Buscar

FLUSSER Vilem Natural mente

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 82 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 82 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 82 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

.,.«N
UJ
~
::>
~z
UJ
O
O
O«u-
u..
~NATURAL:MENTE
V)
O«
Vl
O
Vl
Vl
UJu«
Vl
O
,~ /\N~E
A ColeçãoComunicaçõespretendemostrato amploesedutorlequede
horizonteseperpectivascríticasqueseabreparaumajovemciênciaque
nãoéapenasciênciasocial,masquetambémsenutreetransitanasciências
daculturabemcomonasciênciasdavida.Afinal, apenassobrevivemos,
comoindivíduo e comoespécie,secompartilhamostarefas,funçõese
fruições,valedizer,sedesenvolvemosumaeficientecomunicaçãoquenos
vinculeaoutraspessoas,aoutrosespaços,aoutrostempos,eatéaoutras
dimensõesdenossasubjetividade.
Conheçaostítulosdestacoleçãonofinaldolivro.
COLEÇÃO COMUNICAÇÕES
Direção: Norval Baitellojunior
/\N~
DadosInternacionaisdeCatalogaçãonaPublicação- CIP
F668 Flusser,Vilém (1920- 1991).
Natural:mente:váriosacessosaosignificadodenatureza.!VilémFlusser.-
SãoPaulo:Annablume,2011.(ColeçãoComunicaçóes).
164p.: 14x21 cm.
ISBN 978-85-391-0260-0
Sumário
1.Filosofia.2.TeoriadoConhecimento.3.Natureza.L Título. 11.Série.
lH. Váriosacessosaosigníficadodenatureza.
CDU 165
CD]) 121
CaralogaçãoelaboradaFor WandaLuciaSchmidr- CRB-8-1922
Natural:mente
Váriosacessosaosignificadodenatureza
©Edirh Flusser
1"edição,julho de2011
ANNABLUME edirora.comunicação
RuaM.M.D.C., 217.Buranrã
05510-021. SãoPaulo. SP .Brasil
Tel.eFax.(011)3812-6764- Televendas3031-1754
www.annablume.com.br
ConselhoEditorial
EduardoPenudaCafLizal
Norval BaiteIlojunior
Maria Odila LeitedaSilvaDias
CeliaMaria Marinho deAzevedo
GustavoBernardoKrause
Maria deLourdesSe_keíf(in memoriam)
PedroRoberroJambi
LucréciaD'AlessioFerrara
Caminhos(umaespéciedeIntrodução) 07
Vales
19
Pássaros
29
Chuva
39
O cedrono parque
45
Vacas
53
Grama
59
Dedos
67
Alua
75
Montanhas
85
A falsaprimavera
95
Prados
103
IvanAntunes
Vínícius Viana
Juliana Biggi
CarlosClémen
Vinícius Viana
Coordenaçãodeprodução:
Diagramação:
Revisão:
Capa:
Finalização:
Ventos
Maravilhas
113
121
Caminhos
(UmaespéciedeIntrodução)
Botões 129
Neblina 137
Natural:mente(umaespéciedeconclusão) 147
Duasexperiênciasestãoconfluindoparaignoraro
redemoinhodasreflexõesaseremrelatadasemseguida.
A primeiraéaúltimapassagemdo autorpeloPassode
Fuornqueuneo valedoEnghadincomarededevales
alto-adigianosnoencontrodasfronteirasdaItália,Áus-
triaeSuíça.A segundaéavisitarecentequeo autorfez
aosmeniresdeCarnacnaBretanha.Antesdepermitiràs
duasexperiênciasconfluírem,oautordevedescrevê-Ias.
O PassodeFuornéestradaasfaltadanãomuitolar-
ga,pornãosermuitofrequentada,já quecomunicare-
giõespoucohabitadas.É, no entanto,mantidolivreda
neveduranteo invernotodo,quandoestradasmaisim-
portantesestãofechadasaotrânsito,porquenãoexiste
ligaçãoalternativaentreasregiõesqueune.Trata-sede
estradalateraldagrandeartériaquepartedeCoiraem
direçãoaMilãopelopassodeMaloiaequeformauma
8 Natura[;menre VIJ.,ÉM FLVSSER 9
daspassagensnorte-suldocentroeuropeu.Saidaquelaar-
tériaemZernez,novaledoEnghadin(nãomuitolonge
deSãoMoritzdosmilionáriosamericanosedosxeiques
petrolíferos,edeSilsMariadoNietzschezaratustriano),
sobepeloParqueNacionaldoEnghadinatéaalturade
uns2.300metros,descepelovaledoVanostadasaldeias
ladinasecastelosgadoselangobardosepelovaledoAlto
Adige,nosquaisseconfundecomaestradaqueDrusus
construiuparavencerosréticose alcança,emBolzano
(aclássica"PonsDrusi"),aauto-estradaMunique-Roma
queé,por suavez,aVia FlaminiapelaqualGermânico
penetrouemnomedeRomanasflorestasteutônicas,e
pelaqual,emsentidocontrário,o ImperadorHenrique
viajou,penitente,parasubmeter,emCanossa,acoroado
SantoImpériogermânicoàautoridadedoPaparomano.
Ao ligar,assim,transversalmente,duasartériasimportan-
tes,aestradadoPassodeFuorn(nomeladinoquesig-
nifica,obviamente,PassagemdoForno)pareceserobra
recentedeengenharia,destinadaadescarregarpartedo
trânsitopesadodecaminhõesquerolam,emcadeiainin-
terrupta,entreo centroeuropeue a penínsulaitaliana.
Obradeengenhariarecenteeousadaqueexigiuaaplica-
çãodosmétodosmaisavançadosdatecnologia.
O autorviajouporelarepetidasvezesesempread-
mirounãoapenasasmajestosasvistasdecumesegeleiras,
mastambémabelezadasuascurvas.Destarte,o espírito
humano,munidodosinstrumentosdaciência,conseguiu
literalmenteperfurarossegredosdanaturezae abri-Ias
à contemplação,econseguiufazê-Ianaformadebeleza.
Atéqueo autorleu,emumlivrodepaleoantropologia,
quePassodeFuornfoi,duranteincontadosmilênios,o
caminhodasmanadasdecavalosselvagens,dogado"Ur"
edasrenas,perseguidaspeloscaçadorespaleolíticos,nos-
sosantepassados.O traçadodaestradaatualfoi"constru-
ído"portaismanadas.O projetodaestradaédoscavalos,
dostouros,dasrenas.Apenasasuaexecuçãoatualépro-
dutodetrabalhohumano,comodevemtersidoincontá-
veisexecuçõesanteriores.Seprojetoeideiaforamconsi-
deradosconceitosparentes,quemteveaideiadefazera
estradaforamosanimaisdatundra.Foramelesosqueou-
saram.E nós,queviajamosdeautomóveldeBolzanopara
Zarnez,estamosapenasseguindoosseuspassos,exata-
mentecomoofaziamoscaçadores,nossosantepassados.
~em viajaparaa Bretanha,comoo fezo autor
nasemanapassada,penetraregiãomisteriosapor mul-
tiplicidadederazões:porcausadecuriosasconstruções,
chamadas"calvários",queacaracterizam;porcausado
Mont-Saint-Michel,essemonstromonástico,esseMon-
teAthosdoOcidente;porcausadaslendaspseudocris-
tãsdosbretõesqueparalásemudaram,depoisdeterem
sidoexpulsosda"grande"Bretanhapelosanglo-saxões,
osquaiscontinuam"bretonando"atéhoje,quandosua
línguaeculturadesapareceramnapátriainglesahámui-
to;porcausadaquelecuriosíssimopovocelta,chamado
"opovodomar=armoricano",quejamaisfoirealmente
domadonempelosromanos,nempelosgauleses,nempe-
Iasbretões,nempelosfrancos,nem,diga-sedepassagem,
pelosburguesesparisiensesqueestãoconstruindoseus
10 Natural:mcnte VILf:M FLUSSER 11
edifíciosdeapartamentosnaspraias"armoricanas".(Mas
tambémestãosendodomados,comoo estásendoo resto
do Ocidente,pelaculturademassa,demodoquepassam,
atualmente,de "armoricanos"paraamericanos.)No en~
tanto,aregiãoémisteriosaprincipalmentepor causados
povosqueantecederamosarmoricanos,edosquaispou-
co ou nadasesabe,a não serqueconstruíram(seé que
"construir"é o termocerto),entreosanos6000e4000
antesdeCristo, aquelesconjuntosincríveisdepedrasem
Carnace,do outro ladodo Canal,emStonehenge.~e
genteeraessa,quemaisde2000anosantesdaconstrução
daprimeirapirâmideegípcialevantavaabsurdamentemi-
lharesdepedraspontudaseirregulares,centenasdasquais
pesamum múltiplo do pesodo Obeliscona PlacedeLa
Concorde,cujaereçãoexigiuo esforçomáximoda téc-
nica iluminista,e todo o ardor romanticamenterevolu-
cionáriodaRepúblicaFrancesa?O autornãoencontrou,
atéagora,naliteraturaconsultada,respostasatisfatóriaa
tal pergunta.Encol1trouapenasinterpretaçõesfantásti-
casdo tipo "O despertardosmágicos",ou interpretações
banaisdo tipo freudiano"phallus".Tais interpretaçõese
outrassemelhantesnãosatisfazem.Porquediantedetoda
obrahumanasurgeaperguntado motivoedafinalidade
daobra.Já queé isto quedistingueculturade natureza:
asobrasdaculturatêmsignificado,sãodecodificáveis.Os
meniresde Carnac sãoabsurdamentemisteriosos,por-
queperdemosa chavedo códigoquelhesconfereo seu
significado.Não sabemosmaispor queeparaqueforam
elevados,esomosobrigadosa"interpretá-Ios",emvezde
d "1'1 "po ermos e-os .
Os milharesde meniresquecobremaplanícieem
tornodaaldeiadepescadoresecultivadoresdeostras"be-
lonnes",chamadaCarnac (nomequesugeremisteriosa-
menteo Egito,e,por seusufixo"-ac",passadoqueaponta
alémdaIdadedo Bronze),parecem,àprimeiravista,um
amontoadode ruínasespalhadascaoticamente,comose
um edifíciodeproporçõestransumanastivesseruído em
terremoto.Mas,poucoapouco,o observadorvaidesco-
brindoqueo quepareceseracasocaóticoé,narealidade,
ordemultracomplexa.As pedrasnãoparecem,sobobser-
vaçãomaismeticulosa,umaespéciede estátuas"objets
trouvés"ou"minimalart"deproporçõesgigantescas,maselementosdecercasinvisíveisoudesaparecidas.E taissu-
percercas,quandomentalmentereconstituídas,passama
delimitarcentenasdecaminhosquesecruzamerecruzam
em desenhogeométricoaltamentesofisticado.A visão
mentalfazsurgirumconjuntodeavenidasealamedasco-
lossaisdentrodo qualo menirindividualpassaaserape-
naselementodetraçado,apesardesuasproporçõesgigan-
tescas.E seasprópriasrochassetransformamemanões
emtallabirinto,quedizerdenóshomens?Passamosaser
formigasquecorrem,'desorientadas,dentrode avenidas
ealamedasdestinadasaseresdeordemdegrandezadife-
rente,queprocuramapalpar,comsuasantenasmentais,
osmeniresindividuaisa fim dedescobriremquaisos se-
resqueoutroracaminhavampelasavenidas.Semdúvida:
osmeniresforamcolocadosnosseusdevidoslugarespor
gentecomonós,emboracomesforçoe métodosdificil-
mente imagináveis.Mas o projeto da construçãonão
podemuito bemseter originadona mentedessagente.
12 Natural:mentc VILÉM FLUSSER 13
A construçãonãopodeterservidoa nenhumanecessi-
dadesua.Tal projetodevetertidoorigemdiferente,ter
sido"inspirado"dealgumamaneiranamentedoscons-
trutores.Ao construíremos"alinhamentos"deCarnac,
ospovosignorados,habitantesdaBretanhapré-egípcia,
devemterobedecidoaprojetosporelesprópriosignora-
dos,afimdeabriremcaminhoscomfinalidadeignorada.
As duasexperiênciasrelatadasconfluemnumpon-
to:o do projetodecaminhos.E asreflexõessepõema
giraremtornodetalpontoemcírculosrapidamentecen-
trífugos,jáqueostermos"projeto"e"caminho"sãopre-
nhesdesignificado.Tal fugadocentropode,noentanto,
serdisciplinada,seo pensamentoseagarraraumúnico
aspecto,porassimdizerconcreto,doproblemaquesepõe
quandoasduasexperiênciasconfluem- o problemade
osprojetosdoscaminhoshumanosnãoseremnecessaria-
mentehumanos.No casodo PassodeFuorn,o projeto
parecetersidopré-humanoe,nocasodoalinhamentodo
Carnac,parecetersidoextra-humano.Seo pensamen-
to seagarraraesteaspecto,torna-sepossíveladistinção
entredois tiposde caminho:os projetados,traçados,
imaginados,programadospordeliberaçãoclara,distinta
econsciente,eosoutros.Exemplosdoprimeirotipose-
riamo EixoMonumentaldeBrasíliaeaTransamazôni-
ca,eexemplosdosegundo,o PassodeFuorneCamac.
