças misteriosas que habitam a physis, transforma a esta em algo de inteligente, empresta-lhe certa espiritualidade, afastando-a do sem-sentido, anárquico e caótico. Veja-se, como exemplo, o fragmento 67, de Heráclito: “Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, abundância e fome. Mas toma formas variadas, assim como o fogo, quando misturado com essências, toma o nome segundo o perfume de cada uma delas.” Ou ainda o frag- mento 64: “O relâmpago (que é a arma de Zeus) governa o universo.” Esta ideia de que o deus pertence em algum sentido à physis é característica de todo o pensamento pré-socrático, e continua viva mesmo em Demócrito [...]. À physis pertence, portanto, um princípio inteligente, que é reconhe- cido através de suas manifestações e ao qual emprestam os mais variados nomes: Espírito, Pensamento, Inteligência, Logos, etc. 3) A physis compreende a totalidade de tudo o que é. Ela pode ser apreen- dida em tudo o que acontece: na aurora, no crescimento das plantas, no nascimento de animais e homens. E aqui convém chamar a atenção para 6 Op. cit., pág. 27. 7 Ibid. um desvio em que facilmente incorre o homem contemporâneo. Posto que a nossa compreensão do conceito de natureza é muito mais estreita e po- bre que a grega, o perigo consiste em julgar a physis como se os pré-socrá- ticos a compreendessem a partir daquilo que nós hoje entendemos por na- tureza; neste sentido, se comprometeria o primeiro pensamento grego com uma espécie de naturalismo. Em verdade, a physis não designa precipua- mente aquilo que nós, hoje, compreendemos por natureza, estendendo-se, secundariamente, ao extranatural. Para os pré-socráticos, já de saída, o conceito de physis é o mais amplo e radical possível, compreendendo em si tudo o que existe. Não se compreende o psíquico, por exemplo, a partir do modo de ser da natureza em seu sentido atual, como não se entende[m] os deuses a partir de nosso conceito mais parco de natureza. À physis per- tencem o céu e a terra, a pedra e a planta, o animal e o homem, o aconte- cer humano como obra do homem e dos deuses, e, sobretudo, pertencem à physis os próprios deuses8. Devido a esta amplidão e radicalidade, a pala- vra physis designa outra coisaque o nosso conceito de natureza. Vale di- zer que na base do conceito de physis não está a nossa experiência da na- tureza, pois a physis possibilita ao homem uma experiência totalmente ou- tra que não a que nós temos frente à natureza. Assim, a physis compreende a totalidade daquilo que é; além dela nada há que possa merecer a investi- gação humana. Por isto, pensar o todo do real a partir da physis não impli- ca em “naturalizar” todos os entes ou restringir-se a este ou aquele ente natural. Pensar o todo do real a partir da physis é pensar a partir daquilo que determina a realidade e a totalidade do ente. Estas parecem ser as notas fundamentais da physis, possibilitadoras da “fí- sica” pré-socrática. Pensando a physis, o filósofo pré-socrático pensa o ser, e a partir da physis pode então aceder a uma compreensão da totalida- de do real: do cosmos, dos deuses e das coisas particulares, do homem e da verdade, do movimento e da mudança, do animado e do inanimado, do comportamento humano e da sabedoria, da política e da justiça. 8 Veja-se Martin Heidegger, op. cit., pág. 11. 2
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