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TOLERÂNCIA 1247 Igreja e de que, vice-versa, as coisas ilícitas no Estado não podem ser lícitas na Igreja, mesmo quando adotadas nos usos sagrados. Segue-se daí, segundo Locke, que o magistrado civil não deverá tolerar uma Igreja disciplinada de modo que quem a ela adere passe "ao serviço e à obediência de um outro soberano", porque, em tal caso, dar-se-ia lugar a uma sobreposição de jurisdições. Locke nega todo direito de Tolerância religiosa aos ateus, negadores da religião; mas algumas tendências relativistas ("toda Igreja é ortodoxa para si mesma e errônea ou herética para os outros") e a clara afirmação da liberdade de consciência e da separação entre Estado e Igreja fazem da Epístola um documento fundamental do LAICISMO (V.) . III. DESENVOLVIMENTO MODERNO DO PRINCÍPIO DE TOLERÂNCIA. — O princípio de tolerância se afirmou plenamente no século XVIII com o iluminismo e o racionalismo (é bastante conhecido o Traité sur la tolérance de Voltaire, de 1763, escrito por ocasião da condenação do protestante Jean Calas; nesse tratado Voltaire se propõe demonstrar que a intolerância religiosa não é justificada nem pela tradição judaica e clássica nem pela doutrina evangélica). E no século XIX foi um componente essencial do pensamento político liberal. Foi acolhido pela própria Igreja, nas encíclicas de Leão XIII, com muitas limitações e como um mal menor. Também em 1950, o padre Messineo contrapunha à teoria liberal da Tolerância, fundada sobre o agnosticismo e o subjetivismo religiosos, a teoria restritiva da Tolerância como atitude prática "que leva a suportar com indulgência e longanimidade uma ação ou um fato lesivos do nosso sentimento e dos nossos direitos". Segundo esta interpretação, pois que se "se tolera o mal e o erro, não se tolera o bem e a verdade", a Tolerância não deveria comportar a paridade jurídica dos cultos sustentada pela concepção do liberalismo agnóstico. É inegável que a plena explicação do princípio de Tolerância é incompatível com o dogmatismo religioso, o qual, professando a certeza da verdade recebida por graça, impõe o aut-aut entre verdade e falsidade e a divisão dos homens entre eleitos e réprobos. Os mais recentes desenvolvimentos do pensamento da Igreja, entretanto, contidos nas declarações do Concilio Vaticano Il e nas encíclicas de João XXIII e de Paulo VI, estão explicitamente orientados para o princípio de Tolerância na medida em que, reconhecendo e exaltando a dignidade natural da pessoa humana — que não foi perdida nem em presença do erro —, reafirmam que a busca da verdade é um ato voluntário do conhecimento sobre o qual a autoridade civil não tem poder de interferência. Independentes da problemática da Tolerância religiosa são as teorias críticas da sociedade contemporânea, que tendem a esclarecer os aspectos repressivos no panorama da Tolerância. Segundo Robert Paul Wolff, por exemplo, a Tolerância é a virtude da moderna democracia pluralista. Mas o pluralismo democrático, tal qual pode ser observado na América contemporânea e em outras sociedades industrializadas, apresentaria uma série de analogias com as sociedades feudais e corporativas enquanto se mostraria tolerante para com os grupos constituídos e não para com os indivíduos cujo comportamento se desvia das normas do grupo. Segundo Herbert Marcuse, a função liberal da Tolerância teria sido alterada pelas mudanças verificadas nas sociedades democráticas avançadas, que minaram as bases do liberalismo econômico e político. A Tolerância deveria portanto concretizar-se numa prática subversiva e liberante e contrapor-se à Tolerância decadente mascarada pela REPRESSÃO (V.) . BIBLIOGRAFIA. — J. LECLER, Storia della tolleranza nel secolo della riforma. Morcelliana, Brescia 1967. 2 vols.; J. LOCKE. Saggio sulla tolleranza. in Scritti editi e inediti sulla tolleranza. ao cuidado de C. A. VIANO. UTET. Torino 1961; A. MESSINEO. Tolleranza e intolleranza, in "Civiltà cattolica". caderno 2.411, ano 101. 2 de dezembro de 1950, vol. IV; F. RUFFINI, La libertà religiosa (I." ed. 1901), Feltrinelli, Milano 1967. [VALERIO ZANONE] Totalitarismo. I. As TEORIAS CLÁSSICAS DO TOTALITARISMO. — Na Itália, começou-se a falar de Estado "totalitário" por volta da metade da década de 20 para significar, no nível de avaliação, as características do Estado fascista em oposição ao Estado liberal. A expressão está presente na palavra "Fascismo" da Enciclopedia Italiana (1932), quer na parte escrita por Gentile, quer na parte redigida por Mussolini, onde se afirma a novidade histórica de um "partido que governa totalitariamente uma nação". Na Alemanha nazista, o termo, ao contrário, teve pouca voga, preferindo-se falar de Estado "autoritário". Entretanto, a expressão começava a ser usada para designar todas as ditaduras monopartidárias, abrangendo tanto as fascistas quanto as comunistas. Neste sentido a empregou George H. Sabine no verbete 1248 TOTALITARISMO "Estado" da Encyclopaedia of the social sciences (1934). Em 1940, num simpósio sobre o "Estado totalitário" publicado nos Proceedings of american philosophical society, Carlton H. Hayes descreveu algumas características originais do Governo totalitário e especialmente a monopolização de todos os poderes no seio da sociedade, a necessidade de gerar uma sustentação de massa, o recurso às modernas técnicas de propaganda. Em 1942, em The permanent revolution, Sigmund Neumann colocou em destaque o movimento permanente que se desprendeu dos regimes totalitários e que atinge, numa mutação incessante, os próprios procedimentos e instituições políticos. Todavia, não obstante tais antecedentes, o uso da palavra Totalitarismo para designar, com uma conotação fortemente derrogatória, todas ou algumas ditaduras monopartidárias fascistas ou comunistas se generalizou somente após a Segunda Guerra Mundial. Durante o mesmo período foram formuladas as teorias mais completas do Totalitarismo, a de Hannah Arendt (The origins of totalitarianism, 1951) e a de Carl J. Friedrich e Zbigniew K. Brzezinski (Totalitarian dictatorship and autocracy, 1956). Segundo H. Arendt, o Totalitarismo é uma forma de domínio radicalmente nova porque não se limita a destruir as capacidades políticas do homem, isolando- o em relação à vida pública, como faziam as velhas tiranias e os velhos despotismos, mas tende a destruir os próprios grupos e instituições que formam o tecido das relações privadas do homem, tornando-o estranho assim ao mundo e privando-o até de seu próprio eu. Neste sentido, o fim do Totalitarismo é a transformação da natureza humana, a conversão dos homens em "feixes de recíproca reação", e tal fim é perseguido mediante uma combinação, especificamente totalitária, de ideologia e de terror. A ideologia totalitária pretende explicar com certeza absoluta e de maneira total o curso da história. Torna-se, por isso, independente de toda experiência ou verificação fatual e constrói um mundo fictício e logicamente coerente do qual derivam diretrizes de ação, cuja legitimidade é garantida pela conformidade com a lei da evolução histórica. Esta lógica coativa da ideologia, perdido todo contato com o mundo real, tende a colocar na penumbra o próprio conteúdo ideológico e a gerar um movimento arbitrário e permanente. O terror totalitário, por sua vez, serve para traduzir, na realidade, o mundo fictício da ideologia e confirmá-la, tanto em seu conteúdo, quanto, e sobretudo, em sua lógica deformada. Isso atinge, na verdade, não apenas os inimigos reais (o que acontece na fase da instauração do regime), mas também e especialmente os inimigos "objetivos", cuja identidade é definida pela orientação político- ideológica do Governo mais do que pelo desejo desses inimigos em derrubá-lo.E na fase mais extrema atinge também vítimas escolhidas inteiramente ao acaso. O terror total que arregimenta as massas de indivíduos isolados e as sustenta num mundo que, segundo elas, se tornou deserto torna-se por isso um instrumento permanente de Governo e constitui a própria essência do Totalitarismo, enquanto a lógica dedutiva e coercitiva da ideologia é seu princípio de ação. ou seja, o princípio que o faz mover. No plano organizativo, a ação da ideologia e do terror se manifesta através do partido único, cuja formação