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Solidão Solitude - Autran Dourado

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..i~.: 
OBRAS DO AUTOR 
A barca dos homens, romanc~ 
Ópera dos mortos, romance 
·· · ()risco do bordado, romance 
Os sinos da agonia, romance 
A serviçodel-rei, romance 
Tempo de amar, romance 
Uma vida em segredo, romance 
Novelário de Dongas Novais, romance 
Lucas Procópio, romance 
Um artista aprendiz, romance 
Alfonte da alegria, romance 
Um cavaleiro de antigamente, romance 
Ópera dos jimtoches, romance 
Confissões de Narciso, romance 
Gnio!a ·aberta, memorial 
Solidão so/itude, contos 
Armas e corações, contos 
As ilnagiilações pecaminosas, contos 
Violetas e caracóis, contos 
# 
Uma poética de romance, ensaio 
Meu mestre imaginário, ensaio 
Novelas de aprendizado, romance 
Autran Do11rado 
SOLIDAO 
SOLITUDE 
MARINHA 
~ SOMBRA DE UMA CASTANHEIRA cujos galhos se estendiam até 
Junto ~ m~~ia, Gló:ia dispôs sua caixa de tintas, separou al-
guns pmce1s bem finos, como ela queria, fixou o papel na pran-
cheta, alisou-o bem, pronta para trabalhar na marinha que 
vinha há muito sonhando. 
O mar ali estava, verde, claro, muito límpido, guardando 
toda ~ luz da mar:hã ensolarada. As cores puras, mas fugidias; 
os · ra10s de sol faiscavam nas conchas sobre a areia amarela. 
Con~o conseguiria a cor que procurava? Não, não era aquela 
pre~1sam~nte a tonalidade. As pedras ela as sentia bem, quase 
podia f~ze-las de uma só vez. As cores dançavam nos seus 
olhos vivos, i:-as suas m.ãos finas e brancas, parecian1 brincar 
con1 ela. Hesitava, sentia-se sem recursos, incapaz de pintar. 
Logo que se levantara tinha pensado que seria fácil, sentia-se 
com forças para o trabalho. Mas agora o que acontecia com 
ela? Tinha vontade ele chorar, alguma coisa tentava-a intima-
m~nte. Não, daquele jeito ela nunca seria un1a pintora, nunca 
fana a aquarela que tanto desejava. Sabia que se tentasse tal-
vez ~onse~li~se fazer alguma coisa, mas para rasgá-la logo em 
segtnda. Vanas vezes desenhara aquela paisagem, fizera inú-
meros es.tudos para a sua marinha. Quando se dispunha a tra-
balhar, eis que alguma coisa lhe fugia, como um pequeno raio 
de sol entre os dedos ou uma concha colorida que as ondas 
chamavam de novo para o furido do mar. · 
. O mar, que ton~lidade daria ao mar? Dentro de si já sabia, 
tmha-a bem escolhida, como uma fagtllha queünando-a. 
26 
SOLIDÃO SOLITUDE 
Há vários anos que trabalhava corn aquarela. Depois de 
inuito sacrifício, de paciência, de sofrünento, vinha conseguin-
do aquela transparência que tanto almejava. Elas deviarn ser 
assim, límpidas, puras, desprendidas o m.ais possível elos ob-
jetos . Que a luz dançasse uma harmonia sutil sobre as coisas. 
Mas, que se passava c01-r1 ela, que não conseguia ao rnenos 
cmneçar? Violenta1nente, deu un1 risco no papel, borrou. Arran-
cou o papel da prancheta, amassou-o com raiva, atirou-o longe. 
Alexandre, que espiava interessado o trabalho da mãe, cor-
reu atrás do papel que as ondas já levavam. 
Glória olhou o filho, teve vontade de zangar con.1 elei sen-
tiu os olhos cheios de lágrimas. Não, não tinha nenhum rno-
tivo para zangar com ele. Mesmo assiin, gritou: 
- Alexandre, largue isso aí! Vai brincar co1n os outros 
meninos! 
Que menino impossível! pensou. Não gostava de brincar 
com os outros, sen1pre arredio, os olhos cisrnar1do . Corn que 
cis1nava aquele menino?. Às vezes parecia sofrer. Descobria no 
filho traços de seu próprio feitio. Por que sofria, se ignoraV;) n 
vida que nos faz sofrer? Ou quem sabe, sabia? Quem pode sa-
ber o que pensamos, o que sentimos ... Ninguém, ninguém ja-
mais poderá saber. 
Dentro dela, sensações antigas, velhas n1ernórias renascian-i. 
E eran1 as n1esmas - não, eran1 ben1 diferentes de antigarnen-
te, quando pela prin1eira vez sentira - quando pela primeira 
viera àquela praia, ainda moça solteira ... era isso que fazia o 
seu espírito diferente? ou o seu espírito era o mesrno, nada 
mudara? Ela seria sempre a mesn1a? nunca inudaria! Sentia-
se mais velha, doente, cansada, sempre nervosa. Certaniente 
mudara, não era mais a mesma. Quem podia saber, quen1 po-
dia saber o que son1os, con10 1nudamos a toda hora ? Cmno 
mudavam as tonalidades das cores que ela percebia. Sofrera, e 
na alma sempre ficava u1n pouco do resíduo; o resto o 1nar le-
vava para bem fundo, para onde as me1nórias se perdem. Mas 
sempre restava alguma coisa, alguma coisa próxüna da natureza 
do cristal, intacta, una, que o tempo não mudava. Que radia-
27 
AUTRAN DOURADO 
çõcs estranhas dentro da alrn.a, nas 1nuitas faces escondidas. 
Sim, ela seria sern.pre a n1es1na . . 
Colocou novo papel na prancheta, tornou a olhar a paisa-
gem. O pincel suspenso na mão, o pensa1nento voava plainando 
co.n1. as ga.i ·votas de lor1gas asas .sobre o n1ar. 
Aquela praia parecia bem diferente, a paisagem. não era a 
mesma, as cores n1udaram.; quando pela primeira vez, havia 
nnüta alegria e111 tudo. Deixava-se estar horas seguidas na 
praia, sentindo o corpo queilnar, 1noreno bronzeado, a olhar 
as nuvens desenhando no céu figuras disformes que ela custa-
va a t•econhecer (depois 1nudavam rapidamente, e novas for-
mas se faziam), a olhar o vôo manso das gaivotas. As gaivotas 
era.m. outras, sabia. Quanto te1npo podia viver l..Una gaivota? 
Precisava pintar, precisava urgentem.ente pintar. Mas es-
tava inquieta, seus olhos brilhavan1 estranham.ente. 
Fora ali na praia que conhecera o ho1ne1n com que1n de-
pois se casou. Nas férias do colégio. Era quase uma menina, 
urna adolescente que pouco sabia da vida. 
-- Alexandre, que é que você está fazendo aí na areia? 
- Nada, 1nan1áe1 desenhando. 
Diabo de ni.enino! Co111 certeza estava z01nbando dela, por-
que desconfiava a inquietação de que era presa porque não con-
scgi .. 1ia co111.eç.ar a pi11tar. 
Alexandre era vivo de1nais 1 um tanto precoce nas suas 
perguntas e respostas. E con10 é sensível, dizia c0111 mn orgu-
lho que talvez fosse de si própria . . Mas era um menino lindo. E 
que boca, e que olhos - castanhos, brilhantes, profundos. Per-
dia-se nos olhos do filho, ao ilnaginá-lo. Nela, eram poucos os 
1n01nent.os co1no aquele, da mais límpida ternura. O n1undo 
dançava, as cores nasciam incessantemente, claras, ainda in1a-
turas. Tudo poderia naufragar de repente, para sempre, meu 
Dn1s' Seus olhos se enchiam de lágrimas. 
Por que aquela vontade de chorar, se não tinha n1otivo? 
Devia ser a doença, devia ser o estado nervoso. O médico acon-
selhara-a procurar un1 lugar quieto, onde pudesse fic~r des-
preocupada. "Sobretudo, procure descansar o espírito. E meio 
28 
SOLIDÃO SOLITUDE 
ca1ninho para a cura." Os 1nédicos são 1nuito engraçados. Por 
isso viera para a praia. O mar era sempre novo para ela. 
Alexandre é lindo, tornou a pensar. Ivías é inteligente e 
sensitivo demais. Ela não gostava de meninos precoces; que-
ria que o filho tivesse a inconsciência, a irresponsabilidade e a 
alegria dos outros meninos da sua idade. Que madureza estra-
nha num corpo tão pequeno (às vezes temia pelo destino do 
filho), como a vida parecia ser tão intensa dentro dele. Alexan-
dre devia saber coisas que ela nem de longe suspeitava. 
Os outros meninos brincavam nas pedras, o filho devia 
estar com eles. E co1no era1n alegres e como gritavam saltan-
do n'água. O mar batia nas pedras, espmnava. Longe, a Ilha 
Escalvada azulava-se, por onde singravam os navios. 
Sentia-se mais calma. Agora podia pintar. 
Alexandre decidiu finahnente ir às pedras, onde os meninos 
brincavan1. Os tamancos impediam-no de correr, não estava 
ainda acostumado. Tirou-os dos pés e saiu correndo. 
Nas pedras, olhou de longe para o mar, para a Ilha Escal-
vada. Devia ser b01n morar ali, não ter ningué1n para incomo-
dar, ninguém para mandá-lo ir brincar com os outros nleninos. 
Mas diziam que ninguém morava na Ilha Escalvada. As noites 
deviam ser muito tristes, ali naquelas lonjuras. Se morasse al-
guémna ilha ... Apesar de seu espírito comprazer-se un1 pouco 
com a tristeza, não poderia suportar aquela ilha tão sozinha 
no mar, acabou. 
Foi para junto dos outros meninos. Por que aqueles meni-
nos gritavam tanto? 
- Hei, mascarado! gritou-lhe um deles. 
Sabia que os meninos não gostavam dele, porque estava 
sempre sozinho. Não ficaria ali. Afastou-se depressa, em dire-
ção ao ponto mais avançado no mar. 
Ali ficou muito tempo, olhando as ondas quebrarem-se 
em espuma lavando as pedras. Esqueceu a ilha, esqueceu os 
seus possíveis habitantes. 
29 
AUTRAN DOURADO 
Finalmente ela conseguiu a tonalidade que queria. E a luz, 
~ luz estava perfeita. No fundo do peito alguma coisa gritou 
finamente alegre. E o eco correu em ondas macias o corpo 
inteiro. Até que enfim a aquarela atingia a transparência que 
julgava perfeita. 
Mamãe está triste, mamãe está muito inquieta, pensou Ale-
xandre. Ele vira os olhos cheios de lágrimas. De vez em quan-
do a nüe punha-se a chorar. De noite, quando ela pensava que 
ele dormia, Alexandre sentia doer fundo dentro de si os solu-
ços que ela abafava com o travesseiro. E ele não podia dormir 
,,.. . ' I 
nao por causa do calor, mas das lágrimas que se juntavam 
també1n nos seus olhos. Através das lágrini.as, as estrelas que 
o céu mostrava na janela eram grandes, dançavam. Depois era 
o pernilongo que vinha vindo. E grande parte da noite passava 
insone, co1n pensani.entos soni.brios . 
