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..i~.: OBRAS DO AUTOR A barca dos homens, romanc~ Ópera dos mortos, romance ·· · ()risco do bordado, romance Os sinos da agonia, romance A serviçodel-rei, romance Tempo de amar, romance Uma vida em segredo, romance Novelário de Dongas Novais, romance Lucas Procópio, romance Um artista aprendiz, romance Alfonte da alegria, romance Um cavaleiro de antigamente, romance Ópera dos jimtoches, romance Confissões de Narciso, romance Gnio!a ·aberta, memorial Solidão so/itude, contos Armas e corações, contos As ilnagiilações pecaminosas, contos Violetas e caracóis, contos # Uma poética de romance, ensaio Meu mestre imaginário, ensaio Novelas de aprendizado, romance Autran Do11rado SOLIDAO SOLITUDE MARINHA ~ SOMBRA DE UMA CASTANHEIRA cujos galhos se estendiam até Junto ~ m~~ia, Gló:ia dispôs sua caixa de tintas, separou al- guns pmce1s bem finos, como ela queria, fixou o papel na pran- cheta, alisou-o bem, pronta para trabalhar na marinha que vinha há muito sonhando. O mar ali estava, verde, claro, muito límpido, guardando toda ~ luz da mar:hã ensolarada. As cores puras, mas fugidias; os · ra10s de sol faiscavam nas conchas sobre a areia amarela. Con~o conseguiria a cor que procurava? Não, não era aquela pre~1sam~nte a tonalidade. As pedras ela as sentia bem, quase podia f~ze-las de uma só vez. As cores dançavam nos seus olhos vivos, i:-as suas m.ãos finas e brancas, parecian1 brincar con1 ela. Hesitava, sentia-se sem recursos, incapaz de pintar. Logo que se levantara tinha pensado que seria fácil, sentia-se com forças para o trabalho. Mas agora o que acontecia com ela? Tinha vontade ele chorar, alguma coisa tentava-a intima- m~nte. Não, daquele jeito ela nunca seria un1a pintora, nunca fana a aquarela que tanto desejava. Sabia que se tentasse tal- vez ~onse~li~se fazer alguma coisa, mas para rasgá-la logo em segtnda. Vanas vezes desenhara aquela paisagem, fizera inú- meros es.tudos para a sua marinha. Quando se dispunha a tra- balhar, eis que alguma coisa lhe fugia, como um pequeno raio de sol entre os dedos ou uma concha colorida que as ondas chamavam de novo para o furido do mar. · . O mar, que ton~lidade daria ao mar? Dentro de si já sabia, tmha-a bem escolhida, como uma fagtllha queünando-a. 26 SOLIDÃO SOLITUDE Há vários anos que trabalhava corn aquarela. Depois de inuito sacrifício, de paciência, de sofrünento, vinha conseguin- do aquela transparência que tanto almejava. Elas deviarn ser assim, límpidas, puras, desprendidas o m.ais possível elos ob- jetos . Que a luz dançasse uma harmonia sutil sobre as coisas. Mas, que se passava c01-r1 ela, que não conseguia ao rnenos cmneçar? Violenta1nente, deu un1 risco no papel, borrou. Arran- cou o papel da prancheta, amassou-o com raiva, atirou-o longe. Alexandre, que espiava interessado o trabalho da mãe, cor- reu atrás do papel que as ondas já levavam. Glória olhou o filho, teve vontade de zangar con.1 elei sen- tiu os olhos cheios de lágrimas. Não, não tinha nenhum rno- tivo para zangar com ele. Mesmo assiin, gritou: - Alexandre, largue isso aí! Vai brincar co1n os outros meninos! Que menino impossível! pensou. Não gostava de brincar com os outros, sen1pre arredio, os olhos cisrnar1do . Corn que cis1nava aquele menino?. Às vezes parecia sofrer. Descobria no filho traços de seu próprio feitio. Por que sofria, se ignoraV;) n vida que nos faz sofrer? Ou quem sabe, sabia? Quem pode sa- ber o que pensamos, o que sentimos ... Ninguém, ninguém ja- mais poderá saber. Dentro dela, sensações antigas, velhas n1ernórias renascian-i. E eran1 as n1esmas - não, eran1 ben1 diferentes de antigarnen- te, quando pela prin1eira vez sentira - quando pela primeira viera àquela praia, ainda moça solteira ... era isso que fazia o seu espírito diferente? ou o seu espírito era o mesrno, nada mudara? Ela seria sempre a mesn1a? nunca inudaria! Sentia- se mais velha, doente, cansada, sempre nervosa. Certaniente mudara, não era mais a mesma. Quem podia saber, quen1 po- dia saber o que son1os, con10 1nudamos a toda hora ? Cmno mudavam as tonalidades das cores que ela percebia. Sofrera, e na alma sempre ficava u1n pouco do resíduo; o resto o 1nar le- vava para bem fundo, para onde as me1nórias se perdem. Mas sempre restava alguma coisa, alguma coisa próxüna da natureza do cristal, intacta, una, que o tempo não mudava. Que radia- 27 AUTRAN DOURADO çõcs estranhas dentro da alrn.a, nas 1nuitas faces escondidas. Sim, ela seria sern.pre a n1es1na . . Colocou novo papel na prancheta, tornou a olhar a paisa- gem. O pincel suspenso na mão, o pensa1nento voava plainando co.n1. as ga.i ·votas de lor1gas asas .sobre o n1ar. Aquela praia parecia bem diferente, a paisagem. não era a mesma, as cores n1udaram.; quando pela primeira vez, havia nnüta alegria e111 tudo. Deixava-se estar horas seguidas na praia, sentindo o corpo queilnar, 1noreno bronzeado, a olhar as nuvens desenhando no céu figuras disformes que ela custa- va a t•econhecer (depois 1nudavam rapidamente, e novas for- mas se faziam), a olhar o vôo manso das gaivotas. As gaivotas era.m. outras, sabia. Quanto te1npo podia viver l..Una gaivota? Precisava pintar, precisava urgentem.ente pintar. Mas es- tava inquieta, seus olhos brilhavan1 estranham.ente. Fora ali na praia que conhecera o ho1ne1n com que1n de- pois se casou. Nas férias do colégio. Era quase uma menina, urna adolescente que pouco sabia da vida. -- Alexandre, que é que você está fazendo aí na areia? - Nada, 1nan1áe1 desenhando. Diabo de ni.enino! Co111 certeza estava z01nbando dela, por- que desconfiava a inquietação de que era presa porque não con- scgi .. 1ia co111.eç.ar a pi11tar. Alexandre era vivo de1nais 1 um tanto precoce nas suas perguntas e respostas. E con10 é sensível, dizia c0111 mn orgu- lho que talvez fosse de si própria . . Mas era um menino lindo. E que boca, e que olhos - castanhos, brilhantes, profundos. Per- dia-se nos olhos do filho, ao ilnaginá-lo. Nela, eram poucos os 1n01nent.os co1no aquele, da mais límpida ternura. O n1undo dançava, as cores nasciam incessantemente, claras, ainda in1a- turas. Tudo poderia naufragar de repente, para sempre, meu Dn1s' Seus olhos se enchiam de lágrimas. Por que aquela vontade de chorar, se não tinha n1otivo? Devia ser a doença, devia ser o estado nervoso. O médico acon- selhara-a procurar un1 lugar quieto, onde pudesse fic~r des- preocupada. "Sobretudo, procure descansar o espírito. E meio 28 SOLIDÃO SOLITUDE ca1ninho para a cura." Os 1nédicos são 1nuito engraçados. Por isso viera para a praia. O mar era sempre novo para ela. Alexandre é lindo, tornou a pensar. Ivías é inteligente e sensitivo demais. Ela não gostava de meninos precoces; que- ria que o filho tivesse a inconsciência, a irresponsabilidade e a alegria dos outros meninos da sua idade. Que madureza estra- nha num corpo tão pequeno (às vezes temia pelo destino do filho), como a vida parecia ser tão intensa dentro dele. Alexan- dre devia saber coisas que ela nem de longe suspeitava. Os outros meninos brincavam nas pedras, o filho devia estar com eles. E co1no era1n alegres e como gritavam saltan- do n'água. O mar batia nas pedras, espmnava. Longe, a Ilha Escalvada azulava-se, por onde singravam os navios. Sentia-se mais calma. Agora podia pintar. Alexandre decidiu finahnente ir às pedras, onde os meninos brincavan1. Os tamancos impediam-no de correr, não estava ainda acostumado. Tirou-os dos pés e saiu correndo. Nas pedras, olhou de longe para o mar, para a Ilha Escal- vada. Devia ser b01n morar ali, não ter ningué1n para incomo- dar, ninguém para mandá-lo ir brincar com os outros nleninos. Mas diziam que ninguém morava na Ilha Escalvada. As noites deviam ser muito tristes, ali naquelas lonjuras. Se morasse al- guémna ilha ... Apesar de seu espírito comprazer-se un1 pouco com a tristeza, não poderia suportar aquela ilha tão sozinha no mar, acabou. Foi para junto dos outros meninos. Por que aqueles meni- nos gritavam tanto? - Hei, mascarado! gritou-lhe um deles. Sabia que os meninos não gostavam dele, porque estava sempre sozinho. Não ficaria ali. Afastou-se depressa, em dire- ção ao ponto mais avançado no mar. Ali ficou muito tempo, olhando as ondas quebrarem-se em espuma lavando as pedras. Esqueceu a ilha, esqueceu os seus possíveis habitantes. 