Taldistinçãopodecontribuirparaoaprofundamentoda
compreensãodadialéticaentrenaturezaecultura.
Somostentadosaafirmarqueadiferençaentreca-
minhosconscientementedeliberadoseosoutrossedeve
àsuaidade;oscaminhosantigos,ospré-históricos,seriam
aquelescujosplanoseprojetoscaíramrioesquecimento
e,por isso,parecemanós,observadorestardios,nãote-
remsidodeliberados.Osfenômenosnãoconfirmam,no
entanto,talafirmativa.Os caminhosdosaledoâmbar
quecruzamaEuropasãoantiquíssimos,erevelam,noen-
tanto,projetosdeliberados.E oPassodeFuoméumadas
maisrecentespassagensalpinas.~erer, pois,afirmarque
quantomaisantigoumcaminho,tantomenosartificial
e,portanto,tantomais"natural"será,nãosesustenta.A
naturalidadeouartificialidadedeumcaminhonãoéfun-
çãodasuaidade,nãopodesê-Io,já queahistórianãoé
simplesmenteprocessodeartificializaçãocrescente,mas
processoqueretomaperiodicamenteàsfontesnaturais
dasquaisbrota.Outratentativadeexplicaradiferença
deveserensaiada.
Talvezesta:osquatroexemplosdecaminhos,suge-
ridosnesteensaio,podemserreagrupados,tendoporcri-
térionãoseuprojeto,masafunçãoàqualservem.O pas-
sodeFuorneaTransamazônicaservemaotransportede
mercadoriasedepessoas;Camaceo EixoMonumental
servemcomosímbolos,transportammensagens.É claro,
ocritérionãoéexclusivista.O EixoMonumentalé,tam-
bém,canalpeloqualfuncionáriosdosdiversosMinisté-
riossedirigemaolocaldetrabalho,easalamedasdeCar-
nacdevemtertambémservidodeestradasaos"druidas".
E oPassodeFuorneaTransamazônicasãotambémsím-
bolosdealgo(oprimeiro,talvez,doMercadoComum,
asegunda,certamente,doBrasilGrande).No entanto,a
14 Natural.:mente VILÉM FLUSSER 15
funçãosimbólicapredominanumdosdoispares,eafun-
çãoeconômicanooutro,pois,separtirmosdocritérioda
função,adiferençaentrecaminhosdeliberadamentepro-
jetadoseosoutrossetornamaisclara.
O PassodeFuoméestradamuitomaistecnicamen-
teelaboradaqueaTransamazônica,aqualnãopassa,em
largostrechos,decaminhosdeterra.Nestesentido,o
PassodeFuomémais"artificial",mais"cultura"eme-
nos"natureza".No entanto,aTransamazônicaseimpõe
muitomaisàpaisagemqueatravessa,avançanãoapenas
nela,mascontraela.Devoraafloresta,enquantoo Passo
deFuomasalienta.Nestesentido,aTransamazônicaé
muitomaisartificialecultural:representamuitomaisa
vitóriadadeliberaçãohumanasobreascondiçõesnatu-
raisimpostasaohomem.O códigodoqualo EixoMo-
numentalparticipaenquantosímbolo(aviãoquedecola
rumoaumfuturoesplêndido,Alvorada,BrasilGrande,
etc.)émuitomaisdenotativo,claroedistintoqueo có-
digodoqualparticipaCamac,enãoapenasporquedele
perdemosa chave.O códigode Camacdeveter sido
sempreobscuroe altamenteconotativo.A mensagem
doEixoMonumentalexige,pois,leituradiferentedade
Carnac:maisintelectualqueintuitiva.Nestesentido,o
EixoMonumentalémuitomaisartificialeculturalque
Carnac:representamuitomaisavontadehumanadedar
sentidoaomundo,demaneiraqueaartificialidadedeum
caminhoparecenãodependerdasuaelaboração,nemda
suafunção,masdo climaexistencialqueo cerca.Pelos
caminhos"artificiais","culturais",oshomenscaminham
altivosrumoaumdestinoqueelesprópriosprojetaram.
Peloscaminhosmisteriosos,"naturais",oshomenscami-
nhamseguindoospassosdeseresignoradosouvagamen-
teintuídos,rumoaumdestinoignoradoouvagamente
intuído.Ou,comoemCamac,semrumoaparente.E já
queháestesdoistiposdecaminho,hátambémdoistipos
de"homoviator".
No entanto,taldistinçãoentrecaminhos"naturais"
e "artificiais"sugere,à primeiravista,conceitointeira-
menteinsatisfatóriode"arte"ede"cultura"."Cultura"
seria,deacordocomtalcritério,aimposiçãodeliberada
deumsignificadohumanoaoconjuntoinsignificantede
"natureza",e "arte"seriao métodopeloqualo espírito
humanoseimpõesobreanatureza.Emboramuitospos-
samefetivamenteesposartalconceito,éeleinteiramente
insatisfatório,eacontemplaçãodoPassodeFuomede
Carnaco prova.Fossesatisfatórioo conceito,aTransa-
mazônicaseriaprogressoculturalsobreoPassodeFuorn,
eoEixoMonumentalseriaobradeartemaissignificativa
queCamac,porquenaTransamazônicaenoEixoMo-
numentalo espírítohumanoseimpõemaisnitidamente
sobreanaturezadasGeraisedaFloresta.Narealidade,o
PassodeFuomseapresentacomoobradearteaopropor-
cionarvivênciasfortes(aorevelar"visõesdarealidade"),
eCarnacseapresentacomotestemunhodeumacultura
perdidaeesquecida,mastãosignificantee"válida"quan-
to o éanossa.Portanto,caminhosantinaturaisnãosão
necessaríamentefrutosdeumaartemais"evoluída"ecul-
turanãoénecessariamenteantinatureza.
16 Natural:mente VILÉM FLVSSER 17
Os doistiposdecaminhosugerem,pelocontrário,
quehádoistiposdecultura,cadaqualaplicandoartedife-
rente.O primeirotipodeculturaseriaprodutodoesfor-
çodeelaborarefazerresplandecersempremaisaessência
danatureza,esuaarteseriaométodopeloqualtalessên-
ciaérevelada.O PassodeFuorneCarnacseriamobras
dessetipo decultura.O segundotipodeculturaseria,
efetivamente,ptodutodo esforçodeliberadode impor
projetoshumanossobreanaturezaedefazerresplande-
cersempremaisaessênciadoespíritohumano,esuaarte
seriao métodopeloqualtalessênciaérevelada.A Tran-
samazônicaeoEixoMonumentalseriamobrasdessetipo
decultura.No entanto,talesquematizaçãosimplificao
problema.Provavelmente,osdoistiposdeculturaearte
nãoexistem,nemjamaisexistiram,emestadopuro.E que
todaculturaconcretaetodaartesãomisturaousíntese
dosdoistipospropostos.O quetornaextremamentepro-
blemáticonãoapenasquererdistinguir,ontologicamen-
te,entreváriasculturas,mastambémquererestabelecer
rigorosadialéticaentreculturaenatureza.
Istoimplicaqueo "homoviator"nãoéumserque
podeescolherentrecaminhosdeliberadose caminhos
misteriosos,equepodefazê-Iadeliberadaouespontane-
amente.Implica,aocontrário,queo"homoviator"éum
serquecaminhaoraporcaminhosdeliberados,orapor
caminhosmisteriosos,e o fazoradeliberadamente,ora
espontaneamente,eque,namaioriadasvezes,caminha,
empartedeliberadamente,emparteespontaneamente,por caminhosparcialmentedeliberadose parcialmente
misteriosos.Porqueo PassodeFuorne Carnacdeum
lado,eaTransamazônicaeoEixoMonumentaldooutro,
sãocasosdelimite("Grenzsituationen").A maioriados
caminhosé comoaautoestradaDel SoleeaviaDutra,
oucomoaruedeSeuneouaruaDireita,maisoumenos
maltraçadas,equesãotraçados"mal"porqueo espírito
humanonãoconseguiuseimpordetodo.É portaiscami-
nhosquecaminhamos,viaderegra.
Vales
Temosváriasmaneirasderelacionar-noscomana-
tureza,algumasdasquaispodemserchamadas"sobrena-
turais","teóricas"ou "perspectivas"(segundoos nossos
váriosgostos).Uma detaismaneiraséencararanatureza
comosefosseum mapa.Invertemos,sobtalvisão,arela-
çãoepistemológicaentrepaisageme mapa.O mapanão
maisrepresentaapaisagem,masagoraé apaisagemque
representao mapa.O mapanãomaisservedeinstrumen-
to paranosorientarnapaisagem,masagoraéapaisagem
queservede instrumentoparanos orientarno mapa.A
verdadedeixadeserfunçãodaadequaçãodo mapaà pai-
sagem,epassaaserfunçãodaadequaçãodapaisagemao
mapa.Tal furiosoidealismo,inculcadoemnósnosginá-
sios,seexprimenasentença"omaréazul,easpossessões
inglesassãovermelhas".Sobtalvisão,valespassamaseros
caminhospelosquaisaáguacorreemdireçãoaooceano.
Visão"científica",esta?
20 Naturalrmente VILÉM FLUSSER 21
Temos,no caso,determinadomodelo.O da circu-
laçãodaágua.Não importaaquiaorigemdo modelo.O
modeloprevê(no sentidode "manda"e de "profetiza")
queumadasfasesdo ciclodaáguasejaadescidadaágua
dasserraspor vales.A observaçãodapaisagemconfirma
o modelo.Ou seja:a paisagemseadaptaao modelo(ao
"mapa").Respondeu"sim".Os valessãorespostasafirma-
tivasà investigação"espiritual"(formal)do mapa.Loucu--
ra?Sim,nosentidodo"espírito"serloucura,dohomemser
animallouco.E não,no sentidodo "espírito"sernegação,
do homemseranimalquepodemudarvalesconstruindo
represas.Paraqueméengenheiro,talvisãodo valeé"ade-
quada".Paraquemmorano vale,essavisãoé louca.Mas
seráqueengenheirosnãopodemmorarnosvales?Não po-
dem.Enquantoengenheiros,moramnosmapas.
Eu nãosouengenheiroemoronumvale.Ou moro?
Embora não sejaengenheiro,sou,eu também,homem.
Animal louco.Tambémeufui expulsodo paraíso,enão
apenasosengenheiros.Não possomorarnovale,ou,pelo
menos,não o possointegralmente.Também eu moro,
parcialmente,no reino dos engenhos,emboraos meus
engenhosnão sejamos do engenheiro.Não faço,como
fazo engenheiro,"ciênciada natureza".Sou,ai demim,
humanista.Minha loucura é outra.Vales, para mim,
tambémsãocaminhos.Não, por certo,da água.Mas ca-
minhosparahomens.Eisporquenãopossomorarnovale
tão integralmentequantonelemoram,por exemplo,as
corças.Corçasandamnovale,eeuandopor ele.Atraves-
soovale(sejadelágrimas,sejadesorrisos).Homo viator.
Cavaleiroerrante,judeu errante.Estrangeiro.Mas não
integralmente.Seeu andopelovaleda sombrada mor-
te,Tu estáscomigo.Como entãoéverdeo meuvale!No
entanto,o valeé meu,e eu não soudele.Não sou dele
porqueeutambémdisponhodemapa,aoqualmeuvale
deveresponder"sim ou não", adequar-se.Meu mapa,
meuengenho,éeste.
A humanidadeéhordadeinvasores,deimigrantes.
Invadeapaisagemhá,provavelmente,uns 8 milhõesde
anos.Em váriaslevas.Em buscaderenas,mamutes,gra-
míneos,gado,sal,carvão,eletricidade,emsuma,embusca
da felicidade.De ondevemahorda,não sesabe.Prova-
velmente,équestão"falsa"esta;nãohá métodoparares-
pondê-Ia.Emboranãopareçaser"falsa",já que8milhões
deanosnãosãotantotempo,afinaldecontas.Mas para
ondevaiahorda,istosesabe.Sobe.Sobeaolongodosrios
edosriachosemsentidocontrárioaodaágua.Sobepelos
vales.Os valessãoasartériaspelasquaissobeo sanguedo
rio dahumanidade.E osestreitosvalesmontanhosossão
oscapilares.Neles,ainvasãoestagna.Sãoelesrepresasem
sentidocontrário ao do engenheiro.No meumapa,os
primeirossãoosúltimos:osbandeirantesmaiscorajosos
queformamapontadalançainvasoraepenetramosvales
maisestreitossãolá represadosparaformaremosúltimos
vestígiosdahorda.Eu moro(no sentidoproblemáticodo
termo)emum valeestreitomontanhoso.Agorarespon-
da "simou não",meuvale.Respondaa minhapergunta
"perspectivista","historicista",humanista.