Ela sentou-se na areia, calma. Não pensava em mais nada. A 
aquarela estava boa. Glória era inteiramente feliz. 
Vou buscar l.nnas conchas para ela, disse Alexandre. Quem 
sabe acharia um caramujo daqueles bem grandes que os filhos 
dos pescadores costuni.avain vender na porta do hotel. Curioso, 
i;or que só os filhos dos pescadores achavam búzios grandes? 
E porque eles vão de manhã pelas praias distantes, quando pés 
humanos ainda não deixarani. niarcas na lisura da areia. 
Os seus bolsos se enchiarn de conchas. Ela devia gostai~ 
devia ao menos beijá-lo, agradecida pelo presente. Queria ver 
a mãe alegre, sorrindo con10 de primeiro. . .. 
Agora ela estava doente, dizia1n. Eran1 os nervos . Mas ele 
não acreditava rnuito. Não se lembrava precisamente quando 
a rnãe começara a ser triste, a ficar calada horas e mais horas 
e depois ir chorar escondida, ela que era tão alegre, tão dada 
30 
SOLIDÃO SOLITUDE 
.............. . 
com todo mundo, tão boa para ele . Depois cmneçara1n as visi-
tas aos médicos, ele lendo revistas na sala de espera. O pai , 
preocupado, pagando contas . . 
Mas os nervos não era1n a causa da profunda tnsteza da 
mãe tinha certeza. Será que os outros não percebiam? Sáo os 
nerv'os, são os nervos, era só o que sabiain dizer. Os m édicos 
deviam conhecer ao certo. Mas os médicos n ão falavam cmn 
ele . Certamente o pai sabia, senão não mudaria tanto de vida, 
não seria tão paciente com ela. Ele rn.udara muito, não saía 
mais à noite, ficava fazendo companhia à mãe, lendo . 
Voltou os olhos para as pedras onde o mar subia. E, h orro -
rizado, viu u 1n home1n cair, rolar pelas pedras, desaparecer no 
mar. 
Ficou parado, o coração rrüúdo no peito Depois o coraçáo 
corn.eçou a bater, ban-ban-ban, cada vez m.ais forte. Quis correr, 
mas as pernas estavam fracas. .. 
Quando sentiu força, saiu correndo à prQcura t'Lt rnae . 
Depressa foi escalando as pedras. Ofegante, chegm.i junto dela, 
abraçou-a fortemente. 
Suas mãos estavam cheias de conchas. 
31 
A GLÓRIA DO OFÍCIO 
VIVO DE MINHAS HABILIDADES, disse a 1neu prilno Deolindo. É 
bem diferente de viver de esperteza. A frase ficou durante n-i_uito 
tempo balindo comigo, me queimando interiormente; crista· 
lizou-se no meu espírito e hoje me parece precisa, define a 
minha personalidade. Não sei se Deolindo percebeu a maravi-
lhosa síntese com que me defini. Deolindo me irrit<l, rrrnitas 
vezes é burro. Un-i_a vez ou outra, como se uni_ con-i_eta rasgas-
s.: o céu, tem fulgores de inteligência Quando falei que vivia 
de minhas habilidades, ele estava num de seus dias orHcos, 
inteiramente impermeável à clareza de ininhas idéias. Se ele 
estivesse desanuviado, teria grunhido como faz quando perce-
be tudo - um grunhido impreciso, que nunca pude s·aber se é 
articulado nos lábios, no nariz, nos dentes ou na garganta. 
Na verd'ade vivo de minhas habilidades . Sernpre vi vi de 
uma predisposição inata para o lado factual elas coisas, com.o 
diz Deolindo. Ele me disse isso num ele seus vôos luminosos e 
creio que percebeu n!uito bem; não gosto da palavra que. usou, 
mas acho que está certo . Desde 1nenino tive grande faciliLL1d e 
para montar e des1nontar tudo o que ine caía nas m.àos. Faziél 
e desfazia caixas de n!adeira, 1nontava e desn1ontava brinque-
dos ele mola. Minha mãe descobria em n1im uma voca0ào es-
pecial para engenheiro, vocação que nunca se concretizou. 
Quando ine apresentam. u1n objeto qualquer, o rneu prin1e1ro 
1novin1ento não é para a sua beleza, e1nbora náo seja de toclo 
infenso ao que diz un1 quadro, urna escultura ou urna história, 
49 
AUTRAN DOURADO 
mas para o que o faz objeto. Com.o é feito? É a 1Tiinha prilneira 
per.g-i m ta . E começo de imediato a usar febrihnente as mãos 
parn com.por u1n outro igual. 
Quando Deolindo precisou tão bem o meu espírito, afir-
mando ui.ais que eu era um geô1netra, achei uni.a beleza de 
idéia e tive vontade de lhe beijar o nariz. Quando ele falou: "A 
sua tendência é para a cristalografia", mna lágrirn.a ine caiu 
dos olhos e só a percebi quando pousada na asa do nariz (o 
m eu). Nos mom.entos felizes, Deolindo sabe tudo, lida com as 
palavras con1.0 se fossem bolhas de sabão, nada lhe escapa. 
Sua tendência é para a cristalografia é un1a das coisas inais 
lindas que já ouvi a meu respeito. 
Darei alguil.s dados ou exemplos para um completo enten-
dimento do que afinnei ou afirmou Deolindo. Aprendo as téc-
nicas com muita facilidade; sobretudo, sei fazer as coisas. Fui 
o rnenino habilidoso de minha família. Essa glória, porém, 
nunca n1e satisfez inteiramente. Meu espírito é inquieto, apraz-
lhe voar longes distâncias, viver e1n sítios remotos, Colo1nbo 
em busca de novas Arnéricas. Se não voasse por regiões tão 
siderais, talve2: eu fosse 1..UU h01nen1 inteiramente feliz fazen-
do coisas e objetos, usando minhas habilidades, delas vivendo. 
Quis todavia ir além, passar a minha Taprobana. 
O n11J11.do das essências não é para você, 1ne disse um dia 
Dcolindo, de pé sobre un1. tamborete, o dedo en1. riste, a cabe-
ça voltada para cima. Não concordei co1n ele de imediato, 
embora lhe visse nos olhos o brilho dos dias venturosos, pois 
se vivo de um d01n inato do meu espírito, descobrindo o me-
canisn1.o das coisas, é porque busco as essências. 
Vou rne explicar nlelhor, quen1. sabe não estou sendo confu-
so, n ão quero correr o risco cie.não ser entendido. Os termos de 
uma proposição devem: ser definidos, para que se possa provar 
a proposição, e as proposições devem ser dispostas na melhor 
ordem , disse eu. É nisto exatani.ente que consiste o espírito 
geométrico, me disse Deolindo. 
Vou nie explicar ni.elhor, portanto continuen1.os. Se não 
pude viver no Inl..mdo das essências, como diz Deolindo, não é 
50 
SOLIDÃO SOLITUDE 
por qualquer pobreza ou acanha1nento de espírito, n1.as por-
que nunca me permitiram, nen1 em minha fan1ília, quando 
menino, ne1n depois, na vida mesma. Não podia expor as mi-
nhas idéias pessoais e brilhantes, como as percebo às vezes, 
porque janiais quiseram saber do que eu pensava. O mundo 
perdeu assim muitas concepções originais, acredito não sem 
falta de modéstia, reconheço. 
O meu avô Euclides, que era um espírito voltado para as 
coisas sublimes da vida (não fazia absolutamente nada; desde 
que me lembro, sempre ficou o dia inteiro pitando compridos 
cigarros de palha ou cortando finíssimas aparas demadeira 
com o seu canivete afiado), o meu avô Euclides jamais quis 
saber minhas opiniões ou me mandou agir em seu n01ne, como 
fazia com Deolindo. Na minha infância era assim: quando ele 
precisava de um dispositivo qualquer para guardar a sua nava-
lha ou mna n1áquina de cortar e enrolar as palhas dos seus 
cigarros, voltava-se para m.ün - Elias, 1ne faça un1a coisa de 
tal maneira que. Não precisava explicar muito, porque já sa-
bia num átimo o que o velho Euclides queria. 
Se eu dissesse que não tenho nenhmn ressentimento de 
1neu avô, m.entiria. Einbora o ressentimento não se manifes-
tasse claramente, guardava no fundo de minha alma uma má-
goa escondida. Não me queix:ava de. ser alijado das dissertaç.ões 
sobre os destinos do homem e do cosmos, que faziam meu 
avô e Deohndo, mas tinha comigo a minha chaga. 
· Reconheço que não era capaz, por minha própria conta, de 
fazer ,um petrecho qualquer para ele. Você necessita de sopro 
alheio, me disse um dia Deolindo. Como resposta, dei-lhe um 
soco no olho. A raiva passou e eu arranjei logo a melhor ma-
neira de prender um pedaço de carne no olho ferido de Deo-
lindo. 
Meu primo diz que não, mas eu digo com certo orgulho....,...,, 
Não me falta imaginação e capacidade criadora. É que nunca 
quiseram ver essa faceta do meu atribulado espírito. Por não 
se canalizar nas perquirições da verdade e por não agir, ficou 
Ariel em mim para sempre esquecido, gata borralheira, a des-
51 
AUTRAN DOURADO 
cobrir coisas, a fazer engenhocas, a esquadrinhar estruturas e 
formações. 
As diversas vezes que procurei criar, o que fazia timida-
mente, redundaram em completo fracasso. Sim, a timidez e a 
discrição constituem marcas de m.eu caráter. Nunca ousei le-
vantar os olhos ou a voz - a não ser com meu primo Deólindo d~ uns tempo~ para _cá, depois da morte de meu avô - par~ 
dizer que alguem estivesse errado. Esse alguém podia ser mui-
to inferior a mim e estar dizendo as niais rematadas tolices e 
eu simplesmente ouvia, sem coragem de dizer que aquilo tudo 
era asn~i:a. O pi~r ~ que se me mandassem seguir esse alguém, 
e~1 seguina, por tnnidez. Sou discreto porque, mesmo na ausên-
cia do alguém, não digo que ele é imbecil e cretino, ou sim-
plesmente boboca. 
Sou ob:igado a di:er algumas palavras em inglês, língua 
que aprendi em um mes por mn processo particular meu, para 
me expressar melhor. O que me preocupa é o How to make· se~ia capaz de escrever dois liwos - How to read e How t~ 
wnte. ~screvesse eu esses livros e estaria rico, pois todo mun-
do me Julga hábil para coisas assim. 