elitista cultiva uma crença fanática na ideologia, propagando-a sem cessar, e cujas organizações funcionais realizam a sincronização ideológica de todos os tipos de grupos e de instituições sociais e a politização das áreas mais remotas da política (esporte e atividades livres, por exemplo), e através da polícia secreta, cuja técnica operacional transforma toda a sociedade num sistema de espionagem onipresente e onde cada pessoa pode ser um agente da polícia e onde todos se sentem sob constante vigilância. O regime totalitário não tem entretanto uma estrutura monolítica. Há, bem pelo contrário, uma multiplicação e uma sobreposição de funções e de competências da administração estatal, do partido e da polícia secreta, que dão lugar a um emaranhado organizativo confuso, bem distinto de uma típica "ausência de estrutura". Esta ausência de estrutura está de acordo com o movimento e a imprevisibilidade próprios do regime totalitário e que têm origem na vontade absoluta do ditador, o qual sempre está em grau de fazer flutuar o centro do poder totalitário de uma para outra hierarquia. A vontade do chefe é a lei do partido e toda organização partidária não tem outro escopo senão o de realizá-la. O chefe é o depositário da ideologia: apenas ele pode interpretá-la ou corrigi-la. Até a polícia secreta, cujo prestígio cresceu extraordinariamente em relação ao que gozava nos velhos regimes autoritários, tem um poder real menor, pelo fato de estar inteiramente sujeita à vontade do chefe, o único a quem compete decidir quem será o próximo inimigo potencial ou "objetivo". Segundo esta interpretação, a personalização do poder é portanto um aspecto crucial dos regimes totalitários. Entretanto, Arendt não faz dela explicitamente um terceiro pilar da noção de Totalitarismo (ao lado do terror e da ideologia), provavelmente para não perturbar a solidez da concepção essencialista e teleológica do fenômeno que se manifesta por conseqüência algo densa. TOTALITARISMO 1249 A segunda teoria clássica, a de Carl J. Friedrich e de Zbigniew K. Brzezinski, define o Totalitarismo com base nos traços característicos que podem ser encontrados na organização dos regimes totalitários. Segundo esta colocação, o regime totalitário é resultante da união dos seis pontos seguintes: 1) uma ideologia oficial que diz respeito a todos os aspectos da atividade e da existência do homem e que todos os membros da sociedade devem abraçar, e que critica, de modo radical, o estado atual das coisas e que dirige a luta pela sua transformação; 2) um partido único de massa dirigido tipicamente por um ditador, estruturado de uma forma hierárquica, com uma posição de superioridade ou de mistura com a organização burocrática do Estado, composto por pequena percentagem da população, onde uma parte nutre apaixonada e inabalável fé na ideologia e está disposta a qualquer atividade para propagá-la e atuá-la; 3) um sistema de terrorismo policial, que apóia e ao mesmo tempo controla o partido, faz frutificar a ciência moderna e especialmente a psicologia científica e é dirigido de uma forma própria, não apenas contra os inimigos plausíveis do regime, mas ainda contra as classes da população arbitrariamente escolhidas; 4) um monopólio tendencialmente absoluto, nas mãos do partido e baseado na tecnologia moderna, da direção de todos os meios de comunicação de massa, como a imprensa, o rádio e o cinema; 5) um monopólio tendencialmente absoluto, nas mãos do partido e baseado na tecnologia moderna, de todos os instrumentos da luta armada; 6) um controle e uma direção central de toda a economia através da coordenação burocrática das unidades produtivas antes independentes. A combinação habilidosa de propaganda e de terror, tornada possível graças ao uso da tecnologia moderna e da moderna organização de massa, confere aos regimes totalitários uma força de penetração e de mobilização da sociedade qualitativamente nova em relação a qualquer regime autoritário ou despótico do passado e torna-os por isso um fenômeno político historicamente único. Entre a interpretação de Arendt e a de Friedrich- Brzezinski há diferenças notáveis. Mencionarei apenas as principais. Antes de tudo, é diferente o modo de abordar o tema: Arendt procura determinar o fim essencial do Totalitarismo que identifica na transformação da natureza humana, reduzindo os homens a autômatos absolutamente obedientes e em torno deste fim ordena todos os outros aspectos do fenômeno; Friedrich e Brzezinski, ao contrário, não reconhecem nenhum fim essencial ou conatural no Totalitarismo e limitam-se a descrever uma "síndrome totalitária", isto é, um conjunto de traços característicos dos regimes totalitários. Em segundo lugar, na interpretação de Friedrich-Brzezinski falta, pelo menos parcialmente, a ênfase posta por Arendt na personalização do poder totalitário e no papel crucial do chefe, que detém em suas mãos os meandros da ideologia, do terror e de toda a organização totalitária. Esta segunda diferença está ligada, em grau considerável, a uma terceira, que diz respeito ao âmbito de aplicação da noção de Totalitarismo. Para Arendt são totalitárias apenas a Alemanha hitlerista (de 1938 em diante) e a Rússia stalinista (de 1930 em diante); para Friedrich e Brzezinski são totalitários, além do regime nazista e soviético, o regime fascista italiano, o regime comunista chinês e os regimes comunistas do Leste europeu. Mas existem pontos de acordo que também são notáveis. Em primeiro lugar, tanto Arendt quanto Friedrich e Brzezinski vêem no Totalitarismo uma nova forma de dominação política, pelo fato de ele ser capaz de conseguir um grau de penetração e de mobilização da sociedade que não tem precedentes nos regimes conhecidos do passado e representa neste sentido um verdadeiro salto de qualidade. Em segundo lugar, as duas interpretações concordam ao identificar três aspectos centrais do regime totalitário numa ideologia oficial, no terror policial e num partido único de massa. A polícia secreta que Arendt acrescenta a este elenco no plano institucional e o controle monopolista dos meios de comunicação e dos instrumentos de violência, assim como a direção central da economia, acrescentados por Friedrich e Brzezinski, podem considerar-se, ao menos dentro de certos limites, como especificações posteriores, que não afetam a centralização da ideologia, do terror e do partido único. Neste sentido, poder-se-ia dizer em linhas gerais que o regime totalitário dá pouca importância à distinção tradicional entre Estado, ou melhor, aparelho político e sociedade, por meio do instrumento organizacional do partido único de massa, que é plenamente maleável e pilotável a partir do vértice do regime, e destrói ou afeta o poder e modifica o comportamento regular e previsível dos corpos organizados do Estado (burocracia, exército, magistratura) , e por meio do emprego concomitante e combinado da doutrinação ideológica e do terror, dentro das formas que a tecnologia moderna oferece e que permitem penetrar e politizar todas as células do tecido social. Desde a época em que foram apresentadas as duas teorias que acabamos de expor houve a tendência de reproduzir estes três aspectos do Totalitarismopor parte de muitos autores que se ocuparam do 1250 TOTALITARISMO assunto, embora com formulações e destaques diferentes. Raymond Aron, por exemplo, coloca entre as características do Totalitarismo um partido que monopoliza a atividade política, uma ideologia que anima o partido e se torna verdade oficial do Estado, e, através dos controles totalitários sobre a sociedade, uma politização de todos os erros ou os insucessos dos indivíduos e portanto a instauração de um terror ao mesmo tempo policiesco e ideológico. Contudo, a partir do início da década de 60, e em certos aspectos mesmo antes, foram-se delineando correntes de revisão das teorias clássicas do Totalitarismo, que atacaram em três direções: a novidade histórica do Totalitarismo, a similaridade entre o Totalitarismo fascista e o Totalitarismo comunista e a extensão do conceito de Totalitarismo a todos os regimes comunistas e à própria Rússia pós- stalinista. Estas revisões demonstraram uma eficácia crescente nas três direções indicadas. Menor eficácia se verificou na pesquisa de precedentes históricos. Foram aventadas