29 AUTRAN DOURADO Finalmente ela conseguiu a tonalidade que queria. E a luz, ~ luz estava perfeita. No fundo do peito alguma coisa gritou finamente alegre. E o eco correu em ondas macias o corpo inteiro. Até que enfim a aquarela atingia a transparência que julgava perfeita. Mamãe está triste, mamãe está muito inquieta, pensou Ale- xandre. Ele vira os olhos cheios de lágrimas. De vez em quan- do a nüe punha-se a chorar. De noite, quando ela pensava que ele dormia, Alexandre sentia doer fundo dentro de si os solu- ços que ela abafava com o travesseiro. E ele não podia dormir ,,.. . ' I nao por causa do calor, mas das lágrimas que se juntavam també1n nos seus olhos. Através das lágrini.as, as estrelas que o céu mostrava na janela eram grandes, dançavam. Depois era o pernilongo que vinha vindo. E grande parte da noite passava insone, co1n pensani.entos soni.brios . Ela sentou-se na areia, calma. Não pensava em mais nada. A aquarela estava boa. Glória era inteiramente feliz. Vou buscar l.nnas conchas para ela, disse Alexandre. Quem sabe acharia um caramujo daqueles bem grandes que os filhos dos pescadores costuni.avain vender na porta do hotel. Curioso, i;or que só os filhos dos pescadores achavam búzios grandes? E porque eles vão de manhã pelas praias distantes, quando pés humanos ainda não deixarani. niarcas na lisura da areia. Os seus bolsos se enchiarn de conchas. Ela devia gostai~ devia ao menos beijá-lo, agradecida pelo presente. Queria ver a mãe alegre, sorrindo con10 de primeiro. . .. Agora ela estava doente, dizia1n. Eran1 os nervos . Mas ele não acreditava rnuito. Não se lembrava precisamente quando a rnãe começara a ser triste, a ficar calada horas e mais horas e depois ir chorar escondida, ela que era tão alegre, tão dada 30 SOLIDÃO SOLITUDE .............. . com todo mundo, tão boa para ele . Depois cmneçara1n as visi- tas aos médicos, ele lendo revistas na sala de espera. O pai , preocupado, pagando contas . . Mas os nervos não era1n a causa da profunda tnsteza da mãe tinha certeza. Será que os outros não percebiam? Sáo os nerv'os, são os nervos, era só o que sabiain dizer. Os m édicos deviam conhecer ao certo. Mas os médicos n ão falavam cmn ele . Certamente o pai sabia, senão não mudaria tanto de vida, não seria tão paciente com ela. Ele rn.udara muito, não saía mais à noite, ficava fazendo companhia à mãe, lendo . Voltou os olhos para as pedras onde o mar subia. E, h orro - rizado, viu u 1n home1n cair, rolar pelas pedras, desaparecer no mar. Ficou parado, o coração rrüúdo no peito Depois o coraçáo corn.eçou a bater, ban-ban-ban, cada vez m.ais forte. Quis correr, mas as pernas estavam fracas. .. Quando sentiu força, saiu correndo à prQcura t'Lt rnae . Depressa foi escalando as pedras. Ofegante, chegm.i junto dela, abraçou-a fortemente. Suas mãos estavam cheias de conchas. 31 A GLÓRIA DO OFÍCIO VIVO DE MINHAS HABILIDADES, disse a 1neu prilno Deolindo. É bem diferente de viver de esperteza. A frase ficou durante n-i_uito tempo balindo comigo, me queimando interiormente; crista· lizou-se no meu espírito e hoje me parece precisa, define a minha personalidade. Não sei se Deolindo percebeu a maravi- lhosa síntese com que me defini. Deolindo me irrit<l, rrrnitas vezes é burro. Un-i_a vez ou outra, como se uni_ con-i_eta rasgas- s.: o céu, tem fulgores de inteligência Quando falei que vivia de minhas habilidades, ele estava num de seus dias orHcos, inteiramente impermeável à clareza de ininhas idéias. Se ele estivesse desanuviado, teria grunhido como faz quando perce- be tudo - um grunhido impreciso, que nunca pude s·aber se é articulado nos lábios, no nariz, nos dentes ou na garganta. Na verd'ade vivo de minhas habilidades . Sernpre vi vi de uma predisposição inata para o lado factual elas coisas, com.o diz Deolindo. Ele me disse isso num ele seus vôos luminosos e creio que percebeu n!uito bem; não gosto da palavra que. usou, mas acho que está certo . Desde 1nenino tive grande faciliLL1d e para montar e des1nontar tudo o que ine caía nas m.àos. Faziél e desfazia caixas de n!adeira, 1nontava e desn1ontava brinque- dos ele mola. Minha mãe descobria em n1im uma voca0ào es- pecial para engenheiro, vocação que nunca se concretizou. Quando ine apresentam. u1n objeto qualquer, o rneu prin1e1ro 1novin1ento não é para a sua beleza, e1nbora náo seja de toclo infenso ao que diz un1 quadro, urna escultura ou urna história, 49 AUTRAN DOURADO mas para o que o faz objeto. Com.o é feito? É a 1Tiinha prilneira per.g-i m ta . E começo de imediato a usar febrihnente as mãos parn com.por u1n outro igual. Quando Deolindo precisou tão bem o meu espírito, afir- mando ui.ais que eu era um geô1netra, achei uni.a beleza de idéia e tive vontade de lhe beijar o nariz. Quando ele falou: "A sua tendência é para a cristalografia", mna lágrirn.a ine caiu dos olhos e só a percebi quando pousada na asa do nariz (o m eu). Nos mom.entos felizes, Deolindo sabe tudo, lida com as palavras con1.0 se fossem bolhas de sabão, nada lhe escapa. Sua tendência é para a cristalografia é un1a das coisas inais lindas que já ouvi a meu respeito. Darei alguil.s dados ou exemplos para um completo enten- dimento do que afinnei ou afirmou Deolindo. Aprendo as téc- nicas com muita facilidade; sobretudo, sei fazer as coisas. Fui o rnenino habilidoso de minha família. Essa glória, porém, nunca n1e satisfez inteiramente. Meu espírito é inquieto, apraz- lhe voar longes distâncias, viver e1n sítios remotos, Colo1nbo em busca de novas Arnéricas. Se não voasse por regiões tão siderais, talve2: eu fosse 1..UU h01nen1 inteiramente feliz fazen- do coisas e objetos, usando minhas habilidades, delas vivendo. Quis todavia ir além, passar a minha Taprobana. O n11J11.do das essências não é para você, 1ne disse um dia Dcolindo, de pé sobre un1. tamborete, o dedo en1. riste, a cabe- ça voltada para cima. Não concordei co1n ele de imediato, embora lhe visse nos olhos o brilho dos dias venturosos, pois se vivo de um d01n inato do meu espírito, descobrindo o me- canisn1.o das coisas, é porque busco as essências. Vou rne explicar nlelhor, quen1. sabe não estou sendo confu- so, n ão quero correr o risco cie.não ser entendido. Os termos de uma proposição devem: ser definidos, para que se possa provar a proposição, e as proposições devem ser dispostas na melhor ordem , disse eu. É nisto exatani.ente que consiste o espírito geométrico, me disse Deolindo. Vou nie explicar ni.elhor, portanto continuen1.os. Se não pude viver no Inl..mdo das essências, como diz Deolindo, não é 50 SOLIDÃO SOLITUDE por qualquer pobreza ou acanha1nento de espírito, n1.as por- que nunca me permitiram, nen1 em minha fan1ília, quando menino, ne1n depois, na vida mesma. Não podia expor as mi- nhas idéias pessoais e brilhantes, como as percebo às vezes, porque janiais quiseram saber do que eu pensava. O mundo perdeu assim muitas concepções originais, acredito não sem falta de modéstia, reconheço. O meu avô Euclides, que era um espírito voltado para as coisas sublimes da vida (não fazia absolutamente nada; desde que me lembro, sempre ficou o dia inteiro pitando compridos cigarros de palha ou cortando finíssimas aparas demadeira com o seu canivete afiado), o meu avô Euclides jamais quis saber minhas opiniões ou me mandou agir em seu n01ne, como fazia com Deolindo. Na minha infância era assim: quando ele precisava de um dispositivo qualquer para guardar a sua nava- lha ou mna n1áquina de cortar e enrolar as palhas dos seus cigarros, voltava-se para m.ün - Elias, 1ne faça un1a coisa de tal maneira que. Não precisava explicar muito, porque já sa- bia num átimo o que o velho Euclides queria. Se eu dissesse que não tenho nenhmn ressentimento de 1neu avô, m.entiria. Einbora o ressentimento não se manifes- tasse claramente, guardava no fundo de minha alma uma má- goa escondida. Não me queix:ava de. ser alijado das dissertaç.ões sobre os destinos do homem e do cosmos, que faziam meu avô e Deohndo, mas tinha comigo a minha chaga. · Reconheço que não era capaz, por minha própria conta, de fazer ,um petrecho qualquer para ele. Você necessita de sopro alheio, me disse um dia Deolindo. Como resposta, dei-lhe um soco no olho. A raiva passou e eu arranjei logo a melhor ma- neira de prender um pedaço de carne no olho ferido de Deo- lindo. Meu primo diz que não, mas eu digo com certo orgulho....,...,, Não me falta imaginação e capacidade criadora. É que nunca quiseram ver essa faceta do meu atribulado espírito. Por não se canalizar nas perquirições da verdade e por não agir, ficou Ariel em mim para sempre esquecido, gata borralheira, a des- 51 AUTRAN DOURADO cobrir coisas, a fazer engenhocas, a esquadrinhar estruturas e formações. As diversas vezes que procurei criar, o que fazia timida- mente, redundaram em completo fracasso. Sim, a timidez e a discrição constituem marcas de m.eu caráter. Nunca ousei le- vantar os olhos ou a voz - a não ser com meu primo Deólindo d~ uns tempo~ para _cá, depois da morte de meu avô - par~ dizer que alguem estivesse errado. Esse alguém podia ser mui- to inferior a mim e estar dizendo as niais rematadas tolices e eu simplesmente ouvia, sem coragem de dizer que aquilo tudo era asn~i:a. O pi~r ~ que se me mandassem seguir esse alguém, e~1 seguina, por tnnidez. Sou discreto porque, mesmo na ausên- cia do alguém, não digo que ele é imbecil e cretino, ou sim- plesmente boboca. Sou ob:igado a di:er algumas palavras em inglês, língua que aprendi em um mes por mn processo particular meu, para me expressar melhor. O que me preocupa é o How to make· se~ia capaz de escrever dois liwos - How to read e How t~ wnte. ~screvesse eu esses livros e estaria rico, pois todo mun- do me Julga hábil para coisas assim. Por exemplo, se eu fosse sapateiro, o melhor sapateiro mestre no ofício, ninguém viria me dizer - Elias me invent~ um sapato,_ \un objeto com. todas as características que fica- ra~n no espinto do hem.em com.o próprias do sapato, mas que se1a algo de novo, inteirainente novo, e que continue sendo sapato e si:va para calçar. Diria simplesmente- Eu quero um sapato_ assim e assado, que eu faria melhor do que o melhor sapateiro, tenho a certeza, reconheço com infinita mágoa. Por