Por exemplo, se eu fosse sapateiro, o melhor sapateiro 
mestre no ofício, ninguém viria me dizer - Elias me invent~ 
um sapato,_ \un objeto com. todas as características que fica-
ra~n no espinto do hem.em com.o próprias do sapato, mas que 
se1a algo de novo, inteirainente novo, e que continue sendo 
sapato e si:va para calçar. Diria simplesmente- Eu quero um 
sapato_ assim e assado, que eu faria melhor do que o melhor 
sapateiro, tenho a certeza, reconheço com infinita mágoa. 
Por exemplo, se eu morasse nos Estados Unidos e fosse 
escri~or, o maior editor daquelas terras lá não me ~iria pedir 
um livro de poesia ou ficção, mas um manual com um destes 
títulos - The art of fiction e How to make verses. Acredito 
que já disse isso alguns parágrafos atrás. Não importa, conti-
nuem.os. 
_ Por.exemplo ainda, se eu vivesse na Renascença, na Itália, 
nao sena nunca o Príncipe, mas Niccolà Machiavelli; não teria 
52 
SOLIDÃO SOLITUDE 
. . ............. 
um principado para governar, ninguém rn.e quereria por suse-
rano, pois veria e1n mün o preceptor e o secretário. Contei essa 
minha descoberta a Deolindo, que ni.e disse muito seriamente 
- É, ni.as quem ficou foi Maquiavel e não o outro. Deolindo 
contudo achava-se inuito burro nesse dia, nada lhe brillMva 
nos olhos e não posso saber se ele estava certo ou errado Nüo 
estava, porque logo em seguida me disse - Não, a idéia n ão é 
esta. Outro dia, disse-lhe eu~ nós descobriremos qual é. Esse 
dia não surgiu, é provável que surja, eu espero. 
A fim de que se possa compreender a memória que venho 
compondo sobre a ni.inha modesta pessoa, para cuja perfeição 
uma vez ou outra recorro a Deolindo nestes diálogos socráticos, 
contarei as três fases profissionais de ni.inha existência, que 
assim dividirei: 
a) Relojoeiro, dos 14 aos 18 anos; 
b) Corretor de textos, dos 20 aos 30; 
c) Tratador de pássaros, dos 32 até aos 40, em ql1e rne 
acho. 
Entre uma fase e outra há se1npre dois anos em branco, 
que foram aplicados em aprender as novas técnicas e nelas 
aperfeiçoar-1ne. Demorava dois anos porque sou metódico e 
meticuloso. 
53 
Preâmbulo ou nota introdutória 
PASSEI TODA A MINHA INFÂNCIA sob a tutela de meu avô 1naterno, 
de que já falei nesta narrativa. Não conheci m.eu pai, pois 
minha 1nãe se enviuvou muito cedo, ainda comigo no ventre, 
o que me deixou sempre uma dúvida sobre como seria meu 
pai, o que m.e deu mesmo uma longínqua saudade dele, que 
não conheci, con10 disse, mas que diziam. ser um homem bar-
bado nun1 retratG na sala de visitas. 
Sempre tive nostalgia de um pai verdadeiro. Criei-me à 
sombra da figura patriarcal e augusta de meu avô Euclides, 
cuja memória e sabedoria, não tendo lugar para louvar, louvo 
e exalto neste instante - meu avô, que foi ao mesmo tempo 
meu pai e 111eu avô. Por uma dessas misteriosas artes do con-
vívio humano, órfão de pai, também cedo perdi minha mãe. 
Não perdi minha mãe por morte, mas pela vida, pois ela se 
transformou numa espécie de minha irmã mais velha.. De tal 
nuncira nos innananos, que era com inuito esforço que eu 
me lembrava de que ela era minha mãe. Nem carinhos ela me 
fazia mais, carinhos de mãe, quero dizer, porque as brincadei-
Tas de irnlãos eram comuns entre nós. Quando eu errava, ela 
dizia - Se você nãó n1e levar esta carta para o Antônio, conto 
tudo para o avô. Minha mãe namorava e ainda por cima que-
ria a minha proteção. Não posso precisar quando foi que dei-
xei ele chamá-la de mãe para dizer simplesmente - Maria. 
Meu avô não fazia absolutamente nada, creio que já disse, 
a não ser pensar, cortar aparas de pinho, cujos caracóis ia jun-
54 
SOLIDÃO SOLITUDE 
tando no chão, fumar enormes cigarros de palha e ler uns nú~ 
meros velhíssimos da Revista dos Dois Mundos. Além. de pen-
sar, ele praticava assuntos de alto coturno co1n certas pessoas 
que escolhia como inteligentes e que lhe davam. atenção. Deo-
lindo era o seu netÓ e discípulo amado. 
Um. homem. de visão, o m.eu avô Euclides. Vou dar com.o 
exemplo de sua visão a capacidade que tinha de ganhar dinhei-
ro sem. fazer nada, pois nunca o vi sair de casa para trabalhar. 
Quando começava a comer, além. dos juros, o capital acumula-
do o velho ficava mudo e triste como um pássaro doente. I 
Andava de um lado para o outro, pi,tava seguido. Depois de 
muito andar e muito pitar, ia para a janela que dava para o 
. quintal de grandes mangueiras e punha-se a olhar o verde en-
cardido, assuntando. Não cortava aparas de madeira nessas 
ocasiões trágicas de nossa vida. De repente, por encanto, o 
rosto, antes carregado, se iluminava ea fa1nília toda se alegrava 
porque o velho sorrira. Achei, gritava ele sábio. Vestia o paletó 
de casimira preta, só usado em ocasiões solenes com.o enter-
ros e casamentos, e saía, passo finne, para a sua caça. Um.a 
vez c01nprou todo o arroz que havia nos armazéns da cidade e 
nas fazendas das redondezas. Para isso vendeu tudo o que tinha, 
chegando m.esm.o a hipotecar a casa asso brada.da em. que resi-
díamos, na rua principai da cidade. A família vivia em suspenso, 
respirar uníssono, acompanhando os passos e os gestos do ve-
lho Euclides. Seu Euclides enlocou, diziam., m.as ele não dava 
ouvidos. Para que tanto arroz, para quem ele vai vender tudo 
isto? O velho não ouvia ninguém.quando ficava assim. inspira-
do . Comprou tudo e foi para casa. Fechou-se num. pequeno 
quarto que ele chám.ava de escritório porque era onde guardava 
os exemplares da Revista dos Dois Mundos. E começou a es-
crever cartas em.ais cartas. Cartas para Santos e para São Paulo. 
Enquanto esperava, voltou à janela da frente, onde cortava suas 
aparas de madeira. Os homens de quem. ele havia com.prado 
vinham perguntar - Para onde mando levar o arroz, seu Eu-
clides? Espera, dizia ele, fica com. você até segunda ordem., pode 
ir até comendo dele. Porque meu avô possuía alm.a magnânima. 
55 
AUTRAN DOURADO 
Agora era esperar o correio . Deolindo, seu discípulo ama-
do escutava então longas prédicas do velho Euclides. O correio 
voÍtou trazendo pedidos e mais pedidos de arroz. Ele ganhou 
dinheiro suficiente para ficar sem trabalhar por mais dez anos. 
Se demorei neste retrato de meu avô mais do que desejava, 
foi para dar ü ina idéfa do ambiente espiritual em que se formou 
o meu espírito. Embora bebesse muito dos ensinamentos e 
dos longos devaneios do velho, nunca pude ser o seu predileto 
em virtude da diferença essencial de nossos espíritos. O mes-
mo não acontecia com meu primo. Deolindo possuía pai e 
mãe na cidade mas morava conosco. O velho resolvera orientar 
mais de perto a educação do menino. Os dois conversavam 
muito, mantinham acaloradas discussões sobre temas altíssi-
mos. Enquanto minhas mãos viviam calejadas do machado 
com que eu picava lenha para a cozinha, as mãos de Deolindo 
eram mãos de dama e de filósofo. Não guardava eu nenhum 
ressentimento dessa diferença de trato, mesmo porque sem-
pre fomos, Deolindo e eu, muito amigos. 
Depois de ter desmontado e montado tudo quanto havia 
em nossa casa, fiquei um dia com as mãos inquietas, sem sa-
ber o que fazer. Só as pessoas que fazem coisas e têm habilida-
de compreendem essa espécie de angustiosa espera que é ter 
as mãos vazias . Veio-me à cabeça urna idéia que no momento 
considerei brilhante e que ia decidir o meu futuro - o relógio 
de meu .avô. Era um Patek Philippe dos bons tempos, de ouro, 
resultado de um golpe que ele dera sobre o algodão, vinte anos 
atrás . 
O relógio funcionava maravilhosamente, mas mesmo as-
sim resolvi consertá-lo. A idéia pareceu a Deolindo perfeita-
mente normal. Ele ficou sentado num banco que havia em 
nosso quarto, testa repousada sobre a mã() esquerda fechada 
cujo cotovelo se apoiava no joelho, numa posição que hoje 
vejo ser a mesma do Pensador, de Rodin. Não sei se Deolindo 
me observava, porque ele não dizia nada, olhos perdidos numa 
distância interior, distância muito maior do que a que lhe ofe-
recia o céu através da janela aberta. Hoje acredito que ele não 
56 
SOLIDÃO SOLITUDE 
. .............. 
me olhava, afundado e1n pensamentos longes, indiferente ü O 
meu tr~ballf~º · l e mais horas . Eu desmontando o re-Ass1m icamos i.oras , .. . N -~· 
l' . l velho Euclides, Deolindo em recuadas pai .1gens . .. ,10 
og10 e o uer no seu lugar. Agora era rnontar tudo 
restou uma peça seql' ·o funcionar Confesso hurn.ilden1ente 
de novo e ver o re og1 . . D . lo 
- . pois a rn.e1nória não ajudava. esan1mac que nao consegui, d eç ·1s 
. 1 brar de que parte era1n as uas p . " 
do esforço para i:ne e;; dois ou três nmnes, elos mais cabelu-
~ue sobravb~m, ~~rentão um pigarro detrás de mim .. Era n:eu 
o~ que :ªht~uito tempo acompanhava o paciente e m~rtil 
avo, qu f 1 o velho porern trabalho. Pensei em correr, a a ta era grave. , ' 
me interceptou a passagem. ' . . , -
N- fu . disse Você tem jeito para a cmsa . Quantas pe 
ao Ja, i vem: vamos ao Danilo Sottavento, que lhe en -ç~s s~bcroamramo b. otar ~meu precioso relógio ern funcionarnento . 
s1nara · . 
57 
CAPÍTULO I 
Como aprendi o ofício de relojoeirn 
e nele fui mestre distinguido, 
apesar da pouca idade. 
DANILO SoTTAVENTO ERA UM DESSES exemplares ratos de homem, 
tanto pelo corpo como pela mente. Tinha o volume e aparên-
cia ele um frade de anúncio de chocolate e a mente ágil e ardo-
rosa de um artesão de outros tempos. Se eu acreditasse e1n 
reencarnação, diria que Danilo Sottavento era Benvertuto Celli-
ni vestido nas banhas de um frade glutão. Direi apenas que 
n1eu grande e incomparável mestre Danilo Sottavento era bem 
um espírito da Renascença, com alguns séculos de retardamen-
to . Digo isto sem nenhmn medo de parecer retórico ou gran-
diloqüente: é a minha verdadeira e comovida homenagem ao 
artesão que tão alto elevou o seu ofício. 