diversas analogias, mas não se alterou o caráter de substancial novidade dos regimes totalitários. Maior eficácia se verificou na análise das relações entre o Totalitarismo fascista e o Totalitarismo comunista. Não pôde ser contestada a existência de elementos de semelhança, mas também foram identificadas diferenças muito relevantes. A eficácia máxima foi encontrada na limitação do campo de aplicação do conceito de Totalitarismo: uma direção na qual, de resto, a tendência revisionista teve em vista a teoria de Friedrich e não (ou então apenas de forma indireta) a de Arendt. Será portanto oportuno examinar em separado estas três partes da pesquisa. II. TOTALITARISMO MODERNO E EXPERIÊNCIAS POLÍTICAS PRECEDENTES. — Vários autores identificaram precedentes históricos do Totalitarismo, tanto na Antigüidade greco-romana como no despotismo oriental, como ainda em algumas experiências políticas da Europa moderna. Para a Antigüidade grega e romana olhou, entre outros, Franz Neumann, o qual acha que tanto o regime espartano quanto o regime do Império Romano dos tempos de Diocleciano foram "ditaduras totalitárias". No primeiro caso, Neumann sublinha o domínio absoluto dos espartanos sobre os ilotas, baseado num terror policiesco permanente, posto em ato por grupos de jovens espartanos que os éforos mandavam clandestinamente, de tempos a tempos, para aterrorizar e assassinar os ilotas; e a coesão da classe dominante conseguida com um controle completo da sociedade e da vida privada por meio de técnicas e de instituições especiais, como a transferência para o internato dos meninos quando atingiam os seis anos de idade e um rígido esquema de educação estatal. No segundo caso, Neumann concentra sua atenção sobre a cruel política da arregimentação social através da qual Diocleciano procurou segurar o processo de deterioração da vida econômica, impondo compulsoriamente um Estado corporativo que garantisse a produção e a disponibilidade das forças de trabalho. Todos os mestres e as profissões foram organizados em corporações, tornando-se obrigatório e hereditário pertencer a elas. Os mineiros e os cavadores eram portadores de um sinal específico; os padeiros só podiam casar no âmbito das famílias de seus companheiros de trabalho; e não demorou muito para que a inscrição nas corporações se tornasse a punição oficial para o criminoso que até ali tivesse conseguido escapar dela. Sobre o despotismo oriental como antepassado do Totalitarismo moderno, e em particular do comunista, ocupou-se especialmente Karl A. Wittfogel. Este autor parte da concepção marxista do "modo asiático de produção", no qual as exigências de irrigação em larga escala e das obras de controle das inundações produziram uma intervenção maciça do Estado, o qual, tornando-se o organizador exclusivo do trabalho coletivo, se transformou também no patrão da sociedade. O resultado político foi um despotismo burocrático no qual as divisões de classe foram substituídas pelas distinções de grupo no seio de uma sociedade burocratizada, e que Wittfogel descreve como um sistema de "poder total". O poder do despotismo oriental é total porque não é travado nem por barreiras constitucionais nem por barreiras sociais; além do mais, ele é exercido em benefício dos governantes e está concentrado habitualmente nas mãos de um só homem. Ao poder total correspondem: um terror total, exercido através de um controle centralizado do exército, da polícia e dos serviços de informação, e mediante o recurso à técnica sistemática do "Governo com chicote"; uma submissão total dos súditos, manipulada pelo medo, simbolizada pela prática constante da prosternação, através da qual a obediência se torna a máxima das virtudes humanas; e um isolamento total que envolve o homem comum, o qual teme comprometer-se em qualquer circunstância, e também o funcionário burocrático e o próprio chefe superior que sempre apóiam quem tem poder e não confiam em ninguém. A este despotismo burocrático, que chama de "semi-empresarial", "hidráulico" e "oriental", Wittfogel acha que se deve aproximar, em sua substância, como variante do mesmo sistema, o despotismo que ele chama de "totalmente empresarial", "totalitário" ou TOTALITARISMO 1251 "comunista", no qual a função econômica de base não é constituída pelo simples controle centralizado da água, mas pelo controle centralizado de todos os recursos fundamentais. Também Barrington Moore, embora não co- dividindo a colocação de Wittfogel, estuda o despotismo oriental e em particular o indiano e o chinês, para detectar os antecedentes históricos do Totalitarismo moderno, sublinhando, a propósito, a obra de estandardização e de uniformização da burocracia estatal, a existência de um sistema bem desenvolvido de espionagem e de delação recíproca e uma doutrina política caracterizada por um racionalismo amoral interessado unicamente na técnica política mais eficaz. Um precedente ainda mais semelhante ao Totalitarismo moderno é encontrado por Moore na ditadura teocrática de Calvino em Genebra. O objetivo de Calvino era construir um Estado cristão sobre o modelo da teocracia israelita do tempo dos reis e fundado sobre a doutrina da predestinação. A ditadura de Calvino, que teve o seu período de pleno desenvolvimento durante os últimos anos da vida do reformador (1555-1564), exerceu grande influência sobre os hábitos e o pensamento do dia-a-dia da população, chegando a proibir as festas e os passatempos preferidos de Genebra, a decretar o corte dos vestidos e o tipo de sapatos que o cidadão devia calçar. Por outro lado, não modificou substancialmente a ordem política anterior, mas procurou condicioná-la e imbuí-la do espírito do calvinismo. Neste sentido, agiu tanto em relação às instituições representativas criadas pela burguesia quanto em relação às próprias eleições. O principal instrumento institucional da ditadura foi o Concistório, que na origem fora concebido apenas como um meio para superintender as questões matrimoniais e que em determinado momento se tornou o centro principal do controle político, moral e religioso, desenvolvendo também funções de polícia secreta e de censura moral. Não é o caso de examinar um por um todos os pontos de vista acima expostos para avaliar detalhadamente o grau de validade ou de analogia que eles encerram. Podemos admitir na verdade que em todos estes pontos de vista existem elementos de verdade, no sentido de que existem efetivas similaridades entre os regimes despóticos e absolutos por eles lembrados e o Totalitarismo moderno. Mas estas analogias não são decisivas já que, após terem sido enumerados todos ospossíveis confrontos e terem sido fixados todos os possíveis pontos de contato, o Totalitarismo conserva, não obstante tudo, algumas características fundamentais que são especificamente e apenas suas, como reconhecem, aliás, também, alguns dos autores que pesquisaram sobre esses antecedentes históricos. As características que permanecem específicas e únicas do Totalitarismo são, de um lado, a associação da penetração total do corpo social através de uma mobilização permanente e total, que envolve toda a sociedade num movimento incessante de transformação da ordem social, e, de outro lado, a intensificação até um grau máximo, sem precedentes na história, desta penetração-mobilização da sociedade. Nos precedentes históricos antes lembrados está claramente ausente a mobilização total da sociedade. Esparta era uma sociedade estática, fundada sobre a exploração dos ilotas mas, em contrapartida, Esparta não pedia aos escravos a participação política nem a sustentação ativa do regime. O mesmo deve ser dito do Império Romano no tempo de Diocleciano e dos trabalhadores arregimentados compulsoriamente para as corporações. As sociedades típicas do despotismo oriental eram também, como reconhecem Wittfogel e Moore, tradicionais e estacionárias. Nelas, o poder despótico se contentava com a obediência absoluta do súdito sem exigir a ortodoxia ideológica e a adesão entusiástica ao regime, Finalmente, a ditadura teocrática de Calvino, que por sua vez tentava modelar a vida privada dos cidadãos, não possuía um movimento ativista contínuo nem uma mobilização ininterrupta tendo em vista a transformação radical da sociedade, que são características típicas do Totalitarismo do