exemplo, se eu morasse nos Estados Unidos e fosse escri~or, o maior editor daquelas terras lá não me ~iria pedir um livro de poesia ou ficção, mas um manual com um destes títulos - The art of fiction e How to make verses. Acredito que já disse isso alguns parágrafos atrás. Não importa, conti- nuem.os. _ Por.exemplo ainda, se eu vivesse na Renascença, na Itália, nao sena nunca o Príncipe, mas Niccolà Machiavelli; não teria 52 SOLIDÃO SOLITUDE . . ............. um principado para governar, ninguém rn.e quereria por suse- rano, pois veria e1n mün o preceptor e o secretário. Contei essa minha descoberta a Deolindo, que ni.e disse muito seriamente - É, ni.as quem ficou foi Maquiavel e não o outro. Deolindo contudo achava-se inuito burro nesse dia, nada lhe brillMva nos olhos e não posso saber se ele estava certo ou errado Nüo estava, porque logo em seguida me disse - Não, a idéia n ão é esta. Outro dia, disse-lhe eu~ nós descobriremos qual é. Esse dia não surgiu, é provável que surja, eu espero. A fim de que se possa compreender a memória que venho compondo sobre a ni.inha modesta pessoa, para cuja perfeição uma vez ou outra recorro a Deolindo nestes diálogos socráticos, contarei as três fases profissionais de ni.inha existência, que assim dividirei: a) Relojoeiro, dos 14 aos 18 anos; b) Corretor de textos, dos 20 aos 30; c) Tratador de pássaros, dos 32 até aos 40, em ql1e rne acho. Entre uma fase e outra há se1npre dois anos em branco, que foram aplicados em aprender as novas técnicas e nelas aperfeiçoar-1ne. Demorava dois anos porque sou metódico e meticuloso. 53 Preâmbulo ou nota introdutória PASSEI TODA A MINHA INFÂNCIA sob a tutela de meu avô 1naterno, de que já falei nesta narrativa. Não conheci m.eu pai, pois minha 1nãe se enviuvou muito cedo, ainda comigo no ventre, o que me deixou sempre uma dúvida sobre como seria meu pai, o que m.e deu mesmo uma longínqua saudade dele, que não conheci, con10 disse, mas que diziam. ser um homem bar- bado nun1 retratG na sala de visitas. Sempre tive nostalgia de um pai verdadeiro. Criei-me à sombra da figura patriarcal e augusta de meu avô Euclides, cuja memória e sabedoria, não tendo lugar para louvar, louvo e exalto neste instante - meu avô, que foi ao mesmo tempo meu pai e 111eu avô. Por uma dessas misteriosas artes do con- vívio humano, órfão de pai, também cedo perdi minha mãe. Não perdi minha mãe por morte, mas pela vida, pois ela se transformou numa espécie de minha irmã mais velha.. De tal nuncira nos innananos, que era com inuito esforço que eu me lembrava de que ela era minha mãe. Nem carinhos ela me fazia mais, carinhos de mãe, quero dizer, porque as brincadei- Tas de irnlãos eram comuns entre nós. Quando eu errava, ela dizia - Se você nãó n1e levar esta carta para o Antônio, conto tudo para o avô. Minha mãe namorava e ainda por cima que- ria a minha proteção. Não posso precisar quando foi que dei- xei ele chamá-la de mãe para dizer simplesmente - Maria. Meu avô não fazia absolutamente nada, creio que já disse, a não ser pensar, cortar aparas de pinho, cujos caracóis ia jun- 54 SOLIDÃO SOLITUDE tando no chão, fumar enormes cigarros de palha e ler uns nú~ meros velhíssimos da Revista dos Dois Mundos. Além. de pen- sar, ele praticava assuntos de alto coturno co1n certas pessoas que escolhia como inteligentes e que lhe davam. atenção. Deo- lindo era o seu netÓ e discípulo amado. Um. homem. de visão, o m.eu avô Euclides. Vou dar com.o exemplo de sua visão a capacidade que tinha de ganhar dinhei- ro sem. fazer nada, pois nunca o vi sair de casa para trabalhar. Quando começava a comer, além. dos juros, o capital acumula- do o velho ficava mudo e triste como um pássaro doente. I Andava de um lado para o outro, pi,tava seguido. Depois de muito andar e muito pitar, ia para a janela que dava para o . quintal de grandes mangueiras e punha-se a olhar o verde en- cardido, assuntando. Não cortava aparas de madeira nessas ocasiões trágicas de nossa vida. De repente, por encanto, o rosto, antes carregado, se iluminava ea fa1nília toda se alegrava porque o velho sorrira. Achei, gritava ele sábio. Vestia o paletó de casimira preta, só usado em ocasiões solenes com.o enter- ros e casamentos, e saía, passo finne, para a sua caça. Um.a vez c01nprou todo o arroz que havia nos armazéns da cidade e nas fazendas das redondezas. Para isso vendeu tudo o que tinha, chegando m.esm.o a hipotecar a casa asso brada.da em. que resi- díamos, na rua principai da cidade. A família vivia em suspenso, respirar uníssono, acompanhando os passos e os gestos do ve- lho Euclides. Seu Euclides enlocou, diziam., m.as ele não dava ouvidos. Para que tanto arroz, para quem ele vai vender tudo isto? O velho não ouvia ninguém.quando ficava assim. inspira- do . Comprou tudo e foi para casa. Fechou-se num. pequeno quarto que ele chám.ava de escritório porque era onde guardava os exemplares da Revista dos Dois Mundos. E começou a es- crever cartas em.ais cartas. Cartas para Santos e para São Paulo. Enquanto esperava, voltou à janela da frente, onde cortava suas aparas de madeira. Os homens de quem. ele havia com.prado vinham perguntar - Para onde mando levar o arroz, seu Eu- clides? Espera, dizia ele, fica com. você até segunda ordem., pode ir até comendo dele. Porque meu avô possuía alm.a magnânima. 55 AUTRAN DOURADO Agora era esperar o correio . Deolindo, seu discípulo ama- do escutava então longas prédicas do velho Euclides. O correio voÍtou trazendo pedidos e mais pedidos de arroz. Ele ganhou dinheiro suficiente para ficar sem trabalhar por mais dez anos. Se demorei neste retrato de meu avô mais do que desejava, foi para dar ü ina idéfa do ambiente espiritual em que se formou o meu espírito. Embora bebesse muito dos ensinamentos e dos longos devaneios do velho, nunca pude ser o seu predileto em virtude da diferença essencial de nossos espíritos. O mes- mo não acontecia com meu primo. Deolindo possuía pai e mãe na cidade mas morava conosco. O velho resolvera orientar mais de perto a educação do menino. Os dois conversavam muito, mantinham acaloradas discussões sobre temas altíssi- mos. Enquanto minhas mãos viviam calejadas do machado com que eu picava lenha para a cozinha, as mãos de Deolindo eram mãos de dama e de filósofo. Não guardava eu nenhum ressentimento dessa diferença de trato, mesmo porque sem- pre fomos, Deolindo e eu, muito amigos. Depois de ter desmontado e montado tudo quanto havia em nossa casa, fiquei um dia com as mãos inquietas, sem sa- ber o que fazer. Só as pessoas que fazem coisas e têm habilida- de compreendem essa espécie de angustiosa espera que é ter as mãos vazias . Veio-me à cabeça urna idéia que no momento considerei brilhante e que ia decidir o meu futuro - o relógio de meu .avô. Era um Patek Philippe dos bons tempos, de ouro, resultado de um golpe que ele dera sobre o algodão, vinte anos atrás . O relógio funcionava maravilhosamente, mas mesmo as- sim resolvi consertá-lo. A idéia pareceu a Deolindo perfeita- mente normal. Ele ficou sentado num banco que havia em nosso quarto, testa repousada sobre a mã() esquerda fechada cujo cotovelo se apoiava no joelho, numa posição que hoje vejo ser a mesma do Pensador, de Rodin. Não sei se Deolindo me observava, porque ele não dizia nada, olhos perdidos numa distância interior, distância muito maior do que a que lhe ofe- recia o céu através da janela aberta. Hoje acredito que ele não 56 SOLIDÃO SOLITUDE . .............. me olhava, afundado e1n pensamentos longes, indiferente ü O meu tr~ballf~º · l e mais horas . Eu desmontando o re-Ass1m icamos i.oras , .. . N -~· l' . l velho Euclides, Deolindo em recuadas pai .1gens . .. ,10 og10 e o uer no seu lugar. Agora era rnontar tudo restou uma peça seql' ·o funcionar Confesso hurn.ilden1ente de novo e ver o re og1 . . D . lo - . pois a rn.e1nória não ajudava. esan1mac que nao consegui, d eç ·1s . 1 brar de que parte era1n as uas p . " do esforço para i:ne e;; dois ou três nmnes, elos mais cabelu- ~ue sobravb~m, ~~rentão um pigarro detrás de mim .. Era n:eu o~ que :ªht~uito tempo acompanhava o paciente e m~rtil avo, qu f 1 o velho porern trabalho. Pensei em correr, a a ta era grave. , ' me interceptou a passagem. ' . . , - N- fu . disse Você tem jeito para a cmsa . Quantas pe ao Ja, i vem: vamos ao Danilo Sottavento, que lhe en -ç~s s~bcroamramo b. otar ~meu precioso relógio ern funcionarnento . s1nara · . 