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.,.«N UJ ~ ::> ~z UJ O O O«u- u.. ~NATURAL:MENTE V) O« Vl O Vl Vl UJu« Vl O ,~ /\N~E A ColeçãoComunicaçõespretendemostrato amploesedutorlequede horizonteseperpectivascríticasqueseabreparaumajovemciênciaque nãoéapenasciênciasocial,masquetambémsenutreetransitanasciências daculturabemcomonasciênciasdavida.Afinal, apenassobrevivemos, comoindivíduo e comoespécie,secompartilhamostarefas,funçõese fruições,valedizer,sedesenvolvemosumaeficientecomunicaçãoquenos vinculeaoutraspessoas,aoutrosespaços,aoutrostempos,eatéaoutras dimensõesdenossasubjetividade. Conheçaostítulosdestacoleçãonofinaldolivro. COLEÇÃO COMUNICAÇÕES Direção: Norval Baitellojunior /\N~ DadosInternacionaisdeCatalogaçãonaPublicação- CIP F668 Flusser,Vilém (1920- 1991). Natural:mente:váriosacessosaosignificadodenatureza.!VilémFlusser.- SãoPaulo:Annablume,2011.(ColeçãoComunicaçóes). 164p.: 14x21 cm. ISBN 978-85-391-0260-0 Sumário 1.Filosofia.2.TeoriadoConhecimento.3.Natureza.L Título. 11.Série. lH. Váriosacessosaosigníficadodenatureza. CDU 165 CD]) 121 CaralogaçãoelaboradaFor WandaLuciaSchmidr- CRB-8-1922 Natural:mente Váriosacessosaosignificadodenatureza ©Edirh Flusser 1"edição,julho de2011 ANNABLUME edirora.comunicação RuaM.M.D.C., 217.Buranrã 05510-021. SãoPaulo. SP .Brasil Tel.eFax.(011)3812-6764- Televendas3031-1754 www.annablume.com.br ConselhoEditorial EduardoPenudaCafLizal Norval BaiteIlojunior Maria Odila LeitedaSilvaDias CeliaMaria Marinho deAzevedo GustavoBernardoKrause Maria deLourdesSe_keíf(in memoriam) PedroRoberroJambi LucréciaD'AlessioFerrara Caminhos(umaespéciedeIntrodução) 07 Vales 19 Pássaros 29 Chuva 39 O cedrono parque 45 Vacas 53 Grama 59 Dedos 67 Alua 75 Montanhas 85 A falsaprimavera 95 Prados 103 IvanAntunes Vínícius Viana Juliana Biggi CarlosClémen Vinícius Viana Coordenaçãodeprodução: Diagramação: Revisão: Capa: Finalização: Ventos Maravilhas 113 121 Caminhos (UmaespéciedeIntrodução) Botões 129 Neblina 137 Natural:mente(umaespéciedeconclusão) 147 Duasexperiênciasestãoconfluindoparaignoraro redemoinhodasreflexõesaseremrelatadasemseguida. A primeiraéaúltimapassagemdo autorpeloPassode Fuornqueuneo valedoEnghadincomarededevales alto-adigianosnoencontrodasfronteirasdaItália,Áus- triaeSuíça.A segundaéavisitarecentequeo autorfez aosmeniresdeCarnacnaBretanha.Antesdepermitiràs duasexperiênciasconfluírem,oautordevedescrevê-Ias. O PassodeFuornéestradaasfaltadanãomuitolar- ga,pornãosermuitofrequentada,já quecomunicare- giõespoucohabitadas.É, no entanto,mantidolivreda neveduranteo invernotodo,quandoestradasmaisim- portantesestãofechadasaotrânsito,porquenãoexiste ligaçãoalternativaentreasregiõesqueune.Trata-sede estradalateraldagrandeartériaquepartedeCoiraem direçãoaMilãopelopassodeMaloiaequeformauma 8 Natura[;menre VIJ.,ÉM FLVSSER 9 daspassagensnorte-suldocentroeuropeu.Saidaquelaar- tériaemZernez,novaledoEnghadin(nãomuitolonge deSãoMoritzdosmilionáriosamericanosedosxeiques petrolíferos,edeSilsMariadoNietzschezaratustriano), sobepeloParqueNacionaldoEnghadinatéaalturade uns2.300metros,descepelovaledoVanostadasaldeias ladinasecastelosgadoselangobardosepelovaledoAlto Adige,nosquaisseconfundecomaestradaqueDrusus construiuparavencerosréticose alcança,emBolzano (aclássica"PonsDrusi"),aauto-estradaMunique-Roma queé,por suavez,aVia FlaminiapelaqualGermânico penetrouemnomedeRomanasflorestasteutônicas,e pelaqual,emsentidocontrário,o ImperadorHenrique viajou,penitente,parasubmeter,emCanossa,acoroado SantoImpériogermânicoàautoridadedoPaparomano. Ao ligar,assim,transversalmente,duasartériasimportan- tes,aestradadoPassodeFuorn(nomeladinoquesig- nifica,obviamente,PassagemdoForno)pareceserobra recentedeengenharia,destinadaadescarregarpartedo trânsitopesadodecaminhõesquerolam,emcadeiainin- terrupta,entreo centroeuropeue a penínsulaitaliana. Obradeengenhariarecenteeousadaqueexigiuaaplica- çãodosmétodosmaisavançadosdatecnologia. O autorviajouporelarepetidasvezesesempread- mirounãoapenasasmajestosasvistasdecumesegeleiras, mastambémabelezadasuascurvas.Destarte,o espírito humano,munidodosinstrumentosdaciência,conseguiu literalmenteperfurarossegredosdanaturezae abri-Ias à contemplação,econseguiufazê-Ianaformadebeleza. Atéqueo autorleu,emumlivrodepaleoantropologia, quePassodeFuornfoi,duranteincontadosmilênios,o caminhodasmanadasdecavalosselvagens,dogado"Ur" edasrenas,perseguidaspeloscaçadorespaleolíticos,nos- sosantepassados.O traçadodaestradaatualfoi"constru- ído"portaismanadas.O projetodaestradaédoscavalos, dostouros,dasrenas.Apenasasuaexecuçãoatualépro- dutodetrabalhohumano,comodevemtersidoincontá- veisexecuçõesanteriores.Seprojetoeideiaforamconsi- deradosconceitosparentes,quemteveaideiadefazera estradaforamosanimaisdatundra.Foramelesosqueou- saram.E nós,queviajamosdeautomóveldeBolzanopara Zarnez,estamosapenasseguindoosseuspassos,exata- mentecomoofaziamoscaçadores,nossosantepassados. ~em viajaparaa Bretanha,comoo fezo autor nasemanapassada,penetraregiãomisteriosapor mul- tiplicidadederazões:porcausadecuriosasconstruções, chamadas"calvários",queacaracterizam;porcausado Mont-Saint-Michel,essemonstromonástico,esseMon- teAthosdoOcidente;porcausadaslendaspseudocris- tãsdosbretõesqueparalásemudaram,depoisdeterem sidoexpulsosda"grande"Bretanhapelosanglo-saxões, osquaiscontinuam"bretonando"atéhoje,quandosua línguaeculturadesapareceramnapátriainglesahámui- to;porcausadaquelecuriosíssimopovocelta,chamado "opovodomar=armoricano",quejamaisfoirealmente domadonempelosromanos,nempelosgauleses,nempe- Iasbretões,nempelosfrancos,nem,diga-sedepassagem, pelosburguesesparisiensesqueestãoconstruindoseus 10 Natural:mcnte VILf:M FLUSSER 11 edifíciosdeapartamentosnaspraias"armoricanas".(Mas tambémestãosendodomados,comoo estásendoo resto do Ocidente,pelaculturademassa,demodoquepassam, atualmente,de "armoricanos"paraamericanos.)No en~ tanto,aregiãoémisteriosaprincipalmentepor causados povosqueantecederamosarmoricanos,edosquaispou- co ou nadasesabe,a não serqueconstruíram(seé que "construir"é o termocerto),entreosanos6000e4000 antesdeCristo, aquelesconjuntosincríveisdepedrasem Carnace,do outro ladodo Canal,emStonehenge.~e genteeraessa,quemaisde2000anosantesdaconstrução daprimeirapirâmideegípcialevantavaabsurdamentemi- lharesdepedraspontudaseirregulares,centenasdasquais pesamum múltiplo do pesodo Obeliscona PlacedeLa Concorde,cujaereçãoexigiuo esforçomáximoda téc- nica iluminista,e todo o ardor romanticamenterevolu- cionáriodaRepúblicaFrancesa?O autornãoencontrou, atéagora,naliteraturaconsultada,respostasatisfatóriaa tal pergunta.Encol1trouapenasinterpretaçõesfantásti- casdo tipo "O despertardosmágicos",ou interpretações banaisdo tipo freudiano"phallus".Tais interpretaçõese outrassemelhantesnãosatisfazem.Porquediantedetoda obrahumanasurgeaperguntado motivoedafinalidade daobra.Já queé isto quedistingueculturade natureza: asobrasdaculturatêmsignificado,sãodecodificáveis.Os meniresde Carnac sãoabsurdamentemisteriosos,por- queperdemosa chavedo códigoquelhesconfereo seu significado.Não sabemosmaispor queeparaqueforam elevados,esomosobrigadosa"interpretá-Ios",emvezde d "1'1 "po ermos e-os . Os milharesde meniresquecobremaplanícieem tornodaaldeiadepescadoresecultivadoresdeostras"be- lonnes",chamadaCarnac (nomequesugeremisteriosa- menteo Egito,e,por seusufixo"-ac",passadoqueaponta alémdaIdadedo Bronze),parecem,àprimeiravista,um amontoadode ruínasespalhadascaoticamente,comose um edifíciodeproporçõestransumanastivesseruído em terremoto.Mas,poucoapouco,o observadorvaidesco- brindoqueo quepareceseracasocaóticoé,narealidade, ordemultracomplexa.As pedrasnãoparecem,sobobser- vaçãomaismeticulosa,umaespéciede estátuas"objets trouvés"ou"minimalart"deproporçõesgigantescas,maselementosdecercasinvisíveisoudesaparecidas.E taissu- percercas,quandomentalmentereconstituídas,passama delimitarcentenasdecaminhosquesecruzamerecruzam em desenhogeométricoaltamentesofisticado.A visão mentalfazsurgirumconjuntodeavenidasealamedasco- lossaisdentrodo qualo menirindividualpassaaserape- naselementodetraçado,apesardesuasproporçõesgigan- tescas.E seasprópriasrochassetransformamemanões emtallabirinto,quedizerdenóshomens?Passamosaser formigasquecorrem,'desorientadas,dentrode avenidas ealamedasdestinadasaseresdeordemdegrandezadife- rente,queprocuramapalpar,comsuasantenasmentais, osmeniresindividuaisa fim dedescobriremquaisos se- resqueoutroracaminhavampelasavenidas.Semdúvida: osmeniresforamcolocadosnosseusdevidoslugarespor gentecomonós,emboracomesforçoe métodosdificil- mente imagináveis.Mas o projeto da construçãonão podemuito bemseter originadona mentedessagente. 