século XX. Nestes precedentes históricos falta também a intensificação máxima da penetração da sociedade, que distingue o Totalitarismo, e que somente os instrumentos oferecidos pela tecnologia moderna e a combinação de mobilização e penetração conseguiram obter. Wittfogel admite que os despotismos orientais, embora tenham conseguido impedir o crescimento de eficientes organizações secundárias, não tiveram à mão instrumentos de eficácia e de alcance universal que permitem aos regimes totalitários estender o controle total às organizações primárias e a cada um dos cidadãos. Observações semelhantes podem ser feitas para todos os Estados absolutos de vastas dimensões que o passado recordou, inclusive o regime de Diocleciano. Também os regimes absolutos de pequenas comunidades, como Esparta ou Genebra, carecem de força de penetração e de arregimentação da atividade econômica e da inteira vida social que encontramos no Totalitarismo. De uma forma geral, quando passamos "da doutrina e do aparelho de controle destes regimes pré-industriais ao exame da sua influência sobre a população governada", afirma precisamente Moore, "percebemos imediatamente uma diferença fundamental entre as velhas formas e 1252 TOTALITARISMO o Totalitarismo contemporâneo. Os controles do Totalitarismo moderno incidem mais profundamente sobre o tecido social em grau superior ao de qualquer outro período histórico. Sob este aspecto, são realmente únicos". As características únicas do Totalitarismo tornaram- se possíveis, por seu lado, graças a condições sociais particulares realizadas no mundo contemporâneo. Elas são reavivadas na formação da sociedade industrial de massa, na persistência de uma arena mundial dividida e no desenvolvimento da tecnologia moderna. 1) A industrialização tende a produzir, de um lado, a desvalorização dos grupos primários e intermédios e a atomização dos indivíduos, e deste modo torna possível um decisivo incremento da penetração política, e, de outro lado, produz a urbanização, a alfabetização, a secularização cultural e o ingresso das massas na política, impondo, desta forma, um incremento decisivo da mobilização política. É por isso que o Totalitarismo, como forma extrema do despotismo moderno, teve de criar coercitivamente uma sustentação de massa virtualmente coextensivo a toda a sociedade. 2) Além disso, nas condições sociais criadas pela industrialização, a persistência de uma arena mundial dividida, e, por conseqüência, insegura e ameaçadora, tende a envolver na guerra e na preparação bélica parcelas cada vez maiores dos recursos e das atividades da nação, até transformar o país inteiro numa enorme máquina de guerra. Dessa forma a anarquia internacional favorece um crescimento explosivo da penetração-mobilização, especialmente nos países mais expostos aos perigos externos. 3) Finalmente, ocorre também lembrar que a penetração-mobilização totalitária da sociedade não seria atuável sem os instrumentos colocados à disposição pela tecnologia moderna. Basta pensar no efeito que o desenvolvimento tecnológico exerceu sobre os instrumentos da violência, sobre os meios de comunicação de massa, sobre os meios de transporte, sobre as técnicas de organização, de registro e de cálculo, que tornam possível a direção central da economia, e ainda sobre as técnicas de vigilância e de controle da polícia secreta. III. TOTALITARISMO FASCISTA E TOTALITARISMO COMUNISTA. — As diferenças entre Totalitarismo fascista e Totalitarismo comunista devem ser reportadas às diferenças entre fascismo e comunismo, em geral. Estas últimas são, antes de tudo, diferenças de ideologia e de base social. A ideologia comunista é um conjunto de princípios, coerente e elaborado, que descreve e orienta para uma transformação total da estrutura econômico-social da comunidade. A ideologia fascista, que se constituiu na mais radical versão, nazista, é um conjunto de idéias ou de mitos, bem menos coerente e elaborado, que não prevê nem orienta para uma transformação total da estrutura econômico-social da comunidade. A ideologia comunista é humanística, racionalista e universalista: seu ponto de partida é o homem e sua razão; é por isso que ela assume a forma de um credo universal que abrange todo o gênero humano. A ideologia fascista é organicista, irracionalista e anti- universalista: seu ponto de partida é a raça, concebida como uma entidade absolutamente superior ao homem individual. Ela toma por isso a forma de um credo racista que trata com desprezo, como uma fábula, a idéia ética da unidade do gênero humano. A ideologia comunista pressupõe a bondade e a perfectibilidade do homem e tem em mira a instauração de uma situação social de plena igualdade e liberdade: neste quadro a "ditadura do proletariado" e a violência são simples instrumentos, necessários mas temporários, para alcançar o escopo final. A ideologia fascista pressupõe a corrupção do homem e tem em mira a instauração do domínio absoluto de uma raça acima de todas as outras: a ditadura, o Führerprinzip e a violência são princípios de governo permanentes, indispensáveis para manter sujeitas e para liquidar as raças inferiores. A ideologia comunista, enfim, é revolucionária: apresenta-se como a herdeira dos ideais do iluminismo e da Revolução Francesa, aos quais pretende dar um efetivo conteúdo econômico e social com uma revolução profunda da estrutura da sociedade. A ideologia fascista é reacionária: ela é a herdeira das tendências mais extremas do pensamento contra-revolucionário do século passado, em seus componentes irracionalistas, racistas e radicalmente antidemocráticos; e em certos aspectos como os mitos teutônicos, o juramento pessoal perante o chefe, a ênfase dada à honra, o sangue e a terra, voltam-se para o passado até uma ordem pré-burguesa. As diferenças de base social dizem respeito, de uma maneira geral, ao ambiente econômico-social, e, de uma maneira especial, à base de sustentação de massa e de recrutamento do novo regime, assim como aos comportamentos recíprocos do novo regimee da velha classe dirigente. O comunismo se instala habitualmente numa sociedade onde o processo de industrialização e de modernização se está iniciando ou se encontra no primeiro estágio e assume a tarefa de uma industrialização e de uma modernização forçada e rápida. O fascismo normalmente se instala TOTALITARISMO 1253 numa sociedade onde o processo de industrialização e de modernização já está avançado e num ponto bom. Seu objetivo não é tanto a industrialização e a modernização da sociedade, mas sim a mobilização e a obediência de uma sociedade já industrializada e modernizada aos próprios fins. No comunismo, a base de sustentação de massa do regime e a fonte privilegiada do recrutamento da elite são constituídas pela classe operária e pelo proletariado urbano. No fascismo, a base de sustentação de massa do regime e a fonte privilegiada do recrutamento da elite são constituídas pela classe pequeno-burguesa: empregados, camponeses, pequenos comerciantes, militares e intelectuais frustrados, que se sentem esmagados entre a grande burguesia e as organizações do proletariado. A esta sustentação do fascismo se juntam bem depressa a finança e o apoio dos grandes financeiros e dos grandes industriais. O comunismo, finalmente, debela e liquida completamente a velha classe dirigente, tanto a econômica como a da administração do Estado. O fascismo mantém em grande parte a velha classe dirigente, seja econômica, seja burocrática ou militar, procurando fazer dela, antes de tudo, uma aliada, para depois convertê-la num instrumento da própria política. Estas diferenças podem ser atenuadas ou retificadas num caso ou em outro. Em particular, pelo que toca à ideologia, deve-se observar que a ideologia nazista, embora não exija uma transformação total da estrutura econômico-social da comunidade, impõe entretanto uma transformação radical da ordem político-social: ela pretendia revolucionar a carta da Alemanha e da Europa, eliminando os hebreus e instaurando o domínio absoluto da raça superior sobre as inferiores. O fato de a ideologia nazista não ter dirigido a obra de transformação para as relações econômicas e de ter orientado parcialmente a agressividade para fora e não para dentro do corpo social não muda a circunstância de que ela