Estevaleaqui,no últimotempointerglacial,erapro-
vavelmentehabitadopor homensda espécieheidelberg,
22 Natural:menre VILÉM FL USSER 23
quandoaplanícieláembaixojáerahabitadaporhomines
sapientes.~ando aplaníciejá eraneolíticae plantava
grama,aquiaindacaçavampaleoliticamentecabrasalpi-
nas.~ando aplaníciefalavaréticoeusavabronze,aqui
aindahaviaaldeiasneolíticassemdivisãode trabalho.
Aqui aindasefalavarético,quando,naplanície(epelo
mundoafora),jásefalavalatimegrego.~ando omédio
alemãodominavao SantoImpério,aquisefalavaladino.
E hojesefalaalemão,quandoaplaníciejá falaitaliano.
Masnospequenosvaleslateraisaindasefalaladino.E o
réticoaindanãomorreunospequenosaglomeradosnos
abismosacimade3.000m.E existemcasascamponesas
construídasneoliticamente.E há,noslaguinhosisolados
aopédasgeleiras,gentequepescapaleoliticamente.E não
haverá,nosrostosdosmontanheses,traçosneanderthale
heidelberguianos?Meuvalerespondeu:"sim,souestru-
turadodeacordocomo teumapa".Moro emrepresada
históriadahumanidade,naqualo "anterior"passaaser
o "maisvaleacima",eo "posterior"o "maisvaleabaixo".
Estratihcaçãocontráriaà dageologia,esta.Não surpre-
endentemente:as"humanidades"têmmapascontrários
aosdas"ciênciasdanatureza".O tempocorreemdireção
opostanasduasdisciplinas.Nasciênciasdanaturezacor-
rerumoàentropia;nashumanidades,rumoàinformação
crescente.A águacorreemdireçãoopostaà doriodahu-
manidade.A estratificaçãohistóricadomeuvaleseopõe
à suaestratihcaçãogeológica,comoo "espírito"seopõe
aomundo.Porqueo mundoépassagem,eo "espírito"é
aventura.
Meuvalenãoéinteressanteapenaspelofatodeeu
morarnele.Podesergeneralizado.Nãoéassimquehm-
cionao"espírito":generalizando,classificando,projetan-
dopara"cima"?Istoé:esvaziando?Estemeuvaleconcre-
toaquipodesergeneralizadoparaaformavazia:"classe
devales".Porissoéinteressante.Podeservirdeexemplo
concretodaclasseabstrata"vales".Inversãoepistemoló-
gica,portanto.Meuvaleéinteressanteporque,feitaain-
versão,permiteperguntasdotipo:tradiçãoouprogresso?
No meumapa,valessãooslugaresparaondeoprogresso
avançaeondeestagna.Masondeestagnacomdetermi-
nadaestrutura.Na estruturada"memória"no sentido
platônico,biológico,psicológico,cibernético(e talvez
outro).Vales,no meumapa,sãoarmazénsdainforma-
ção,conservas.Conservadorestradicionais,portanto.No
meumapa,oprogressocorremorroacimaparaserarma-
zenadonosvalesmaisestreitos.No meumapa,ametado
progressoéserconservado.É quemeumapaémapade
humanista,nãodeengenheiro.Por isso,o "nuncstans"
do valeaparecenelecomometado "pantarhé",como
ChangriLá,emsuma.Todohumanismoéutópico:visa
à estreitaplenitudedovaleevênaamplavacuidadeda
planícieapenasestágiodepercurso.
Primeiratentativaderesposta:valessãoarticula-
dos.Sãoestreitosecercadosdeobstáculosquepermitem
poucasedifíceispassagens.Tal articulaçãoostorna"or-
gânicos",istoé,dificilmentemecanizáveis.Nãopodem
serfacilmenteenchidosde"massas"quesemovemme-
canicamente.Não sepodeconstruirnelescomfacilida-
24 Natural:menre VILtM FLUSSER 25
de pirâmidesfaraônicas,circos máximosou bancosde
cinquentaandares.Tais coisasnãocabembememvales,
nãopor seremosvales"pequenos".As montanhasqueos
cercamsãomuitomaisaltasquepirâmides,circoseban-
cos,e avivênciado valeé degrandiosidade.Não por se-
rem"pequenos"osvales,maspor seremarticulados,não
servemelesa culturasde "massa".Portanto,o progresso
massificadordaplaníciesedestinaa serarticulado("lm-
manizado")nosvales.
Segundatentativaderesposta:valesabrigam.Todo
valeformaum universo,com suaprópria faunae flora,
umpoucodiferentedadopróximovale.Com suaprópria
economiaeestruturasocial,suaprópriaarquitetura,mú-
sica,suasprópriaslendas.E osuniversossãoosvalesque
nãosecomunicamentresi,masapenascom aplanícieque
écomumatodos.É nestesentidoquevalesabrigam:não
por isolaremdo restodo mundo,maspor comunicarem
indiretamentee por grandesvoltas.Istotalvezdistinga
asculturasquebrotamdeumarededevalesestreitosdas
culturasdasplanícies:são"confederativas",enão"federais"
comoestas.Por exemplo:asculturasgrega,judia,tibetana,
toltecaeincaica,emcomparaçãoàsculturasromana,meso-
potâmica,hindu,maiaechipcha.Portanto,a"civilização"
daplaníciedestina-seaseraculturadanosvales.
Outras respostasdo mesmogênerosãopossíveise
facilmenteformuláveis.Todasdirãoqueahistóriaépro-
cessoque temvalespor meta.Ou queacontecimentoé
processoquetemmemóriapor meta.Ou queprogresso
é processoquetemtradiçãopor meta.Em suma,todas
dirãoquearmazenarinformação(negentropia)é ameta
dahumanidade.E dirãoaindaquevales(memórias,tra-
dição,negentropia)não sãolugaresparados,nos quais
maisnadaacontece.São,pelocontrário,lugaresnosquais
a informaçãoé constantementereagrupadae reestrutu-
rada.Falandocomunicologicamente:valessãooslugares
nos quaisos discursosdasplaníciessãodialogados.Por
isso,valessãooslugaresdepensadoresedepoetas.Desde
HeráclitoatéNietzsche.DesdeDavi atéRilke.Mas não
paraprofetas.Profetasnãohabitamvales.Meu mapanão
comportaprofetas.Devoampliá-Io.
Profetaspassampelosvalese sobematéo cumeda
montanha.Dão um passoalémdoshabitantesdo vale.
E depoisvoltam.Na volta,nem sequerdescansamno
valequeatravessam.Dirigem-sediretamenteà planície
paracontarsua"nova".Contam avistaquetiveramno
cume.Paraeles,o valeécanalentreplanícieecume,een-
trecumeeplanície:canalbivalente.Na ida,écanalentre
redundânciaeruído.Na volta,canalentreruído e infor-
maçãonova.Na ida,écanalentrealienaçãomassificadae
solidão;navolta,entresolidãoeengajamento.Eiso queé
valeemmapaprojetadodocumedamontanha.Não mais
represa,masmeiodo caminho.Em tal mapa,quemestá
novaleestánomeiodocaminhodasuavida.E apergunta
quesepõeemtalmapaéesta:quemestánovaleaindaes-
tarásubindo,oujá estarádescendo?Ainda serápensador
(reformuladordo discursodaplanície,da"prosa"),ou já
serápoeta(preparadordeumnovodiscurso)?
Pois emtal segundomapa(quenãoé maishistori-
cista,mastãoformalquantoo éo do engenheiro),ahu-
26 Naturahmente VII.ttvl FLUSSER 27
manidadenãoaparecemaisnaformadeum rio quesobe
pelosvales,masna formadeumacirculaçãoquefiraem
sentidocontrárioaodaágua.Sobepeloscapilaresdosva-
lesestreitos,projetagotasatéos cumes,e taisgotasvol-
tam,carregadasde"novas",paravivificaremasplanícies.
Tal circulaçãoda humanidadesobeemgrandesrios (as
grandes"tendências"),ramifica-seemdeltasna serra(as
várias"heresias"),alcançaos cumesemgotasindividuais
(osgrandes"heresiarcas"),queseevaporame reconden-
samemchuvavivificante(a "profecia").Em consequên-
cia,sãoosvales,emtalsegundomapa,caminhosdiferen-
tesdosquesãono primeiro.Não sãomaiscaminhosque
conduzemàmeta.Sãocaminhosdeiniciaçãoparaavolta.
Caminhos"decisivos".
~em jamaissubiupelo vale,jamaisviveu.Vegeta
no plano.A terceiradimensão,a do sublime,lhe falta.
Mas quem subiu pelo valee lá ficou, tampoucoviveu.
Arrancou suasraízes,éverdade,desalienou-se.Mas ficou
no ar, na disponibilidade.Deve decidir-se.Subir mais
ainda,ilosar-semaisaindanaquelescumesqueRilke cha-
mou "os do coração",os quaisnem sequeráguiashabi-
tam.Arriscar-seà solidãodaqualUnamuno diz quenela
"perdeuasuaverdade".E emtaldecisãonãopodeesperar
por nenhumVirgílio,ou Godot,ou nãoimportaqueguia
alpinista.Ou entãovoltaràplaníciesemtercorridoo ris-
co da subida,não,por certo,parareintegrar-se,maspara
engajar-se.Porque,paraquemestánovale,a integraçãose
tornouimpossível.Éparaele,doravante,sinônimodepro-
miscuidade.Por tersubidoo vale,éapocalíptico,ejamais
poderávoltara serintegrado.A "volta"jamaispodeser
cancelamentoda"ida".~em voltanãoéo mesmo,éalte-
rado.Ficouinformado,mesmosenãosubiuatéocume.Eis
adecisãoquedevetomarquemsubiupelovale:solidãosem
garantiadevolta,ouvoltasemtervistoo cume.
Os que nasceramnos valesnão veemos cumes.
Olhamo soloquecultivam,e,rarasvezes,aplanícieaseus
pésnaqualtrocamo produtodo seutrabalho.Olham a
planícierarasvezes,porqueestá,geralmente,cobertade
bruma.Por isso,os que nasceramnos valescreemque
nasceramacimadasnuvens.Estãoenganados.Nasceram
no meiodo caminho.Como estãoenganadososquel1as-
ceramna planíciee delajamaissaíram.Creemquenas-
ceramdebaixodo céu,quando,na realidade,nasceram
debaixodabrumaquenãolhespermiteverosvalesnem
oscumes.Mas quemnasceunaplanícieesubiupelovale
vê primeiroos cumes,íngremese inacessíveis.E depois
vê o soloverdejantedo vale.Mas, como é viajante,vê a
paisagemcomosefosseconfirmaçãodemapasquecarre-
gano bolso.Dois mapas.O primeiromostrao valecomo
caminhoquelevaà meta.O segundomostraovalecomo
epicicloquelevaà volta.O primeiromapafoi projetado
no climapesadodaplanícieevisaa libertaro viajante.O
segundomapafoi projetadono própriovale,evisaamu-
daraplanícieeseuclima.Os doismapassãoigualmente
adequados.A paisagem,seconsultada,responde"sim"a
ambos.A decisão:"qualdosdois mapasdevoutilizar?"
nãopodesertomadaàbasedosprópriosmapas.Ambos
sãoigualmenteapropriados.Nem àbasedeumacompa-
28 Natural:mente
~ 'b d" " Praçaoentreosmapas,a asee um meta-mapa. or ser
"meta",nãoserámaisapropriado.A decisãoasertomada
deveráser"absurda"(sembase).
E isto representao limite da loucuraqueé o espí-
rito humano.É perfeitamentepossívelprojetarmapas.
É perfeitamentepossívelinvertera relaçãoentremapa
e paisagem,e consultar,não o mapaparaseorientarna
paisagem,masapaisagemparaorientar-seno mapa.Tais
loucurassãoperfeitamentepossíveis.Mas quandosetrata
detomardecisão,mapasnãoservem.Decisõesautênticas
sãoabsurdas.E o absurdoé o concreto(o não-classificá-
vel), o não-generalizável,o não-formalizável.~ando é
tomadaa decisão,a.loucuradesaparece.A decisãosedá
no concreto.Valessãoos caminhosda decisão,lugares
concretos.Lugares,nos quais se torna necessário,em
dadomomento,jogarforatodososmapas,sobpenadese
pairarno "sobrenatural",no "teórico",na "perspectiva".