12 Natural:mentc VILÉM FLUSSER 13 A construçãonãopodeterservidoa nenhumanecessi- dadesua.Tal projetodevetertidoorigemdiferente,ter sido"inspirado"dealgumamaneiranamentedoscons- trutores.Ao construíremos"alinhamentos"deCarnac, ospovosignorados,habitantesdaBretanhapré-egípcia, devemterobedecidoaprojetosporelesprópriosignora- dos,afimdeabriremcaminhoscomfinalidadeignorada. As duasexperiênciasrelatadasconfluemnumpon- to:o do projetodecaminhos.E asreflexõessepõema giraremtornodetalpontoemcírculosrapidamentecen- trífugos,jáqueostermos"projeto"e"caminho"sãopre- nhesdesignificado.Tal fugadocentropode,noentanto, serdisciplinada,seo pensamentoseagarraraumúnico aspecto,porassimdizerconcreto,doproblemaquesepõe quandoasduasexperiênciasconfluem- o problemade osprojetosdoscaminhoshumanosnãoseremnecessaria- mentehumanos.No casodo PassodeFuorn,o projeto parecetersidopré-humanoe,nocasodoalinhamentodo Carnac,parecetersidoextra-humano.Seo pensamen- to seagarraraesteaspecto,torna-sepossíveladistinção entredois tiposde caminho:os projetados,traçados, imaginados,programadospordeliberaçãoclara,distinta econsciente,eosoutros.Exemplosdoprimeirotipose- riamo EixoMonumentaldeBrasíliaeaTransamazôni- ca,eexemplosdosegundo,o PassodeFuorneCamac. Taldistinçãopodecontribuirparaoaprofundamentoda compreensãodadialéticaentrenaturezaecultura. Somostentadosaafirmarqueadiferençaentreca- minhosconscientementedeliberadoseosoutrossedeve àsuaidade;oscaminhosantigos,ospré-históricos,seriam aquelescujosplanoseprojetoscaíramrioesquecimento e,por isso,parecemanós,observadorestardios,nãote- remsidodeliberados.Osfenômenosnãoconfirmam,no entanto,talafirmativa.Os caminhosdosaledoâmbar quecruzamaEuropasãoantiquíssimos,erevelam,noen- tanto,projetosdeliberados.E oPassodeFuoméumadas maisrecentespassagensalpinas.~erer, pois,afirmarque quantomaisantigoumcaminho,tantomenosartificial e,portanto,tantomais"natural"será,nãosesustenta.A naturalidadeouartificialidadedeumcaminhonãoéfun- çãodasuaidade,nãopodesê-Io,já queahistórianãoé simplesmenteprocessodeartificializaçãocrescente,mas processoqueretomaperiodicamenteàsfontesnaturais dasquaisbrota.Outratentativadeexplicaradiferença deveserensaiada. Talvezesta:osquatroexemplosdecaminhos,suge- ridosnesteensaio,podemserreagrupados,tendoporcri- térionãoseuprojeto,masafunçãoàqualservem.O pas- sodeFuorneaTransamazônicaservemaotransportede mercadoriasedepessoas;Camaceo EixoMonumental servemcomosímbolos,transportammensagens.É claro, ocritérionãoéexclusivista.O EixoMonumentalé,tam- bém,canalpeloqualfuncionáriosdosdiversosMinisté- riossedirigemaolocaldetrabalho,easalamedasdeCar- nacdevemtertambémservidodeestradasaos"druidas". E oPassodeFuorneaTransamazônicasãotambémsím- bolosdealgo(oprimeiro,talvez,doMercadoComum, asegunda,certamente,doBrasilGrande).No entanto,a 14 Natural.:mente VILÉM FLUSSER 15 funçãosimbólicapredominanumdosdoispares,eafun- çãoeconômicanooutro,pois,separtirmosdocritérioda função,adiferençaentrecaminhosdeliberadamentepro- jetadoseosoutrossetornamaisclara. O PassodeFuoméestradamuitomaistecnicamen- teelaboradaqueaTransamazônica,aqualnãopassa,em largostrechos,decaminhosdeterra.Nestesentido,o PassodeFuomémais"artificial",mais"cultura"eme- nos"natureza".No entanto,aTransamazônicaseimpõe muitomaisàpaisagemqueatravessa,avançanãoapenas nela,mascontraela.Devoraafloresta,enquantoo Passo deFuomasalienta.Nestesentido,aTransamazônicaé muitomaisartificialecultural:representamuitomaisa vitóriadadeliberaçãohumanasobreascondiçõesnatu- raisimpostasaohomem.O códigodoqualo EixoMo- numentalparticipaenquantosímbolo(aviãoquedecola rumoaumfuturoesplêndido,Alvorada,BrasilGrande, etc.)émuitomaisdenotativo,claroedistintoqueo có- digodoqualparticipaCamac,enãoapenasporquedele perdemosa chave.O códigode Camacdeveter sido sempreobscuroe altamenteconotativo.A mensagem doEixoMonumentalexige,pois,leituradiferentedade Carnac:maisintelectualqueintuitiva.Nestesentido,o EixoMonumentalémuitomaisartificialeculturalque Carnac:representamuitomaisavontadehumanadedar sentidoaomundo,demaneiraqueaartificialidadedeum caminhoparecenãodependerdasuaelaboração,nemda suafunção,masdo climaexistencialqueo cerca.Pelos caminhos"artificiais","culturais",oshomenscaminham altivosrumoaumdestinoqueelesprópriosprojetaram. Peloscaminhosmisteriosos,"naturais",oshomenscami- nhamseguindoospassosdeseresignoradosouvagamen- teintuídos,rumoaumdestinoignoradoouvagamente intuído.Ou,comoemCamac,semrumoaparente.E já queháestesdoistiposdecaminho,hátambémdoistipos de"homoviator". No entanto,taldistinçãoentrecaminhos"naturais" e "artificiais"sugere,à primeiravista,conceitointeira- menteinsatisfatóriode"arte"ede"cultura"."Cultura" seria,deacordocomtalcritério,aimposiçãodeliberada deumsignificadohumanoaoconjuntoinsignificantede "natureza",e "arte"seriao métodopeloqualo espírito humanoseimpõesobreanatureza.Emboramuitospos- samefetivamenteesposartalconceito,éeleinteiramente insatisfatório,eacontemplaçãodoPassodeFuomede Carnaco prova.Fossesatisfatórioo conceito,aTransa- mazônicaseriaprogressoculturalsobreoPassodeFuorn, eoEixoMonumentalseriaobradeartemaissignificativa queCamac,porquenaTransamazônicaenoEixoMo- numentalo espírítohumanoseimpõemaisnitidamente sobreanaturezadasGeraisedaFloresta.Narealidade,o PassodeFuomseapresentacomoobradearteaopropor- cionarvivênciasfortes(aorevelar"visõesdarealidade"), eCarnacseapresentacomotestemunhodeumacultura perdidaeesquecida,mastãosignificantee"válida"quan- to o éanossa.Portanto,caminhosantinaturaisnãosão necessaríamentefrutosdeumaartemais"evoluída"ecul- turanãoénecessariamenteantinatureza. 16 Natural:mente VILÉM FLVSSER 17 Os doistiposdecaminhosugerem,pelocontrário, quehádoistiposdecultura,cadaqualaplicandoartedife- rente.O primeirotipodeculturaseriaprodutodoesfor- çodeelaborarefazerresplandecersempremaisaessência danatureza,esuaarteseriaométodopeloqualtalessên- ciaérevelada.O PassodeFuorneCarnacseriamobras dessetipo decultura.O segundotipodeculturaseria, efetivamente,ptodutodo esforçodeliberadode impor projetoshumanossobreanaturezaedefazerresplande- cersempremaisaessênciadoespíritohumano,esuaarte seriao métodopeloqualtalessênciaérevelada.A Tran- samazônicaeoEixoMonumentalseriamobrasdessetipo decultura.No entanto,talesquematizaçãosimplificao problema.Provavelmente,osdoistiposdeculturaearte nãoexistem,nemjamaisexistiram,emestadopuro.E que todaculturaconcretaetodaartesãomisturaousíntese dosdoistipospropostos.O quetornaextremamentepro- blemáticonãoapenasquererdistinguir,ontologicamen- te,entreváriasculturas,mastambémquererestabelecer rigorosadialéticaentreculturaenatureza. Istoimplicaqueo "homoviator"nãoéumserque podeescolherentrecaminhosdeliberadose caminhos misteriosos,equepodefazê-Iadeliberadaouespontane- amente.Implica,aocontrário,queo"homoviator"éum serquecaminhaoraporcaminhosdeliberados,orapor caminhosmisteriosos,e o fazoradeliberadamente,ora espontaneamente,eque,namaioriadasvezes,caminha, empartedeliberadamente,emparteespontaneamente,por caminhosparcialmentedeliberadose parcialmente misteriosos.Porqueo PassodeFuorne Carnacdeum lado,eaTransamazônicaeoEixoMonumentaldooutro, sãocasosdelimite("Grenzsituationen").A maioriados caminhosé comoaautoestradaDel SoleeaviaDutra, oucomoaruedeSeuneouaruaDireita,maisoumenos maltraçadas,equesãotraçados"mal"porqueo espírito humanonãoconseguiuseimpordetodo.