tem em vista uma transformação radical da ordem político- social. Por outro lado, a ideologia comunista nem sempre foi uma doutrina coerente e uma guia coerente da ação política: precisamente na fase totalitária do regime soviético, as bruscas e arbitrárias mudanças de rumo por parte de Stalin mostram que a mesma foi em grande parte uma racionalização da conduta do ditador. Quanto à base social, observe-se que antes da Revolução os bolcheviques receberam apoio não só do proletariado mas ainda de uma parte da burguesia; e que da mesma forma os nazistas tiveram o apoio não só da pequena e da grande burguesia mas também de uma parte do proletariado urbano, se bem que em proporção reduzida em relação ao seu peso reduzido em relação à população total. Além disso, se é verdade que parte da grande finança e da grande indústria financiou e apoiou os nazistas nas fases da instauração e da consolidação do regime, da mesma forma é verdadeiro que, quando o regime entrou cm sua fase totalitária, a grande finança e a grande indústria se tornaram instrumentos da política nazista em maior grau do que esta era instrumento daquelas. Entretanto, feitas estas correções, como é justo que se faça, o resultado não muda muito. Em seu conjunto, as diferenças de base social e de ideologia acima enunciadas permanecem reais e profundas; e, na perspectiva por elas delineada, fascismo e comunismo são dois fenômenos clara e definitivamente contrapostos. Mas o que mais se deve objetar àqueles que destacam tais diferenças entre fascismo e comunismo é que elas não são um argumento pertinente contra o uso do conceito de Totalitarismo para designar tanto regimes fascistas como comunistas, ou melhor, para designar uma certa fase histórica do sistema comunista soviético e uma certa fase histórica do sistema nazista alemão. Não são um argumento pertinente as diferenças de ideologia porque, com base em ideologias de conteúdos diferentes, podemos construir praxes de domínio político substancialmente análogas. E não são um argumento pertinente as diferenças de base social porque, partindo de um ambiente econômico- social diferente e de uma composição social de sustentação de massa diferente, podemos chegar, igualmente, a praxes de domínio político substancialmente análogas. Na Alemanha de Hitler e na Rússia de Stalin verificou-se precisamente este fenômeno. Em cima de bases sociais e de ideologias diferentes criou-se uma praxe política fundamentalmente semelhante, feita de um partido monopolista, de uma ideologia de transformação da sociedade, do poder absoluto de um chefe, de um terror sem precedentes e. por conseqüência, da destruição de toda a linha estável de distinção entre aparelho político e sociedade. Se chamarmos e interpretarmos esta praxe política através do nome e do conceito de Totalitarismo, então poderemos e deveremos usar tal nome e tal conceito todas as vezes que (e só) existir a praxe correspondente, que se realize num sistema fascista ou num sistema comunista. Daí se segue que é legítimo falar de "Totalitarismo fascista" e de "Totalitarismo comunista" no sentido indicado. Mas segue-se também que é ilegítimo usar tais expressões se com elas quisermos dizer que o comunismo e o fascismo são fenômenos necessariamente totalitários por natureza. No que toca ao comunismo, em sua 1254 TOTALITARISMO complexa história, a praxe totalitária se realizou apenas no regime stalinista. Por sua vez, o fascismo não é também essencialmente totalitário, não obstante sua ideologia, que concebe a violência e a personalização do poder como princípios permanentes, se aproximar muito mais da essência do Totalitarismo. Por outro lado, as diferenças entre fascismo e comunismo produzem efeitos relevantes na própria praxe totalitária. Esta assume, nos diferentes sistemas, caracteres parcialmente diversos, em relação ao direcionamento político geral do sistema político; e adquire, além disso, nos diferentes sistemas, uma diversa dinâmica evolutiva. O objetivo político geral do comunismo é a industrialização e a modernização forçadas em vista da construção de uma sociedade "sem classes". O objetivo geral do fascismo é a instauração da supremacia absoluta e permanente da raça eleita. Por isso, nos dois tipos de sistema, o Totalitarismo está ligado, por exemplo, a uma política econômica diferente: de um lado, procede-se a uma estatização completa das atividades econômicas e, de outro, mantém-se a máxima parte da economia na esfera privada, buscando dobrá-la aos próprios fins; o Totalitarismo está ligado também a um tipo de violência diferente: em certos casos, o resultado mais característico é o campo de trabalhos forçados, expressão da violência como meio para construir uma nova ordem; em outros, o resultado mais característico é o campo de concentração, expressão da vontade de destruição pura e simples de uma raça considerada inferior. Quanto à dinâmica evolutiva diferente, podemos lembrar a distinção feita por A. J. Groth, que se baseia no diferente grau de vulnerabilidade dos regimes totalitários. Os sistemas comunistas são menos vulneráveis porque destroem a velha classe dirigente e replasmam integralmente a estrutura social. Por isso, uma vez consolidados e após criarem uma sociedade substancialmente homogênea, podem diminuir a violência de massa e a política totalitária e empregar instrumentos de Governo mais apoiados na persuasão e no consenso. Contrariamente, os sistemas fascistas sãomais vulneráveis porque deixam intactas, em larga escala, a velha classe dirigente e a mesma estrutura econômico-social. Dessa forma, eles vão provavelmente ao encontro de crises ocorrentes, provocadas pelos antagonismos que se produzem com este ou aquele grupo da velha classe dirigente, e das quais não podem sair vitoriosos, senão por meio de uma nova intensificação da violência de massa e da política totalitária. De resto, como já foi observado, a violência de massa, para o sistema nazista, é um princípio permanente de Governo, para conseguir e conservar o domínio da raça superior sobre as inferiores. Compreende-se, a partir desta perspectiva, por que o fato de as teorias clássicas do Totalitarismo ignorarem ou subestimarem de maneira drástica as profundas diferenças entre fascismo e comunismo não deixou de ter notáveis conseqüências negativas. Quanto à teoria de Friedrich e Brzezinski, esta ignorância ou subestima é um dos fatores que estão na origem da indevida extensão do conceito de Totalitarismo a todos os regimes comunistas; e da desconcertante previsão — feita em 1956 na base da tendência anterior dos "sistemas fascistas" e dos "sistemas comunistas" — de que "as ditaduras totalitárias continuarão a tornar-se cada vez mais totais, mesmo que o ritmo desta intensificação possa diminuir". No que diz respeito a Arendt, a ignorância ou subestima a que me referi é um dos fatores que explicam alguns aspectos um tanto carregados de sua interpretação do fenômeno totalitário. Para Arendt, o Totalitarismo é uma espécie de essência política inteiramente fechada em si mesma, que não é alterada pelos diversos ambientes econômico-sociais e pelo conteúdo da ideologia: a sua natureza é a transformação dos homens em feixes de reação intercambiável, uma transformação posta em movimento pela lógica deformada da ideologia e não pelo seu conteúdo. Ora, esta definição da natureza da ideologia me parece um modo de difundir uma interpretação dos efeitos de certas instituições do terror totalitário, como os campos de concentração, com o fim mesmo do domínio totalitário; e a confusão tornou-se possível, entre outras coisas, pelo fato de que Arendt vai muito além do processo da abstração e não presta atenção suficiente aos contextos e às conotações diferenciadas das diversas experiências totalitárias. Considerado sob este último ponto de vista, o Totalitarismo aparece, muito mais simplesmente, como uma tendência-limite da ação política na sociedade de massa, um certo modo extremo de fazer política, caracterizado por um grau máximo de penetração e de mobilização monopolística da sociedade, que ganha corpo na presença de determinados elementos constitutivos. O Totalitarismo, enquanto tal, assume diversos aspectos e está associado a diversos fins e diversas metas, conforme o sistema político particular no qual encarna e