Justamentepor seremos valeslugaresquasesobrenatu-
rais,quaseteóricos,quaseperspectivistas,sãoelessitua-
çõesdelimite.A decisãonelesé,deacordocomJaspers,
um decifrar,enãoum resolver-se.Em suma,valessãolu-
garesondeadisponibilidadepode,seassimfor decidido,
passaraserengajamento.
Pássaros
Não podemosmaisvivenciaro seuvoo comoo vi-
venciavamosnossosantepassados:comoum desejoim-
possível.Pássarosdeixaramdeseraquelesentesquehabi-
tamo espaçoentrenóseocéu,parasetransformaremem
entesqueocupamo espaçoentreosnossosautomóveise
nossosaviõesdepasseio.Do eloentreanimaleanjopas-
saramaobjetosdeestudodocomportamentoemgrupos.
Sequisermosenquadrara nossavivênciadepássarosna
dos nossosantepassados,deveremosdizer queparanós
todosospássarossãoo queparaeleseramasgalinhas:en-
tesquevoam,masprecariamente.Pois talmodificaçãoda
nossaatitudecom relaçãoaospássarose aovoo (provo-
cadapelaaviaçãoe astronáutica)temefeitosignificativo
sobreanossavisãodomundo.Perdemosumadasdimen-
sõesdo tradicionalidealda"liberdade"eperdemoso as-
pectoconcretodatradicionalvisãodo "sublime".
30 Natural:mente VrLÉM fLUSSER 31
A tentativadeintuiravisãoqueosnossosantepas-
sadostiveramdovo é dificultadapordoisfatores:pela
nossaprópriavisãodovoaepelomitodovoa.As duas
dificuldadesrompemanossaligaçãocomanossatradição
deduasformasopostas:aprimeiraexclui-nosdatradição,
asegundanosfazparticipardeladeumamaneirainteira-
mentenova.Emoutrostermos:portermosvisãodiferen-
tedovoadospássaros,nãopodemoscompreenderbem
comooviramosnossosmaiores.E porparticiparmosdo
mesmomitodovoanãopodemoscompreendercomoos
nossosmaioresadequavamasuavisãodovoaaomito.
Procurareiilustrarasduasdificuldades.
Observemostrêstiposdevoadepássaro:o dofal-
cão,o dobeija-Roreo daandorinha.Espontaneamente,
seoferecemtrêsmodelosparacaptá-Ias:o falcãopaira
comoum planador,o beija-florcomoum helicóptero
eaandorinhavoacomoumcaça.Seformosrefletirso-
breostrêsmodelos,constataremosquesuarelaçãocom
osfenômenosquecaptamécomplexa:ostrêsaparelhosdevoamodelaressãoparcialmentecópiasdospróprios
pássaros,eparcialmenteresultadodeumdesenvolvimen-
to quesetornouviáveldepoisdoabandonodopássaro
comomodelodevoa.Demodoquetomaraparelhosvo-
adorescomomodelosdepássarosnãoéaclássicainversão
"modelado-modelo",quetantocaracterizaanossavisão
dascoisas.Compreendemososbraçoscomoalavancas,
porquebraçoseramosmodelosdealavancas,e vemos
espelhoscomosuperfíciesdelagos,porquesuperfíciesde
lagoserammodelosparaespelhos.Masvemosospássaros
comoaparelhosvoadores,emborataisaparelhosnãote-
nhamtidopássaros,masequaçõesdaaerodinâmicapor
modelos.Nestesentido,aviõessãoinstrumentosmenos
"naturais"quealavancaseespelhos:nãotêmpormodelo
coisasdanatureza.E secaptamoso voadepássaroscom
modelosdaaviação(eofazemosespontaneamente)éque
estamosdesnaturalizandoespontaneamentetalvoa.
Osnossosantepassadosdevemtertidooutrosmo-
delosparacaptarostrêstiposdevoa.O falcãodeveter
voadocomoanuvem,obeija-florcomoobeijo,aandori-
nhacomoaflecha.(E outrosmodelossãosugeridospela
literatura,fontedanossacompreensãodavisãodosnos-
sosmaiores.)Masparanóstalvisãotradicionaldovoa
é necessariamentepoetizanteekitschizada,istoé,senti-
mentalmentefalsa.~em dizatualmentequebeija-flores
beijamflores(enãoquesemantêmemvoaverticalacima
dasflores),estásendoinsincero,porqueomodelodoheli-
cópteroseimpõeespontaneamente.~erer verovoados
pássaroscomooviramosnossosmaioreséquererkitschi-
zartalvoa,eistoéilustraçãodaprimeiradificuldade.
O mitodovoa,talcomosemanifestaeminúmeras
mitologiase eminúmerossonhos,e talcomoinspirou
inúmerossonhadoresdesdeoalfaiatedeUlmeLeonardo
atéJulesVerneeaN.A.S.A.,continuaativoemnóstan-
toquantoagiaemnossosmaiores.Aliás,atesedeacordo
comaqualmitossão"projetos"constantes,provocado-
resdahistória,masnãosuperáveisporesta,parecebem
fundadatantonapsicologia,quantonasociologia.Mas
o mesmomitotemparaosquetêmexperiênciacomvoa
32 Natural:mcnte ViLÍ~MFLVSSER 33
impactointeíramentediferentedaquelequetêmparaos
nossosantepassados,paraosquaisvoarerasonhoimpos-
sível.Sevoamosdejato de SãoPaulo paraParis somos
tomadosdesensaçãoambivalente:deumaparte,sabemos
quevoamosmuito "melhor"quefalcões(maisalto,mais
longee maisrapidamente),e que,portanto,a nossarea-
lídadeestásuperandoo nossomíto.De outraparte,sen-
timosquevoaremjato não é o "recado"do mito, eque
nãopodetersidoistoqueinspiravaÍcaro.eLeonardo.Ao
terdeixadodesersonhoimpossível,o mito passouaser
sonhoinsonhável,maspersiste.Seumadastesesbásícas
do marxismoéqueos sonhossãomortosaorealizarem-
se,o ladodialétícodetal teseéesquecido:sonhosmortos
persistem.Podemos,éclaro,voar,epodemosfazê-Io"me-
lhor" quesonhavaLeonardo,massimultaneamentepre-
ferimoso sonhode Leonardoà nossarealidade.E nada
adiantasechamarmoso Aeroporto de Fíumícino (essa
vulgaridadecaracterísticada nossarealidadede voas),
"AeroportoLeonardodaVincí".
Para os nossosantepassados,a observaçãodo voo
do falcão,dobeija-floredaandorínhafoi visãodesonho
impossível."Sefossepassarínhoetivesseduasasas,voaria
atéjunto de tí", diz uma cançãopopular,cançãoqueé
impossívelcantaratualmentecomhonestidade.Os nos-
sosantepassadosprojetavamo mito do voa nospássaros,
eo fazíamespontaneamente,porqueospássarosestavam
na origemdo mito. Mas nósnãopodemosmaisfazê-Io,
porquea nossarealídadedo voo ultrapassouo voa dos
pássarossemterultrapassadoo mito,eistoéilustraçãoda
segundadificuldade.
Não podemos,pois,maisvivenciaro voo dospás-
saroscomoo vivenciavamos nossosantepassados.Mas
tal incapacidadenossanospermite,paradoxalmente,ver
melhorqueeleso queo voodospássarossignificavapara
I EI I d' " '" ,ees. 'es tavezacre ltassemque voarcomopassaro e
ver o mundode cimae transporobstáculosinvencÍveis.
Portanto,distânciaelíberdade.Mas tal tipo de"sublíma-
ção"e liberdadenão nos atrai:conhecemosa suareali-
dade.Há, no entanto,outracargado sonho"voarcomo
pássaro"que os nossosantepassadossentíamsemtê-Ia
salientadoclaramente.A deultrapassarabidimensionali-
dade.O fatodesermosprisioneirosdabidimensionalida-
denãoécomumentereconhecido.Temosailusãodeque
osnossosmovimentosocorremnastrêsdimensõesdo es-
paço.Na realidade,no entanto,anossacondiçãoterrena
noscondenaaoplano (àsuperfíciedaTerra).Apenasas
nossasmãosnosoferecemaberturaparaaterceiradimen-
são,paraa"concepção","apreensão"e"manipulação"de
corpos.Voar comopássaroépoderutilizaro corpotodo
como sefossemão,poder movimentar-seinteiramente
dentrodo espaço.Esteéo aspectodo mito dovooquese
tornavisíveldepoisderealizadososseusaspectos"eleva-
ção"e"superaçãodebarreiras".
Seobservarmoso voo dospássaros,estamosnapre-
sençadecorposquesemovimentamlivrementenastrês
dimensõesdo espaço,equeassumematitudestridimen-
sionaisemtodososseusgestos.Não apenas"subir"e"des-
cer"é equivalenteao "paratrás","parafrente","paraa
direita"e"paraaesquerda",mas"inclinaraasa"éequiva-
34 Naturalancnte VlLl~M .rI,USSER 35
lentea"viraraesquina".Estamosnapresençadeseresque
devemtomar,emtodasituaçãodada,decisõesentreum
númeromuito maiorde alternativasqueseresterrenos:
asdiagonaisqueseoferecemcomocaminhosdefugaou
deataqueapássarosnãoformamcírculos,masesferas.O
pássaroemvoonãoé,comoo éo animalterrestre,centro
deestruturavitaldecírculosinterferentes,masdeesferas
interferentes.As formaçõesdeavesemmigraçãoobede-
cemàsregrasdageometriatridimensional,eo "misterio-
so"sentidodeorientaçãodasavesémisteriosoparanós,
porqueseorientadentrodastrêsdimensõesdo espaço.
"Voarcomopássaro"seriapodermovimentar-se,decidir-
se,organizar-seeorientar-senatridimensionalidade.
Os animaisterrestres,emaisparticularmenteo ho-
mem,nãosãointeiramenteprivadosdaaberturaemdire-
çãoaoespaçoaberto.Mas a"terceira"dimensãonãopassa
de umasériedeepiciclossuperpostossobreo plano.Os
movimentosdaspernas,dospescoçosedosrabossãoin-
vestidasparadentrodaterceiradimensãoapartir dopla-
no.E ossentidos,emaisespecialmenteavista,sãoórgãos
querecolheminformaçõesvindasdastrêsdimensõesso-
breumponto no plano.Paraosanimaisterrestres,inclu-
siveo homem,oespaçoéumoceanoquebanhaailhapla-
naquehabitam.Daí asemelhançaentrepássaroepeixe:
ambossãohabitantesdo oceano-espaço.Pássarosnadam
no ar,comopeixesvoamnaágua.A diferençaéqueovoo
do pássarosalientaaliberdadedo movimentoespacial,e
o nadodopeixesalientao seucondicionamento.O mito
dopeixetemclimadiferentedo climado mito dovoo.
O homem distingue-sedosdemaisanimaisterres-
trespor suaposiçãoereta:por serseu·corpo todo uma
investidarumo ao espaçoaberto.Tal posiçãopermite
ao homem"conquistaro espaço"a partir do plano. (O
pássaronãoprecisaconquistaro espaço,estánele.)Mas a
posiçãoeretahumananãoresultanalibertaçãodo corpo
humanotodoemdireçãoaoespaço.Abriu apenaso parâ-
rnetrodosmovimentostridimensionaisparaváriaspartes
do corpo,epossibilitouàsmãosamanipulaçãotridimen-
sionaldecorpos.
Mãos sãoórgãosespecificamentehumanos,torna-
dospossíveisgraçasàposturaereta,quesemovimentam
no espaçocomaproximadaliberdade.Mãosvivememcli-
maestruturalmentesemelhanteao climano qualvivem
pássarosemvoo. O pássaroemvoo émãovoadora,mão
libertadecorpo,corpoviradomãointeiramente.O mo-
vimentoda mão é apreensão,compreensão,concepção
e modificaçãodoscorpos"emprofundidade",isto é,no
espaço.O mito do voo é isto:liberdadeparaapreender,
compreender,conceberemodificaremprofundidade.