É portaiscami- nhosquecaminhamos,viaderegra. Vales Temosváriasmaneirasderelacionar-noscomana- tureza,algumasdasquaispodemserchamadas"sobrena- turais","teóricas"ou "perspectivas"(segundoos nossos váriosgostos).Uma detaismaneiraséencararanatureza comosefosseum mapa.Invertemos,sobtalvisão,arela- çãoepistemológicaentrepaisageme mapa.O mapanão maisrepresentaapaisagem,masagoraé apaisagemque representao mapa.O mapanãomaisservedeinstrumen- to paranosorientarnapaisagem,masagoraéapaisagem queservede instrumentoparanos orientarno mapa.A verdadedeixadeserfunçãodaadequaçãodo mapaà pai- sagem,epassaaserfunçãodaadequaçãodapaisagemao mapa.Tal furiosoidealismo,inculcadoemnósnosginá- sios,seexprimenasentença"omaréazul,easpossessões inglesassãovermelhas".Sobtalvisão,valespassamaseros caminhospelosquaisaáguacorreemdireçãoaooceano. Visão"científica",esta? 20 Naturalrmente VILÉM FLUSSER 21 Temos,no caso,determinadomodelo.O da circu- laçãodaágua.Não importaaquiaorigemdo modelo.O modeloprevê(no sentidode "manda"e de "profetiza") queumadasfasesdo ciclodaáguasejaadescidadaágua dasserraspor vales.A observaçãodapaisagemconfirma o modelo.Ou seja:a paisagemseadaptaao modelo(ao "mapa").Respondeu"sim".Os valessãorespostasafirma- tivasà investigação"espiritual"(formal)do mapa.Loucu-- ra?Sim,nosentidodo"espírito"serloucura,dohomemser animallouco.E não,no sentidodo "espírito"sernegação, do homemseranimalquepodemudarvalesconstruindo represas.Paraqueméengenheiro,talvisãodo valeé"ade- quada".Paraquemmorano vale,essavisãoé louca.Mas seráqueengenheirosnãopodemmorarnosvales?Não po- dem.Enquantoengenheiros,moramnosmapas. Eu nãosouengenheiroemoronumvale.Ou moro? Embora não sejaengenheiro,sou,eu também,homem. Animal louco.Tambémeufui expulsodo paraíso,enão apenasosengenheiros.Não possomorarnovale,ou,pelo menos,não o possointegralmente.Também eu moro, parcialmente,no reino dos engenhos,emboraos meus engenhosnão sejamos do engenheiro.Não faço,como fazo engenheiro,"ciênciada natureza".Sou,ai demim, humanista.Minha loucura é outra.Vales, para mim, tambémsãocaminhos.Não, por certo,da água.Mas ca- minhosparahomens.Eisporquenãopossomorarnovale tão integralmentequantonelemoram,por exemplo,as corças.Corçasandamnovale,eeuandopor ele.Atraves- soovale(sejadelágrimas,sejadesorrisos).Homo viator. Cavaleiroerrante,judeu errante.Estrangeiro.Mas não integralmente.Seeu andopelovaleda sombrada mor- te,Tu estáscomigo.Como entãoéverdeo meuvale!No entanto,o valeé meu,e eu não soudele.Não sou dele porqueeutambémdisponhodemapa,aoqualmeuvale deveresponder"sim ou não", adequar-se.Meu mapa, meuengenho,éeste. A humanidadeéhordadeinvasores,deimigrantes. Invadeapaisagemhá,provavelmente,uns 8 milhõesde anos.Em váriaslevas.Em buscaderenas,mamutes,gra- míneos,gado,sal,carvão,eletricidade,emsuma,embusca da felicidade.De ondevemahorda,não sesabe.Prova- velmente,équestão"falsa"esta;nãohá métodoparares- pondê-Ia.Emboranãopareçaser"falsa",já que8milhões deanosnãosãotantotempo,afinaldecontas.Mas para ondevaiahorda,istosesabe.Sobe.Sobeaolongodosrios edosriachosemsentidocontrárioaodaágua.Sobepelos vales.Os valessãoasartériaspelasquaissobeo sanguedo rio dahumanidade.E osestreitosvalesmontanhosossão oscapilares.Neles,ainvasãoestagna.Sãoelesrepresasem sentidocontrário ao do engenheiro.No meumapa,os primeirossãoosúltimos:osbandeirantesmaiscorajosos queformamapontadalançainvasoraepenetramosvales maisestreitossãolá represadosparaformaremosúltimos vestígiosdahorda.Eu moro(no sentidoproblemáticodo termo)emum valeestreitomontanhoso.Agorarespon- da "simou não",meuvale.Respondaa minhapergunta "perspectivista","historicista",humanista. Estevaleaqui,no últimotempointerglacial,erapro- vavelmentehabitadopor homensda espécieheidelberg, 22 Natural:menre VILÉM FL USSER 23 quandoaplanícieláembaixojáerahabitadaporhomines sapientes.~ando aplaníciejá eraneolíticae plantava grama,aquiaindacaçavampaleoliticamentecabrasalpi- nas.~ando aplaníciefalavaréticoeusavabronze,aqui aindahaviaaldeiasneolíticassemdivisãode trabalho. Aqui aindasefalavarético,quando,naplanície(epelo mundoafora),jásefalavalatimegrego.~ando omédio alemãodominavao SantoImpério,aquisefalavaladino. E hojesefalaalemão,quandoaplaníciejá falaitaliano. Masnospequenosvaleslateraisaindasefalaladino.E o réticoaindanãomorreunospequenosaglomeradosnos abismosacimade3.000m.E existemcasascamponesas construídasneoliticamente.E há,noslaguinhosisolados aopédasgeleiras,gentequepescapaleoliticamente.E não haverá,nosrostosdosmontanheses,traçosneanderthale heidelberguianos?Meuvalerespondeu:"sim,souestru- turadodeacordocomo teumapa".Moro emrepresada históriadahumanidade,naqualo "anterior"passaaser o "maisvaleacima",eo "posterior"o "maisvaleabaixo". Estratihcaçãocontráriaà dageologia,esta.Não surpre- endentemente:as"humanidades"têmmapascontrários aosdas"ciênciasdanatureza".O tempocorreemdireção opostanasduasdisciplinas.Nasciênciasdanaturezacor- rerumoàentropia;nashumanidades,rumoàinformação crescente.A águacorreemdireçãoopostaà doriodahu- manidade.A estratificaçãohistóricadomeuvaleseopõe à suaestratihcaçãogeológica,comoo "espírito"seopõe aomundo.Porqueo mundoépassagem,eo "espírito"é aventura. Meuvalenãoéinteressanteapenaspelofatodeeu morarnele.Podesergeneralizado.Nãoéassimquehm- cionao"espírito":generalizando,classificando,projetan- dopara"cima"?Istoé:esvaziando?Estemeuvaleconcre- toaquipodesergeneralizadoparaaformavazia:"classe devales".Porissoéinteressante.Podeservirdeexemplo concretodaclasseabstrata"vales".Inversãoepistemoló- gica,portanto.Meuvaleéinteressanteporque,feitaain- versão,permiteperguntasdotipo:tradiçãoouprogresso? No meumapa,valessãooslugaresparaondeoprogresso avançaeondeestagna.Masondeestagnacomdetermi- nadaestrutura.Na estruturada"memória"no sentido platônico,biológico,psicológico,cibernético(e talvez outro).Vales,no meumapa,sãoarmazénsdainforma- ção,conservas.Conservadorestradicionais,portanto.No meumapa,oprogressocorremorroacimaparaserarma- zenadonosvalesmaisestreitos.No meumapa,ametado progressoéserconservado.É quemeumapaémapade humanista,nãodeengenheiro.Por isso,o "nuncstans" do valeaparecenelecomometado "pantarhé",como ChangriLá,emsuma.Todohumanismoéutópico:visa à estreitaplenitudedovaleevênaamplavacuidadeda planícieapenasestágiodepercurso. Primeiratentativaderesposta:valessãoarticula- dos.Sãoestreitosecercadosdeobstáculosquepermitem poucasedifíceispassagens.Tal articulaçãoostorna"or- gânicos",istoé,dificilmentemecanizáveis.Nãopodem serfacilmenteenchidosde"massas"quesemovemme- canicamente.Não sepodeconstruirnelescomfacilida- 24 Natural:menre VILtM FLUSSER 25 de pirâmidesfaraônicas,circos máximosou bancosde cinquentaandares.Tais coisasnãocabembememvales, nãopor seremosvales"pequenos".As montanhasqueos cercamsãomuitomaisaltasquepirâmides,circoseban- cos,e avivênciado valeé degrandiosidade.Não por se- rem"pequenos"osvales,maspor seremarticulados,não servemelesa culturasde "massa".Portanto,o progresso massificadordaplaníciesedestinaa serarticulado("lm- manizado")nosvales. Segundatentativaderesposta:valesabrigam.Todo valeformaum universo,com suaprópria faunae flora, umpoucodiferentedadopróximovale.Com suaprópria economiaeestruturasocial,suaprópriaarquitetura,mú- sica,suasprópriaslendas.E osuniversossãoosvalesque nãosecomunicamentresi,masapenascom aplanícieque écomumatodos.