57 CAPÍTULO I Como aprendi o ofício de relojoeirn e nele fui mestre distinguido, apesar da pouca idade. DANILO SoTTAVENTO ERA UM DESSES exemplares ratos de homem, tanto pelo corpo como pela mente. Tinha o volume e aparên- cia ele um frade de anúncio de chocolate e a mente ágil e ardo- rosa de um artesão de outros tempos. Se eu acreditasse e1n reencarnação, diria que Danilo Sottavento era Benvertuto Celli- ni vestido nas banhas de um frade glutão. Direi apenas que n1eu grande e incomparável mestre Danilo Sottavento era bem um espírito da Renascença, com alguns séculos de retardamen- to . Digo isto sem nenhmn medo de parecer retórico ou gran- diloqüente: é a minha verdadeira e comovida homenagem ao artesão que tão alto elevou o seu ofício. Mas Danilo Sottavento não s01nente me 1nostrou com.o era sim.pies fazer o pateque de nleu avô funcionar, co1no resol- veu me ensinar a sua profissão. Comecei pelos velhos desper- tadores. Assim fiquei algum tempo. Embora o meu mestre estivesse apaixonado pela rapi4ez com que eu aprendia e com a habilidade e firmeza de inib.hàs mãos (mãos de cirurgião, di- zia), não deixava, por obediência ao método, que eu aprendes- se ainda o segredo das pêndulas. Andava eu nessa época pelos doze anos e o florentino Da- nilo Sottavento se babava de ter sob os seus cuidados ta1nanha precocidade. Você um dia, meu filho, dizia meu mestre, vai fazer le cose piu belle del mondo. Já me via fabricando meca- 58 SOLIDÃO SOLITUDE nismos de tal delicadeza que nos fazia chorar. Não precisava ficar nos relógios, podia ir além, inventar máquinas de tama- nha precisão que os próprios suíços me renderiam homena- gem. Finalmente, meu-filhÕ~-dizia, iniquinas que riao são-mais relógios ne1n nada, tão precisas e preciosas como uma coisa bela e inútil. Meu mestre era um pouco retórico. Que impor- ta, se usava imagens que vestiam ~déias vindas de uma grande alma? Ele fora abandonando uma a uma as palavras do italia- no, só conservando aquele piU, que usava com a discrição de um adereço de brilhantes. Eu ficava humildemente silencioso diante de tanto amor e compunção. Um ofício que merecia aquele enternecimento deve falar ao coração dos deuses. Enquanto meu avô saía a passear com Deolindo para os altos da Santa Casa (a cidade de Santo Antônio do Alferes se situava num monte em cujos bordos ficava o nosocômio, como dizia meu avô), de onde descortinava todo o tapete de diferen- tes verdes e mais além as cidades paulistas de Mococa e, com mais esforço, à noite, as luzes de Casabranca, quando debatiam problemas os mais tênues e esgarçantes, sobretudo nos dias em que Deolindo estava muito inteligente e pouco vago, en- quanto isso eu ia com Danilo Sottavento para a torre da igreja dar .corda no relógio e acertá-lo, ft1nção que ficava sob a nossa responsabilidade. Lá nós tínhamos a nossa paisagem. Uma paisagem diferente da que fazia o velho Euclides e Deolindo divagarem: velhos telhados, negros de chuva, verdes de limo, no geral encardidos, casas velhas e chaminés de manilha, que deitavam uma fumaça ridícula de tão insignificante no azul do céu. Depois q_e levantarmos os pesos e testar as diversas rodas e engrenagens, oleando as· junções quanto necessário, Danilo Sottavento também vivia um momento de sonho. Fa- lava, os olhos úmidos, da paisagem de -sua Firenze, deitada entre colinas, la piu bella città, dizia, dos velhos telhados da . I -igreja de Santa Maria del Fiore, o Palácio da Senhoria, dos tra- balhos de arte, Dante e Beatrice, da Toscana de onde partira com vinte anos. 59 AUTRAN DOURADO Um dia, depois de íntimos, Danilo Sottavento, como pro- va de amizade, resolveu me mostrar o seu segredo. Levou-me para um barracão no fundo da casa, que eu olhava sempre com curiosidade, pois estava fechado. Naquele barracão ove- lho passavaJ~oa parte da noite. Vamos lá, disse ele. Vi então o mais belo maquinismo de que tenho notícia. Não sei dizer se era relógio, porque nunca vi um relógio igual. Marca o tempo, perguntei a Danilo. Não importa o tempo, disse Danilo Sottavento, que é o tempo dian- tede tanta beleza e precisão? Olha o eixo, o balanço,. repara, filho, dizia apontando as maravilhas da máquina. Desenho original de meu rnestre, que há anos vinha montando e fabri- cando as peças delicadas, quando não as tirava de algum reló-. gio imprestável. Abracei comovidamente Danilo Sottavento, dei-lhe um beijo na testa e jurei dedicação e amor eterno ao nosso digno e nobilíssimo ofício. Depois disso, ficamos amigos, irmãos. Mais do que isso, Danilo Sottavento ficou sendo meu pai. Eu sempre andei no mundo à procura de um pai. Atingi a idade de catorze anos e ele me declarou oficial- mente apto a desmontar, montar e consertar qualquer tipo de relógio. Deu-me uma mesa ao lado da sua, na frente da loja junto às vitrines onde ficavam, além dos relógios de toda sor~ te, jóias e bugigangas. Ali, no nosso aquário, como chamáva- mos nossas bancas, perm.anecíamos horas e mais horas, lente nos olhos, perdidos entre pequenas engrenagens e engenhos delicados. Só nos tirava do trabalho, além das refeições, um ou outro freguês. Era sempre eu que atendia, no princípio. Depois que fui considerado relojoeiro pelo meu mestre, alter~ návamos no aborrecimento de vender mn colar para um.a preta ou uma medalhinha para afilhado. . . . Vi uma tarde uma ponta de tristez·~··no~ olhos de Danilo Sottavento, tristeza que se acentuava dia a dia. Não valia a pena me iludir: Danilo Sottavento descobrira, coin a inais funda U:ág?a, que ~u não seria capaz de ir além da habilidade, que nao mventana nunca uma peça nova. Quis mostrar-lhe que não, 60 SOLIDÃO SOLITUDE mas o velho perdia visivelmente a confiança ern.1nim. Nenhu- ma palavra trocamos sobre o caso, inas o conilito crescia, fantas- ma devorador. Tentei inventar, com. restos de relógios e outros petrechos de nossa oficina, uma máquina de cortar pão. A ex- periência foi desastrada, quase cortei os dedos de dona Beatnz Sottavento . O velho Danilo Sottavento definhava a olhos vistos. Er11a- grecia. Sentia-me culpado, pelo meu involuntário fracasso, de estar matando meu próprio pai. Vou largar tudo, disse-lhe1 vou-me embora, não dou para a profissão. Só estou lhe causando decepções e aborreciinen- tos. Não, absolutamente1 disse Sottavento, você é o melhor relojoeiro de todo o Sul de Minas. Não é verdade, repliquei, reconheço que eu não presto1 que lhe dou a maior tristeza de sua vida. Disse-me Danilo Sottavento - De uma certa rna- neira ... Não1 é que eu pensava outra coisa. Não conseguimos mais conversar sobre os assuntos predi- letos. O antigo passeio à torre da igreja tornou-se um martírio para nós, pois íamos calados, constrangidos, sem nenhuma desculpa para o nosso silêncio, as mãos abanando que me rn- comodam tanto. Nunca mais me falou da sua Firenze. Danilo Sottavento, mestre insigne e obscuro, de cuja me- mória talvez ninguém mais se le1nbre, morreu nurn d01ningo de tarde, assistido por todos os sacrarnentos da Igreja, mas de- sassistido por mim, que não tive coragem. suficiente para vê- lo morrer. Alguns dias depois de sua morte, aconteceu-1ne un1 fato curioso que 1 por ter a sua graça, não posso deixar de n a,rrar. Estava eu na rn.inha banca, agora solitária, inergulhado nos meus parafusos e rodas dentadas, dentro da caixa de vidro que guarnecia o meu aquário. Há muito tempo, sen1 que eu pu- desse reparar, seu Olímpio, um. velho desocupado de noss<1 cidade, me observava. Elias, disse ele, você precisa mandar limpar este vidro. Eu não disse nada, o vidro estava limpo; eram. duas lágrimas que escorriam pelo m.eu rosto. 61 CAPÍTULO II Co mo, aos dezoito anos, depois que nossa família se mudou /H l Ú} uma gra n de cidade, deix ei o ofício de relojoeiro para me de dicar a outro igualm ente ho1uoso, o de conigir textos. R ESO LVI ABANDONAR DEFINITIVAMENTE o ofício que dera tantas ale- grias e tantas tristezas ao n1.eu pranteado n1.estre Danilo Sotta- ven to . No Rio de Janeiro, para onde nos mudamos, ineu avô Eu- clides não alterou em nada os seus hábitos. Agora tinha uma desculpa dignificante para não trabalhar e viver de juros: estava velho cle1nai;:;; merecia um pouco de repouso . Ninguém discu- tia com ele, por respeito e porque ele realmente nunca deixara faltar nada e1n casa; depois, porque numa discussão era sobera- 11.0, esgri1nia as idéias co1no só Il1e igt1alava Deoli11.do 11.0S seus dias felizes . Se em Santo Antônio do Alferes o velho olhava a verdura do campo que descia pela encosta até se perder no azul das serranias e então cismava sobre o mistério da vida e a fatalidade da n1.orte, no Rio, da janela de nossa casa, na Glória, era a bafa a paisagem e pasto de suas ruminações. A única n1.udança sensível foi ter de deixar de cortar apa- ras de madeira com o seu .canivete solingem. Minha mãe, que n amorava então um comerciante estabelecido na rua do Cate- te, achou que não ficava be1n, que ein Santo Antônio do Al- feres todo mundo fazia aquilo, não tinha a 1nenor importância, m as no Rio de Janeiro, nem vê! Tomou-lhe o canivete com algum.a branch.Jra, ni.as enérgica. Poucos dias depois, olhando pelo buraco da fechadura do quarto de 1neu avô, n1inha mãe 62 SOLIDÃO SOLITUDE viu que o velho continuava com. o mesmo hábito de cortar pauzinhos. Ela não disse nada, pois o vício escondido não ofen- dia os brios da família, nem melindrava o pudor de um prós- pero comerciaiite da iua do Catete. - - As tardes escorriam vagarosas quando o meu avô e Deo- lindo não discutiam os seus elevados assuntos. Se eu j:í trabalhava em Santo Antônio do Alferes, a fim de ganhar o necessário quando nada para me vestir, meu primo Deolindo nunca fizera nenhum trabalho. Herdara de meu avô a capacidade de fazer dinheiro misteriosamente e sem suor. Eram dois temperamentos iguais e embora não jogassem (só ó truco, quando apareciam mais mineiros), havia neles a audácia e o segredo dos jogadores. Não sei como, mas Deolindo traja- va-se bem e vivia de bolso cheio. Ele não apostava nas corridas, primeiro porque não tinha paciência para ficar muito tempo num só lugar, a não ser discutindo, e depois porque o Jóquei ficava