Paraosnossosantepassados,o pássaroeraeloentre
animale anjo.Não é anjo ainda,porqueé sujeitoainda
à atraçãoda Terra. Levantada Terra, concentraseuin-
teressesobreaTerra, voltaparaaTerra e faz sobreela
o seuninho. É mãoligadaao corpo da Terra por braço
invisível.Anjo é pássaroextraterreno.Concentrao seu
interessesobreo espaçoe morano espaço.É mãoliber-
tadecorpo.O mito do espírito-pomba.Anjo éenteque
apreende,compreende,concebeemodifica"livremente":
36 Natllral:mente
VILÉ,M FLUSSER 37
o espíritopuro.Mão libertado corpoéespíritopuro.O
voado pássaroéseumodelo.Os voasa jato de SãoPaulo paraParis superamo
sonhodeLeonardo,masnãoatingemadimensão"liber-
tadora"do mito do voa.Sãofeitosdabidimensionalida-
de:ligamduascidadesemmapaplano.Os voasajatode
Tóquio paraParisligamasduascidadespelarotapolare
impõemnovaprojeçãoplanado Globo.Sãomais"espiri-
tuais",porquedemonstramo caráterprojetivodo plano,
mascontinuamfeitosdo plano.Mas asexperiênciasdo
Sky-Labapontamalémdopássaroemdireçãodoanjo.Os
astronautasquevivememgravitaçãozeroepasseiampeIo
espaçoprocuramtransformaremmãosseuscorpos.Uma
descriçãofenomenológicadassuasexperiênciasfaz falta
e seriareveladora.CassianoRicardotem,nestesentido,
poesiachamada"Gagarin".Mas persisteo dito marxista:
os sonhossãomortosquandorealizados.Virar pássaro,
virarmão,viraranjoématarapassaridade,amanidade,a
angelicidade.Porqueo sonhodaliberdadeedo sublime,
quandorealizado,revelao condicionamentocomocon-
tradiçãodaliberdade,eo cotidianocomocontradiçãodo
sublime.Isto sereferetantoaastronautas("anjostecno-
lógicos"),quantoà sociedadecomunista("sociedadede
anjos").Mitos sãorealizáveise matáveis,maspersistirão
enquantopesosmortosdepoisderealizados.
Não podemosmaisvivenciaro voa dos pássaros
comoovivenciavamosnossosantepassados:comodesejo
impossível.Vivenciamososeuvoacomodesejorealizável,
parcialmentejá realizado,eparcialmenteemviasderea-
lizaçãoemdimensõesapenasvagamentesonhadaspelos
nossosantepassados.Voa depássaroenquantodistância,
superaçãodebarreiras,etambémenquantoespiritualiza-
çãopelatridimensionalidade.Mas aovivenciarmoso voo
comodesejorealizável,estamosdesmistificandoo desejo
semnoslibertarmosdo mito.Não podemostermaisde-
sejosimpossíveis.O quenos restaé o desejoimpossível
determosdesejosimpossíveis.Serávisãoapocalípticaou
visãointegradaanossavisãodospássarosemvoa?
Chuva
A observaçãodachuvapelajanelaé acompanhada
desensaçãodeaconchego.Lá fora,oselementosdana-
turezaestãoemjogoe suacircularidadesempropósito
giracomosempre.~em estápresoemseucírculofica
expostoa forçasincontroladas.Parteimpotentedo seu
girarviolento.Cá dentro,estãoemjogoprocessosdife-
rentes.~em estádoladodedentrodirigeoseventos.Eis
arazãodasensaçãodoabrigo:éasensaçãodequemestá
nahistóriaecultura,econtemplaaturbulênciasemsigni-
ficadodanatureza.As gotasquebatemcontraavidraça,
projetadaspelafúriadovento,masincapazesdepenetrar
asala,representamavitóriadaculturacontraanatureza.
~ando observoachuvapelajanela,nãoapenasmeen-
controforadela,masemsituaçãoopostaaela.Tal situ-
açãocaracterizacultura:possibilidadedecontemplação
distanciadadanatureza.
40 Natural:mente VILÉM FLVSSER 41
No entanto(e infelizmente),não é isto quetemos
emmenteaofalarmosemconquistasdacultura:estarmos
sentadosemlugarsecoe quente,contemplandoachuva
fria,fumandocachimboeouvindoMozart. Infelizmente,
temosem mentecoisascomo "controlede chuva".Pre-
tendemosmudar a estruturados eventosda natureza.
Romper sua circularidade,fazê-Ioscorrer linearmente
embuscadeumpropósitopor nósescolhido.Chuvanão
maiscomofaseda circulaçãoeternada água,mascomo
fasedeumadeliberadairrigaçãodomeucampo.Seachu-
va tivessesido vencida,não maiscairiacomo cai agora
("chuvadesetembro,de todo setembrodesdesempre"),
mascairiacomo"estachuvaprogramadaparaasquatro
horasda tardede hoje". Seriachuvahistórica,porque
sujeitaa programas,portanto,parteda cultura,não da
natureza.Vistadajanela,talchuvanãosedistinguiriada-
quelaqueestácaindoagora,e,no entanto,estariacaindo
do ladodecá,nãodelá,dajaneladacultura.
Istodácalafrios.Pareceseramesmachuva,enãoo é
por ser"cultura"?Não o é,nãopor serdiferente,maspor
terestruturadiferente?A lineardahistória,nãoacircular
da natureza?E não adiantaráolhá-Iaparasaber-seisto?
~e coisaterrível!Não possodistinguirentreculturae
naturezaolhandoparaascoisas,masapenasaprendendo
arespeitodelas.Seolho pelajanelaevejochuva,cadeiras
eárvores,nãopossosaberquaisdessascoisassãocultura,
quaisnatureza.Dependodeoutrosparadizer-me.
Não possoaceitaristo.Seistofor verdade,nãoterei
maiscritériopróprio paranão importaqueengajamen-
to. A RevoluçãoFrancesapassaráa serfenômenohistó-
rico deacordocomumaexplicação,e fenômenonatural
(comoo éamigraçãodasaves),deacordocomoutra.Os
quenelaseengajarame por elamorreramo fizerampor
ingenuidade:nãorecolheramtodasasexplicaçõesdispo-
níveis.Não possoaceitarisso.
Voltarei a olhar a chuvapelajanelaparaver seela
mediz algoa respeito.Eis o queestádizendo:aqui fora
estáchovendo,lá dentroestásabrigado.Isto é a distin-
çãocategóricaentrenaturezaecultura.Naturezaécomo
chuva:provocaasensaçãodeimpotência;culturaécomo
asala:provocasensaçãodo abrigo.Conquistaranatureza
nãoé mudarsuaestrutura,masseuclima.Mas istopro-
blematizatodo o progressohumano.Teremosconquis-
tadoanatureza"essencialmente"no curso,por exemplo,
dosúltimos200anos?No sentidodetermosaumentado
o terrenodasensaçãodo "estarmosabrigados"?Estaráo
homemdo século20 sesentindomaisabrigadoqueo do
século18?Serámais"culto"nestesentido?Semdúvida,a
observaçãodachuvaexigequeredefinamosnossoengaja-
mentoemcultura.
Rompera circularidadedoseventosnaturais,fazê-
loscorreremlinearmenteembuscadepropósito,progra-
má-Ios:esteé o engajamentorecomendadopelostecno-
cratasepeloestabelecimento.Chuva,nãomaiscirculare
boaparanada,maschuvalineareboaparairrigarcampos.
Eisoquedizemostecnocratas:culturaétransformaralgo
queébomparanadaemalgoqueébompara propósito
deliberado.Cultura é injeçãode "valores"no conjunto
42 Natural~!nente VILÉM FLVSSER 43
isentodevalorchamado"natureza".Coisassãonaturais
(dizemos tecnocratas)quandonãopermitemquesejam.
julgadas"más"ou "boas".E coisassãoculturaisquando
são"boas".Por isso,asciênciasdanaturezasão"isentasde
valores"(wertftei):tratamdecoisasisentasdevalores.E
ostecnocratascontinuam:o verdadeiroengajamentoem
culturaéengajamentoemproduçãode"bens",isroé,de
coisas"boas".Os tecnocratasestãoenganadoseestãonos
enganando.
Na realidade,quemestá"isentodevalor"(wcrtjrei)é
a tecnologia.As coisassãoproduzidaspelatécnica,estas
sim,nãosãonemmásnemboas.As coisasdanatureza,es-
tassãotodasmás,porquemecondicioname metornam
impotente.Senãofossemmásascoisasdanatureza,nãose
explicariaoengajamentoemcultura.É sempreengajamen-
to contraa natureza.As coisasda técnicasãoeticamente
neutras,epassama serboassemeabrigam,e más,seme
condicionam.Produzi-lasé necessário,masnão basta.É
necessário,porqueresultaemcoisaspotencialmenteboas.
Mas nãobasta,porquepoderesultaremcoisasmásseper-
dermosaconsciênciadacultura.Se"progresso"for,como
o afirmamos tecnocratas,um processoao longodo qual
eventosnaturaissãotransformadosem eventoslineares,
então"progresso"(e"ordem")nãobasta.O queurge,para
que"progresso"tenhasentido,é mantere rennaracapa-
cidadecríticadosvalores(acapacidadeética,política,em
suma:liberdade).T ecnocratasnãobastam.
A chuvaqueobservopelajanelaémá(enãoimporta
quealgunsromânticoso contestem).É má,porquecaiem
cimademim semmeterconsultado.É estaarazãopor-
quemesintobemaoobservá-Ia:oponho-meaela.Chu-
vatransformadaemirrigaçãoprogramadanãoénemmá
nemboa(enãoimportaqueostecnocrataso contestem).
Não é nemmánemboa,porqueo seuvalordependerá
daquiloqueirriga.E seráboaapenasseaquiloqueirriga
for coisaquemeabriga.Mas seaquiloqueachuvairriga
for coisaquemecondiciona,aprogramaçãodachuvaterá
produzidoummalpior queosmalesdanatureza.T ecno-
eratasnãoapenasnãobastam,maspodemvir aserperi-
gosos.O "progresso",senãofor controladopor críticade
valores,podesermaisperigosoqueo imobilismo.
A chuvaqueobservopelajanelamedásensaçãoboa,
porqueme sinto libertadodela.Estou sentadoem sala
quenteeseca,possocontemplarachuva.Possoobservá-
Ia,nãoapenasparadepoismanipulá-Ia,mastambémpara
julgá-Ia.Estouemsituaçãoquepermitejuízosdevalores.
Em situaçãode "disponibilidade"com relaçãoà chuva.
Em situaçãodeliberdade.Possoconvidaroutrosparaen-
trarememminhasala,anm dediscutirmoso problema
dachuva.Lá foraestáchovendo,enóscádentro,aoabri-
go,discutindocomomanipularachuvaparaquesejaboa.
Isto équeécultura.Não chuvamanipuladaeprograma-
da,maschuvasujeitaàdiscussãolivre.No fundo,o que
éboméapenasa liberdade.As coisassãoboasapenasna
medidaemquecontribuemparamelibertar.E istoéexa-
tamentetambéma medidadacultura.Tecnologiaainda
nãoé cultura.E tecnocracia(governoda tecnologianão
controlado)éanticultura.Em suma:culturaétecnologia
maisliberdade.
44 Natural~mente
A chuvaqueobservopelajanelaé quemeensina
isto.Ensinaquesoueueospróximosquemconfereva-
loredásignificado.Culturanãoéquestãodechuva(seja
controladaeprogramadaounão),maséquestãodasen-
saçãoqueprovocanosquea observampelajanela.Em
outrostermos:seobservoachuvapelajanela,vejoquea
únicajustificativadeengajamentoemculturaéaumen-
taro terrenodaliberdade(aumentara salaapartirda
qualobservoachuva).A chuvaensinaqueadignidade
humananãoseresumenalutacontraa natureza.Há,
entrenaturezaecultura(entrechuvaesala),umaregião
eticamenteneutra,maspotencialmenteperigosa,aregião
daprogramaçãoisentadevalores.A regiãodo estabele-
cimentonão-político(dostécnicosdeirrigaçãodecam-
pos).A dignidadehumanaexigetambémquetalregião
sejaapropriada.Masnasituaçãoatualéobviamentemais
fácillutarcontraanaturezaqueapropriaro estabeleci-
mento.Emconsequência,hásempremenoschuvanatu-
ral,sempremaischuvaprogramada,esempremenossalas
apartirdasquaisnãoimportaquetipodechuvapossa
sercontemplado.Seistocontinuarassim,oresultadoserá
este:estaremostodosexpostosseminterrupçãoachuvas
torrenciaisprogramadas,masproclamaremosaosquatro
ventos(queuivarãoemtornodenósemcoroprograma-
do)queestamossendoirrigados.
o cedrono parque
Fatocurioso:árvoressãoquaseinvisíveis.Todaten-
tativadecontemplá-Iasoprova,Há,entrecontemplador
eárvore,névoadensademúltiplascamadas.A luzdofarol
daintençãocontempIativaérefletidapor talnévoa,e a
contemplaçãosetransformaemreflexãosorrateiramente
esemqueocontempladorpossainterferirnisto.Há algo
emtornodeárvoresque,porsernebuloso,émisterioso.