É nestesentidoquevalesabrigam:não por isolaremdo restodo mundo,maspor comunicarem indiretamentee por grandesvoltas.Istotalvezdistinga asculturasquebrotamdeumarededevalesestreitosdas culturasdasplanícies:são"confederativas",enão"federais" comoestas.Por exemplo:asculturasgrega,judia,tibetana, toltecaeincaica,emcomparaçãoàsculturasromana,meso- potâmica,hindu,maiaechipcha.Portanto,a"civilização" daplaníciedestina-seaseraculturadanosvales. Outras respostasdo mesmogênerosãopossíveise facilmenteformuláveis.Todasdirãoqueahistóriaépro- cessoque temvalespor meta.Ou queacontecimentoé processoquetemmemóriapor meta.Ou queprogresso é processoquetemtradiçãopor meta.Em suma,todas dirãoquearmazenarinformação(negentropia)é ameta dahumanidade.E dirãoaindaquevales(memórias,tra- dição,negentropia)não sãolugaresparados,nos quais maisnadaacontece.São,pelocontrário,lugaresnosquais a informaçãoé constantementereagrupadae reestrutu- rada.Falandocomunicologicamente:valessãooslugares nos quaisos discursosdasplaníciessãodialogados.Por isso,valessãooslugaresdepensadoresedepoetas.Desde HeráclitoatéNietzsche.DesdeDavi atéRilke.Mas não paraprofetas.Profetasnãohabitamvales.Meu mapanão comportaprofetas.Devoampliá-Io. Profetaspassampelosvalese sobematéo cumeda montanha.Dão um passoalémdoshabitantesdo vale. E depoisvoltam.Na volta,nem sequerdescansamno valequeatravessam.Dirigem-sediretamenteà planície paracontarsua"nova".Contam avistaquetiveramno cume.Paraeles,o valeécanalentreplanícieecume,een- trecumeeplanície:canalbivalente.Na ida,écanalentre redundânciaeruído.Na volta,canalentreruído e infor- maçãonova.Na ida,écanalentrealienaçãomassificadae solidão;navolta,entresolidãoeengajamento.Eiso queé valeemmapaprojetadodocumedamontanha.Não mais represa,masmeiodo caminho.Em tal mapa,quemestá novaleestánomeiodocaminhodasuavida.E apergunta quesepõeemtalmapaéesta:quemestánovaleaindaes- tarásubindo,oujá estarádescendo?Ainda serápensador (reformuladordo discursodaplanície,da"prosa"),ou já serápoeta(preparadordeumnovodiscurso)? Pois emtal segundomapa(quenãoé maishistori- cista,mastãoformalquantoo éo do engenheiro),ahu- 26 Naturahmente VII.ttvl FLUSSER 27 manidadenãoaparecemaisnaformadeum rio quesobe pelosvales,masna formadeumacirculaçãoquefiraem sentidocontrárioaodaágua.Sobepeloscapilaresdosva- lesestreitos,projetagotasatéos cumes,e taisgotasvol- tam,carregadasde"novas",paravivificaremasplanícies. Tal circulaçãoda humanidadesobeemgrandesrios (as grandes"tendências"),ramifica-seemdeltasna serra(as várias"heresias"),alcançaos cumesemgotasindividuais (osgrandes"heresiarcas"),queseevaporame reconden- samemchuvavivificante(a "profecia").Em consequên- cia,sãoosvales,emtalsegundomapa,caminhosdiferen- tesdosquesãono primeiro.Não sãomaiscaminhosque conduzemàmeta.Sãocaminhosdeiniciaçãoparaavolta. Caminhos"decisivos". ~em jamaissubiupelo vale,jamaisviveu.Vegeta no plano.A terceiradimensão,a do sublime,lhe falta. Mas quem subiu pelo valee lá ficou, tampoucoviveu. Arrancou suasraízes,éverdade,desalienou-se.Mas ficou no ar, na disponibilidade.Deve decidir-se.Subir mais ainda,ilosar-semaisaindanaquelescumesqueRilke cha- mou "os do coração",os quaisnem sequeráguiashabi- tam.Arriscar-seà solidãodaqualUnamuno diz quenela "perdeuasuaverdade".E emtaldecisãonãopodeesperar por nenhumVirgílio,ou Godot,ou nãoimportaqueguia alpinista.Ou entãovoltaràplaníciesemtercorridoo ris- co da subida,não,por certo,parareintegrar-se,maspara engajar-se.Porque,paraquemestánovale,a integraçãose tornouimpossível.Éparaele,doravante,sinônimodepro- miscuidade.Por tersubidoo vale,éapocalíptico,ejamais poderávoltara serintegrado.A "volta"jamaispodeser cancelamentoda"ida".~em voltanãoéo mesmo,éalte- rado.Ficouinformado,mesmosenãosubiuatéocume.Eis adecisãoquedevetomarquemsubiupelovale:solidãosem garantiadevolta,ouvoltasemtervistoo cume. Os que nasceramnos valesnão veemos cumes. Olhamo soloquecultivam,e,rarasvezes,aplanícieaseus pésnaqualtrocamo produtodo seutrabalho.Olham a planícierarasvezes,porqueestá,geralmente,cobertade bruma.Por isso,os que nasceramnos valescreemque nasceramacimadasnuvens.Estãoenganados.Nasceram no meiodo caminho.Como estãoenganadososquel1as- ceramna planíciee delajamaissaíram.Creemquenas- ceramdebaixodo céu,quando,na realidade,nasceram debaixodabrumaquenãolhespermiteverosvalesnem oscumes.Mas quemnasceunaplanícieesubiupelovale vê primeiroos cumes,íngremese inacessíveis.E depois vê o soloverdejantedo vale.Mas, como é viajante,vê a paisagemcomosefosseconfirmaçãodemapasquecarre- gano bolso.Dois mapas.O primeiromostrao valecomo caminhoquelevaà meta.O segundomostraovalecomo epicicloquelevaà volta.O primeiromapafoi projetado no climapesadodaplanícieevisaa libertaro viajante.O segundomapafoi projetadono própriovale,evisaamu- daraplanícieeseuclima.Os doismapassãoigualmente adequados.A paisagem,seconsultada,responde"sim"a ambos.A decisão:"qualdosdois mapasdevoutilizar?" nãopodesertomadaàbasedosprópriosmapas.Ambos sãoigualmenteapropriados.Nem àbasedeumacompa- 28 Natural:mente ~ 'b d" " Praçaoentreosmapas,a asee um meta-mapa. or ser "meta",nãoserámaisapropriado.A decisãoasertomada deveráser"absurda"(sembase). E isto representao limite da loucuraqueé o espí- rito humano.É perfeitamentepossívelprojetarmapas. É perfeitamentepossívelinvertera relaçãoentremapa e paisagem,e consultar,não o mapaparaseorientarna paisagem,masapaisagemparaorientar-seno mapa.Tais loucurassãoperfeitamentepossíveis.Mas quandosetrata detomardecisão,mapasnãoservem.Decisõesautênticas sãoabsurdas.E o absurdoé o concreto(o não-classificá- vel), o não-generalizável,o não-formalizável.~ando é tomadaa decisão,a.loucuradesaparece.A decisãosedá no concreto.Valessãoos caminhosda decisão,lugares concretos.Lugares,nos quais se torna necessário,em dadomomento,jogarforatodososmapas,sobpenadese pairarno "sobrenatural",no "teórico",na "perspectiva". Justamentepor seremos valeslugaresquasesobrenatu- rais,quaseteóricos,quaseperspectivistas,sãoelessitua- çõesdelimite.A decisãonelesé,deacordocomJaspers, um decifrar,enãoum resolver-se.Em suma,valessãolu- garesondeadisponibilidadepode,seassimfor decidido, passaraserengajamento. Pássaros Não podemosmaisvivenciaro seuvoo comoo vi- venciavamosnossosantepassados:comoum desejoim- possível.Pássarosdeixaramdeseraquelesentesquehabi- tamo espaçoentrenóseocéu,parasetransformaremem entesqueocupamo espaçoentreosnossosautomóveise nossosaviõesdepasseio.Do eloentreanimaleanjopas- saramaobjetosdeestudodocomportamentoemgrupos. Sequisermosenquadrara nossavivênciadepássarosna dos nossosantepassados,deveremosdizer queparanós todosospássarossãoo queparaeleseramasgalinhas:en- tesquevoam,masprecariamente.Pois talmodificaçãoda nossaatitudecom relaçãoaospássarose aovoo (provo- cadapelaaviaçãoe astronáutica)temefeitosignificativo sobreanossavisãodomundo.Perdemosumadasdimen- sõesdo tradicionalidealda"liberdade"eperdemoso as- pectoconcretodatradicionalvisãodo "sublime". 