o relativo ambiente econômico-social. IV. O PROBLEMA DA EXTENSÃO DO CONCEITO DE TOTALITARISMO. — A crítica revisionista ataca a tendência representada por Friedrich. e traduzida na linguagem prática da política em alargar a aplicação do conceito de Totalitarismo a TOTALITARISMO 1255 todos os regimes comunistas. Contra a liceidade desta operação, os críticos procuram mostrar a heterogeneidade substancial entre o regime stalinista e os outros regimes comunistas, assim como a descontinuidade entre o regime stalinista e o regime soviético pós-stalinista. Neste sentido, a crítica revisionista dirige sua atenção para três pontos: a diversidade do papel e do peso do terror; a diversidade da personalização do poder; a atenuação da importância da ideologia e, de uma forma geral, de muitos controles típicos do domínio totalitário. Que os primeiros autores que elaboraram e aplicaram o conceito de Totalitarismo tivessem visto no terror um elemento fundamental desse conceito, não podemos pôr em dúvida. Para H. Arendt, como vimos, o terror "é a essência do Totalitarismo"; para Brzezinski sua "característica mais universal" (The permanent purge, 1956); para Merle Fainsod é "o eixo do Totalitarismo" (How Russia is ruled, 1953); para Friedrich e Brzezinski, seu "nervo vital". Segundo esta colocação inicial, o terror totalitário se diferencia do terror usado pelos velhos regimes autoritários tanto pela qualidade como pela quantidade. Ele atinge até os inimigos presumidos ou "objetivos" e outras vítimas inocentes: nesse caso, as vítimas não se tornam objeto do terror porque são "inimigos" ou "traidores", mas tornam-se "inimigos" ou "traidores" porque são objeto do terror; atinge profundamente camadas inteiras ou grupos profissionais ou grupos étnicos, e os atinge de modo contínuo e capilar: todos se sentem sob o constante controle da polícia e ninguém pode dizer-se livre do terror totalitário. Esta espécie de terror é um instrumento essencial do domínio totalitário: inibe qualquer tipo de oposição, força a adesão e a sustentação entusiástica do regime e conduz a um ponto máximo a penetração e a mobilização política da sociedade. Ora, a ação do terror totalitário — assim entendido — se encontra na Rússia stalinista dos anos 30, especialmente a partir de 1934, e depois também no período pós-guerra, através dos grandes expurgos, da liquidação de grupos sociais inteiros e dos quadros dirigentes do partido, das deportações em massa, dos campos de concentração e de trabalho forçado; e na Alemanha hitlerista, especialmente a partir de 1937- 1938, no pleno predomínio das SS sobre as demais organizações policiais e sobre o Ministério do Interior, no pogrom contra os hebreus, na deportação e na eliminação de hebreus, de "ociosos", de "anti-sociais", de doentes mentais e outros, e nos campos de concentração e de extermínio. Tudo era realizado, quer na Rússia, quer na Alemanha, através de uma densa rede de vigilância e de espionagem policial. Tal ação de terror totalitário não se encontra na Itália fascista nem nos países comunistas do Leste europeu, salvo alguns episódios isolados do período do máximo poder de Stalin. Também não se encontra na Rússia pós-stalinista, cuja diferença mais macroscópica em relação ao período precedente consiste precisamente num declínio substancial do terror em termos de quantidade e de qualidade, como demonstram muitos testemunhos de cidadãos soviéticos e segundo confirmação de numerosos estudos de observadores especializados do sistema político soviético. Esta mudança está expressa numa multiplicidade de inovações normativas e institucionais, como a abolição da comissão especial do Ministério do Interior, que tinha o poder de deportar sem processo para os campos de concentração, a abolição de um poder análogo da polícia política, a abolição dos processos secretos contra as pessoas acusadas de delitos contra o Estado, as limitações impostas à jurisdição dos tribunais militares, a redução das sanções cominadas para violações da disciplina do trabalho, a introdução de numerosas garantias processuais, e assim por diante. Mas, para além de todas estas inovações normativas e institucionais, o que menos aconteceu na Rússia pós- stalinista foi a onda de terror onipresente que pesava em todos os setores da vida social. O regime soviético permanece uma ditadura monopartidária, que recorre amplamente a meios coercitivos; mas o dinamismo específico do terror totalitário é uma lembrança do passado. A conclusão que é preciso tirar destas considerações é a mesma que desde o início tirou H. Arendt: a limitação do campo de aplicação do conceito de Totalitarismo apenas para os regimes de Hitler na Alemanha e de Stalin na Rússia. Vários autores preferiram, por sua vez, modificar o conceito de Totalitarismo no sentido de uma atenuação radical do papel do terror, para poder estender sua aplicaçãoa todos os regimes comunistas e à Rússia pós-stalinista. M. Fainsod, que havia vislumbrado no terror o "ponto de apoio" do Totalitarismo, falou mais tarde de um "Totalitarismo racionalizado", no qual o terror tem simplesmente "um certo lugar" (How Russia is ruled, 2.' ed., 1963). Friedrich, que havia definido o terror como o "nervo vital do terrorismo", afirmou mais: que havia supervalorizado o fenômeno que no "Totalitarismo amadurecido" se reduz à presença de um "terror psíquico" e de "um consenso geral" (Totalitarian dictatorship and autocracy, 2.ª ed., 1965). E. Brzezinski, que identificara no terror a "característica mais universal "do Totalitarismo", abandonou mais tarde 1256 TOTALITARISMO essa característica falando de "um Totalitarismo voluntário" (Ideology and power in Soviet Union 1962). Mas estas correções de rumos, esclarece a crítica revisionista, servem apenas para justificar a incorreta postura de fazer alinhar sob o conceito comum de Totalitarismo tipos de regimes políticos que são visivelmente diferentes em relação à função do terror, e através desse processo em relação ao grau de penetração e de mobilização política da sociedade, à qual a noção de Totalitarismo se refere de maneira particular. Um outro ponto acentuado é o de que os dois protótipos de regime totalitário, que são a Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin, se diferenciam dos outros sistemas, que se pretendem atrelar ao conceito de Totalitarismo, por uma personalização do poder levada até os limites mais extremos. Deveremos lembrar que Friedrich e Brzezinski não atribuem uma importância estrutural à personalização do poder. Por seu lado, Arendt, que coloca exatamente a Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin como pontos de referência, sublinha várias vezes e de modo claro o papel crucial do ditador; mas depois, quase a despeito de suas próprias afirmações, não faz disso um elemento constitutivo do conceito de Totalitarismo. Ele procura imputar toda a brutalidade do domínio totalitário à lógica deformada da ideologia: uma interpretação sobre a qual pesa sua orientação conservadora e veladamente tradicionalista e sua hostilidade para com toda e qualquer ideologia política. Os dados de fato que temos à disposição, tanto para a Alemanha de Hitler quanto para a Rússia de Stalin, convencem-nos, bem ao contrário, de que o terror totalitário foi desligado não apenas de uma ideologia de transformação radical da sociedade mas também, e de forma determinante, da ação do poder pessoal, ou seja, da estratégia adotada pelo ditador para conservar seu poder e dos traços característicos de sua personalidade. Esta tese, segundo a qual o poder pessoal do ditador é uma condição essencial para o funcionamento do domínio totalitário, foi fortemente defendida por Robert C. Tucker. Num ensaio publicado em 1961, ele pôs à luz as deficiências do conceito clássico de Totalitarismo como instrumento de análise comparada; mas, por um lado. não determina os aspectos comuns que os regimes totalitários dividem com outros regimes e, por outro, não especifica de modo satisfatório os mesmos aspectos que distinguem os regimes totalitários. Quanto ao primeiro ponto, Tucker propôs a categoria geral dos regimes revolucionários de massa e monopartidários. caracterizados por um movimento revolucionário conseguido através de uma mobilização mais ou menos intensa das massas e dirigido por um