SeolhopeIaminhajanelaeprocurocontemplarocedro
queseergue,majestoso,nocentrodomeuparqueangevi-
no,devoadmitirestefatocomopontodepartidaqueme
éimpostopelasituaçãonaqualmeencontro.
Por certo,árvoressãoparcialmenteinvisíveispor
razõespor assimdizerfísicase biológicas,já quea sua
maiorparteestáescondidanosolo.Tal fatocorriqueiro
eaparentementeóbviotende,noentanto,aseresqueci-
dopormuitosdaquelespensadoresquetomamárvores
pormodelosdeestruturas.(Eárvoresdefatosãomodelos
46 Natural:mente VILÉM FLUSSER 47
preferidos.)Dareium únicoexemplo.Toda umacosmo-
visãoe filosofiado século19 (a"biologizante")concebe
o mundo como processoque tendea se ramificarem
obediênciaaum "principio" queSchopenhauerchamou
de "principium individuationis".O sistemadarwiniano
ilustrabemtal estruturadinâmica,paraa quala "árvore
genealógica"serviudemodelo.Tal cosmovisãoefilosofia
éumhistoricismoqueseoferececomoalternativaàvisão
dialéticadahistóriaesurgiu,efetivamente,emoposiçãoa
Hegel.Mas éclaroemaisqueóbvioqueo modelodetais
sistemasnãoéa árvoretoda,masapenasaquelaparteda
árvorequeévisívelacimado solo.~cm tomaa árvore
todapor modelodesistema,devehaver-secomestrutura
queseramificaemduasdireçõesopostas.De maneiraque
aárvoretodaémodelodesistemadialéticono maisexa-
to significadodo termo.Os pensadoresdarwinianosdo
século19 seesqueceramdapartesubterrâneada árvore
(o que,obviamente,emnadaafetaa "verdade"dosseus
enunciados).
Mas nãoétal"invisibilidadeparcial"queseinterpõe
entreaárvoreeo seucontempladordamaneiranebulosa
mencionada.Sãofantasmas,ectoplasmas,espectrosecor-
posetéreosquepairamemtorno deárvorese astornam
inacessíveis.Tais divindadesarbóreashabitamtodasas
mitologias,inclusiveajudaicae agrega,fontesinescapá-
veisdanossavisãodo mundo.Mencionareialgunsdesses
fantasmas.O maispróximodo contempladore,portan-
to, o maisfácila serremovidoé o espectrodo "pulmão"
queencobreaárvoreenquantofenômenoconcreto.Não
vejo árvore,vejopulmãoverde,e vejo tal pulmãotanto
morfológicaquanto funcionalmente.Um pouco mais
próximoda mesmaárvore,masaindafacilmenteremo-
vível,estáo fantasmado "abrigo".Não vejoárvore,vejo
guarda-chuva,tantoemsentidofísicoquantometafórico
do termo.Outrosespectrosseagarramàárvorebemmais
firmemente.Por exemplo,osespectrosda"fertilidade",o
d ., h 11 " d'" d"d "(111' d .o paus ,o a arvore aVI a . ~an o taISespectros
sãopenosamenteremovidos,eaessênciadamesmaárvo-
re parecequererrevelar-se,verifica-sequeaindanãoé a
arvoridadequesemostra,masalgunspreconceitosainda
maisprofundos,e quetalveznemsequertenhamnome.
Of' 1-"1 ,,,, ·ddatoequea re açao )omem-- arvore e carregaa e
tantacargaimemorial(etalvezconsequênciada"origem"
arbícolahumana),queatentativadecaptaraessênciada
árvoregeralmentefracassa.Os preconceitossãotantos
queserecusamaserpostosentreparênteseseeliminados
provisoriamente.
Não procurarei,portanto,captaraessênciadocedro
no meuparque,masapenasumúnicoaspectoseu.Este:o
climaestranhoeestrangeiroqueirradia.Já quenãocapta-
reiacedridadedocedro,talvezcaptareialgodaestranheza
e estrangeiridade?Afinal, soutãoestranhoeestrangeiro
no meuparqueangevinoquantoo éo cedro.Não poderá
tal comunhãodo "estar-no-mundo"meuedo cedrofor-
marbaseparaumavisãointuitiva?Ou estarei,desdejá,
antropomorfizandoo cedro?Estarei,desdejá,caindona
armadilhadeum dosespectros,o "antropomórfico",que
encobremo cedro?Na armadilhanaqualcaiu,enaqual
48 Natl1ra1:mente VILÉM FLUSSER 49
morreu,o meninodo "Erlenkoenig"de Goethe?Parece
sermaisprudenteprocurarcaptara estrangeiridadedo
cedroemformadeperguntas,nãodeafirmativas.~em
sabe,certasrespostaspoderãoserprovocadasno próprio
cedro?Perguntasprovocantesquefazemfalaro cedro.
Primeirapergunta:Como seiqueo cedroé estran-
geiro?Resposta:seique aquelaárvorelá é cedro,e que
cedrossãoplantasnativasdo Líbano,nãodaFrança.Tal
respostanãoserve.Não foi dadapelocedro,maspormeus
livrosescolares.Atenção,no entanto.A respostanãoéin-
teiramenteimpertinente."CedrosdoLíbano":nãosigni-
ficaistoo Rei Salomãoeaconstruçãodo Templo?E não
há algodetal significadoemtorno do cedrono parque?
Ou nãopassaráistodeum detaisespectros?
Reformulareia primeirapergunta:Como o cedro
mediz sereleestrangeiro?De váriasmaneiras.O server-
de é diferentedo verdeem torno. A sua"Gestalt"pira-
midalehierarquicamenteescaladadestoadas"Gestalten"
cônicasdasárvoresemtorno.A formatorturadadosseus
ramos,o elementocaóticonelequenãoobstanteé inse-
rido emtotalidadeharmônica,osdistingueradicalmente
dascopassuavesemtorno. Os seuspinhõesmonumen-
taisnãotêmparalelonosfrutosdo parque.O seutronco
elefantinosoacomo trombetaem orquestrade cordas.
Mas, principalmente,a suapresençadomina o parque,
nãoapenaspelasuagrandeza,mastambémpor algoque
deveserchamado"majestade".Estassãorespostasdadas
pelopróprio cedroedevemseraceitas.
Segundapergunta:Aceitandoemborataisrespostas,
como sei que significama "estrangeiridade"do cedro?
Não significarão,pelo contrário,um aspectoda sua"ce-
dridade"?Em outrostermos,nãoteráapresençadocedro
no seuLíbanonativoo mesmoclimaquetemno parque
angevino?Seformulo aperguntaassim,o cedrosecala.
Necessariamente,porqueo cedroestáaquienãonoLíba-
no,enãopodefalaremnomede"outrocedro".Formula-
daassim,aperguntaétipicamenteinsignificativa.Pequei,
ao ter formuladoa perguntaassim,contra o primeiro
mandamentoda honestidade:"Não tirarásfenômenos
do seucontexto!"A perguntadeveserreformulada,para
sersignificativa.
Reformulareiasegundapergunta:As respostasque
o cedrodeuàprimeiraperguntasignificamqueelesedis-
tinguedo seucontextopor sercedroou por serestran-
geiro?A respostaqueo cedrodáa talperguntapodeser
resumidaassim:Sou estrangeiropor sercedro.Soufiel a
mimmesmo,naminhacor,naminha"Gestalt",nosmeus
pinhões,nãomeassimiloaoparque.Poisexatamentepor
istomesmodominoo parque.Centralizoo parque,dou-lhe formaesentido.O parqueé o parquequeégraçasa
mim:parqueemtornodecedro.Não fosseeucedro,por-
tanto,estrangeirono parque,o parquenãoteriasentido.
Eu souo ruídodoparquequetransformaasuaredundân-
ciaeminformaçãosignificativa.Destoo,etaldissonância
é o núcleodamúsicado parque.É isto o significadodas
minhasrespostas:Sou estrangeiropor sercedro,eéape-
nascom relaçãoà minhaestrangeiridadequeo restodo
parquesetornanativo."Serestrangeiro"é,pois,no hlll-
do, isto:revelaraocontextoqueelepróprionãoéestran-
geiro.Souestrangeironãoemmim,masparao parque.
50 Natural:mente VU ..ÉM FLUSSER 51
Respostasmuitoproblemáticasestas.Vêmformula-
dasemdiscursosdosquaisconheçobemaorigem.São
osdiscursosdafilosofiaexistencial,dateoriadainforma-
ção,damusicologia.Podeo cedrorecorrerataistiposde
discurso?Perfeitamente.Comefeito,nãopode,anãoser
recorrera taistiposdediscurso.Porqueo cedrosedá
paramim,eselhepermitofalar,éparaquefaledentro
dosmeusdiscursos.Comefeito,asrespostasàminhapri-
meiraperguntatambémforamarticuladaspordiscurso
meu,emboratenhamsidoaparentementemaisconcre-
tas.Apenasodiscursodetaisrespostasfoiodalinguagem
corriqueira.Demodoquesouobrigadoaaceitartambém
asrespostasàminhasegundapergunta.
Provocamterceirapergunta:Seo cedroé presen-
çaestranhaeestrangeiranoparque,porquedeledestoa
porsuafidelidadeà cedridade,comoseiqueé o cedro
queéestrangeiro,enãoo parque?Emoutrostermos:se
serestrangeiroéumserrelativoaoutroser,nãohaverá
reversibilidade?O cedroéestrangeiroparao parqueeo
parqueestrangeiroparaocedro?Umarespostaseimpõe
imediataeespontaneamente:seiqueocedroéestrangei-
roeoparquenãoé,porqueocedroéumaúnicaárvore,e
o parquesãomuitas.Tal respostaquantificantedeveser
recusada,embora,comoosãotodasasquantificações,seja
razoável.Deveserrecusada,porquenãofereaessênciada
estrangeiridade.Foidada,comefeito,nãopelocedro,mas
pelomeuraciocínioindutivoeenumerativo.Devorefor-
mularminhapergunta,edirigi-Ia,nãoaocedro,masao
parque.Porexemplo,à nogueiravizinhadocedro.
Reformulareia terceirapergunta:Comoseiquea
nogueira(e,comoela,o parquetodo),énativadoAnju,
edestaformatornadialeticamenteo cedroestrangeiro?
Umatorrentederespostasjorradanogueira.O seuverde
deverãocomlevesuspeitadeferrugemoutonalarticula
aprimeirametadedesetembro,"naqualestamos".A sua
copacônicaéelemento,mastambémresumo,da"Ges-
talt"dapaisagemtoda.A riquezadasnozesquecarrega
é testemunhodafertilidadeonipresentedo Anju e da
França.O climapacífico,aumtempotemperadoerico
deseivavitalqueirradia,éoclimadoambientetodo,tal
comopenetraosporos,ospulmões,assensações,e até
ospensamentosdetodosaquipresentes.O Anju todo,
aFrançatodaestãonaauradanogueira,ebastacontem-
plaranogueiracomsuficientepaciênciaparadescobrira
essênciadaFrança.As respostasmúltiplasqueanogueira
estádandoàminhaperguntapodemserassimresumidas:
Sounativaporsernogueira,esounogueiraporsernati-
va,enãohánistonenhumproblema.Nãoprecisoafirmar
minhanogueiridade,nemserfielaela.Istotudoestáse
dandopormim,emtornodemim,eporcausademim,
comtodaespontaneidadeenaturalidade.E istoé,possi-
velmente,umaspectoda"natureza":serassim,esponta-
neamenteesemproblema.A nogueira(eoparquetodo)
é naturezaangevina.E, emcontrastecomisto,o cedro
nãoénatureza,masculturaangevinaÉ cultura,porquese
afirma,éfielasipróprio,edásentidoaoparquetodo.Em
suma,éestranhoeestrangeiro.
Poisistoérespostasurpreendente.(Devoconfessar
quemesurpreendeuaoterseformuladono cursodes-
52 NaruraI:mcnte
teensaio.Nãoesperavaporela.)A respostadanogueira
provocaredefiniçãodosconceitos"natureza"e"cultura"
emtermosdiferentesdoscostumeiros:Naturezacomo
minhacircunstânciaespontâneaeisentadeproblemas,é
culturacomopresençaestranhaeestrangeiranaminha
circunstância,queseautoafirmae,portanto,dásentido
ànatureza.Istoprecisaserruminadoemoutraoportuni-
dade.O queimporta,nopresentecontexto,éisto:Meu
conhecimentoprévio(botânicoououtro)a respeitode
cedroenogueiranãotocaoproblemadaestrangeiridade.