muitp longe. Dinheiro não cai do céu por descuido, como diz a minha avó. Portanto, Deolindo se arranjava. Deolindo, como o velho Euclides, vivia de suas idéias. Quando começava a ver o fundo dos bolsos ficava macambú- zio, matutando. Saía, dava umas voltas, ia a pontos opostos da cidade, e esperava. Dois ou três dias depois, contava com alguma displicência o dinheiro ganho . Nunca lhe perguntei, por timidez e vergonha, como é que fazia para ganhar tanto dinheiro sem trabalhar, quando eu, para receber a inetade, te- ria de trabalhar _meses seguidos. Deolindo jamais me explicou coisa ~guma; julgava essa matéria fiduciária com alguma su- perioridade e desprezo. E os dois ficavam, da varanda de nossa casa, na Glória, olhando o mar chapado e conversando sobre coisas importan- . tes despreocupadamente, até que. a noite entrava, as luzes da baía se ac~ndiam e minha mãe vinha anunciar aj_anta na Il1esa. Eu decidira não trabalhar mais de relojoeiro . Ia. entrar nos vinte anos e precisava descobrir um can1.inho, não era um ho- mem de idéias . Não queria reconhecer a minha inferioridade. Resolvi viver a vida que os dois levavam, para mim esotérica e 63 AUTRAN DOURADO fantástica. Possuíam segredos e neles eu esperava um dia ser iniciado .como um noviço na crença do Pai Roseacruz. Fiquei uns dias pensando, a olhar os navios que entravam na barra e os que saíam por entre os fortes. Contudo, não me surgiu nenhuma idéia de como ganhar dinheiro. Corn.eçava logo a imaginar con10 é que se constroem navios. Não, não era esse o carninho. Garanto que meu avô e seu discípulo ama- do não se interessavam nunca por construção naval quando viam um navio passar. Resolvi seguir a direçãodo meu espírito e aprender. Decidi observar experimentalmente, acompanhando pari passu o pro- cedimento dos dois. Escrevia num caderninho tudo o que obser- vava. Desisti deste método, pois quando fui ler o que escrevera, tudo me par~~eu absurdo e inconseqüente. O jeito era olhar e, se 1ne perm1t1ssem, entrar nas discussões . Pobre de inim fiz um ?~pel tão feio e ridículo como faria um moleque de p~aia participando dos diálogos de Platão. Não devia ainda entrar na liça, mudei de rumo. . ~~dia, vendo Deolindo iluminado dizer que a lógica era a c1encia do pensamento, acreditei ter descoberto 0 mistério de tamanho engenho verbal. A picada que atravessaria 0 ma- tagal era a lógica. Na verdade, confesso que não sabia o que era lógica. Fui a um sebo da ~Ia São José e de lá saí com um livro que talvez pu- dessem~ ensmar alguma coisa. Era a Lógica, de James Balmes. T~anque1-m~ no quarto e debrucei-me sobre o livro. A princípio nao_ ent:ndia quase nada, porque não estava preparado para subir a tao alto lugar, faltava-me o ar, ficava tonto, sentia verti- gem, pressão nos ouvidos, como se voasse a quatro nlil metros num avião nã~ ~ressurizado. Aprendi muitas coisas, quase de- corava o que dizia o livro sobre silogismo, retórica e gramática. Desl_umbrav~ t?da a estrutura do pensamento, a grande cons- truçao escolastica, tudo muito bem dividido, pesado e medido como queria Aristóteles e como eu apreciava. Ah Aristóteles meu segundo Sottavento. Às vezes achava as deÚnições mei~ bobocas, mas continuava; minha determinação era aprender. 64 SOLIDÃO SOLITUDE Enquanto ia aprendendo essas coisas, rrnmindo-1ne do que precisava para pensar e discutir cmno Deolindo, não vi jamai s n1eu prin10 ficar con1 um livro na mão por mais de quinze ininutos. Meu avô, não, lia seguidamente a Revisto dos Dois Mundos . Com todas as definições e com o manual de Baln1es rn1 ca- beça, ainda assün não me arriscava a participar do banqu e te que serviam na varanda de nossa casa. Sorria mais satisfeito comigo mes1no, com aquela superioridade risonha que dá o ressentin1ento, porque, enquanto eu sabia coisas, os dois, D eo- lindo às vezes (sobretudo quando muito inteligente) e m eu avô, jainais suspeitaram quais eram as figuras de retórica. Achava-me como um avião tecnicamente equipado, últi- mo modelo, com toda a aparelhagem em ordem, nus sem ga- solina para voar. Fiz mais unrn experiência. Porque con1eçara a achar o li- vro de Balmes um tanto bisonho e porque já aprendera éllgu - ma coisa, passei de novo pela livraria e comprei outro volume - a Lógica, de Hegel. Não posso dizer o que senti lendo o livro, senão recorrendo de novo ao sünile do avião: era corno se voasse, não mais a quatro mil metros, mas a vinte ou trinta mil metros de altura. Quase inorri, tal a falta de ar e a con- fusão que se estabeleceu no ineu espírito. Homem da ordem, que gosta de ver cada coisa no seu escaninho, perdi-me naque- le cipoal de idéias. Arrepiei carreira. Peguei um pequeno vol1m1e, a Retóricn, de Aristóteles. Este, sim, era de acordo com a minha feição Enquanto lia, tomava notas, organizando quadros e sinopses . O ten1po passava e eu sem: coragen1 de entr;.u na rinha onde o velho Euclides e Deolindo disputavam. Chegaria o tem- po de participar do cenáculo que era a varanda de nossa casa. Tão preocupado me achava com a arte de persuadir, corn as divisões da retórica, com os requisitos de uma boa defini - ção, que confesso não senti a menor emoção ao ver n1arnãe beijando o seu imperturbável e pouco casadouro comerciante da rua do Catete. O que me atribulava o espírito era a relação 65 AUTRAN DOURADO co111pleta das figuras de retórica, as regras da persuasão, a en- t:imerna, as partes do discurso. Não sei precisar bem quando deixei a retórica pela gramáti- ca. O certo é que num_ instante dominava da prosódia à sintaxe. Naturain1ente me voltei para a sintaxe, que parecia ser a maté- ria de minha alma. Para usar de mna metáfora, a gramática, ou mais precisamente, a sintaxe, era a poltrona do meu espírito. Nada 1ne tocava mais do que saber como se estrutura uma.frase, cotno se con1.põem as várias pàrtes do discurso, como se enca- deiam e se funde1n as expressões. Meu reino por uma análise. Devorei todas as gramáticas que me caíram nas mãos e fiquei sabendo coisas úteis. A utilidade, o jeito de servir aos outros, sempre me enca- minhando na vida, dela vivendo em virtude de minhas habili- dades. Verifiquei que podia viver do que aprendera, do ofício que conseguir9- se1n suspeitar, quando Deolindo 1ne perguntou - Você, que vive lendo gramáticas, conl.o é este verbo aqui? Dei a concorpância. Era uma bobagenl., coisa de s01nenos. Corno eu solucionasse tão prontamente o seu problema, me chan1ou a u1n canto e ine deu para ler um caderno enorme cheio de garatujas. Ponha isto em português para mim, pediu- 111.e. Em que língua está, perguntei. Na nossa mesma, reco- 11l1ecet.1 lrt1inildeme11.te. A fim de (iue eu não ine preocupasse com as minhas necessidades enquanto desbastava o trabalho, me encheu as nl.ãos de notas. Trabalhava agora para fora, ganhava suada1nente o meu dinheiro, enquanto ineu avô e meu primo viviam só de pensar e discutir. Corrigia textos alheios numa' profusão que me es- pantava. Como sou muito discreto e nunca dissesse a ninguém quais eram os meus clientes,· recebia · boas s01nas de minha extensa clientela, que se formava de médicos, advogados, en- genheiros, deputados, senadores e até mes1no de escritores. Ao mesmo tempo que me dedicava ao trabalho de estru- turar frases bambas, de podar adjetivos, relativos, possessivos, deternl.inativos, os quês, os verbos auxiliares que engordavam as frases de nl.eus clientes, ia passeando, para fruição pessoal, 66 SOLIDÃO SOLITUDE pelos salões de ourivesaria da gramática histórica e me deliciava com livros como Sintaxe Históricá Portuguesa, de Epifânio Dias. Embrenhei-me no admirávei mundo da estilística e da linguagem. Li Carolinas e Carolões côm a mesma paclência e meticulosidade.- A parte mais aborrecida do novo ofício era certa raça de Clientes que queria a todo custo saber as razões dos cortes e al- terações. Por que não podiam dizer assim? Por que devia ser assado? Perguntas que, por serem inuito ele1nentares, me da- vam grande irritação. No capítulo das regências, ai meu Deus, perdoai-me o desespero de que às vezes era possuído. Encon- trava a toda hora dois verbos de regências diferentes com um só objeto, o que não teria muita importância, se não me obri- gassem a discutir. Quanto mais ignorante, mais exigente e purista, Podiam errar em tudo, mas não queriam jamais ser denunciados como réus de uma colocação de pronomes que eles achavam duvidosa. Quando, num dia de paciência maior, tentava convencer a um 1nais recalcitrante que essa história de colocação de pronomes não existe, que é uma invenção e ,mulatismo de gramáticos de má formação, começavam ades- confiar de minha sapiência e por pouco não me t01navam o serviço. O livro que mais me irritava era o livro da predileção deles, a Réplica, de Rui. Se o que me fez abandonar o nobre ofício de relojoeiro foi um episódio dramático, o que me forçou a deixar a gramática foi um invencível tédio, ou melhor, um grande orgulho. Come- cei a me cansar dos textos que tinha por acertar. Aborreciam- me os erros de se1npre, os mes1nos erros elen1entares, pois se ineus clientes era1n "fartos em idéias e sabedoria, não eram muito imaginosos nos seus erros. Por um lado me humilhava ter de servir de muleta a coxos e capengas. Todo q ódio que enterrara desde a infância me vinha