30 Natural:mente VrLÉM fLUSSER 31 A tentativadeintuiravisãoqueosnossosantepas- sadostiveramdovo é dificultadapordoisfatores:pela nossaprópriavisãodovoaepelomitodovoa.As duas dificuldadesrompemanossaligaçãocomanossatradição deduasformasopostas:aprimeiraexclui-nosdatradição, asegundanosfazparticipardeladeumamaneirainteira- mentenova.Emoutrostermos:portermosvisãodiferen- tedovoadospássaros,nãopodemoscompreenderbem comooviramosnossosmaiores.E porparticiparmosdo mesmomitodovoanãopodemoscompreendercomoos nossosmaioresadequavamasuavisãodovoaaomito. Procurareiilustrarasduasdificuldades. Observemostrêstiposdevoadepássaro:o dofal- cão,o dobeija-Roreo daandorinha.Espontaneamente, seoferecemtrêsmodelosparacaptá-Ias:o falcãopaira comoum planador,o beija-florcomoum helicóptero eaandorinhavoacomoumcaça.Seformosrefletirso- breostrêsmodelos,constataremosquesuarelaçãocom osfenômenosquecaptamécomplexa:ostrêsaparelhosdevoamodelaressãoparcialmentecópiasdospróprios pássaros,eparcialmenteresultadodeumdesenvolvimen- to quesetornouviáveldepoisdoabandonodopássaro comomodelodevoa.Demodoquetomaraparelhosvo- adorescomomodelosdepássarosnãoéaclássicainversão "modelado-modelo",quetantocaracterizaanossavisão dascoisas.Compreendemososbraçoscomoalavancas, porquebraçoseramosmodelosdealavancas,e vemos espelhoscomosuperfíciesdelagos,porquesuperfíciesde lagoserammodelosparaespelhos.Masvemosospássaros comoaparelhosvoadores,emborataisaparelhosnãote- nhamtidopássaros,masequaçõesdaaerodinâmicapor modelos.Nestesentido,aviõessãoinstrumentosmenos "naturais"quealavancaseespelhos:nãotêmpormodelo coisasdanatureza.E secaptamoso voadepássaroscom modelosdaaviação(eofazemosespontaneamente)éque estamosdesnaturalizandoespontaneamentetalvoa. Osnossosantepassadosdevemtertidooutrosmo- delosparacaptarostrêstiposdevoa.O falcãodeveter voadocomoanuvem,obeija-florcomoobeijo,aandori- nhacomoaflecha.(E outrosmodelossãosugeridospela literatura,fontedanossacompreensãodavisãodosnos- sosmaiores.)Masparanóstalvisãotradicionaldovoa é necessariamentepoetizanteekitschizada,istoé,senti- mentalmentefalsa.~em dizatualmentequebeija-flores beijamflores(enãoquesemantêmemvoaverticalacima dasflores),estásendoinsincero,porqueomodelodoheli- cópteroseimpõeespontaneamente.~erer verovoados pássaroscomooviramosnossosmaioreséquererkitschi- zartalvoa,eistoéilustraçãodaprimeiradificuldade. O mitodovoa,talcomosemanifestaeminúmeras mitologiase eminúmerossonhos,e talcomoinspirou inúmerossonhadoresdesdeoalfaiatedeUlmeLeonardo atéJulesVerneeaN.A.S.A.,continuaativoemnóstan- toquantoagiaemnossosmaiores.Aliás,atesedeacordo comaqualmitossão"projetos"constantes,provocado- resdahistória,masnãosuperáveisporesta,parecebem fundadatantonapsicologia,quantonasociologia.Mas o mesmomitotemparaosquetêmexperiênciacomvoa 32 Natural:mcnte ViLÍ~MFLVSSER 33 impactointeíramentediferentedaquelequetêmparaos nossosantepassados,paraosquaisvoarerasonhoimpos- sível.Sevoamosdejato de SãoPaulo paraParis somos tomadosdesensaçãoambivalente:deumaparte,sabemos quevoamosmuito "melhor"quefalcões(maisalto,mais longee maisrapidamente),e que,portanto,a nossarea- lídadeestásuperandoo nossomíto.De outraparte,sen- timosquevoaremjato não é o "recado"do mito, eque nãopodetersidoistoqueinspiravaÍcaro.eLeonardo.Ao terdeixadodesersonhoimpossível,o mito passouaser sonhoinsonhável,maspersiste.Seumadastesesbásícas do marxismoéqueos sonhossãomortosaorealizarem- se,o ladodialétícodetal teseéesquecido:sonhosmortos persistem.Podemos,éclaro,voar,epodemosfazê-Io"me- lhor" quesonhavaLeonardo,massimultaneamentepre- ferimoso sonhode Leonardoà nossarealidade.E nada adiantasechamarmoso Aeroporto de Fíumícino (essa vulgaridadecaracterísticada nossarealidadede voas), "AeroportoLeonardodaVincí". Para os nossosantepassados,a observaçãodo voo do falcão,dobeija-floredaandorínhafoi visãodesonho impossível."Sefossepassarínhoetivesseduasasas,voaria atéjunto de tí", diz uma cançãopopular,cançãoqueé impossívelcantaratualmentecomhonestidade.Os nos- sosantepassadosprojetavamo mito do voa nospássaros, eo fazíamespontaneamente,porqueospássarosestavam na origemdo mito. Mas nósnãopodemosmaisfazê-Io, porquea nossarealídadedo voo ultrapassouo voa dos pássarossemterultrapassadoo mito,eistoéilustraçãoda segundadificuldade. Não podemos,pois,maisvivenciaro voo dospás- saroscomoo vivenciavamos nossosantepassados.Mas tal incapacidadenossanospermite,paradoxalmente,ver melhorqueeleso queo voodospássarossignificavapara I EI I d' " '" ,ees. 'es tavezacre ltassemque voarcomopassaro e ver o mundode cimae transporobstáculosinvencÍveis. Portanto,distânciaelíberdade.Mas tal tipo de"sublíma- ção"e liberdadenão nos atrai:conhecemosa suareali- dade.Há, no entanto,outracargado sonho"voarcomo pássaro"que os nossosantepassadossentíamsemtê-Ia salientadoclaramente.A deultrapassarabidimensionali- dade.O fatodesermosprisioneirosdabidimensionalida- denãoécomumentereconhecido.Temosailusãodeque osnossosmovimentosocorremnastrêsdimensõesdo es- paço.Na realidade,no entanto,anossacondiçãoterrena noscondenaaoplano (àsuperfíciedaTerra).Apenasas nossasmãosnosoferecemaberturaparaaterceiradimen- são,paraa"concepção","apreensão"e"manipulação"de corpos.Voar comopássaroépoderutilizaro corpotodo como sefossemão,poder movimentar-seinteiramente dentrodo espaço.Esteéo aspectodo mito dovooquese tornavisíveldepoisderealizadososseusaspectos"eleva- ção"e"superaçãodebarreiras". Seobservarmoso voo dospássaros,estamosnapre- sençadecorposquesemovimentamlivrementenastrês dimensõesdo espaço,equeassumematitudestridimen- sionaisemtodososseusgestos.Não apenas"subir"e"des- cer"é equivalenteao "paratrás","parafrente","paraa direita"e"paraaesquerda",mas"inclinaraasa"éequiva- 34 Naturalancnte VlLl~M .rI,USSER 35 lentea"viraraesquina".Estamosnapresençadeseresque devemtomar,emtodasituaçãodada,decisõesentreum númeromuito maiorde alternativasqueseresterrenos: asdiagonaisqueseoferecemcomocaminhosdefugaou deataqueapássarosnãoformamcírculos,masesferas.O pássaroemvoonãoé,comoo éo animalterrestre,centro deestruturavitaldecírculosinterferentes,masdeesferas interferentes.As formaçõesdeavesemmigraçãoobede- cemàsregrasdageometriatridimensional,eo "misterio- so"sentidodeorientaçãodasavesémisteriosoparanós, porqueseorientadentrodastrêsdimensõesdo espaço. "Voarcomopássaro"seriapodermovimentar-se,decidir- se,organizar-seeorientar-senatridimensionalidade. Os animaisterrestres,emaisparticularmenteo ho- mem,nãosãointeiramenteprivadosdaaberturaemdire- çãoaoespaçoaberto.Mas a"terceira"dimensãonãopassa de umasériedeepiciclossuperpostossobreo plano.Os movimentosdaspernas,dospescoçosedosrabossãoin- vestidasparadentrodaterceiradimensãoapartir dopla- no.E ossentidos,emaisespecialmenteavista,sãoórgãos querecolheminformaçõesvindasdastrêsdimensõesso- breumponto no plano.Paraosanimaisterrestres,inclu- siveo homem,oespaçoéumoceanoquebanhaailhapla- naquehabitam.Daí asemelhançaentrepássaroepeixe: ambossãohabitantesdo oceano-espaço.Pássarosnadam no ar,comopeixesvoamnaágua.A diferençaéqueovoo do pássarosalientaaliberdadedo movimentoespacial,e o nadodopeixesalientao seucondicionamento.O mito dopeixetemclimadiferentedo climado mito dovoo. O homem distingue-sedosdemaisanimaisterres- trespor suaposiçãoereta:por serseu·corpo todo uma investidarumo ao espaçoaberto.Tal posiçãopermite ao homem"conquistaro espaço"a partir do plano. (O pássaronãoprecisaconquistaro espaço,estánele.)Mas a posiçãoeretahumananãoresultanalibertaçãodo corpo humanotodoemdireçãoaoespaço.Abriu apenaso parâ- rnetrodosmovimentostridimensionaisparaváriaspartes do corpo,epossibilitouàsmãosamanipulaçãotridimen- sionaldecorpos. Mãos sãoórgãosespecificamentehumanos,torna- dospossíveisgraçasàposturaereta,quesemovimentam no espaçocomaproximadaliberdade.Mãosvivememcli- maestruturalmentesemelhanteao climano qualvivem pássarosemvoo. O pássaroemvoo émãovoadora,mão libertadecorpo,corpoviradomãointeiramente.O mo- vimentoda mão é apreensão,compreensão,concepção e modificaçãodoscorpos"emprofundidade",isto é,no espaço.O mito do voo é isto:liberdadeparaapreender, compreender,conceberemodificaremprofundidade. Paraosnossosantepassados,o pássaroeraeloentre animale anjo.Não é anjo ainda,porqueé sujeitoainda à atraçãoda Terra. Levantada Terra, concentraseuin- teressesobreaTerra, voltaparaaTerra e faz sobreela o seuninho. É mãoligadaao corpo da Terra por braço invisível.Anjo é pássaroextraterreno.Concentrao seu interessesobreo espaçoe morano espaço.