Mas Danilo Sottavento não s01nente me 1nostrou com.o 
era sim.pies fazer o pateque de nleu avô funcionar, co1no resol-
veu me ensinar a sua profissão. Comecei pelos velhos desper-
tadores. Assim fiquei algum tempo. Embora o meu mestre 
estivesse apaixonado pela rapi4ez com que eu aprendia e com 
a habilidade e firmeza de inib.hàs mãos (mãos de cirurgião, di-
zia), não deixava, por obediência ao método, que eu aprendes-
se ainda o segredo das pêndulas. 
Andava eu nessa época pelos doze anos e o florentino Da-
nilo Sottavento se babava de ter sob os seus cuidados ta1nanha 
precocidade. Você um dia, meu filho, dizia meu mestre, vai 
fazer le cose piu belle del mondo. Já me via fabricando meca-
58 
SOLIDÃO SOLITUDE 
nismos de tal delicadeza que nos fazia chorar. Não precisava 
ficar nos relógios, podia ir além, inventar máquinas de tama-
nha precisão que os próprios suíços me renderiam homena-
gem. Finalmente, meu-filhÕ~-dizia, iniquinas que riao são-mais 
relógios ne1n nada, tão precisas e preciosas como uma coisa 
bela e inútil. Meu mestre era um pouco retórico. Que impor-
ta, se usava imagens que vestiam ~déias vindas de uma grande 
alma? Ele fora abandonando uma a uma as palavras do italia-
no, só conservando aquele piU, que usava com a discrição de 
um adereço de brilhantes. 
Eu ficava humildemente silencioso diante de tanto amor 
e compunção. Um ofício que merecia aquele enternecimento 
deve falar ao coração dos deuses. 
Enquanto meu avô saía a passear com Deolindo para os 
altos da Santa Casa (a cidade de Santo Antônio do Alferes se 
situava num monte em cujos bordos ficava o nosocômio, como 
dizia meu avô), de onde descortinava todo o tapete de diferen-
tes verdes e mais além as cidades paulistas de Mococa e, com 
mais esforço, à noite, as luzes de Casabranca, quando debatiam 
problemas os mais tênues e esgarçantes, sobretudo nos dias 
em que Deolindo estava muito inteligente e pouco vago, en-
quanto isso eu ia com Danilo Sottavento para a torre da igreja 
dar .corda no relógio e acertá-lo, ft1nção que ficava sob a nossa 
responsabilidade. Lá nós tínhamos a nossa paisagem. Uma 
paisagem diferente da que fazia o velho Euclides e Deolindo 
divagarem: velhos telhados, negros de chuva, verdes de limo, 
no geral encardidos, casas velhas e chaminés de manilha, que 
deitavam uma fumaça ridícula de tão insignificante no azul 
do céu. Depois q_e levantarmos os pesos e testar as diversas 
rodas e engrenagens, oleando as· junções quanto necessário, 
Danilo Sottavento também vivia um momento de sonho. Fa-
lava, os olhos úmidos, da paisagem de -sua Firenze, deitada 
entre colinas, la piu bella città, dizia, dos velhos telhados da 
. I 
-igreja de Santa Maria del Fiore, o Palácio da Senhoria, dos tra-
balhos de arte, Dante e Beatrice, da Toscana de onde partira 
com vinte anos. 
59 
AUTRAN DOURADO 
Um dia, depois de íntimos, Danilo Sottavento, como pro-
va de amizade, resolveu me mostrar o seu segredo. Levou-me 
para um barracão no fundo da casa, que eu olhava sempre 
com curiosidade, pois estava fechado. Naquele barracão ove-
lho passavaJ~oa parte da noite. 
Vamos lá, disse ele. Vi então o mais belo maquinismo de 
que tenho notícia. Não sei dizer se era relógio, porque nunca 
vi um relógio igual. Marca o tempo, perguntei a Danilo. Não 
importa o tempo, disse Danilo Sottavento, que é o tempo dian-
tede tanta beleza e precisão? Olha o eixo, o balanço,. repara, 
filho, dizia apontando as maravilhas da máquina. Desenho 
original de meu rnestre, que há anos vinha montando e fabri-
cando as peças delicadas, quando não as tirava de algum reló-. 
gio imprestável. Abracei comovidamente Danilo Sottavento, 
dei-lhe um beijo na testa e jurei dedicação e amor eterno ao 
nosso digno e nobilíssimo ofício. 
Depois disso, ficamos amigos, irmãos. Mais do que isso, 
Danilo Sottavento ficou sendo meu pai. Eu sempre andei no 
mundo à procura de um pai. 
Atingi a idade de catorze anos e ele me declarou oficial-
mente apto a desmontar, montar e consertar qualquer tipo de 
relógio. Deu-me uma mesa ao lado da sua, na frente da loja 
junto às vitrines onde ficavam, além dos relógios de toda sor~ 
te, jóias e bugigangas. Ali, no nosso aquário, como chamáva-
mos nossas bancas, perm.anecíamos horas e mais horas, lente 
nos olhos, perdidos entre pequenas engrenagens e engenhos 
delicados. Só nos tirava do trabalho, além das refeições, um 
ou outro freguês. Era sempre eu que atendia, no princípio. 
Depois que fui considerado relojoeiro pelo meu mestre, alter~ 
návamos no aborrecimento de vender mn colar para um.a preta 
ou uma medalhinha para afilhado. . . . 
Vi uma tarde uma ponta de tristez·~··no~ olhos de Danilo 
Sottavento, tristeza que se acentuava dia a dia. Não valia a 
pena me iludir: Danilo Sottavento descobrira, coin a inais funda 
U:ág?a, que ~u não seria capaz de ir além da habilidade, que 
nao mventana nunca uma peça nova. Quis mostrar-lhe que não, 
60 
SOLIDÃO SOLITUDE 
mas o velho perdia visivelmente a confiança ern.1nim. Nenhu-
ma palavra trocamos sobre o caso, inas o conilito crescia, fantas-
ma devorador. Tentei inventar, com. restos de relógios e outros 
petrechos de nossa oficina, uma máquina de cortar pão. A ex-
periência foi desastrada, quase cortei os dedos de dona Beatnz 
Sottavento . 
O velho Danilo Sottavento definhava a olhos vistos. Er11a-
grecia. Sentia-me culpado, pelo meu involuntário fracasso, de 
estar matando meu próprio pai. 
Vou largar tudo, disse-lhe1 vou-me embora, não dou para 
a profissão. Só estou lhe causando decepções e aborreciinen-
tos. Não, absolutamente1 disse Sottavento, você é o melhor 
relojoeiro de todo o Sul de Minas. Não é verdade, repliquei, 
reconheço que eu não presto1 que lhe dou a maior tristeza de 
sua vida. Disse-me Danilo Sottavento - De uma certa rna-
neira ... Não1 é que eu pensava outra coisa. 
Não conseguimos mais conversar sobre os assuntos predi-
letos. O antigo passeio à torre da igreja tornou-se um martírio 
para nós, pois íamos calados, constrangidos, sem nenhuma 
desculpa para o nosso silêncio, as mãos abanando que me rn-
comodam tanto. Nunca mais me falou da sua Firenze. 
Danilo Sottavento, mestre insigne e obscuro, de cuja me-
mória talvez ninguém mais se le1nbre, morreu nurn d01ningo 
de tarde, assistido por todos os sacrarnentos da Igreja, mas de-
sassistido por mim, que não tive coragem. suficiente para vê-
lo morrer. 
Alguns dias depois de sua morte, aconteceu-1ne un1 fato 
curioso que
1 
por ter a sua graça, não posso deixar de n a,rrar. 
Estava eu na rn.inha banca, agora solitária, inergulhado nos 
meus parafusos e rodas dentadas, dentro da caixa de vidro que 
guarnecia o meu aquário. Há muito tempo, sen1 que eu pu-
desse reparar, seu Olímpio, um. velho desocupado de noss<1 
cidade, me observava. 
Elias, disse ele, você precisa mandar limpar este vidro. Eu 
não disse nada, o vidro estava limpo; eram. duas lágrimas que 
escorriam pelo m.eu rosto. 
61 
CAPÍTULO II 
Co mo, aos dezoito anos, depois que nossa família se mudou 
/H l Ú} uma gra n de cidade, deix ei o ofício de relojoeiro para me 
de dicar a outro igualm ente ho1uoso, o de conigir textos. 
R ESO LVI ABANDONAR DEFINITIVAMENTE o ofício que dera tantas ale-
grias e tantas tristezas ao n1.eu pranteado n1.estre Danilo Sotta-
ven to . 
No Rio de Janeiro, para onde nos mudamos, ineu avô Eu-
clides não alterou em nada os seus hábitos. Agora tinha uma 
desculpa dignificante para não trabalhar e viver de juros: estava 
velho cle1nai;:;; merecia um pouco de repouso . Ninguém discu-
tia com ele, por respeito e porque ele realmente nunca deixara 
faltar nada e1n casa; depois, porque numa discussão era sobera-
11.0, esgri1nia as idéias co1no só Il1e igt1alava Deoli11.do 11.0S seus 
dias felizes . Se em Santo Antônio do Alferes o velho olhava a 
verdura do campo que descia pela encosta até se perder no 
azul das serranias e então cismava sobre o mistério da vida e a 
fatalidade da n1.orte, no Rio, da janela de nossa casa, na Glória, 
era a bafa a paisagem e pasto de suas ruminações. 
A única n1.udança sensível foi ter de deixar de cortar apa-
ras de madeira com o seu .canivete solingem. Minha mãe, que 
n amorava então um comerciante estabelecido na rua do Cate-
te, achou que não ficava be1n, que ein Santo Antônio do Al-
feres todo mundo fazia aquilo, não tinha a 1nenor importância, 
m as no Rio de Janeiro, nem vê! Tomou-lhe o canivete com 
algum.a branch.Jra, ni.as enérgica. Poucos dias depois, olhando 
pelo buraco da fechadura do quarto de 1neu avô, n1inha mãe 
62 
SOLIDÃO SOLITUDE 
viu que o velho continuava com. o mesmo hábito de cortar 
pauzinhos. Ela não disse nada, pois o vício escondido não ofen-
dia os brios da família, nem melindrava o pudor de um prós-
pero comerciaiite da iua do Catete. - -
As tardes escorriam vagarosas quando o meu avô e Deo-
lindo não discutiam os seus elevados assuntos. 
Se eu j:í trabalhava em Santo Antônio do Alferes, a fim de 
ganhar o necessário quando nada para me vestir, meu primo 
Deolindo nunca fizera nenhum trabalho. Herdara de meu avô 
a capacidade de fazer dinheiro misteriosamente e sem suor. 