partido único: fazem parte desta categoria, tanto os sistemas monopartidários comunistas, como os sistemas fascistas e nacionalistas. Quanto ao segundo ponto, Tucker se deteve na análise da presença de um líder pessoal que se liberta do controle da oligarquia do partido e prefere governar em grande parte com a polícia secreta e com o terror total e permanente, para assegurar uma obediência absoluta às suas ordens, tanto por parte do homem comum, como por parte dos mais altos dignatários do regime. Esta característica é comum — dizia Tucker — aos "regimes fascistas" e à ditadura stalinista (mas não aos demais regimes comunistas, incluindo a ditadura soviética pós-stalinista e a pré-stalinista). Voltando ao tema, num ensaio de 1965, Tucker restringiu o âmbito dos regimes totalitários apenas à Alemanha do tempo de Hitler e à Rússia de Stalin, defendendo a opinião de que o maior defeito das teorias clássicas do Totalitarismo está em atribuir exclusivamente ao fanatismo ideológico todo o dinamismo do poder e do terror totalitário, com a conseqüência de esquecer ou minimizar de forma drástica a incidência do fator pessoal, representado pelo ditador. Tal incidência está associada, não apenas ao fato de que Hitler e Stalin eram autocratas absolutos que detinham uma soma de poder sem precedentes na história, mas ainda com alguns traços comuns (paranóicos) da sua personalidade, que constituíram um forte impulso que motivou seu comportamento de ditadores totalitários. Com base nos fatos que conhecemos, concluía Tucker, não se pode deixar de reconhecer que a personalização do poder e portanto a personalidade do chefe é um dos componentes regulares e constitutivos da "síndrome totalitária". Recentemente, a pesquisa sobre o papel crucial da personalização do poder no domínio totalitário se desenvolveu. Leonard Schapiro, que é mais um defensor do que um crítico do conceito de Totalitarismo, acha que a primeira e a mais destacada característica do fenômeno seja exatamente a presença de um chefe. Tal presença é um fator mais importante do que a ideologia, uma vez que tanto o conteúdo quanto a aplicação desta tem no chefe seu árbitro exclusivo; é também mais importante do que o partido, na medida cm que o chefe procura subordinar este à sua vontade, e, de uma maneira geral, mais importante do que qualquer outro fator e por isso mais determinante (Schapiro, 1969). Também, Hannah Arendt. na introdução à terceira edição de seu livro (1966), sentiu a necessidade de chamar novamente a atenção, de maneira mais pronunciada, sobre o papel do ditador TOTALITARISMO 1257 totalitário, afirmando entre outras coisas que o regime totalitário deixou de existir na Rússia com a morte de Stalin, assim como deixou de existir na Alemanha com a morte de Hitler. "Não foi o fim da guerra, mas a morte de Stalin, oito anos depois, que foi decisivo. Como pode ser observado olhando as coisas em retrospectiva, esta morte não foi simplesmente seguida por uma crise de sucessão e por um degelo temporário, mas por um autêntico e inequívoco processo de destotalitarização". No que diz respeito à mudança do regime soviético desde os tempos da ditadura totalitária de Stalin até hoje, é particularmente pertinente a distinção feita por Samuel P. Huntington (que não releva o elemento terror) entre sistemas monopartidários revolucionários e sistemas monopartidários estabilizados. Esta distinção constitui a terceira perspectiva sob a qual pode ser considerado, em sentido revisionista, o problema da extensão do conceito de Totalitarismo. Na verdade, dos sistemas monopartidários revolucionários, que tendem a transformar a sociedade e impõem por conseqüência uma politização mais ou menos avançada da própria sociedade, fazem parte os próprios regimes totalitários (especialmente os de tipo comunista), ainda que Huntington não enfrente a questão da sua individuação específica. O que interessa a este cientista político é descrever a evolução e a mudança dos regimes monopartidários revolucionários em geral. Através de um complexo processo de transformação, consolidação e adaptação, eles se convertem em sistemas claramente diferentes: os regimes monopartidários estabilizados, nos quais não apenas existe a tendência a dar menor importância à personalização do poder, mas também se atenua o problemada ideologia e se dá apoio significativo aos mesmos controles políticos sobre uma sociedade que se articula em atividades cada vez mais complexas e diversificadas. Com o processo de transformação, tem lugar a destruição da velha ordem e a sua substituição por novas instituições políticas e por novos modelos sociais. Uma vez que o principal do processo de transformação foi posto cm ato, a concentração sobre a ideologia e sobre a liderança carismática torna-se disfuncional para a manutenção do sistema, o qual tende por isso a consolidar-se com a instauração da supremacia do partido — em lugar do chefe em pessoa — como fonte da legitimidade e do poder. Por outro lado, a criação de uma sociedade relativamente homogênea leva consigo a emergência de novas forças sociais (uma classe técnico-empresarial, de grupos de interesse, uma inteligência dotada de espírito de independência), que obrigam o partido a sujeitar-se a um processo de adaptação, com o qual redefine o próprio papel na sociedade. Por fim, o sistema monopartidário estabilizado, que é o resultado do processo de transformação, consolidação e adaptação, difere do sistema monopartidário revolucionário pelas seguintes razões: a ideologia é menos importante como elemento plasmador dos fins e das decisões dos chefes, enquanto que as considerações pragmáticas assumem maior valor; a liderança política tende a ser oligárquica, burocrática e institucionalizada, em vez de ser pessoal, carismática e autocrática; as fontes de iniciativa estão localizadas entre as elites tecnocráticas e empresariais em vez de se concentrarem apenas na elite do partido, transformando-se o aparelho do partido em mediador entre a estabilidade e a mudança; surge uma pluralidade de importantes grupos de interesse e o aparelho partidário torna-se o agregador e o regulador de interesses em competição; na ribalta aparece uma inteligência dotada de espírito de independência que se ocupa da crítica ao sistema; a participação popular não é mais o produto exclusivo da mobilização do partido, mas também da competição eleitoral no seio do mesmo partido. Este modelo do sistema monopartidário estabilizado, que pode aplicar-se aos sistemas comunistas do Leste europeu e em muitos dos seus aspectos característicos também ao atual regime político da União Soviética, é substancialmente diferente do sistema monopartidário revolucionário. Em certos casos, as diferenças que existem entre estes tipos de regime, afirma Huntington, podem ser distintas das que dividem um regime monopartidário revolucionário do velho regime czarista tradicional. A conclusão é evidente: não se pode aplicar aos regimes monopartidários estabilizados as categorias próprias para interpretar os regimes monopartidários revolucionários ou, e ainda com maior razão, as categorias adequadas para interpretar os sistemas especificamente revolucionários e monopartidários, que são os regimes totalitários. V. CONCLUSÃO. — Radicalizando as críticas a que a noção foi submetida, alguns autores defendem que Totalitarismo é um epíteto emocional da luta ideológica e política em vez de ser um conceito descritivo da ciência; que teve essencialmente a função de justificar a política americana durante a guerra fria e que convém por isso eliminá-lo do léxico da análise política. Esta acusação não é, quanto ao seu conteúdo, fora de propósito, mas ultrapassa decisivamente o signo Por uma parte, é difícil negar que a noção de Totalitarismo tenha sido usada para 1258 TOTALITARISMO importantes e inflexíveis usos ideológicos no período da guerra fria. Mas, por outra parte, o que estava em jogo nesta instrumentalização ideológica era a extensão do campo de aplicação do conceito de Totalitarismo, não o conceito em si mesmo. Alargar o nome de Totalitarismo a todos os sistemas comunistas teve o significado político-ideológico de canalizar contra o adversário a deprecação e a hostilidade que a palavra leva em si, porque designa particularmente, dentro de uma significação