à boca em espuma. Eu, . que no fundo do peito sonhava um grande destino, eu que podia ter um grande papel, ali me via apagado e nl.urcho, entre ênclises e próclises. Tal era o meu ódio que não podia percebera nobreza e dig- 67 AUTRAN DOURADO nidade do novo ofício, tão digno e nobre como o de relojoeiro. Corrigir textos não dirninui ninguém, muito ao contrário: o que importa, devia eu pensar com hunlildade, é o valor de uma alma, é colaborar para alguma obra, para fazer un-ia da- quelas catedrais da Idade Média, cuja construção varava sécu- los e nunca quem a iniciava tinl1a a pretensão de ver acabada. O que conta, devia eu pensar, é o homem, que muitas vezes pode parecer vulgar e canalha, sobretudo se unido a outros homens, mas que, no seu mais .fundo cerne, é digno e é a mais perfeita criatura da terra. Eu não sabia nada disso, que só o te1npo, o aviltamento e a penitência nos oferecem como o prato de lentilhas da sabe- doria. Uma conlida pobre, é verdade, n-ias a única que possuí- mos. Pobre de mim, ignorava que a vida obedece na sua cons- trução, obra do homem, ao espírito gótico, que os homens que iniciam u1na obra, por mais penetrante que seja a sua an- gústia, a sua ambição e agonia, jamais conseguirão, mesmo sangrando, vê-la terminada, porque este é o prato dos deuses. A minha vingança é moderada e sutil. Em vez de recusar os·trabalhos, de denunciar publicamente que era eu o sapateiro remendão daqueles calçados polidos, o que seria tam.bém uma forma de canalhice, passei a alterar os textos que me eram submetidos, para introduzir coisas minhas. Acredito que esta deve ter sido . a tentação de Moisés ao dar aos homens, do monte Sinai, as tábuas da lei; se é que ele não as alterou, cain- do em tentação, cometendo assim o maior dos pecados. Thlvez o seu ódio, ao quebrá-las, tenha o significado do orgulho feri- do ou o sinal do arrependimento, por estar adulterando a pa- lavra de Deus. Não, não era arrependimento, mas orgulho. O meu embuste foi logo descoberto. Alguns de meus clien- tes ficavam satisfeitos com as frases, os capítulos mesmo que introduzia nas suas obras, e calavam. Outros, mais suscetíveis, não quiseram passar adiante a minha moeda e fui desmasca- • I rado, perdendo toda a minha clientelá. . 68 CAPÍTULO III Como, depois dos sucessos narrndos, me dediquei ao mais belo dos ofícios, qual seja o de trntaâor âe pássaros. EsTE CAPÍTULO, AO CONTRÁRIO do que o precedeu, deve ser curto como pede a nlatéria. A matéria é pássaro, que se aproximei muito da poesia, cujo significado em alemão - se não rne enganou o professor-, dichten ou dichtung, é condensar: Este capítulo, pois, será curto, para sua melhor expressão . Conheceis coisa mais bela e pequena do que a alminha ele um menino que vai com 111n alçapão, mato adentro, à cata de passarinhos para vender nas feiras? Conheceis cores nlais vivas, brilhantes, nlais puras e delicadas do que o leque das penas dos pássaros? Após a minha falência no negócio de corrigir textos, apli- quei-me ao estudo dos pássaros e do seu cuidado. Aprendi tudo o que lhes dizia respeito, freqüentei _ museus e jardins zoológicos, fiquei sabendo da econo1nia de cada um. Passei a lidar então com os pássaros alheios . an.hava bem, porque tudo fiquei sabendo sobre os pássaros e s t1 •t raças; a sua própria medicina, que é muito especial e delicada, m e era familiar Não me contentei, porém, con a b J l "za que tinha nas inãos com as cores e com os sons m.ais puros cios seus Umtos, I de variações tão finas, impercepLív •i · ' ·u aves, que rnuitas delas o ouvido hunlano não consegu a lu i n.qar, de tão altas. A vaidade e o orgulho, qu co111.:ç~ira 1 1 li · rnanifestar ern ininL me arruinaram ainda destu v Jz, tira1ldo -mc ornais belo I 69 AUTRAN DOURADO elos empregos e o mais sublilne dos ofícios. Quando ine lem- bro dos pássaros que sacrifiquei por minha idéia, os meus olhos se ench~1n de lágrimas, como agora, chegando a molhar opa- pel ern que escrevo. Veio-rne a idéia sinistra de que não devia apenas servir aos pússaros, alin1entá-los1 e, como dádiva generosa, ouvir o seu canto, n1as de fazer os n1eus pássaros. C01necei a cortar cabeça de urn pássaro, asas de outro, pernas de outro, olhos de outro, até que m.atei metade do jardiln de pássaros que estava aos 111eus cuidados, na esperança de criar, com esses restos m.or- tais, um pássaro de espécie desconhecida, que eu inventara, mais belo do que todos que existiam no mundo e sem os de- feitos de cada um. 70 MINHA AMIGA For NO ENTERRO DE MARGARIDA. Margarida, minha pobre an1iga, se enterrava num dia claro e luminoso. Começo a pensar que devo fazer uma image1n ou co1nparação. Dizer, por exemplo, que a terra teve o capricho de engalanar-se toda para zombar de minha amiga. Não, não farei dessas coisas, não gosto de abusos com a natureza. A terra não se preocupa tanto asshn conosco, u111a simples morte ou a morte de milhares de chine- ses, brasileiros ou europeus não altera em nada a orde1n cósmi- ca ou meramente a noite e o mar. Nascemos1 amamos, criamos filhos ou morremos e o mundo continua absolutamente indi- ferente, amanhecendo e anoitecendo, claro, escuro ou nebuloso. Ainda be1n, porque senão seria unia horrível coníusão meteo- rológica. Até que se consiga fabricar, com engenho 1i1uito apu- rado, uma bomba tão precisa, que nos destrua a todos, homens e mundo: tornare1nos assin1 a poeira de nebulosa. A minha pobre Margarida ia se esvoaçando no meio dessa claridade diurna que me fez divagar por outro caminho. É pre- ciso dizer que Margarida morria virgem. Nada de mais, todo dia morrem. virgens, como a1nanl1ece e anoitece. Mas Marga- rida morria virgem numa idade em que ser virgem é uma ex- ceção, um crime contra a natureza, uni.aleijão; como diz um amigo meu, licencioso e obsceno. Margarida completara em · janeiro sessenta anos e estava reahnente velha. Tão velha quan- to eu, ou talvez mais, porque murchara, enquanto venho gas- tando minha vida regularmente, estragando 1neu corpo e ininha 71 TEMPO DE MÁRIO E OUTROS TEMPOS AMADEU ANDAVA DEVAGAR, se atrasava o 1nais que podia, parava em cada esquina. A caminho de casa, da casa que ele forçava por esquecer. Não tinha nenhuma vontade ele chegar. Ern c0:1s;:i encontraria a mulher e os filhos dorrn.inclo. Dorrniam àquela hora, como toda a cidade dorrn.ia: apenas na zona boêrnia ou nos botequins perdidos alguma luz dava sinal .de vida. Dor- rn.iam, sempre dormian~, era natural, quando ele chegava da redação, tarde da noite, muitas vezes de madrugada, quando vencia o cansaço e cedia ao apelo dos botequins acesos. Àquela hora a família dormia. A n~ulher nem notava a sua presença na ca1na. Só o corpo quente parecia perceber a sua che- gada. Ela se enrolava como um cão procura se ajeitar e con- tinuar dormindo depois que uma pulga o pica mais forte e ele coça com a pata traseira a orelha sarnenta. Uma ou outra vez é que ela perguntava meio dornlindo que horas são. Duas, dizia, o relógio marcando três e meia. Aprendeu a mentir, rnentia sem necessidade, n~entia por fastio de explicar, con10 aprendeu a trocar de roupa no escuro para não acordar a mulher. Quando vinha bêbado a coisa era pior, tinha de se equilibrar numa das pernas, se apoiava no armário para tirar as calças. Ela ruminava qualquer coisa, continuava a donnir. O ruirn era dormir vestido. No dia seguinte a mulher não dizia nada, fe- chava co1n cuidado a porta do quarto para as crianças não verem. Mas ela não dizia nada, ficava calada uns dois dias, Amadeu se enchia de desespero, de ódio. Depois voltavam de 143 AUTRAN DOURADO repente a se falar, nunca porém tocavam no assunto. Ele tor- navn ao seu natural: o desespero manso de todo dia, a vida de todo dia. Depois que saía do jornal passava pelo bar, ficava be- bendo en1 pé urna cerveja e mna guia de cachaça, até se sentir m.eio zonzo. Sabia então que era hora de ir para casa, a 1nulher e os filhos dormiam. Quando Amadeu chegava eles estavamsempre donnindo. Ani.adeu andava devagar, rente aos n1uros, procurando as sombras. Tinha andado muito, estava cansado. Passou pela zona, viu um.a briga de mulheres, bebeu mais mna cerveja e uma guia. Ali procurava ver friamente o mundo fora dele, neu- tro. O mundo e seus ruídos noturnos. No viaduto ficou durante algum tempo vendo os trens n1anobrando. U1n assobio longo, depois o apito de urna máquina. Um operário passou balançan- do uma lanterna vermelha, sumiu no oco da escuridão. Era tào fácil saltar dali, quando o trem passasse debaixo do viadu- to. Melhor ton1ar run10. Queria um n1undo neutro, um inundo que não lhe trouxesse nenhuma le1nbrança, que não lhe acor- dasse nenhuma voz adormecida no silêncio do poço. Acabaria pensando na Paisagem dos Trens e dos Homens. Era um poe- mél qüe con1eçou a fazer anos atrás, agora inacabado dentro do baú há anos. O poema guardado doía como uma angústia ve- lha quando se arranha a pele, e ele cuspia com nojo. Andava e grunhia um monólogo interminável, começado quando saiu da redação. Gostava de parar nas esquinas, olhava o asfalto brilhante, os trilhos de bonde varando a rua. As ruas vazias das n1adrugadas, o barulho de algué1n ca1ninhando, vin- do de longe. Alguém sozinho, alguém corno ele sem vontade de voltar pra casa? Pisava as folhas secas, .as frutinhas