Eram dois temperamentos iguais e embora não jogassem (só ó 
truco, quando apareciam mais mineiros), havia neles a audácia 
e o segredo dos jogadores. Não sei como, mas Deolindo traja-
va-se bem e vivia de bolso cheio. Ele não apostava nas corridas, 
primeiro porque não tinha paciência para ficar muito tempo 
num só lugar, a não ser discutindo, e depois porque o Jóquei 
ficava muitp longe. Dinheiro não cai do céu por descuido, como 
diz a minha avó. Portanto, Deolindo se arranjava. 
Deolindo, como o velho Euclides, vivia de suas idéias. 
Quando começava a ver o fundo dos bolsos ficava macambú-
zio, matutando. Saía, dava umas voltas, ia a pontos opostos 
da cidade, e esperava. Dois ou três dias depois, contava com 
alguma displicência o dinheiro ganho . Nunca lhe perguntei, 
por timidez e vergonha, como é que fazia para ganhar tanto 
dinheiro sem trabalhar, quando eu, para receber a inetade, te-
ria de trabalhar _meses seguidos. Deolindo jamais me explicou 
coisa ~guma; julgava essa matéria fiduciária com alguma su-
perioridade e desprezo. 
E os dois ficavam, da varanda de nossa casa, na Glória, 
olhando o mar chapado e conversando sobre coisas importan-
. tes despreocupadamente, até que. a noite entrava, as luzes da 
baía se ac~ndiam e minha mãe vinha anunciar aj_anta na Il1esa. 
Eu decidira não trabalhar mais de relojoeiro . Ia. entrar nos 
vinte anos e precisava descobrir um can1.inho, não era um ho-
mem de idéias . Não queria reconhecer a minha inferioridade. 
Resolvi viver a vida que os dois levavam, para mim esotérica e 
63 
AUTRAN DOURADO 
fantástica. Possuíam segredos e neles eu esperava um dia ser 
iniciado .como um noviço na crença do Pai Roseacruz. 
Fiquei uns dias pensando, a olhar os navios que entravam 
na barra e os que saíam por entre os fortes. Contudo, não me 
surgiu nenhuma idéia de como ganhar dinheiro. Corn.eçava 
logo a imaginar con10 é que se constroem navios. Não, não 
era esse o carninho. Garanto que meu avô e seu discípulo ama-
do não se interessavam nunca por construção naval quando viam 
um navio passar. 
Resolvi seguir a direçãodo meu espírito e aprender. Decidi 
observar experimentalmente, acompanhando pari passu o pro-
cedimento dos dois. Escrevia num caderninho tudo o que obser-
vava. Desisti deste método, pois quando fui ler o que escrevera, 
tudo me par~~eu absurdo e inconseqüente. O jeito era olhar e, 
se 1ne perm1t1ssem, entrar nas discussões . Pobre de inim fiz 
um ?~pel tão feio e ridículo como faria um moleque de p~aia 
participando dos diálogos de Platão. Não devia ainda entrar 
na liça, mudei de rumo. 
. ~~dia, vendo Deolindo iluminado dizer que a lógica era 
a c1encia do pensamento, acreditei ter descoberto 0 mistério 
de tamanho engenho verbal. A picada que atravessaria 0 ma-
tagal era a lógica. 
Na verdade, confesso que não sabia o que era lógica. Fui a 
um sebo da ~Ia São José e de lá saí com um livro que talvez pu-
dessem~ ensmar alguma coisa. Era a Lógica, de James Balmes. 
T~anque1-m~ no quarto e debrucei-me sobre o livro. A princípio 
nao_ ent:ndia quase nada, porque não estava preparado para 
subir a tao alto lugar, faltava-me o ar, ficava tonto, sentia verti-
gem, pressão nos ouvidos, como se voasse a quatro nlil metros 
num avião nã~ ~ressurizado. Aprendi muitas coisas, quase de-
corava o que dizia o livro sobre silogismo, retórica e gramática. 
Desl_umbrav~ t?da a estrutura do pensamento, a grande cons-
truçao escolastica, tudo muito bem dividido, pesado e medido 
como queria Aristóteles e como eu apreciava. Ah Aristóteles 
meu segundo Sottavento. Às vezes achava as deÚnições mei~ 
bobocas, mas continuava; minha determinação era aprender. 
64 
SOLIDÃO SOLITUDE 
Enquanto ia aprendendo essas coisas, rrnmindo-1ne do que 
precisava para pensar e discutir cmno Deolindo, não vi jamai s 
n1eu prin10 ficar con1 um livro na mão por mais de quinze 
ininutos. Meu avô, não, lia seguidamente a Revisto dos Dois 
Mundos . 
Com todas as definições e com o manual de Baln1es rn1 ca-
beça, ainda assün não me arriscava a participar do banqu e te 
que serviam na varanda de nossa casa. Sorria mais satisfeito 
comigo mes1no, com aquela superioridade risonha que dá o 
ressentin1ento, porque, enquanto eu sabia coisas, os dois, D eo-
lindo às vezes (sobretudo quando muito inteligente) e m eu 
avô, jainais suspeitaram quais eram as figuras de retórica. 
Achava-me como um avião tecnicamente equipado, últi-
mo modelo, com toda a aparelhagem em ordem, nus sem ga-
solina para voar. 
Fiz mais unrn experiência. Porque con1eçara a achar o li-
vro de Balmes um tanto bisonho e porque já aprendera éllgu -
ma coisa, passei de novo pela livraria e comprei outro volume 
- a Lógica, de Hegel. Não posso dizer o que senti lendo o 
livro, senão recorrendo de novo ao sünile do avião: era corno 
se voasse, não mais a quatro mil metros, mas a vinte ou trinta 
mil metros de altura. Quase inorri, tal a falta de ar e a con-
fusão que se estabeleceu no ineu espírito. Homem da ordem, 
que gosta de ver cada coisa no seu escaninho, perdi-me naque-
le cipoal de idéias. 
Arrepiei carreira. Peguei um pequeno vol1m1e, a Retóricn, 
de Aristóteles. Este, sim, era de acordo com a minha feição 
Enquanto lia, tomava notas, organizando quadros e sinopses . 
O ten1po passava e eu sem: coragen1 de entr;.u na rinha 
onde o velho Euclides e Deolindo disputavam. Chegaria o tem-
po de participar do cenáculo que era a varanda de nossa casa. 
Tão preocupado me achava com a arte de persuadir, corn 
as divisões da retórica, com os requisitos de uma boa defini -
ção, que confesso não senti a menor emoção ao ver n1arnãe 
beijando o seu imperturbável e pouco casadouro comerciante 
da rua do Catete. O que me atribulava o espírito era a relação 
65 
AUTRAN DOURADO 
co111pleta das figuras de retórica, as regras da persuasão, a en-
t:imerna, as partes do discurso. 
Não sei precisar bem quando deixei a retórica pela gramáti-
ca. O certo é que num_ instante dominava da prosódia à sintaxe. 
Naturain1ente me voltei para a sintaxe, que parecia ser a maté-
ria de minha alma. Para usar de mna metáfora, a gramática, ou 
mais precisamente, a sintaxe, era a poltrona do meu espírito. 
Nada 1ne tocava mais do que saber como se estrutura uma.frase, 
cotno se con1.põem as várias pàrtes do discurso, como se enca-
deiam e se funde1n as expressões. Meu reino por uma análise. 
Devorei todas as gramáticas que me caíram nas mãos e 
fiquei sabendo coisas úteis. 
A utilidade, o jeito de servir aos outros, sempre me enca-
minhando na vida, dela vivendo em virtude de minhas habili-
dades. Verifiquei que podia viver do que aprendera, do ofício 
que conseguir9- se1n suspeitar, quando Deolindo 1ne perguntou 
- Você, que vive lendo gramáticas, conl.o é este verbo aqui? 
Dei a concorpância. Era uma bobagenl., coisa de s01nenos. 
Corno eu solucionasse tão prontamente o seu problema, me 
chan1ou a u1n canto e ine deu para ler um caderno enorme 
cheio de garatujas. Ponha isto em português para mim, pediu-
111.e. Em que língua está, perguntei. Na nossa mesma, reco-
11l1ecet.1 lrt1inildeme11.te. A fim de (iue eu não ine preocupasse 
com as minhas necessidades enquanto desbastava o trabalho, 
me encheu as nl.ãos de notas. 
Trabalhava agora para fora, ganhava suada1nente o meu 
dinheiro, enquanto ineu avô e meu primo viviam só de pensar 
e discutir. Corrigia textos alheios numa' profusão que me es-
pantava. Como sou muito discreto e nunca dissesse a ninguém 
quais eram os meus clientes,· recebia · boas s01nas de minha 
extensa clientela, que se formava de médicos, advogados, en-
genheiros, deputados, senadores e até mes1no de escritores. 
Ao mesmo tempo que me dedicava ao trabalho de estru-
turar frases bambas, de podar adjetivos, relativos, possessivos, 
deternl.inativos, os quês, os verbos auxiliares que engordavam 
as frases de nl.eus clientes, ia passeando, para fruição pessoal, 
66 
SOLIDÃO SOLITUDE 
pelos salões de ourivesaria da gramática histórica e me deliciava 
com livros como Sintaxe Históricá Portuguesa, de Epifânio 
Dias. Embrenhei-me no admirávei mundo da estilística e da 
linguagem. Li Carolinas e Carolões côm a mesma paclência e 
meticulosidade.-
A parte mais aborrecida do novo ofício era certa raça de 
Clientes que queria a todo custo saber as razões dos cortes e al-
terações. Por que não podiam dizer assim? Por que devia ser 
assado? Perguntas que, por serem inuito ele1nentares, me da-
vam grande irritação. No capítulo das regências, ai meu Deus, 
perdoai-me o desespero de que às vezes era possuído. Encon-
trava a toda hora dois verbos de regências diferentes com um 
só objeto, o que não teria muita importância, se não me obri-
gassem a discutir. Quanto mais ignorante, mais exigente e 
purista, Podiam errar em tudo, mas não queriam jamais ser 
denunciados como réus de uma colocação de pronomes que 
eles achavam duvidosa. Quando, num dia de paciência maior, 
tentava convencer a um 1nais recalcitrante que essa história 
de colocação de pronomes não existe, que é uma invenção e 
,mulatismo de gramáticos de má formação, começavam ades-
confiar de minha sapiência e por pouco não me t01navam o 
serviço. O livro que mais me irritava era o livro da predileção 
deles, a Réplica, de Rui. 
Se o que me fez abandonar o nobre ofício de relojoeiro foi 
um episódio dramático, o que me forçou a deixar a gramática 
foi um invencível tédio, ou melhor, um grande orgulho. Come-
cei a me cansar dos textos que tinha por acertar. Aborreciam-
me os erros de se1npre, os mes1nos erros elen1entares, pois se 
ineus clientes era1n "fartos em idéias e sabedoria, não eram 
muito imaginosos nos seus erros. Por um lado me humilhava 
ter de servir de muleta a coxos e capengas. Todo q ódio que 
enterrara desde a infância me vinha à boca em espuma. Eu, . 
que no fundo do peito sonhava um grande destino, eu que 
podia ter um grande papel, ali me via apagado e nl.urcho, entre 
ênclises e próclises. 