já consolidada, particulares experiências políticas do passado recente que foram objeto de uma condenação quase unânime. Em si mesmo, entretanto, o conceito de Totalitarismo, desde que seja reconduzido à sua função de representar aquelas experiências políticas, e apenas essas, não causa nenhuma deformação ideológica, mas constitui um importante instrumento descritivo com todas as condições regulares de fazer parte do vocabulário da análise política. Ele designa, na verdade, um certo modo extremo de fazer política na sociedade de massa, bem real e claramente identificável, que se manifestou em nosso século com conotações de novidade e de grande relevância histórica. Retomando e resumindo os pontos mais eficazes das teorias e das revisões críticas do Totalitarismo expostas atrás, acredito que o fenômeno possa ser descrito sinteticamente com base em sua natureza específica, nos elementos constitutivos que contribuem para o formar e nas condições que o tornaram possível em nosso tempo. A natureza específica do Totalitarismo deve ser identificada dentro de características amplamente reconhecidas pela pesquisa e que são denotadas pela própria palavra: a penetração e a mobilização total do corpo social com a destruição de toda linha estável de distinção entre o aparelho político e a sociedade. É importante sublinhar a ligação entre o grau extremo da penetração e o grau extremo da mobilização, uma vez que a ação totalitária penetra a sociedade até em suas células mais secretas, exatamente na medida em que a envolve inteiramente num movimento político permanente. Os elementos constitutivos do Totalitarismo são a ideologia, o partido único, o ditador e o terror. A ideologia totalitária dá uma explicação indiscutível do curso histórico, uma crítica radical da situação existente e uma orientação para a sua transformação também radical. E dirigindo a ação para um escopo substantivo (a supremacia da raça eleita ou a sociedade comunista) em vez de a dirigir para instituições ou para formas jurídicas, justifica-se um movimento contínuo para aquele fim e para a destruição ou a instrumentalização de qualquer instituição e do próprio ordenamento jurídico. O partido único, animado pela ideologia, contrapõe-se e se sobrepõe à organização do Estado, derrubando sua autoridade e o comportamento regular e previsível; politiciza também os mais diferentes grupos e as mais diversas atividades sociais, minando- lhes a lealdade e os critérios de comportamento para os subordinar aos princípios e aos imperativos ideológicos. O ditador totalitário exerce um poder absoluto sobre a organização do regime, fazendo flutuar as hierarquias a seu bel-prazer, e sobre a ideologia de cuja interpretação e aplicação ele é dono exclusivo, garantindo e intensificando ao máximo a imprevisibilidade e o movimento da ação totalitária, através de sua vontade arbitrária, de suas táticas móveis para manter seu poder pessoal e do impacto dos traços característicos de sua personalidade. O terror totalitário, que é derivado conjuntamente do movimento de transformação imposto pela ideologia e da lógica da personalização do poder, inibe toda oposição e as críticas as mais inofensivas e gera coercitivamente a adesão e a sustentação ativa das massas ao regime e à pessoa do líder. As condições que tornaram possível o Totalitarismo são a formação da sociedade industrial de massa, a persistência de uma arena mundial dividida e o desenvolvimento da tecnologia moderna. De um lado, o impacto da industrialização nas grandes sociedades modernas, no quadro de uma arena mundial insegura e ameaçadora, permite e favorece a combinação de penetração e de mobilização total do corpo social. De outro lado, o impacto do desenvolvimento tecnológicono que toca aos instrumentos da violência, os meios de comunicação e as técnicas organizacionais de vigilância e de controle permitem um grau enorme de penetração-mobilização monopólica da sociedade sem precedentes na história. A exagerada dinâmica da política totalitária realizou-se até agora nas fases de desenvolvimento mais intenso do domínio de Stalin na Rússia e de Hitler na Alemanha. A este propósito convém lembrar dois pontos: o primeiro, que deriva diretamente da afirmação anterior, é o de que o conceito de Totalitarismo não pode aplicar-se a todos os regimes comunistas nem a todos os regimes fascistas; o segundo é que o fato de o Totalitarismo ter-se desenvolvido dentro de um sistema fascista ou comunista não autoriza a concluir uma similaridade fundamental entre fascismo e comunismo. Quanto ao segundo ponto, expus anteriormente as profundas diferenças de ideologia, de base social, de orientação política e de dinâmica evolutiva que fazem do fascismo e do comunismo dois fenômenos políticos radicalmente diferentes e contrapostos, com o corolário TOTALITARISMO 1259 de que a emergência da política totalitária em determinados períodos da história da Rússia soviética e da Alemanha nazista teve um fundo de condições econômico-sociais e uma finalização concomitante do impulso mobilizador da sociedade, que eram inteiramente diversos. Quanto ao primeiro ponto, expusemos já as muitas razões que impedem estender o conceito de Totalitarismo a todos os sistemas comunistas, incluindo as ditaduras soviéticas pré e pós-stalinistas. Algo mais, entretanto, importa acrescentar para justificar a afirmação de que não era totalitário nem sequer o fascismo italiano, que por alguns era considerado o terceiro tipo de Totalitarismo e do qual nasceu o próprio nome de Totalitarismo. Na Itália fascista, a penetração e a mobilização da sociedade nunca se comparou àquela que os regimes hitlerista ou stalinista conseguiram, nem também contou com os elementos constitutivos do Totalitarismo em sua dimensão específica. A ideologia fascista teve mais uma função expressiva do sentimento de comunhão dos membros do partido do que uma função instrumental de guia persistente da ação política; e, faltando-lhe também o componente da supremacia de uma raça eleita, não teve em vista uma transformação radical da ordem social. O partido fascista foi uma organização relativamente fraca. Diante dele, a burocracia estatal, a magistratura e o exército conservaram grande parte de sua autonomia. Sua ação de doutrinação ideológica foi limitada e fez seus pactos por exemplo com as poderosas organizações católicas. O terror totalitário fracassou quase que totalmente. Entretanto, esteve presente nele a personalização do poder, mesmo sem ter atingido o ponto de derrubar a instituição monárquica; mas, precisamente pela falta dos demais elementos característicos do Totalitarismo, Mussolini não conseguiu jamais reunir em suas mãos um poder comparável com o de Hitler ou de Stalin. Puxando os fios destas considerações que fazemos a título de conclusão, podemos fixar sinteticamente as seguintes proposições sobre a validade e a utilidade do conceito de Totalitarismo: ele designa um certo modo extremo de fazer política, antecipando-se a uma certa organização institucional ou a um certo regime; este modo extremo de fazer política, que penetra e mobiliza uma sociedade inteira ao mesmo tempo que lhe destrói a autonomia, encarnou apenas cm dois regimes políticos temporalmente circunscritos; por ambas as razões, o conceito de Totalitarismo tem um valor muito limitado na análise comparada dos sistemas políticos; entretanto, ele é um conceito importante que não podemos nem de- vemos minimizar, porque denota uma experiência política real, nova e de grande relevo que deixou uma marca indelével na história e na consciência dos homens do século XX. BIBLIOGRAFIA — S. NEUMAN, Permanent revolution. Praeger. New York 1965"; H. ARENDT. Origini del totalitarismo (1951). Comunità. 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As origens do termo, com toda a probabilidade, devem remontar a um discurso eleitoral pronunciado por Agostinho Depretis em outubro de 1876, quando já era chefe reconhecido do partido de esquerda e quando havia pouco tempo que chegara à Presidência dos Ministros após a chamada "revolução parlamentar", ou seja, após a substituição da direita histórica pela esquerda na liderança do país, que governou ininterruptamente desde a Unificação em diante. No texto
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