dos fícus, era bom ouvir o estalido que fazia1n. Do outro lado o negrume elo parque, as grandes árvores. O barulho de uma carroça dis- tante . O caminhão da prefeitura já vinha vindo lá no fim da rua. Podia ouvir o barulho da água lavando o asfalto, as vozes dos garis trabalhando. Para eles as noites eram diferentes. No Bairro dos Funcionários tinha a certeza, já pressentia: o cheiro adocicado das damas-da-noite nos jardins de gradinhas 144 SOLIDÃO SOLITUDE de ferro. Na Serra era o cheiro das mangueiras nos quintais. Bom se fosse tempo de manga. As mangas brilhantes na meia escuridão das folhagens, vontade de saltar o inuro. Como fa- zia em São Mateus, quando rapaz. Quando chegava no alto da avenida Afonso Pena, na Praça 12, onde devia to1nar a aveni- da Paraúna, é que se voltava para trás, via as luzes da avenida, o colar de lâmpadas acesas que descia até à Feira de Amostras, por entre as massas de fícus. Tenho ten1po, ela está a sono solto, pensou. Não vai 1ne perguntar que horas são. Duas e meia, uma boa hora de dizer. Duas e meia, disse baixinho com medo de acordá-la de todo. Sabia que vinha reclamação, ela acordando. Ergueu os braços para o ar, co1no se fosse rezar diante da Serra do Curral. Ali está enterrado o meu coração, disse . Não fazia sentido. O cor- po da m9ntanha era negro e fechado, não guardava nenhum coração. O sangue da hematita manchava as encostas escalva- das. Respirou fundo, encheu o peito com a noite fria e o ar cheiroso de Belo Horizonte. Pensou nos versos iniciais da Pai- sagem dos Trens e dos Homens. Nada meu, disse com raiva, cheira a Neruda, cheira a Drummond. Tornou a cuspir com nojo. Longe o tempo en1 que fazia versos, en1 que acreditava em versos. O que tenho de meu é muito pouco, ia dizendo. O peso das noites matou os meus versos, Belo Horizonte ::ifogou a minha alma. o cheiro das noites frias, o vento que s'oprava da Serra do Curral. Se lembrou dos tempos de Mário de An- drade, como ele chamava 1942, 1943, 1944. Um homem enor- me, as mãos grandes, a calva, a boca avançando. O poeta Mário de Andrade rodeado de piás no bar do Grande Hotel. Guarda- va ainda, con1 os versos, num baú velho, as cartas de Mário. Os moços daquela época tinham cartas de Mário, como diziam. Hoje recebi carta de Mário, era como eles falavam uns para os outí:os, co1no se passassem uma inensagem cifrada. A primeira carta que recebeu de Mário. Era um rapaz importante, se sen- tia tão poeta quanto Dante (eu saí pra Dante, dizia para si mesmo e para ninguém), recebera uma carta de Mário, a pri- meira, era um iniciado retardatário do modernismo. Depois 145 AUTRAN DOURADO tudo acabaria. Mas quase todos tinham cartas de Mário. O nome solto, assim dito de mansinho - Mário, era como uma palavra de amor. Quase todos tinham cartas de Mário, quem não recebia carta de Mário não entrava para a literatura. O poeta Mário de. Andrade descendo aos infernos no poema de Drummond, subindo para o céu cercado de piás. As cartas voavam dos bolsos cheios .da casaca do mágico. Sentou-se no meio-fio, acendeu um cigarro. Não tinha be- bido o suficiente para ficar bêbado, não sabia por que sentiu um engulho na segunda cachaça. O cuspe grosso na boca, 'o ci- garro, o peito cansado. Procurava e1n grandes haustos encher o peito com o luar de Belo Horizonte. O friozinho das noites na Serra) o vento vindo da Serra do Rola-Moça, não tinha esse nome não, assobiando pelas ruas desertas. Maravilha de mi- lhares de brilhos vidrilhos, assim começava Mário de Andrade o seu Noturno de Belo Horizonte. O silêncio fresco desfolha das árvores e orvalha o jardirn só, continuava. Não se lembrava mais do resto do poema, tudo múito confuso na cabeça. Como não se lembrava a não ser con1 mna leve inelancolia os seus tempos de poeta, os seus tempos de Mário de Andrade. O tem- po passou, os amigos escritores foram para o Rio. Dividia a sua vida em tempos. Como se fosse um velho I não era um velho. Vida noturna de jornal, a disponibilidade inata para a vagabundagen1. Andar pelas ruas de noite com.o nos tempos de São Mateus. Sempre gostou de andar à toa pelas ruas, nas noites vazias e fundas, sem fim. Ein São Mateus era pior. As noites longas demais da conta, os bares se fechavam e não tinha para onde ir. Os quintais como chácaras, as man- gueiras escuras e cheirosas. Quatro ou cinco rapazes como ele espalhavam pela cidade uma solidão que procurava se disfarçar numa solidariedade franca, numa amizade de todas as horas 1 para valer toda a vida. Mas eram sós e se1n nenhum destino. Até que um deles conseguia r01nper o casulo e sair para Belo Horizonte, para o Rio e para São Paulo. Foi ele o último a sair. Alfredo, Euclides, Salvador e Vasco foram antes dele. Por onde andava1n eles àquela hora? Numa viagem que 146 SOLIDÃO SOLITUDE ............... fez a São Paulo, depois que deixara São Mateus, encontrou Salvador. Abraçaram-se como velhos amigos. Você corno está 1 E você! Naquela época não tinha esse bigodão, estou certo. Mas foi só isso. Se lembraram de São Mateus, principaln1enle das noites, dos quintais enluaradas de São Mateus. Salvador dobrava de rir se le1nbrando de quando Vasco tentou aprender saxofone na Banda Santa Cecília: Gozado, não era? Quando ele tocou pela primeira vez aquela valsinha de Mignone nós quase morren1os de rir, se lembra? Ainadeu se !em.brava. 1Vlas foi só São Mateus tinha se acabado. Depois de conversar mn pouc~ rn.ais, Amadeu verificou que já não se entendiam., eran1 outros, não tinham mais nada para falar. O quebranto se par- tira. Se lembra? Foi o encontro com Salvador que o fez enterrar para sen1pre 0 desejo de rever os amigos, de voltar a São Mateus Não se volta a São Mateus, disse com ênfase procurando dar à$ s1.18s palavras um.a profundidade niaior do que elas realmente pos- suíam. Ninguém volta atrás, agulha que se perde não se acha mais. Os tempos de São Mateus ficaram para trás como urnJ estaçãozinha de estrada de ferro num percurso que não se for{~ nunca rn.ais. Quando era inenino escrevia nos passeios agora e tempo de an1arelinha. Ficava ansioso para chegar o ten1po do pião. Havia o tempo do pião e o tempo da aniarelinha. Tempos de São Mateus e tempos de Mário de Andrade. A fieira enro- lada, o pião saltava, o pião rodava fazendo círculos, assovian - do até perder força e cair. Assim roda o mundo, assin1 rodo eu. Nunca mais voltou a São Mateus. Só soube da morte ela avó dois dias depois que ela inorreu. Não valia mais a pena ir a SãoMateus. Os pais morreram cedo, foi criado pela avó. Se lembrava da avó. Os pés macios, o barulhinho das sandálias de ·liga se perdendo nos fundos do corredor. Passeava . como uma sombra a sua n1agreza pelo casarão da rua do Vira. Os parentes foram morrendo e ela ficou sozinha no sobrado. Ela e 0 neto que ela criava corno um gatinho que se deve an1ar por- que ele está cheio de lembranças, de carinhos, de ronronar manso. Ele nunca crescia para ela. Amadeu ouvia os passos 147 AUTRAN DOURADO no corredor, a tosse _fraca e a s01nbra magra ca1ninhando en1 sua direção. Bença avó, dizia. Vai andando, dizia ela brinca- lhona, às vezes gostava de brincar, lugar de hon1e1n é na rua. L1 para a rua encontrar os ainigos. Às vezes tinha vontade de vir correndo e abraçar a velha por detrás, dar um beijo nela. Desacorçoava, a avó não era disso, seu n1odo de carinho era severo, duro. Quando entrava de noite, devagarinho para não aconlar a velha, ouvia a voz frouxa no quarto da sala. Ten1 coalhada na mesa da cozinha, ela dizia. Era assim o carinho da avó _ Será que a velha não dormia? Um_ carinho que doía fundo no peito. De noite era a tosse seca. Depois ela se levan- tava, certamente se levantava, ia buscar a latinha de pastilhas VaJda. Coalhada na mesa da cozinha. A coalhada e a tosse da avó costu1navan1 doer feito unha encravada dentro dele, Amadeu não conseguia dormir direito, acordava n1ais cedo, ia para o quintal e rachava lenha furiosamente para a velha, se compensava. Ela ficava olhando ele de longe, não dizia nada. Ele pensava na sua vagabundagem, na vida sem sentido que levava, pro1netia a si n1esn10 mudar, não mudava. Precisava 'ir embora mas não tinha coragen1. Perambulava pelas ruas de São Mateus em companhia de Salvador, de Alfredo, Euclides e Vasco. O primeiro que for e conseguir algu- ma coisa chama os outros, diziam. Não havia nada para fazer em São Mateus . Vinte anos e uma vida pela frente em São Mateus, dizia Vasco com raiva. Fizeram o ginásio juntos, ali mesmo em São Mateus . Que iam fazer agora? Os pais não eram ricos, não podiam sustentá-los como estudantes de cur- so superior em Belo Horizonte. Sozinhos teriam de enfrentar a capital, achar emprego e se possível fazer um curso qual- quer. O prin1eiro que for chama os outros. O primeiro que foi, foi Euclides. Quando Euclides se deci- diu, juntou algum dinheiro vendendo o que pôde conseguir na família, os outros ficara1n pasmos. Como se eles dissessem aquilo de ir ernbora de brincadeira, de puro sonho. Não era possível, ninguém acreditava. Aquele o prüneiro que for chan1a os outros era n1esmo uma espécie de brincadeira. Você acredi- 148 SOLIDÃO SOLITUDE ta mesmo que Euclides tem coragem de il~ perguntou Vasco. Era uma desconfiança, u1n 1nedo, u1na ad1niração1 un1a soli- dariedade. Ele