Tal era o meu ódio que não podia percebera nobreza e dig-
67 
AUTRAN DOURADO 
nidade do novo ofício, tão digno e nobre como o de relojoeiro. 
Corrigir textos não dirninui ninguém, muito ao contrário: o 
que importa, devia eu pensar com hunlildade, é o valor de 
uma alma, é colaborar para alguma obra, para fazer un-ia da-
quelas catedrais da Idade Média, cuja construção varava sécu-
los e nunca quem a iniciava tinl1a a pretensão de ver acabada. 
O que conta, devia eu pensar, é o homem, que muitas vezes 
pode parecer vulgar e canalha, sobretudo se unido a outros 
homens, mas que, no seu mais .fundo cerne, é digno e é a mais 
perfeita criatura da terra. 
Eu não sabia nada disso, que só o te1npo, o aviltamento e 
a penitência nos oferecem como o prato de lentilhas da sabe-
doria. Uma conlida pobre, é verdade, n-ias a única que possuí-
mos. Pobre de mim, ignorava que a vida obedece na sua cons-
trução, obra do homem, ao espírito gótico, que os homens 
que iniciam u1na obra, por mais penetrante que seja a sua an-
gústia, a sua ambição e agonia, jamais conseguirão, mesmo 
sangrando, vê-la terminada, porque este é o prato dos deuses. 
A minha vingança é moderada e sutil. Em vez de recusar 
os·trabalhos, de denunciar publicamente que era eu o sapateiro 
remendão daqueles calçados polidos, o que seria tam.bém uma 
forma de canalhice, passei a alterar os textos que me eram 
submetidos, para introduzir coisas minhas. Acredito que esta 
deve ter sido . a tentação de Moisés ao dar aos homens, do 
monte Sinai, as tábuas da lei; se é que ele não as alterou, cain-
do em tentação, cometendo assim o maior dos pecados. Thlvez 
o seu ódio, ao quebrá-las, tenha o significado do orgulho feri-
do ou o sinal do arrependimento, por estar adulterando a pa-
lavra de Deus. Não, não era arrependimento, mas orgulho. 
O meu embuste foi logo descoberto. Alguns de meus clien-
tes ficavam satisfeitos com as frases, os capítulos mesmo que 
introduzia nas suas obras, e calavam. Outros, mais suscetíveis, 
não quiseram passar adiante a minha moeda e fui desmasca-
• I 
rado, perdendo toda a minha clientelá. . 
68 
CAPÍTULO III 
Como, depois dos sucessos narrndos, 
me dediquei ao mais belo dos ofícios, 
qual seja o de trntaâor âe pássaros. 
EsTE CAPÍTULO, AO CONTRÁRIO do que o precedeu, deve ser curto 
como pede a nlatéria. A matéria é pássaro, que se aproximei 
muito da poesia, cujo significado em alemão - se não rne 
enganou o professor-, dichten ou dichtung, é condensar: Este 
capítulo, pois, será curto, para sua melhor expressão . 
Conheceis coisa mais bela e pequena do que a alminha ele 
um menino que vai com 111n alçapão, mato adentro, à cata de 
passarinhos para vender nas feiras? Conheceis cores nlais vivas, 
brilhantes, nlais puras e delicadas do que o leque das penas 
dos pássaros? 
Após a minha falência no negócio de corrigir textos, apli-
quei-me ao estudo dos pássaros e do seu cuidado. Aprendi 
tudo o que lhes dizia respeito, freqüentei _ museus e jardins 
zoológicos, fiquei sabendo da econo1nia de cada um. Passei a 
lidar então com os pássaros alheios . an.hava bem, porque 
tudo fiquei sabendo sobre os pássaros e s t1 •t raças; a sua própria 
medicina, que é muito especial e delicada, m e era familiar 
Não me contentei, porém, con a b J l "za que tinha nas 
inãos com as cores e com os sons m.ais puros cios seus Umtos, 
I 
de variações tão finas, impercepLív •i · ' ·u aves, que rnuitas 
delas o ouvido hunlano não consegu a lu i n.qar, de tão altas. 
A vaidade e o orgulho, qu co111.:ç~ira 1 1 li · rnanifestar ern 
ininL me arruinaram ainda destu v Jz, tira1ldo -mc ornais belo 
I 
69 
AUTRAN DOURADO 
elos empregos e o mais sublilne dos ofícios. Quando ine lem-
bro dos pássaros que sacrifiquei por minha idéia, os meus olhos 
se ench~1n de lágrimas, como agora, chegando a molhar opa-
pel ern que escrevo. 
Veio-rne a idéia sinistra de que não devia apenas servir aos 
pússaros, alin1entá-los1 e, como dádiva generosa, ouvir o seu 
canto, n1as de fazer os n1eus pássaros. C01necei a cortar cabeça 
de urn pássaro, asas de outro, pernas de outro, olhos de outro, 
até que m.atei metade do jardiln de pássaros que estava aos 
111eus cuidados, na esperança de criar, com esses restos m.or-
tais, um pássaro de espécie desconhecida, que eu inventara, 
mais belo do que todos que existiam no mundo e sem os de-
feitos de cada um. 
70 
MINHA AMIGA 
For NO ENTERRO DE MARGARIDA. Margarida, minha pobre an1iga, 
se enterrava num dia claro e luminoso. Começo a pensar que 
devo fazer uma image1n ou co1nparação. Dizer, por exemplo, 
que a terra teve o capricho de engalanar-se toda para zombar 
de minha amiga. Não, não farei dessas coisas, não gosto de 
abusos com a natureza. A terra não se preocupa tanto asshn 
conosco, u111a simples morte ou a morte de milhares de chine-
ses, brasileiros ou europeus não altera em nada a orde1n cósmi-
ca ou meramente a noite e o mar. Nascemos1 amamos, criamos 
filhos ou morremos e o mundo continua absolutamente indi-
ferente, amanhecendo e anoitecendo, claro, escuro ou nebuloso. 
Ainda be1n, porque senão seria unia horrível coníusão meteo-
rológica. Até que se consiga fabricar, com engenho 1i1uito apu-
rado, uma bomba tão precisa, que nos destrua a todos, homens 
e mundo: tornare1nos assin1 a poeira de nebulosa. 
A minha pobre Margarida ia se esvoaçando no meio dessa 
claridade diurna que me fez divagar por outro caminho. É pre-
ciso dizer que Margarida morria virgem. Nada de mais, todo 
dia morrem. virgens, como a1nanl1ece e anoitece. Mas Marga-
rida morria virgem numa idade em que ser virgem é uma ex-
ceção, um crime contra a natureza, uni.aleijão; como diz um 
amigo meu, licencioso e obsceno. Margarida completara em 
· janeiro sessenta anos e estava reahnente velha. Tão velha quan-
to eu, ou talvez mais, porque murchara, enquanto venho gas-
tando minha vida regularmente, estragando 1neu corpo e ininha 
71 
TEMPO DE MÁRIO E OUTROS TEMPOS 
AMADEU ANDAVA DEVAGAR, se atrasava o 1nais que podia, parava 
em cada esquina. A caminho de casa, da casa que ele forçava 
por esquecer. Não tinha nenhuma vontade ele chegar. Ern c0:1s;:i 
encontraria a mulher e os filhos dorrn.inclo. Dorrniam àquela 
hora, como toda a cidade dorrn.ia: apenas na zona boêrnia ou 
nos botequins perdidos alguma luz dava sinal .de vida. Dor-
rn.iam, sempre dormian~, era natural, quando ele chegava da 
redação, tarde da noite, muitas vezes de madrugada, quando 
vencia o cansaço e cedia ao apelo dos botequins acesos. 
Àquela hora a família dormia. A n~ulher nem notava a sua 
presença na ca1na. Só o corpo quente parecia perceber a sua che-
gada. Ela se enrolava como um cão procura se ajeitar e con-
tinuar dormindo depois que uma pulga o pica mais forte e ele 
coça com a pata traseira a orelha sarnenta. Uma ou outra vez 
é que ela perguntava meio dornlindo que horas são. Duas, dizia, 
o relógio marcando três e meia. Aprendeu a mentir, rnentia 
sem necessidade, n~entia por fastio de explicar, con10 aprendeu 
a trocar de roupa no escuro para não acordar a mulher. 
Quando vinha bêbado a coisa era pior, tinha de se equilibrar 
numa das pernas, se apoiava no armário para tirar as calças. 
Ela ruminava qualquer coisa, continuava a donnir. O ruirn era 
dormir vestido. No dia seguinte a mulher não dizia nada, fe-
chava co1n cuidado a porta do quarto para as crianças não 
verem. Mas ela não dizia nada, ficava calada uns dois dias, 
Amadeu se enchia de desespero, de ódio. Depois voltavam de 
143 
AUTRAN DOURADO 
repente a se falar, nunca porém tocavam no assunto. Ele tor-
navn ao seu natural: o desespero manso de todo dia, a vida de 
todo dia. Depois que saía do jornal passava pelo bar, ficava be-
bendo en1 pé urna cerveja e mna guia de cachaça, até se sentir 
m.eio zonzo. Sabia então que era hora de ir para casa, a 1nulher 
e os filhos dormiam. Quando Amadeu chegava eles estavamsempre donnindo. 
Ani.adeu andava devagar, rente aos n1uros, procurando as 
sombras. Tinha andado muito, estava cansado. Passou pela 
zona, viu um.a briga de mulheres, bebeu mais mna cerveja e 
uma guia. Ali procurava ver friamente o mundo fora dele, neu-
tro. O mundo e seus ruídos noturnos. No viaduto ficou durante 
algum tempo vendo os trens n1anobrando. U1n assobio longo, 
depois o apito de urna máquina. Um operário passou balançan-
do uma lanterna vermelha, sumiu no oco da escuridão. Era 
tào fácil saltar dali, quando o trem passasse debaixo do viadu-
to. Melhor ton1ar run10. Queria um n1undo neutro, um inundo 
que não lhe trouxesse nenhuma le1nbrança, que não lhe acor-
dasse nenhuma voz adormecida no silêncio do poço. Acabaria 
pensando na Paisagem dos Trens e dos Homens. Era um poe-
mél qüe con1eçou a fazer anos atrás, agora inacabado dentro do 
baú há anos. O poema guardado doía como uma angústia ve-
lha quando se arranha a pele, e ele cuspia com nojo. 