É mãoliber- tadecorpo.O mito do espírito-pomba.Anjo éenteque apreende,compreende,concebeemodifica"livremente": 36 Natllral:mente VILÉ,M FLUSSER 37 o espíritopuro.Mão libertado corpoéespíritopuro.O voado pássaroéseumodelo.Os voasa jato de SãoPaulo paraParis superamo sonhodeLeonardo,masnãoatingemadimensão"liber- tadora"do mito do voa.Sãofeitosdabidimensionalida- de:ligamduascidadesemmapaplano.Os voasajatode Tóquio paraParisligamasduascidadespelarotapolare impõemnovaprojeçãoplanado Globo.Sãomais"espiri- tuais",porquedemonstramo caráterprojetivodo plano, mascontinuamfeitosdo plano.Mas asexperiênciasdo Sky-Labapontamalémdopássaroemdireçãodoanjo.Os astronautasquevivememgravitaçãozeroepasseiampeIo espaçoprocuramtransformaremmãosseuscorpos.Uma descriçãofenomenológicadassuasexperiênciasfaz falta e seriareveladora.CassianoRicardotem,nestesentido, poesiachamada"Gagarin".Mas persisteo dito marxista: os sonhossãomortosquandorealizados.Virar pássaro, virarmão,viraranjoématarapassaridade,amanidade,a angelicidade.Porqueo sonhodaliberdadeedo sublime, quandorealizado,revelao condicionamentocomocon- tradiçãodaliberdade,eo cotidianocomocontradiçãodo sublime.Isto sereferetantoaastronautas("anjostecno- lógicos"),quantoà sociedadecomunista("sociedadede anjos").Mitos sãorealizáveise matáveis,maspersistirão enquantopesosmortosdepoisderealizados. Não podemosmaisvivenciaro voa dos pássaros comoovivenciavamosnossosantepassados:comodesejo impossível.Vivenciamososeuvoacomodesejorealizável, parcialmentejá realizado,eparcialmenteemviasderea- lizaçãoemdimensõesapenasvagamentesonhadaspelos nossosantepassados.Voa depássaroenquantodistância, superaçãodebarreiras,etambémenquantoespiritualiza- çãopelatridimensionalidade.Mas aovivenciarmoso voo comodesejorealizável,estamosdesmistificandoo desejo semnoslibertarmosdo mito.Não podemostermaisde- sejosimpossíveis.O quenos restaé o desejoimpossível determosdesejosimpossíveis.Serávisãoapocalípticaou visãointegradaanossavisãodospássarosemvoa? Chuva A observaçãodachuvapelajanelaé acompanhada desensaçãodeaconchego.Lá fora,oselementosdana- turezaestãoemjogoe suacircularidadesempropósito giracomosempre.~em estápresoemseucírculofica expostoa forçasincontroladas.Parteimpotentedo seu girarviolento.Cá dentro,estãoemjogoprocessosdife- rentes.~em estádoladodedentrodirigeoseventos.Eis arazãodasensaçãodoabrigo:éasensaçãodequemestá nahistóriaecultura,econtemplaaturbulênciasemsigni- ficadodanatureza.As gotasquebatemcontraavidraça, projetadaspelafúriadovento,masincapazesdepenetrar asala,representamavitóriadaculturacontraanatureza. ~ando observoachuvapelajanela,nãoapenasmeen- controforadela,masemsituaçãoopostaaela.Tal situ- açãocaracterizacultura:possibilidadedecontemplação distanciadadanatureza. 40 Natural:mente VILÉM FLVSSER 41 No entanto(e infelizmente),não é isto quetemos emmenteaofalarmosemconquistasdacultura:estarmos sentadosemlugarsecoe quente,contemplandoachuva fria,fumandocachimboeouvindoMozart. Infelizmente, temosem mentecoisascomo "controlede chuva".Pre- tendemosmudar a estruturados eventosda natureza. Romper sua circularidade,fazê-Ioscorrer linearmente embuscadeumpropósitopor nósescolhido.Chuvanão maiscomofaseda circulaçãoeternada água,mascomo fasedeumadeliberadairrigaçãodomeucampo.Seachu- va tivessesido vencida,não maiscairiacomo cai agora ("chuvadesetembro,de todo setembrodesdesempre"), mascairiacomo"estachuvaprogramadaparaasquatro horasda tardede hoje". Seriachuvahistórica,porque sujeitaa programas,portanto,parteda cultura,não da natureza.Vistadajanela,talchuvanãosedistinguiriada- quelaqueestácaindoagora,e,no entanto,estariacaindo do ladodecá,nãodelá,dajaneladacultura. Istodácalafrios.Pareceseramesmachuva,enãoo é por ser"cultura"?Não o é,nãopor serdiferente,maspor terestruturadiferente?A lineardahistória,nãoacircular da natureza?E não adiantaráolhá-Iaparasaber-seisto? ~e coisaterrível!Não possodistinguirentreculturae naturezaolhandoparaascoisas,masapenasaprendendo arespeitodelas.Seolho pelajanelaevejochuva,cadeiras eárvores,nãopossosaberquaisdessascoisassãocultura, quaisnatureza.Dependodeoutrosparadizer-me. Não possoaceitaristo.Seistofor verdade,nãoterei maiscritériopróprio paranão importaqueengajamen- to. A RevoluçãoFrancesapassaráa serfenômenohistó- rico deacordocomumaexplicação,e fenômenonatural (comoo éamigraçãodasaves),deacordocomoutra.Os quenelaseengajarame por elamorreramo fizerampor ingenuidade:nãorecolheramtodasasexplicaçõesdispo- níveis.Não possoaceitarisso. Voltarei a olhar a chuvapelajanelaparaver seela mediz algoa respeito.Eis o queestádizendo:aqui fora estáchovendo,lá dentroestásabrigado.Isto é a distin- çãocategóricaentrenaturezaecultura.Naturezaécomo chuva:provocaasensaçãodeimpotência;culturaécomo asala:provocasensaçãodo abrigo.Conquistaranatureza nãoé mudarsuaestrutura,masseuclima.Mas istopro- blematizatodo o progressohumano.Teremosconquis- tadoanatureza"essencialmente"no curso,por exemplo, dosúltimos200anos?No sentidodetermosaumentado o terrenodasensaçãodo "estarmosabrigados"?Estaráo homemdo século20 sesentindomaisabrigadoqueo do século18?Serámais"culto"nestesentido?Semdúvida,a observaçãodachuvaexigequeredefinamosnossoengaja- mentoemcultura. Rompera circularidadedoseventosnaturais,fazê- loscorreremlinearmenteembuscadepropósito,progra- má-Ios:esteé o engajamentorecomendadopelostecno- cratasepeloestabelecimento.Chuva,nãomaiscirculare boaparanada,maschuvalineareboaparairrigarcampos. Eisoquedizemostecnocratas:culturaétransformaralgo queébomparanadaemalgoqueébompara propósito deliberado.Cultura é injeçãode "valores"no conjunto 42 Natural~!nente VILÉM FLVSSER 43 isentodevalorchamado"natureza".Coisassãonaturais (dizemos tecnocratas)quandonãopermitemquesejam. julgadas"más"ou "boas".E coisassãoculturaisquando são"boas".Por isso,asciênciasdanaturezasão"isentasde valores"(wertftei):tratamdecoisasisentasdevalores.E ostecnocratascontinuam:o verdadeiroengajamentoem culturaéengajamentoemproduçãode"bens",isroé,de coisas"boas".Os tecnocratasestãoenganadoseestãonos enganando. Na realidade,quemestá"isentodevalor"(wcrtjrei)é a tecnologia.As coisassãoproduzidaspelatécnica,estas sim,nãosãonemmásnemboas.As coisasdanatureza,es- tassãotodasmás,porquemecondicioname metornam impotente.Senãofossemmásascoisasdanatureza,nãose explicariaoengajamentoemcultura.É sempreengajamen- to contraa natureza.As coisasda técnicasãoeticamente neutras,epassama serboassemeabrigam,e más,seme condicionam.Produzi-lasé necessário,masnão basta.É necessário,porqueresultaemcoisaspotencialmenteboas. Mas nãobasta,porquepoderesultaremcoisasmásseper- dermosaconsciênciadacultura.Se"progresso"for,como o afirmamos tecnocratas,um processoao longodo qual eventosnaturaissãotransformadosem eventoslineares, então"progresso"(e"ordem")nãobasta.O queurge,para que"progresso"tenhasentido,é mantere rennaracapa- cidadecríticadosvalores(acapacidadeética,política,em suma:liberdade).T ecnocratasnãobastam. A chuvaqueobservopelajanelaémá(enãoimporta quealgunsromânticoso contestem).É má,porquecaiem cimademim semmeterconsultado.É estaarazãopor- quemesintobemaoobservá-Ia:oponho-meaela.Chu- vatransformadaemirrigaçãoprogramadanãoénemmá nemboa(enãoimportaqueostecnocrataso contestem). Não é nemmánemboa,porqueo seuvalordependerá daquiloqueirriga.E seráboaapenasseaquiloqueirriga for coisaquemeabriga.Mas seaquiloqueachuvairriga for coisaquemecondiciona,aprogramaçãodachuvaterá produzidoummalpior queosmalesdanatureza.T ecno- eratasnãoapenasnãobastam,maspodemvir aserperi- gosos.O "progresso",senãofor controladopor críticade valores,podesermaisperigosoqueo imobilismo. A chuvaqueobservopelajanelamedásensaçãoboa, porqueme sinto libertadodela.Estou sentadoem sala quenteeseca,possocontemplarachuva.Possoobservá- Ia,nãoapenasparadepoismanipulá-Ia,mastambémpara julgá-Ia.Estouemsituaçãoquepermitejuízosdevalores. Em situaçãode "disponibilidade"com relaçãoà chuva. Em situaçãodeliberdade.Possoconvidaroutrosparaen- trarememminhasala,anm dediscutirmoso problema dachuva.Lá foraestáchovendo,enóscádentro,aoabri- go,discutindocomomanipularachuvaparaquesejaboa. Isto équeécultura.Não chuvamanipuladaeprograma- da,maschuvasujeitaàdiscussãolivre.No fundo,o que éboméapenasa liberdade.As coisassãoboasapenasna medidaemquecontribuemparamelibertar.E istoéexa- tamentetambéma medidadacultura.Tecnologiaainda nãoé cultura.E tecnocracia(governoda tecnologianão controlado)éanticultura.Em suma:culturaétecnologia maisliberdade. 