Por exemplo:a nogueirapodeperfeitamenteserorigi-
náriadeflorestasdistantesetersidoimportadaparacá,
porexemplo,pelosceltas.Nãoobstante,éessencialmen-
tenativa.O cedropodeter-seperfeitamenteadaptadoà
circunstânciaangevina,epode,inclusive,vingarmelhor
aquiquenoLíbanonativo,evingarmelhorqueaprópria
nogueira.Não obstante,é essencialmenteestrangeiro.
Preconceitosnãoferemessências,asquaisserevelamape-
nasemcontemplaçõescomoéestadomeuparque.Acaba
deserevelarumaspectodaessênciadaestrangeiridade.
Daseguinteforma:Estrangeiro(eestranho)équem
afirmaseuprópriosernomundoqueo cerca.Assim,dá
sentidoaomundo,edecertamaneirao domina.Maso
dominatragicamente:nãoseintegra.O cedroéestran-
geirono meuparque.Eu souestrangeironaFrança.O
homeméestrangeironomundo.
Vacas
Sãomáquinaseficientesparaa transformaçãode
ervaemleite.E têm,secomparadascomoutrostipos
demáquina,vantagensindiscutíveis.Por exemplo:são
autorreprodutivas,equandosetornamobsoletas,asua
"hardware"podeserutilizadanaformadecarne,couro
eoutrosprodutosconsumíveis.Nãopoluemoambiente,
eatéseusrefugospodemserutilizadoseconomicamente
comoadubo,comomaterialdeconstruçãoecomocom-
bustível.O seumanejonãoécustosoenãorequermão
de obraaltamenteespecializada.Sãosistemasestrutu-
ralmentemuitocomplexos,mas,funcionalmente,extre-
mamentesimples.Já queseautorreproduzem,ejá que,
portanto,asuaconstruçãosedáautomaticamentesem
necessidadedeintervençãodeengenheirosedesenhistas,
estacomplexidadeestruturalévantagem.Sãoversáteis,
já quepodemserutilizadastambémcomogeradoresde
energiaecomomotoresparaveículoslentos.Emborate-
54 Natural:mentc VILÉM FLUSSER 55
nhamcertasdesvantagensfuncionais(porexemplo:sua
reproduçãoexigemáquinasemsiantieconômicas,"tou-
ros",ecertosdistúrbiosfuncionaisexigemintervençãode
especialistasuniversitários,deveterinários,caros),podem
serconsideradasprotótiposdemáquinasdo futuro,que
serãoprojetadasporumatecnologiaavançadaeinforma-
daspelaecologia.Comefeito,podemosafirmardesdejá
quevacassãoo triunfodeumatecnologiaqueapontao
futuro.
Seconsiderarmoso seu"design",anossaadmiração
peloinventordavacaaindaaumenta.Emborasetrate
de máquinaaltamenteautomatizadae controladapor
computadorinstaladodentrodaprópriamáquina(cé-
rebro),e emborao seufuncionamentoestejagarantido
porsistemacibernéticodeequilíbrioselétricosequími-
cosaltamenterefinados,aformaexternadamáquinaéde
simplicidadeeeconomiadeelementossurpreendentee
altamentesatisfatóriaesteticamente.A impressãoquea
vacadeixaéadeumaobrabemintegradaemsiedentro
doseuambiente.O seu"designer"nãosedeixouinfluen-
ciarpor taisouquaistendênciasestéticasdaatualidade
(emborapossamosdescobrirno desenhodavacacertos
elementosbarrocosindisfarçáveis,eemboraseudesenhis-
tatraiaainfluênciadecertastendênciasbiologizantesdo
séculopassado),maso "designer"seguiuintuiçãoesté-
ticacaracteristicamentesua.Por exemplo:amobilidade
elegantedorabocontrastacomamaciçaimobilidadedo
restodaobraecriatensãoapenassugeridaporCaldere
seusseguidores.Masoqueimpressionamaisno"design"
davacaéisto:asurpreendentegamadevariaçõesqueo
seuprotótipopermite.O protótipoéfundamentalmen-
tesimples(temsidoelaborado,porexemplo,porPicasso
nasTauromaquias),mastalsimplicidademesmapermite
umnúmerograndedeestereótiposdiferenciados.Trata-
se,no protótipodavaca,deautênticaobraaberta.Há,
entreosestereótipos,osqueseadaptamamentalidades
nacionaiseatéregionais(vacasuíça,holandesa,inglesa),
osqueseadaptampaisagisticamente(vacasdosAlpes,dos
prados,dasestepes),eatéestereótiposbaratosdestinados
aospovossubdesenvolvidos(zebu,vacacentro-africana).
Isto,noentanto,nãoesgotaa"mensagemestética"
davaca.Os estereótipossãofornecidosaoconsumidor
acompanhadosdeum"mododeusar"queequivaleaum
convitedeparticipaçãoemjogo.O compradordevacas
pode,seassimdesejar,projetarseuprópriomodelo,"cru-
zandoraças".Demaneiraqueacompradevacanãocon-
denaocompradoraumconsumopassivo,masabreespa-
çoaumaparticipaçãoativano"jogodasvacas".Demodo
quefinalmenteateoriadosjogosficouabsorvidasignifi-
cativamentepelatecnologia.Podemosvislumbrarumes-tágiofuturo,noqualoprogressotecnológiconãoserápri-
vilégiodealgunsespecialistasapropriadospeloaparelho
administrativo,masjogodoqualas"massas"participarão
ativamente,variandoprotótiposlivremente.O inventor
davacaprovocouautênticarevoluçãotecnológica,tanto
emsentidofuncionalquantoestético,queabrehorizon-
tesparaumnovo"estar-no-mundo"dohomemdofutu-
ro.Conseguiuistoaotersintetizadoosconhecimentos
56 Natural:mcnte VIL.ÉM FLUSSER 57
maisavançadosdaciênciaeosmétodosmaisrefinadosda
tecnologiacomsensibilidadeestéticaagudaecomvisão
claraestrutural,cibernéticaeinformadapelateoriados
jogos.Não restadúvida:avacarepresentafundamental
"decolagem".
Masnãodeixaderepresentartambémperigoeame-
aça.Na medidaemquevacassetornaremsempremais
numerosasebaratas(processoinevitáveldadoo ímpeto
doprogresso)eoutrasmáquinasdetiposemelhantesur-
girem,ocorrerátransformaçãosutil,masprofunda,no
ambientehumano.As máquinasatuais,àsquaisahuma-
nidadevemseadaptandoemprocessopenosodesdeaRe-
voluçãoIndustrial,serãopaulatinamentesubstituídaspor
máquinastipo"vaca".Já quetaismáquinasimpõemum
ritmovitaldiferenteetodaumapráxisdiferente,surgirá
anecessidadedereadaptaçãoqueterá,necessariamente,
porconsequência,novaalienaçãoindividualecoletiva.A
fantasiapodeprevernãoapenasdissoluçãodasgrandes
cidadese formaçãodepequenosaglomeradosemtorno
devacas(aseremchamadas,porexemplo,"aldeias"),mas
emconsequênciadisto,também,adissoluçãodaestrutu-
rabásicadasociedadeesuasubstituiçãoporoutraapenas
imaginável.No entanto,opiornãoseráisto.
É conhecidaatendênciahumanapara"espelhar-se"
nosseusprodutos.O processoéaproximadamenteeste:o
homemprojetamodelosparamodificararealidade.Tais
modelossãotomadosdocorpohumano.Porexemplo:o
teartempormodeloodedohumano,etelégrafoonervo
humano.O modeloérealizadonaformadeumproduto.
Emseguida,omodelohumanoportrásdoprodutoées-
quecido,eoprodutoseestabelece,porsuavez,emmode-
lo paraoconhecimentoecomportamentohumano.Por
exemplo:asmáquinasavaporsãotomadaspormodelos
dohomemnoséculo18,asfábricasquímicasnoséculo19
eosaparelhoscibernéticosatualmente.Tal retroalimen-
taçãonefastaentreo homemeseusprodutoséaspecto
importantedaalienaçãoeautoalienaçãohumana.
Poisa paulatinasubstituiçãodasmáquinasatuais
pormáquinastipo"vaca"poderáresultaremtalidentifi-
cação"homem=vaca".O homempodenãoreconhecer
navacao seupróprioprojeto,podeesquecerqueavaca
éresultadodesuaprópriamanipulaçãodarealidadeem
obediênciaaummodeloseu,eaceitaravacacomoalgo
dealgumaforma"dado"(porexemplo:podeaceitara
vacacomoumaespéciede"animal",portanto,parteda
"natureza").Emtalcaso,avacaassumiráautonomiaon-
tológicae epistemológica,evirará,por assimdizerpor
trásdascostasdo homem,modelodoprópriohomem.
Justamenteportratar-sedemáquinaaltamentesofistica-
daeantropomorfa(todasasmáquinassão,aliás,antro-
pomorfas,pelarazãoindicada),aessência"máquina"da
vacapodevir a serencoberta.Em nadaadiantarão,em
talcaso,"explicaçõesgenéticas"davaca,explicaçõesque
provarãoseravacaresultadodemanipulaçãohumana.O
impactodavacasedaráemnívelexistencial,nocontato
diáriocomela.Emtalnível,todasas"explicações"setor-
namirrelevantes(comosãoirrelevantestais"explicações"
atualmenteparaosquetêmcontatodiáriocomcompu-
58 Natural:mente
tadores).A merapresençacotidianadavacaexercerásua
influência"vaquificante".A fantasiaserecusaa imaginar
aconsequênciadisto.
No entanto,é precisoenfrentaro perigo.A fanta-
siadeveserforçada.Revelaavisãode umahumanidade
transformadaem rebanhode vacas.Uma humanidade
quepastaráe ruminarásatisfeitae inconsciente,consu-
mindo erva,naqualumaeliteinvisívelde"pastores"tem
interesseinvestido,eproduzindoo leiteparatalelite.Tal
humanidadeserámanipuladapelaelitede maneiratão
sutil eperfeitaquesetomarápor livre.Isto serápossível
graçasàautomaticidadedo funcionamentodavaca.A li-
berdadeilusóriaencobriráamanipulação"pastoril"per-
feitamente.A vidaseresumiráàsfunçõestípicasdavaca:
nascimento,consumo,ruminação,produção,lazer,re-
produçãoemorte.Visãoparadisíacaeterrificante.~em
sabe,aocontemplarmosavaca,estamoscontemplandoo
homemdo futuro?
O futuroé,no entanto,apenasvirtualidade.Ainda é
tempodeagirmos. O progressonãoéautomático,
masresultantedevontadeseliberdadehumanas. O
progressorumo àvacapodeseraindasustado.Não, por
certo,"reacionariamente".Não pelatentativadenegaras
vantagensóbviasdavacaeaforçadaimaginaçãocriativa
quenelasemanifesta.Mas pelatentativade apropriara
vacaàsverdadeirasnecessidadese aosverdadeirosideais
humanos.A vacaé,semdúvida,ameaça.Mas tambémde-
safio.Deveserenfrentada.
Grama
Na frentedaminhacasacrescegrama.Não écurioso
isto?~ero dizer:nãoé curiosoo verboaoqualrecorri
paradizerquehágramanafrentedaminhacasa?Por que
nãodigoquenafrentedaminhacasacrescem,também,
formigaseumgato?E por quenãoháverboquedescreva
aocorrênciaespecíficadegramanafrentedaminhacasa?
Por quenãopossodizer "grameia",como digo "chove"
ou "neva"?E sedigoquehágramadonafrentedaminha
casa,estareiafirmandoalgoestruturalmenteidênticoàs
afirmativasde quehá, também,formigueiroe chuvana
frenteda minhacasa?Obviamente,a línguaportuguesa
temumjeitodeimporsobreo meupensamentodetermi-
nadasformasquemefazemcaptarosfenômenosdomun-
do sobaspectosdeterminadospor taisformas.Capto a
gramacomoalgoquecresce,eistoéo essencialdagrama.
No casodasformigasegatos,o seucrescerécaptadopor
Narurabnenrc VILÉM FLUSSER 61
mimcomoacidente.E captoagramacomoelementode
umcoletivo(O gramado),queéessencialmentediferente
decoletivostantodotipo"formigueiro"quantodotipo
"chuva".Depositoconfiançana"sabedoria"escondidana
língua:creioquealíngua"sabe"porqueimpõetaisfor-
massobreo meupensamento.Creioquea"essência"da
gramaéreveladaparamim,enquanto"crescer"eenquan-
toelementodedeterminadotipodecoletivo,atravésdas
formasdalínguaportuguesa.Souobrigadoacrernisto.
Do contrário,cairiaemmutismoouemexcentricidades
linguísticasdotipo:"nafrentedaminhacasaestáparado
umexércitodegramas".Mas,aodizeristo,tropeçono
caminhodo meudiscurso.~e excentricidadelinguís-
ticafoi esta?O exércitoparadodegramasnãocaptará,
eletambém,umaspectoda"essência"domeugramado,
aspectoesteescondidopelalínguacorriqueira?E não
teráistoavercomofamoso"poderrevelador dapoesia"?