Andava e grunhia um monólogo interminável, começado 
quando saiu da redação. Gostava de parar nas esquinas, olhava 
o asfalto brilhante, os trilhos de bonde varando a rua. As ruas 
vazias das n1adrugadas, o barulho de algué1n ca1ninhando, vin-
do de longe. Alguém sozinho, alguém corno ele sem vontade 
de voltar pra casa? Pisava as folhas secas, .as frutinhas dos fícus, 
era bom ouvir o estalido que fazia1n. Do outro lado o negrume 
elo parque, as grandes árvores. O barulho de uma carroça dis-
tante . O caminhão da prefeitura já vinha vindo lá no fim da 
rua. Podia ouvir o barulho da água lavando o asfalto, as vozes 
dos garis trabalhando. Para eles as noites eram diferentes. 
No Bairro dos Funcionários tinha a certeza, já pressentia: 
o cheiro adocicado das damas-da-noite nos jardins de gradinhas 
144 
SOLIDÃO SOLITUDE 
de ferro. Na Serra era o cheiro das mangueiras nos quintais. 
Bom se fosse tempo de manga. As mangas brilhantes na meia 
escuridão das folhagens, vontade de saltar o inuro. Como fa-
zia em São Mateus, quando rapaz. Quando chegava no alto da 
avenida Afonso Pena, na Praça 12, onde devia to1nar a aveni-
da Paraúna, é que se voltava para trás, via as luzes da avenida, 
o colar de lâmpadas acesas que descia até à Feira de Amostras, 
por entre as massas de fícus. 
Tenho ten1po, ela está a sono solto, pensou. Não vai 1ne 
perguntar que horas são. Duas e meia, uma boa hora de dizer. 
Duas e meia, disse baixinho com medo de acordá-la de todo. 
Sabia que vinha reclamação, ela acordando. Ergueu os braços 
para o ar, co1no se fosse rezar diante da Serra do Curral. Ali 
está enterrado o meu coração, disse . Não fazia sentido. O cor-
po da m9ntanha era negro e fechado, não guardava nenhum 
coração. O sangue da hematita manchava as encostas escalva-
das. Respirou fundo, encheu o peito com a noite fria e o ar 
cheiroso de Belo Horizonte. Pensou nos versos iniciais da Pai-
sagem dos Trens e dos Homens. Nada meu, disse com raiva, 
cheira a Neruda, cheira a Drummond. Tornou a cuspir com 
nojo. Longe o tempo en1 que fazia versos, en1 que acreditava 
em versos. O que tenho de meu é muito pouco, ia dizendo. O 
peso das noites matou os meus versos, Belo Horizonte ::ifogou 
a minha alma. o cheiro das noites frias, o vento que s'oprava 
da Serra do Curral. Se lembrou dos tempos de Mário de An-
drade, como ele chamava 1942, 1943, 1944. Um homem enor-
me, as mãos grandes, a calva, a boca avançando. O poeta Mário 
de Andrade rodeado de piás no bar do Grande Hotel. Guarda-
va ainda, con1 os versos, num baú velho, as cartas de Mário. 
Os moços daquela época tinham cartas de Mário, como diziam. 
Hoje recebi carta de Mário, era como eles falavam uns para os 
outí:os, co1no se passassem uma inensagem cifrada. A primeira 
carta que recebeu de Mário. Era um rapaz importante, se sen-
tia tão poeta quanto Dante (eu saí pra Dante, dizia para si 
mesmo e para ninguém), recebera uma carta de Mário, a pri-
meira, era um iniciado retardatário do modernismo. Depois 
145 
AUTRAN DOURADO 
tudo acabaria. Mas quase todos tinham cartas de Mário. O 
nome solto, assim dito de mansinho - Mário, era como uma 
palavra de amor. Quase todos tinham cartas de Mário, quem 
não recebia carta de Mário não entrava para a literatura. O 
poeta Mário de. Andrade descendo aos infernos no poema de 
Drummond, subindo para o céu cercado de piás. As cartas 
voavam dos bolsos cheios .da casaca do mágico. 
Sentou-se no meio-fio, acendeu um cigarro. Não tinha be-
bido o suficiente para ficar bêbado, não sabia por que sentiu 
um engulho na segunda cachaça. O cuspe grosso na boca, 'o ci-
garro, o peito cansado. Procurava e1n grandes haustos encher 
o peito com o luar de Belo Horizonte. O friozinho das noites 
na Serra) o vento vindo da Serra do Rola-Moça, não tinha esse 
nome não, assobiando pelas ruas desertas. Maravilha de mi-
lhares de brilhos vidrilhos, assim começava Mário de Andrade 
o seu Noturno de Belo Horizonte. O silêncio fresco desfolha 
das árvores e orvalha o jardirn só, continuava. Não se lembrava 
mais do resto do poema, tudo múito confuso na cabeça. Como 
não se lembrava a não ser con1 mna leve inelancolia os seus 
tempos de poeta, os seus tempos de Mário de Andrade. O tem-
po passou, os amigos escritores foram para o Rio. 
Dividia a sua vida em tempos. Como se fosse um velho I 
não era um velho. Vida noturna de jornal, a disponibilidade 
inata para a vagabundagen1. Andar pelas ruas de noite com.o 
nos tempos de São Mateus. Sempre gostou de andar à toa pelas 
ruas, nas noites vazias e fundas, sem fim. Ein São Mateus era 
pior. As noites longas demais da conta, os bares se fechavam e 
não tinha para onde ir. Os quintais como chácaras, as man-
gueiras escuras e cheirosas. Quatro ou cinco rapazes como ele 
espalhavam pela cidade uma solidão que procurava se disfarçar 
numa solidariedade franca, numa amizade de todas as horas 1 
para valer toda a vida. Mas eram sós e se1n nenhum destino. 
Até que um deles conseguia r01nper o casulo e sair para Belo 
Horizonte, para o Rio e para São Paulo. Foi ele o último a sair. 
Alfredo, Euclides, Salvador e Vasco foram antes dele. 
Por onde andava1n eles àquela hora? Numa viagem que 
146 
SOLIDÃO SOLITUDE 
............... 
fez a São Paulo, depois que deixara São Mateus, encontrou 
Salvador. Abraçaram-se como velhos amigos. Você corno está 1 
E você! Naquela época não tinha esse bigodão, estou certo. 
Mas foi só isso. Se lembraram de São Mateus, principaln1enle 
das noites, dos quintais enluaradas de São Mateus. Salvador 
dobrava de rir se le1nbrando de quando Vasco tentou aprender 
saxofone na Banda Santa Cecília: Gozado, não era? Quando 
ele tocou pela primeira vez aquela valsinha de Mignone nós 
quase morren1os de rir, se lembra? Ainadeu se !em.brava. 1Vlas 
foi só São Mateus tinha se acabado. Depois de conversar mn 
pouc~ rn.ais, Amadeu verificou que já não se entendiam., eran1 
outros, não tinham mais nada para falar. O quebranto se par-
tira. Se lembra? 
Foi o encontro com Salvador que o fez enterrar para sen1pre 
0 desejo de rever os amigos, de voltar a São Mateus Não se 
volta a São Mateus, disse com ênfase procurando dar à$ s1.18s 
palavras um.a profundidade niaior do que elas realmente pos-
suíam. Ninguém volta atrás, agulha que se perde não se acha 
mais. Os tempos de São Mateus ficaram para trás como urnJ 
estaçãozinha de estrada de ferro num percurso que não se for{~ 
nunca rn.ais. Quando era inenino escrevia nos passeios agora e 
tempo de an1arelinha. Ficava ansioso para chegar o ten1po do 
pião. Havia o tempo do pião e o tempo da aniarelinha. Tempos 
de São Mateus e tempos de Mário de Andrade. A fieira enro-
lada, o pião saltava, o pião rodava fazendo círculos, assovian -
do até perder força e cair. Assim roda o mundo, assin1 rodo eu. 
Nunca mais voltou a São Mateus. Só soube da morte ela 
avó dois dias depois que ela inorreu. Não valia mais a pena ir 
a SãoMateus. Os pais morreram cedo, foi criado pela avó. Se 
lembrava da avó. Os pés macios, o barulhinho das sandálias 
de ·liga se perdendo nos fundos do corredor. Passeava . como 
uma sombra a sua n1agreza pelo casarão da rua do Vira. Os 
parentes foram morrendo e ela ficou sozinha no sobrado. Ela e 
0 neto que ela criava corno um gatinho que se deve an1ar por-
que ele está cheio de lembranças, de carinhos, de ronronar 
manso. Ele nunca crescia para ela. Amadeu ouvia os passos 
147 
AUTRAN DOURADO 
no corredor, a tosse _fraca e a s01nbra magra ca1ninhando en1 
sua direção. Bença avó, dizia. Vai andando, dizia ela brinca-
lhona, às vezes gostava de brincar, lugar de hon1e1n é na rua. 
L1 para a rua encontrar os ainigos. Às vezes tinha vontade de 
vir correndo e abraçar a velha por detrás, dar um beijo nela. 
Desacorçoava, a avó não era disso, seu n1odo de carinho era 
severo, duro. Quando entrava de noite, devagarinho para não 
aconlar a velha, ouvia a voz frouxa no quarto da sala. Ten1 
coalhada na mesa da cozinha, ela dizia. Era assim o carinho 
da avó _ Será que a velha não dormia? Um_ carinho que doía 
fundo no peito. De noite era a tosse seca. Depois ela se levan-
tava, certamente se levantava, ia buscar a latinha de pastilhas 
VaJda. Coalhada na mesa da cozinha. A coalhada e a tosse da 
avó costu1navan1 doer feito unha encravada dentro dele, 
Amadeu não conseguia dormir direito, acordava n1ais cedo, ia 
para o quintal e rachava lenha furiosamente para a velha, se 
compensava. Ela ficava olhando ele de longe, não dizia nada. 
Ele pensava na sua vagabundagem, na vida sem sentido que 
levava, pro1netia a si n1esn10 mudar, não mudava. 
Precisava 'ir embora mas não tinha coragen1. Perambulava 
pelas ruas de São Mateus em companhia de Salvador, de 
Alfredo, Euclides e Vasco. O primeiro que for e conseguir algu-
ma coisa chama os outros, diziam. Não havia nada para fazer 
em São Mateus . Vinte anos e uma vida pela frente em São 
Mateus, dizia Vasco com raiva. Fizeram o ginásio juntos, ali 
mesmo em São Mateus . Que iam fazer agora? Os pais não 
eram ricos, não podiam sustentá-los como estudantes de cur-
so superior em Belo Horizonte. Sozinhos teriam de enfrentar 
a capital, achar emprego e se possível fazer um curso qual-
quer. O prin1eiro que for chama os outros. 
O primeiro que foi, foi Euclides. Quando Euclides se deci-
diu, juntou algum dinheiro vendendo o que pôde conseguir na 
família, os outros ficara1n pasmos. Como se eles dissessem 
aquilo de ir ernbora de brincadeira, de puro sonho. Não era 
possível, ninguém acreditava. Aquele o prüneiro que for chan1a 
os outros era n1esmo uma espécie de brincadeira. Você acredi-
148 
SOLIDÃO SOLITUDE 
ta mesmo que Euclides tem coragem de il~ perguntou Vasco. 