44 Natural~mente A chuvaqueobservopelajanelaé quemeensina isto.Ensinaquesoueueospróximosquemconfereva- loredásignificado.Culturanãoéquestãodechuva(seja controladaeprogramadaounão),maséquestãodasen- saçãoqueprovocanosquea observampelajanela.Em outrostermos:seobservoachuvapelajanela,vejoquea únicajustificativadeengajamentoemculturaéaumen- taro terrenodaliberdade(aumentara salaapartirda qualobservoachuva).A chuvaensinaqueadignidade humananãoseresumenalutacontraa natureza.Há, entrenaturezaecultura(entrechuvaesala),umaregião eticamenteneutra,maspotencialmenteperigosa,aregião daprogramaçãoisentadevalores.A regiãodo estabele- cimentonão-político(dostécnicosdeirrigaçãodecam- pos).A dignidadehumanaexigetambémquetalregião sejaapropriada.Masnasituaçãoatualéobviamentemais fácillutarcontraanaturezaqueapropriaro estabeleci- mento.Emconsequência,hásempremenoschuvanatu- ral,sempremaischuvaprogramada,esempremenossalas apartirdasquaisnãoimportaquetipodechuvapossa sercontemplado.Seistocontinuarassim,oresultadoserá este:estaremostodosexpostosseminterrupçãoachuvas torrenciaisprogramadas,masproclamaremosaosquatro ventos(queuivarãoemtornodenósemcoroprograma- do)queestamossendoirrigados. o cedrono parque Fatocurioso:árvoressãoquaseinvisíveis.Todaten- tativadecontemplá-Iasoprova,Há,entrecontemplador eárvore,névoadensademúltiplascamadas.A luzdofarol daintençãocontempIativaérefletidapor talnévoa,e a contemplaçãosetransformaemreflexãosorrateiramente esemqueocontempladorpossainterferirnisto.Há algo emtornodeárvoresque,porsernebuloso,émisterioso. SeolhopeIaminhajanelaeprocurocontemplarocedro queseergue,majestoso,nocentrodomeuparqueangevi- no,devoadmitirestefatocomopontodepartidaqueme éimpostopelasituaçãonaqualmeencontro. Por certo,árvoressãoparcialmenteinvisíveispor razõespor assimdizerfísicase biológicas,já quea sua maiorparteestáescondidanosolo.Tal fatocorriqueiro eaparentementeóbviotende,noentanto,aseresqueci- dopormuitosdaquelespensadoresquetomamárvores pormodelosdeestruturas.(Eárvoresdefatosãomodelos 46 Natural:mente VILÉM FLUSSER 47 preferidos.)Dareium únicoexemplo.Toda umacosmo- visãoe filosofiado século19 (a"biologizante")concebe o mundo como processoque tendea se ramificarem obediênciaaum "principio" queSchopenhauerchamou de "principium individuationis".O sistemadarwiniano ilustrabemtal estruturadinâmica,paraa quala "árvore genealógica"serviudemodelo.Tal cosmovisãoefilosofia éumhistoricismoqueseoferececomoalternativaàvisão dialéticadahistóriaesurgiu,efetivamente,emoposiçãoa Hegel.Mas éclaroemaisqueóbvioqueo modelodetais sistemasnãoéa árvoretoda,masapenasaquelaparteda árvorequeévisívelacimado solo.~cm tomaa árvore todapor modelodesistema,devehaver-secomestrutura queseramificaemduasdireçõesopostas.De maneiraque aárvoretodaémodelodesistemadialéticono maisexa- to significadodo termo.Os pensadoresdarwinianosdo século19 seesqueceramdapartesubterrâneada árvore (o que,obviamente,emnadaafetaa "verdade"dosseus enunciados). Mas nãoétal"invisibilidadeparcial"queseinterpõe entreaárvoreeo seucontempladordamaneiranebulosa mencionada.Sãofantasmas,ectoplasmas,espectrosecor- posetéreosquepairamemtorno deárvorese astornam inacessíveis.Tais divindadesarbóreashabitamtodasas mitologias,inclusiveajudaicae agrega,fontesinescapá- veisdanossavisãodo mundo.Mencionareialgunsdesses fantasmas.O maispróximodo contempladore,portan- to, o maisfácila serremovidoé o espectrodo "pulmão" queencobreaárvoreenquantofenômenoconcreto.Não vejo árvore,vejopulmãoverde,e vejo tal pulmãotanto morfológicaquanto funcionalmente.Um pouco mais próximoda mesmaárvore,masaindafacilmenteremo- vível,estáo fantasmado "abrigo".Não vejoárvore,vejo guarda-chuva,tantoemsentidofísicoquantometafórico do termo.Outrosespectrosseagarramàárvorebemmais firmemente.Por exemplo,osespectrosda"fertilidade",o d ., h 11 " d'" d"d "(111' d .o paus ,o a arvore aVI a . ~an o taISespectros sãopenosamenteremovidos,eaessênciadamesmaárvo- re parecequererrevelar-se,verifica-sequeaindanãoé a arvoridadequesemostra,masalgunspreconceitosainda maisprofundos,e quetalveznemsequertenhamnome. Of' 1-"1 ,,,, ·ddatoequea re açao )omem-- arvore e carregaa e tantacargaimemorial(etalvezconsequênciada"origem" arbícolahumana),queatentativadecaptaraessênciada árvoregeralmentefracassa.Os preconceitossãotantos queserecusamaserpostosentreparênteseseeliminados provisoriamente. Não procurarei,portanto,captaraessênciadocedro no meuparque,masapenasumúnicoaspectoseu.Este:o climaestranhoeestrangeiroqueirradia.Já quenãocapta- reiacedridadedocedro,talvezcaptareialgodaestranheza e estrangeiridade?Afinal, soutãoestranhoeestrangeiro no meuparqueangevinoquantoo éo cedro.Não poderá tal comunhãodo "estar-no-mundo"meuedo cedrofor- marbaseparaumavisãointuitiva?Ou estarei,desdejá, antropomorfizandoo cedro?Estarei,desdejá,caindona armadilhadeum dosespectros,o "antropomórfico",que encobremo cedro?Na armadilhanaqualcaiu,enaqual 48 Natl1ra1:mente VILÉM FLUSSER 49 morreu,o meninodo "Erlenkoenig"de Goethe?Parece sermaisprudenteprocurarcaptara estrangeiridadedo cedroemformadeperguntas,nãodeafirmativas.~em sabe,certasrespostaspoderãoserprovocadasno próprio cedro?Perguntasprovocantesquefazemfalaro cedro. Primeirapergunta:Como seiqueo cedroé estran- geiro?Resposta:seique aquelaárvorelá é cedro,e que cedrossãoplantasnativasdo Líbano,nãodaFrança.Tal respostanãoserve.Não foi dadapelocedro,maspormeus livrosescolares.Atenção,no entanto.A respostanãoéin- teiramenteimpertinente."CedrosdoLíbano":nãosigni- ficaistoo Rei Salomãoeaconstruçãodo Templo?E não há algodetal significadoemtorno do cedrono parque? Ou nãopassaráistodeum detaisespectros? Reformulareia primeirapergunta:Como o cedro mediz sereleestrangeiro?De váriasmaneiras.O server- de é diferentedo verdeem torno. A sua"Gestalt"pira- midalehierarquicamenteescaladadestoadas"Gestalten" cônicasdasárvoresemtorno.A formatorturadadosseus ramos,o elementocaóticonelequenãoobstanteé inse- rido emtotalidadeharmônica,osdistingueradicalmente dascopassuavesemtorno. Os seuspinhõesmonumen- taisnãotêmparalelonosfrutosdo parque.O seutronco elefantinosoacomo trombetaem orquestrade cordas. Mas, principalmente,a suapresençadomina o parque, nãoapenaspelasuagrandeza,mastambémpor algoque deveserchamado"majestade".Estassãorespostasdadas pelopróprio cedroedevemseraceitas. Segundapergunta:Aceitandoemborataisrespostas, como sei que significama "estrangeiridade"do cedro? Não significarão,pelo contrário,um aspectoda sua"ce- dridade"?Em outrostermos,nãoteráapresençadocedro no seuLíbanonativoo mesmoclimaquetemno parque angevino?Seformulo aperguntaassim,o cedrosecala. Necessariamente,porqueo cedroestáaquienãonoLíba- no,enãopodefalaremnomede"outrocedro".Formula- daassim,aperguntaétipicamenteinsignificativa.Pequei, ao ter formuladoa perguntaassim,contra o primeiro mandamentoda honestidade:"Não tirarásfenômenos do seucontexto!"A perguntadeveserreformulada,para sersignificativa. Reformulareiasegundapergunta:As respostasque o cedrodeuàprimeiraperguntasignificamqueelesedis- tinguedo seucontextopor sercedroou por serestran- geiro?A respostaqueo cedrodáa talperguntapodeser resumidaassim:Sou estrangeiropor sercedro.Soufiel a mimmesmo,naminhacor,naminha"Gestalt",nosmeus pinhões,nãomeassimiloaoparque.Poisexatamentepor istomesmodominoo parque.Centralizoo parque,dou-lhe formaesentido.O parqueé o parquequeégraçasa mim:parqueemtornodecedro.Não fosseeucedro,por- tanto,estrangeirono parque,o parquenãoteriasentido. Eu souo ruídodoparquequetransformaasuaredundân- ciaeminformaçãosignificativa.Destoo,etaldissonância é o núcleodamúsicado parque.