Nãoacabo,poracaso,dedarpalavraà grama,numsenti-
dohusserliano,asaber:dar"nova"palavraàgrama?Não
acabodeterpermitidoàgramaarticular-se,paramim,de
umamaneiraportuguesarelativamentenova?Nãodarei,
atalpergunta,nemrespostaafirmativanemnegativaaes-
tasalturas.Registrareiapergunta.
Nafrentedaminhacasacrescegrama.Comocresce,
umpoucomaisadiante,trigo.E comocresce,nocentro
dacenavistadaminhajanela,umcedrofrondoso."Cres-
cer"serápoisaformanaquala línguacaptaaessência
daplanta?Erro.A gramanafrentedaminhacasacresce
muitomaiscomocrescemoscabelosnaminhacabeça,e
muitomenoscomocresceo cedro.A essênciadagrama,
reveladapelalíngua,nãoéasua"plantidade",maso fato
dequeagramapodeserdeixadacresceroupodesercor-
tada.A essênciadagramaésuacortabilidade.É espécie
do mesmogêneroaoqualpertencemtambémcabelos
e unhas.Gêneroesteessencialmentemanipulávelpor
manicure.A técnicaadequadaà manipulaçãodagrama
éensinadanossalõesdebeleza.O crescerdagramaées-
sencialmentediferentedocrescerdocedro(etambémdo
trigo).O critériodetaldiferençaessencialestánapráxis.
O barbeiroéquasecompetenteparaagrama,nãoparao
cedro.Mastaldiferençaessencialéescondidapeloverbo
"crescer"dalínguaportuguesa.~em tambémistoseja
registrado.
A cortabilidadedagrama(quelheéessencial)está
ligada,aparentemente,aocaráterdo coletivodoqualé
elemento.Coletivosdo tipogramado,cabeleiraebarba
sãocortáveis,coletivosdo tipotrigalsãocolheitáveis,e
coletivosdotipopinheiralsãomanipuláveisdeoutrama-
neira.(Paranãofalaremcoletivosdotipoformigueiroe
famíliadegatos.)Masacasounhasnãoserãoigualmente
cortáveis,enãoseráistoo "essencial"dasunhas?~al é
o seucoletivo,"unhal","unhado"ou"unheiro"? A
tentativadecorreraosocorroda"sabedoria"escondida
nalínguaportuguesafalha:aessênciadagramaéescon-didapeloverbo"crescer",atéseforçarmosligaçãoentre
talverboeo substantivo"gramado".Devemosconstatar
um tantoextralinguisticamentequea gramapertence,
essencialmente,à classedosfenômenoscortáveis,à qual
62 Natural:mente VILÉM F.LUSSER 63
pertencemtambémo cabeloeaunha,masnãoo trigo,a
formigaeo gato.(Emboratalclassificaçãosetornepossí-
velapenasgraçasàlínguaepor intermédiodalíngua.)O
quesurpreendeéo fatodequetal classificaçãonãocoin-
cidede maneiraalgumacom asclassificaçõescientíficas
ditas"objetivas".
Tais classificaçõesobjetivas(comoaliástodo o dis-
cursocientífico)tendema encobrira essênciadosfenô-
menosque explicam.Dizem, por exemplo,que grama
e trigo sãoparentespróximoseparenteslongínquosdo
cedro,masque seuparentescocom formigasé muito
remoto,e quesuarelaçãocom cabelose unhaséhierar-
quicamenteconfusa.É queaobjetividadecientíficaé,na
realidade,resultadodedeterminadoponto devistasobre
o mundo,ponto devistaestetomadoinconscientemen-
tepor preferencialsemjustificaçãoexplícita,e assumido
inconscientemente.Por certo,o ponto devistacientífico
nãopodesero assumidopor Deus "subspecieaeterni".
Porquesobtalponto devistaacortabilidadeserevelaes-
sênciadenumerososoutroscoletivos:dospinheirais,dos
formigueirose dahumanidade.Somos,de tal ponto de
vista,essencialmentetãocortáveisquantoo éagrama.Se
assumirmosponto de vistatão distanciado,não apenas
ahumanidadeserevelaráespéciedegramado,mastodaa
biosferaespéciedemusgocortávelacobrira superfíciedo
planetaT erra.Tal pontodevistadistante,no entanto,não
é nemcientíficonemexistencialmenterelevante.Apenas
distânciasmensuráveisemunidadestemporaise espaciais
compatíveiscomasdimensõeshumanassãosignificativas.
Pontosdevistasobos quaisa diferençaentregramadoe
humanidadesedilui sãodesumanos,portanto,pecamino-
sos.Argumentoapreciávelcontracertasreligiosidades.
GramaéessencialmentecabelodaTerra,ecabeloes-
sencialmentegramado corpo.De quepontodevista?Do
ponto devistado barbeiroe jardineiro.Tais pontosde
vistanãoforamassumidosaleatoriamente,foramimpos-
tos pelo fenômenomesmo.Não podemosassumirnão
importa queponto de vistaperantea grama.Não, por
exemplo,o ponto de vistado geólogoou do banqueiro.
Emboraestespontosdevistatambémabranjamgramae
cabelo,nãocaptarãoo queéessencialemambos.Parage-
ólogosebanqueirosgramaecabelonãoocupamo centro
do interesse;parabarbeirose jardineirosocupam.A es-
sênciaserevelaapenasquandoo fenômenocontemplado
ocupao centrodo interesse.
Gramaé essencialmentecabelodaTerra.É proble-
ma,comoo é não importaquefenômenonos cerca.O
problemadagramaéeste:deixarcrescê-Iaou cortá-Ia.É
problemaprático,provaquegramaé fenômenoconcre-
to.Não setratadeexplicá-Ia,trata-sedemodificá-Ia.Não
é problemado tipo: "qual a distribuiçãodos números
primos na sérienaturalde números?",porqueprovoca
práxis.Não, obviamente,deum ponto devistaobjetivo,
masdo ponto de vistado jardineiro.Objetivamente,o
problemadacortabilidadedagramasurgirámuito tarde
no discursoqueexplicaagrama.Primeiro,surgirãopro-
blemasrelativosa,morfologia,metabolismo,genéticaetc.
da grama.Provaqueo ponto devistaobjetivo(científi-
64 Natural:mcnre VILÉM FLL'SSER 65
co)abstraiedesconcretizaagrama.O pontodevistado
jardineirocaptaaessênciadagramaconcreta.Masé fato
queo jardineiropodecortaragramacientificamente.A
ciênciaé umavoltalongaquepassapeloslabirintosda
abstraçãoparareencontrarofenômenoconcretodoqual
partiu.Talvoltaenriqueceapráxis(eavisão)concretado
jardineiro.Masquandosetratadedescobriraessênciada
grama(suacortabilidade),melhorépôrentreparênteses
talvolta.
GramaéessencialmentecabelodaTerra.A decisão
dedeixá-Iacresceroucortá-Iadepende,emparte,dasi-
tuaçãoculturalnaqualnosencontramos.É, emparte,
questãodemoda."BeautifyAmerica,havea haircut"
(embelezea América,corteos cabelos),implicatam-
bém:("corteou nãoteugramado")."TheGreeningof
America"(O tornarverdeaAmérica)évisãodaAméri-
cadopontodevistadojardineiroebarbeiro.Tal ponto
devistapodeserdescoberto,aliás,emmuitaespeculação
daNovaEsquerda(Marcuse),edeuma"filosofia"inspi-
radapelaecologia.Há esteticismoimplícitoemmuitas
dessastendênciasnovas,porquetaistendênciasnascem
emsalõesdebeleza.ParaaNovaEsquerda,o proletário
portadordofuturonãoé,aparentemente,ometalúrgico,
maso barbeiro.Seráefetivamentenovotalesteticismo?
Ou nãoseráromântico,combarbas(egramados)lon-
gas?Críticaimpertinente.Tudo o queénovo tem,em
certosentido,barbalonga."Nil novisubsole."Masnão
esqueçamosqueaessênciadabarbaésuacortabilidade.
Nãocortaragrama,deixarcrescê-Ia,estáatualmentena
moda.Dizemquedistodependeaprópriasobrevivência
dahumanidade.Abaixoo aparelhocortadordegrama,
porqueabaixotodoaparelho!O pontodevistadobar-
beiro(oudoantibarbeiro,queéamesmacoisa)contesta
o pontodevistado aparelho(o dooperárioedonode
fábricadeautomóveisecortadoresdegrama).Asbarbas
longasdeambosospontosdevistasão,noentanto,cortá-
veis.Cornoécortávelabarbalongadacontradiçãoentre
opontodevistaéticodafábricadecortadoreseoponto
devistaestéticodojardineiro.~em cortabarbasassim
transcendemodas(étransmoderno).Estruturalista?Sim,
masestruturalista-barbeiroqueprecisacortarsuaprópria
barba.Cortaraprópriabarba:práxisreflexiva?
Gramaé essencialmentecabeloda Terra.Deixar
crescê-Iaé permitirà Terraqueseja.Atitudechthonica,
telúricaetc.,portanto.Atitudecontráriaà repressãourâ-
nica(espiritual)daTerraexercidapeloaparelho(decortar
grama).Cabeloé essencialmentegramadocorpo.Deixar
crescê-Ioé permitiraocorpoqueseja.Atitudecontrária
à repressãodocorpopeloaparelho.O corpo-Terra,con-
juntonão-históricoemrevoluçãocontraahistóriapro-
movidapeloespírito-aparelho.Rousseau-Marx-Marcu-
se?Não,fundamentalmente.Fundamentalmente:salão
debeleza.Esteticismonietzschianoemrebeliãocontrao
"niilismo"dojudeu-cristianismo.Urgedefinirmelhora
relaçãoentregramaeTerra,eentrecabeloecorpo,para
descobrirfenomenologicamenteaTerraportrásdagra-
maeocorpoportrásdocabelo.Gramaecabelo"cobrem"
Terraecorpo.É porculpadagramaedocabeloquenão
66 Narural:menre
osvemos.SerágramaaindaTerra(MagnaMater,útero
etc.)eserácabeloaindacorpo(conjuntodeexperiências
concretasedegestos)?Não,porquegramaecabelosão
essencialmentecortáveis,eTerraecorpoessencialmen-
teincortáveis.Terranãoécortável,porquefundamenta.
Corponãoécortável,porqueestásemprepresenteco-
migo.Terraecorposãoincortáveis,porquenãoestãono
tempo.Daíasuanão-historicidade.Deixarcrescergrama
ecabeloé aindadecisãohistórica(espiritual,enquadra-
dano aparelho):édeixarencobertaanão-historicidade
daTerraedocorpo.Possivelmente,o métodoopostoé
maisindicado?Cortargramaecabelotãoradicalmente
queapareçaaTerraeocorpo?Fazerfuncionaroaparelho
atéqueelepróprioseleveaoabsurdo?O barbeirocomo
proletárioportadordofuturo,nosentidode"revelador"
daconcreticidadenão-históricadaTerraedocorpo?Ou
seráistocolaborarcomoaparelhoeserporeleabsorvido?
Não:éapropriarosalãodebeleza.
Asfalhasda"sabedoriadalíngua"comrelaçãoàgra-
maforamdevidamenteregistradas.É quealínguafazpar-
tedoaparelhocortadordegrama.É possíveltranscender
alínguaeo aparelho.A visãofenomenológicaopermite.
Masdepoisénecessáriorecorrernovamenteàlínguaeao
aparelho.A visãofenomenológicaopermite.Masdepois
énecessáriorecorrernovamenteà línguae aoaparelho,
paraforçá-Iosafuncionaremcontrasipróprioseemfa-
vordaessênciadagrama.ProgramarazoáveL
Dedos
Procuroobservá-Iosenquantobatemasteclasda
máquinadeescreverparaproduziremo presentetexto.
Tarefadura,porquesituaçãocomplexa.Devoobservar
osdedosenquantoescrevemtextoquetemaobservação
dededosporassunto.Mastarefaapaixonante.Porquea
complexidadedasituaçãosedeveaoconstanteespelhar-
sedaobservaçãono observado.Trata-se,portanto,da
complexidadedassituaçõesreflexivas.Ao observaros
dedos,reflito-meneles,eosdedosserefletememmim,
aoseremobservados.~ando concentromeuinteresse
sobreosdedos,encontroamimpróprioemtalcentro.Eu
soumeusdedoseosmeusdedossãoeu.Eusoudelestan-
toquantoelessãomeus.Possivelmente,aco-implicação

Outros materiais