Era uma desconfiança, u1n 1nedo, u1na ad1niração1 un1a soli-
dariedade. Ele é o mais novo de nós, disse Alfredo; não tem 
ainda vinte anos, disse Vasco; vai ser duro, dis~e Vasco> a que 
preço? ninguém é sozinho, disse Amadeu. Eram sozinhos. 
Foi sentado na amurada da ponte que Euclides contou a 
novidade. Ficaram mudos durante alguns instantes. Toque 
aqui, disse Salvador lhe estendendo a mão. Passaram em si-
lêncio o resto da noite, só Euclides falava. Era uma necessida-
de furiosa que ele tinha de falar, se afirmar, vencer o 1nedo, o 
silêncio no coração. Foram ver o dia nascer no pasto. As vacas 
1nugiam1 as bostas quentes e frescas cheiravan11 o caphn-gordu-
ra molhado, o céu ficou cinza, depois rosa, mn friozinho can-
tou, um pássaro piou, e tudo era fresco e novo, o dia nasceu. 
Euclides era cmno o dia nascendo. Suspiraran1 111udos. Era1n 
livres, tristes, desocupados . 
No dia da partida foram levar Euclides na estação'. Ele ia 
para São Paulo. Achara mn anúncio no jornal, escreveu à com-
panhia de seguros que oferecia empregos para jovens comam-
bição, ele era um jovem com ambição, foi aceito . Deixa que 
eu seguro a mala, disse Alfredo. Euclides sorriu meio encabu-
lado, disse não é preciso. Faço questão, disse Alfredo, é como 
se fosse minha. Eles riram n1uito, precisavam rir. Foram até 
ao telegrafista saber quanto tempo o _expresso estava atrasado. 
A Mogiana é assim mesmo, disse Amadeu. O expresso atrasa 
e o misto nem se fala, disse Vasco. É horrível o serviço que a 
companhia nos presta, disse Euclides com ar de viajante. Ele 
que nunca tinha viajado . Veja como ele está, disse Salvador. 
Caíram na gargalhada. O telegrafista informou a hora que o 
trem passava. É, não vale a pena, vamos ficar por aqui mes-
mo, disse Amadeu a uma sugestão de Salvador. Quem tem 
dinheiro pra pagar pastel e bolinho de Jeijão, perguntou Alfredo. · 
Euclides fez que ia meter a mão no bolso. Você não, vai preci-
sar de dinheiro mais tarde, disse Vasco. Ara, disse Euclides. 
Não seja besta, disse Vasco. Euclides se encolheu, Vasco pagou. 
Esperara1n, conheceram um momento por demais pesado 
149 
AUTRAN DOURADO 
de silêncio, não tinham nada a dizer de importante como a 
hora exigia. Até que o trem apitou na curva. Euclides era o 
único passageiro a embarcar em São Mateus. Deitando fuma-
ça, espalhafatosa, a máquina parou no fim do armazém de 
· café. Uns viajantes de guarda-pó desceram para tomar café e 
comer bolinho de feijão e pastel numa mesinha junto da porta 
de saída. Eüclides abraçou os amigos, teve uma palavra especial 
para cada um. Não deixe de escreve~ diziam. Não se esqueça 
da gente, disse Amadeu. Euclides tinha os olhos úmidos . Não 
chorou, era um home1n que levava consigo grandes esperan-
ças, não podia chorar. Com um apito e um aceno de bandeiri-
nha o agente deu o sinal de partida. Da janela do trem Euclides 
tentava dizer ainda alguma · coisa, m.as o trem arrancou e ele 
só pôde gritar adeus. 
Os quatro desceram calados a ladeira .da estação. Voltavam 
para a vida de todo dia, para a solidão miúda de São Mateus. 
De tarde era o bilhar ou a sinuca. Amadeu ia tentar a bola 
sete. O giz azul rangiu na ponta do taco . Deitou-s~ sobre a 
inesa,_ esticou a perna direita num esforço para se equilibrar e 
não perder "ª tacada. Sete pra nós, disse Alfredo com ar de 
corvo de Edgar Allan Poe. Pocha, você também foi tentar uma 
bola dessas, gritou Vasco. Agora sou eu, disse Salvador 
capengando de mentira. 
Assim eram as tardes de São Mateus . Sentado no meio-fio 
Amadeu ruminava, os olhos injetados, a boca a111arga, o cuspe 
grosso. 
Nem sempre tinha dinheiro para jogar. Muitas vezes iam 
para o 'Ihnquinho e passavam. a tarde nadando. Nadavam nus, 
fumavan1, bebian1 cachaça que un1 deles trazia, contavam ane-
dotas porcas, ria1n, falava1n de n1ulheres, n1as de a1nor n1es-
mo eles só conheciam o vendido na casa de Sanica do Pivô . Os 
nan1oros cmn as n1oças de família, as tardes dançantes de do -
1ningo no clube não tinham nuis interesse. Riam das moças, 
elas querian1 casar e eles não era111 nenhu1n partido, nem ao 
menos tinham emprego. Neühum. pai ia entregar a eles as suas 
filhas. Eram vagabundos e desocupados. · 
150 
SOLIDÃO SOLITUD E 
De noite, quando conseguiam dinheiro Deus sabe com.o 
ou o dono do bar resolvia fiar, bebiam cerveja e contavam his-
tórias . Andavam sujos, só tinhain a roupa do corpo. Es1)eravarn 
algum fazendeiro aparecer, gostando de companhia alegTe o 
fazendeiro pagava mais bebida. Vasco dava então um espetá -
culo extraordinário . As mãos finas, os gestos inedidos, em. câ-
mara lenta, compunha um.a sessão de inímica. Agora é Carliws 
faminto que vai levar uma flor pra inoça cega, dizia. Agora é 
a mulher grávida fazendo crochê e não tern urn tusta . Agor:-1 
é a moça vergonhosa que o narnorado inete a inão por dentro 
dos seios. Agora é Jesus Cristo subindo pro Calvário antes ele 
tomar o fel, dizia ele virando o copo de cerveja . Era m esrno 
uma pândega, os fazendeiros sen1pre se divertia111, eles cT élff1 
gozados na sua tristeza. 
Depois saíam para fazer a noite, con10 diziarn.Lizer a üoite 
era andar sen1 destino pelas ruas escuras e desert as . .c'\.lgu ffEl S 
vezes p assava1n pelos bordéis. Se as inulheres t::st:wam deso -
cupadas, sentavan1-se en1 volta da ines~1 n a sala e ::se pu n h a1n 
a conversar. Batia1n longos papos, Vasco dizi<1 graçds, cuntav c1 
anedotas picantes, fazia n1ímica, in1itava C arlitos e a m ulher 
que entra na viela pela prin1eira vez, as rnulheres se dobrc1v~un 
de rir. Amadeu ficava calado, fazia o papel do poeta t riste, e, 
encontrando 1-nna m.ulher tão triste corno ele, puxava-·a pau 
un1 canto e c01neçava a conversar, a des tilar angús tia, con10 
dizia. Quase sen1pre dava certo, acab av a indo para o quarto 
con1 ela. As mulheres sabia1n que eles não tinharn nada, eram 
prontos e procuravan1 apenas encher a noite . As donas dos 
bordéis não gostavarn que eles viessern quando os fregueses 
ricos aparecian1. Mas assim sen1 ningué1n, n o n1eio da n oi te, 
se fonnava urna roda alegre e todos riarn, riain até fazer lágri -
mas nos olhos . Meu ben1, dizia Vasco, seu riquinho ve:m hoje! 
Não, ele já veio aqui de tarde. Então é a n oite do seu gran de e 
imorredouro amo1~ dizia ele. Luzia não gostava de ir logo p ara 
a can1a queria 111ais era con1p:1nhia. Espera, v a1nos ver, Llizi:i 
1 , 
ela você não deve ter um tostão no bolso . O pervers a, Elvira J 
dos n1eus desencantos, n1enosprezando a n1inha fortun.a, olha 
151 
AUTRAN DOURADO 
que Deus castiga. Quem quer ter u1n grande e ünorredouro 
amor tem de conhecer o Rom.ante de Um Moço Pobre, dizia. 
J\1as as horas acabavam passando e se algum deíes conseguia 
alguma coisa, se dava por feliz da vida. Eles não se importa-
van1, queria1n u1n pouco de conversa, .u1n a1nor roubado, não 
clesej ava1n é ir para a casa. 
fam de mn extremo ao outro da cidade. Na ponte para-
van1 e conversava1n. Se surgia uma idéia interessante como 
saltar um m.uro e roubar fruta, puxar u1na charrete de um 
portão e levar para bem longe, todos aderiam à idéia genial e 
se davam por satisfeitos, tinha1n alguma coisa para fazer, en-
chiam as noites. As noites eram compridas e redondas, frias e 
arrastadas. 
No dia seguinte era a m.esma coisa, tudo se repetia. Alfredo 
passava pela casa de Amadeu e assobiava Olá Seu Nicolau, 
Você Quer Mingau. Os dois saíam e iam assobiar o Seu Nico-
lau na porta ela casa de Salvador. Até que o grupo estivesse 
comple'.:o. E rodavam a cidade à procura de algum.a coisa para 
fazer. 
E como u,m dia Alfredo se foi, chegou à vez de Vasco, che-
gou a vez de Alfredo. O grupo diminuindo, cada vez era sem-
pre a mesma liturgia da despedida na estação. Subiam a ladei-
ra, se despedian1. trocando abraços quando o trem cl1.ega'la, 
desciam tristes e silenciosos a ladeira para a vida comum. 
Todos se foram, mn dia chegou a vez de Amadeu. Subiu 
sozinho a ladeira da estação . Ninguém para dizer adeus , Quan-
do o sinal de partida soou, de sua janela Amadeu olhou para 
ver se via algum. conhecido. Ninguém, ele partia sozinho, o 
tre.m já ein 1novirnento. Na porta do annazé1n de café, seu 
1onico Fontoura olhou-o indiferente. Amadeu acenou para ele. 
Seu Tonico r~ontoura olhou desconfiado para um lado e para 
o outro, e vendo que a coisa era c01n ele fez um aceno meio 
sen1 graça. 
An1adeu se levantou do meio-fio. Ele também foi depois 
muitas vezes levar os a1nigos que ia1n para o Rio pelo tre1n da 
Central. Agora ouviu passos que se aproximava1n. Alguém 
152 
SOLIDÃO SOI,JTUDE 
co1no ele ia para casa. Foi descendo a avenida Paraúna, a ca-
minho de casa, a caminho do sono junto da 1nulher1 ela se en-
colhia no outro lado da caina sentindo a sua presença. O re-
1norso i1o peito, olhava certamente .os' filhos antes de 'se deitar. 
Eles àorn'liam e' nem sequer sonhavam que o pai os olhava 
com emoção: a emoção de um pai moído de solidão que vê os 
filhos dormindo. 
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