é o mais novo de nós, disse Alfredo; não tem ainda vinte anos, disse Vasco; vai ser duro, dis~e Vasco> a que preço? ninguém é sozinho, disse Amadeu. Eram sozinhos. Foi sentado na amurada da ponte que Euclides contou a novidade. Ficaram mudos durante alguns instantes. Toque aqui, disse Salvador lhe estendendo a mão. Passaram em si- lêncio o resto da noite, só Euclides falava. Era uma necessida- de furiosa que ele tinha de falar, se afirmar, vencer o 1nedo, o silêncio no coração. Foram ver o dia nascer no pasto. As vacas 1nugiam1 as bostas quentes e frescas cheiravan11 o caphn-gordu- ra molhado, o céu ficou cinza, depois rosa, mn friozinho can- tou, um pássaro piou, e tudo era fresco e novo, o dia nasceu. Euclides era cmno o dia nascendo. Suspiraran1 111udos. Era1n livres, tristes, desocupados . No dia da partida foram levar Euclides na estação'. Ele ia para São Paulo. Achara mn anúncio no jornal, escreveu à com- panhia de seguros que oferecia empregos para jovens comam- bição, ele era um jovem com ambição, foi aceito . Deixa que eu seguro a mala, disse Alfredo. Euclides sorriu meio encabu- lado, disse não é preciso. Faço questão, disse Alfredo, é como se fosse minha. Eles riram n1uito, precisavam rir. Foram até ao telegrafista saber quanto tempo o _expresso estava atrasado. A Mogiana é assim mesmo, disse Amadeu. O expresso atrasa e o misto nem se fala, disse Vasco. É horrível o serviço que a companhia nos presta, disse Euclides com ar de viajante. Ele que nunca tinha viajado . Veja como ele está, disse Salvador. Caíram na gargalhada. O telegrafista informou a hora que o trem passava. É, não vale a pena, vamos ficar por aqui mes- mo, disse Amadeu a uma sugestão de Salvador. Quem tem dinheiro pra pagar pastel e bolinho de Jeijão, perguntou Alfredo. · Euclides fez que ia meter a mão no bolso. Você não, vai preci- sar de dinheiro mais tarde, disse Vasco. Ara, disse Euclides. Não seja besta, disse Vasco. Euclides se encolheu, Vasco pagou. Esperara1n, conheceram um momento por demais pesado 149 AUTRAN DOURADO de silêncio, não tinham nada a dizer de importante como a hora exigia. Até que o trem apitou na curva. Euclides era o único passageiro a embarcar em São Mateus. Deitando fuma- ça, espalhafatosa, a máquina parou no fim do armazém de · café. Uns viajantes de guarda-pó desceram para tomar café e comer bolinho de feijão e pastel numa mesinha junto da porta de saída. Eüclides abraçou os amigos, teve uma palavra especial para cada um. Não deixe de escreve~ diziam. Não se esqueça da gente, disse Amadeu. Euclides tinha os olhos úmidos . Não chorou, era um home1n que levava consigo grandes esperan- ças, não podia chorar. Com um apito e um aceno de bandeiri- nha o agente deu o sinal de partida. Da janela do trem Euclides tentava dizer ainda alguma · coisa, m.as o trem arrancou e ele só pôde gritar adeus. Os quatro desceram calados a ladeira .da estação. Voltavam para a vida de todo dia, para a solidão miúda de São Mateus. De tarde era o bilhar ou a sinuca. Amadeu ia tentar a bola sete. O giz azul rangiu na ponta do taco . Deitou-s~ sobre a inesa,_ esticou a perna direita num esforço para se equilibrar e não perder "ª tacada. Sete pra nós, disse Alfredo com ar de corvo de Edgar Allan Poe. Pocha, você também foi tentar uma bola dessas, gritou Vasco. Agora sou eu, disse Salvador capengando de mentira. Assim eram as tardes de São Mateus . Sentado no meio-fio Amadeu ruminava, os olhos injetados, a boca a111arga, o cuspe grosso. Nem sempre tinha dinheiro para jogar. Muitas vezes iam para o 'Ihnquinho e passavam. a tarde nadando. Nadavam nus, fumavan1, bebian1 cachaça que un1 deles trazia, contavam ane- dotas porcas, ria1n, falava1n de n1ulheres, n1as de a1nor n1es- mo eles só conheciam o vendido na casa de Sanica do Pivô . Os nan1oros cmn as n1oças de família, as tardes dançantes de do - 1ningo no clube não tinham nuis interesse. Riam das moças, elas querian1 casar e eles não era111 nenhu1n partido, nem ao menos tinham emprego. Neühum. pai ia entregar a eles as suas filhas. Eram vagabundos e desocupados. · 150 SOLIDÃO SOLITUD E De noite, quando conseguiam dinheiro Deus sabe com.o ou o dono do bar resolvia fiar, bebiam cerveja e contavam his- tórias . Andavam sujos, só tinhain a roupa do corpo. Es1)eravarn algum fazendeiro aparecer, gostando de companhia alegTe o fazendeiro pagava mais bebida. Vasco dava então um espetá - culo extraordinário . As mãos finas, os gestos inedidos, em. câ- mara lenta, compunha um.a sessão de inímica. Agora é Carliws faminto que vai levar uma flor pra inoça cega, dizia. Agora é a mulher grávida fazendo crochê e não tern urn tusta . Agor:-1 é a moça vergonhosa que o narnorado inete a inão por dentro dos seios. Agora é Jesus Cristo subindo pro Calvário antes ele tomar o fel, dizia ele virando o copo de cerveja . Era m esrno uma pândega, os fazendeiros sen1pre se divertia111, eles cT élff1 gozados na sua tristeza. Depois saíam para fazer a noite, con10 diziarn.Lizer a üoite era andar sen1 destino pelas ruas escuras e desert as . .c'\.lgu ffEl S vezes p assava1n pelos bordéis. Se as inulheres t::st:wam deso - cupadas, sentavan1-se en1 volta da ines~1 n a sala e ::se pu n h a1n a conversar. Batia1n longos papos, Vasco dizi<1 graçds, cuntav c1 anedotas picantes, fazia n1ímica, in1itava C arlitos e a m ulher que entra na viela pela prin1eira vez, as rnulheres se dobrc1v~un de rir. Amadeu ficava calado, fazia o papel do poeta t riste, e, encontrando 1-nna m.ulher tão triste corno ele, puxava-·a pau un1 canto e c01neçava a conversar, a des tilar angús tia, con10 dizia. Quase sen1pre dava certo, acab av a indo para o quarto con1 ela. As mulheres sabia1n que eles não tinharn nada, eram prontos e procuravan1 apenas encher a noite . As donas dos bordéis não gostavarn que eles viessern quando os fregueses ricos aparecian1. Mas assim sen1 ningué1n, n o n1eio da n oi te, se fonnava urna roda alegre e todos riarn, riain até fazer lágri - mas nos olhos . Meu ben1, dizia Vasco, seu riquinho ve:m hoje! Não, ele já veio aqui de tarde. Então é a n oite do seu gran de e imorredouro amo1~ dizia ele. Luzia não gostava de ir logo p ara a can1a queria 111ais era con1p:1nhia. Espera, v a1nos ver, Llizi:i 1 , ela você não deve ter um tostão no bolso . O pervers a, Elvira J dos n1eus desencantos, n1enosprezando a n1inha fortun.a, olha 151 AUTRAN DOURADO que Deus castiga. Quem quer ter u1n grande e ünorredouro amor tem de conhecer o Rom.ante de Um Moço Pobre, dizia. J\1as as horas acabavam passando e se algum deíes conseguia alguma coisa, se dava por feliz da vida. Eles não se importa- van1, queria1n u1n pouco de conversa, .u1n a1nor roubado, não clesej ava1n é ir para a casa. fam de mn extremo ao outro da cidade. Na ponte para- van1 e conversava1n. Se surgia uma idéia interessante como saltar um m.uro e roubar fruta, puxar u1na charrete de um portão e levar para bem longe, todos aderiam à idéia genial e se davam por satisfeitos, tinha1n alguma coisa para fazer, en- chiam as noites. As noites eram compridas e redondas, frias e arrastadas. No dia seguinte era a m.esma coisa, tudo se repetia. Alfredo passava pela casa de Amadeu e assobiava Olá Seu Nicolau, Você Quer Mingau. Os dois saíam e iam assobiar o Seu Nico- lau na porta ela casa de Salvador. Até que o grupo estivesse comple'.:o. E rodavam a cidade à procura de algum.a coisa para fazer. E como u,m dia Alfredo se foi, chegou à vez de Vasco, che- gou a vez de Alfredo. O grupo diminuindo, cada vez era sem- pre a mesma liturgia da despedida na estação. Subiam a ladei- ra, se despedian1. trocando abraços quando o trem cl1.ega'la, desciam tristes e silenciosos a ladeira para a vida comum. Todos se foram, mn dia chegou a vez de Amadeu. Subiu sozinho a ladeira da estação . Ninguém para dizer adeus , Quan- do o sinal de partida soou, de sua janela Amadeu olhou para ver se via algum. conhecido. Ninguém, ele partia sozinho, o tre.m já ein 1novirnento. Na porta do annazé1n de café, seu 1onico Fontoura olhou-o indiferente. Amadeu acenou para ele. Seu Tonico r~ontoura olhou desconfiado para um lado e para o outro, e vendo que a coisa era c01n ele fez um aceno meio sen1 graça. An1adeu se levantou do meio-fio. Ele também foi depois muitas vezes levar os a1nigos que ia1n para o Rio pelo tre1n da Central. Agora ouviu passos que se aproximava1n. Alguém 152 SOLIDÃO SOI,JTUDE co1no ele ia para casa. Foi descendo a avenida Paraúna, a ca- minho de casa, a caminho do sono junto da 1nulher1 ela se en- colhia no outro lado da caina sentindo a sua presença. O re- 1norso i1o peito, olhava certamente .os' filhos antes de 'se deitar. Eles àorn'liam e' nem sequer sonhavam que o pai os olhava com emoção: a emoção de um pai moído de solidão que vê os filhos dormindo. 153 Autran Dourado 0001 0002 0003 0004 Autran Dourado2 Scanner_20160503 (1) Scanner_20160503 (2) Scanner_20160503 (3) Scanner_20160503 (4) Scanner_20160503 (5) Scanner_20160503 (6) Scanner_20160503 (7) Scanner_20160503 (8) Scanner_20160503 (9) Scanner_20160503 (10) Scanner_20160503 (11) Scanner_20160503 (12) Scanner_20160503 (13) Scanner_20160503 (14) Scanner_20160503 (15) Scanner_20160503 (16) Scanner_20160503 (17) Scanner_20160503 (18)
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