É isto o significadodas minhasrespostas:Sou estrangeiropor sercedro,eéape- nascom relaçãoà minhaestrangeiridadequeo restodo parquesetornanativo."Serestrangeiro"é,pois,no hlll- do, isto:revelaraocontextoqueelepróprionãoéestran- geiro.Souestrangeironãoemmim,masparao parque. 50 Natural:mente VU ..ÉM FLUSSER 51 Respostasmuitoproblemáticasestas.Vêmformula- dasemdiscursosdosquaisconheçobemaorigem.São osdiscursosdafilosofiaexistencial,dateoriadainforma- ção,damusicologia.Podeo cedrorecorrerataistiposde discurso?Perfeitamente.Comefeito,nãopode,anãoser recorrera taistiposdediscurso.Porqueo cedrosedá paramim,eselhepermitofalar,éparaquefaledentro dosmeusdiscursos.Comefeito,asrespostasàminhapri- meiraperguntatambémforamarticuladaspordiscurso meu,emboratenhamsidoaparentementemaisconcre- tas.Apenasodiscursodetaisrespostasfoiodalinguagem corriqueira.Demodoquesouobrigadoaaceitartambém asrespostasàminhasegundapergunta. Provocamterceirapergunta:Seo cedroé presen- çaestranhaeestrangeiranoparque,porquedeledestoa porsuafidelidadeà cedridade,comoseiqueé o cedro queéestrangeiro,enãoo parque?Emoutrostermos:se serestrangeiroéumserrelativoaoutroser,nãohaverá reversibilidade?O cedroéestrangeiroparao parqueeo parqueestrangeiroparaocedro?Umarespostaseimpõe imediataeespontaneamente:seiqueocedroéestrangei- roeoparquenãoé,porqueocedroéumaúnicaárvore,e o parquesãomuitas.Tal respostaquantificantedeveser recusada,embora,comoosãotodasasquantificações,seja razoável.Deveserrecusada,porquenãofereaessênciada estrangeiridade.Foidada,comefeito,nãopelocedro,mas pelomeuraciocínioindutivoeenumerativo.Devorefor- mularminhapergunta,edirigi-Ia,nãoaocedro,masao parque.Porexemplo,à nogueiravizinhadocedro. Reformulareia terceirapergunta:Comoseiquea nogueira(e,comoela,o parquetodo),énativadoAnju, edestaformatornadialeticamenteo cedroestrangeiro? Umatorrentederespostasjorradanogueira.O seuverde deverãocomlevesuspeitadeferrugemoutonalarticula aprimeirametadedesetembro,"naqualestamos".A sua copacônicaéelemento,mastambémresumo,da"Ges- talt"dapaisagemtoda.A riquezadasnozesquecarrega é testemunhodafertilidadeonipresentedo Anju e da França.O climapacífico,aumtempotemperadoerico deseivavitalqueirradia,éoclimadoambientetodo,tal comopenetraosporos,ospulmões,assensações,e até ospensamentosdetodosaquipresentes.O Anju todo, aFrançatodaestãonaauradanogueira,ebastacontem- plaranogueiracomsuficientepaciênciaparadescobrira essênciadaFrança.As respostasmúltiplasqueanogueira estádandoàminhaperguntapodemserassimresumidas: Sounativaporsernogueira,esounogueiraporsernati- va,enãohánistonenhumproblema.Nãoprecisoafirmar minhanogueiridade,nemserfielaela.Istotudoestáse dandopormim,emtornodemim,eporcausademim, comtodaespontaneidadeenaturalidade.E istoé,possi- velmente,umaspectoda"natureza":serassim,esponta- neamenteesemproblema.A nogueira(eoparquetodo) é naturezaangevina.E, emcontrastecomisto,o cedro nãoénatureza,masculturaangevinaÉ cultura,porquese afirma,éfielasipróprio,edásentidoaoparquetodo.Em suma,éestranhoeestrangeiro. Poisistoérespostasurpreendente.(Devoconfessar quemesurpreendeuaoterseformuladono cursodes- 52 NaruraI:mcnte teensaio.Nãoesperavaporela.)A respostadanogueira provocaredefiniçãodosconceitos"natureza"e"cultura" emtermosdiferentesdoscostumeiros:Naturezacomo minhacircunstânciaespontâneaeisentadeproblemas,é culturacomopresençaestranhaeestrangeiranaminha circunstância,queseautoafirmae,portanto,dásentido ànatureza.Istoprecisaserruminadoemoutraoportuni- dade.O queimporta,nopresentecontexto,éisto:Meu conhecimentoprévio(botânicoououtro)a respeitode cedroenogueiranãotocaoproblemadaestrangeiridade. Por exemplo:a nogueirapodeperfeitamenteserorigi- náriadeflorestasdistantesetersidoimportadaparacá, porexemplo,pelosceltas.Nãoobstante,éessencialmen- tenativa.O cedropodeter-seperfeitamenteadaptadoà circunstânciaangevina,epode,inclusive,vingarmelhor aquiquenoLíbanonativo,evingarmelhorqueaprópria nogueira.Não obstante,é essencialmenteestrangeiro. Preconceitosnãoferemessências,asquaisserevelamape- nasemcontemplaçõescomoéestadomeuparque.Acaba deserevelarumaspectodaessênciadaestrangeiridade. Daseguinteforma:Estrangeiro(eestranho)équem afirmaseuprópriosernomundoqueo cerca.Assim,dá sentidoaomundo,edecertamaneirao domina.Maso dominatragicamente:nãoseintegra.O cedroéestran- geirono meuparque.Eu souestrangeironaFrança.O homeméestrangeironomundo. Vacas Sãomáquinaseficientesparaa transformaçãode ervaemleite.E têm,secomparadascomoutrostipos demáquina,vantagensindiscutíveis.Por exemplo:são autorreprodutivas,equandosetornamobsoletas,asua "hardware"podeserutilizadanaformadecarne,couro eoutrosprodutosconsumíveis.Nãopoluemoambiente, eatéseusrefugospodemserutilizadoseconomicamente comoadubo,comomaterialdeconstruçãoecomocom- bustível.O seumanejonãoécustosoenãorequermão de obraaltamenteespecializada.Sãosistemasestrutu- ralmentemuitocomplexos,mas,funcionalmente,extre- mamentesimples.Já queseautorreproduzem,ejá que, portanto,asuaconstruçãosedáautomaticamentesem necessidadedeintervençãodeengenheirosedesenhistas, estacomplexidadeestruturalévantagem.Sãoversáteis, já quepodemserutilizadastambémcomogeradoresde energiaecomomotoresparaveículoslentos.Emborate- 54 Natural:mentc VILÉM FLUSSER 55 nhamcertasdesvantagensfuncionais(porexemplo:sua reproduçãoexigemáquinasemsiantieconômicas,"tou- ros",ecertosdistúrbiosfuncionaisexigemintervençãode especialistasuniversitários,deveterinários,caros),podem serconsideradasprotótiposdemáquinasdo futuro,que serãoprojetadasporumatecnologiaavançadaeinforma- daspelaecologia.Comefeito,podemosafirmardesdejá quevacassãoo triunfodeumatecnologiaqueapontao futuro. Seconsiderarmoso seu"design",anossaadmiração peloinventordavacaaindaaumenta.Emborasetrate de máquinaaltamenteautomatizadae controladapor computadorinstaladodentrodaprópriamáquina(cé- rebro),e emborao seufuncionamentoestejagarantido porsistemacibernéticodeequilíbrioselétricosequími- cosaltamenterefinados,aformaexternadamáquinaéde simplicidadeeeconomiadeelementossurpreendentee altamentesatisfatóriaesteticamente.A impressãoquea vacadeixaéadeumaobrabemintegradaemsiedentro doseuambiente.O seu"designer"nãosedeixouinfluen- ciarpor taisouquaistendênciasestéticasdaatualidade (emborapossamosdescobrirno desenhodavacacertos elementosbarrocosindisfarçáveis,eemboraseudesenhis- tatraiaainfluênciadecertastendênciasbiologizantesdo séculopassado),maso "designer"seguiuintuiçãoesté- ticacaracteristicamentesua.Por exemplo:amobilidade elegantedorabocontrastacomamaciçaimobilidadedo restodaobraecriatensãoapenassugeridaporCaldere seusseguidores.Masoqueimpressionamaisno"design" davacaéisto:asurpreendentegamadevariaçõesqueo seuprotótipopermite.O protótipoéfundamentalmen- tesimples(temsidoelaborado,porexemplo,porPicasso nasTauromaquias),mastalsimplicidademesmapermite umnúmerograndedeestereótiposdiferenciados.Trata- se,no protótipodavaca,deautênticaobraaberta.Há, entreosestereótipos,osqueseadaptamamentalidades nacionaiseatéregionais(vacasuíça,holandesa,inglesa), osqueseadaptampaisagisticamente(vacasdosAlpes,dos prados,dasestepes),eatéestereótiposbaratosdestinados aospovossubdesenvolvidos(zebu,vacacentro-africana). Isto,noentanto,nãoesgotaa"mensagemestética" davaca.Os estereótipossãofornecidosaoconsumidor acompanhadosdeum"mododeusar"queequivaleaum convitedeparticipaçãoemjogo.O compradordevacas pode,seassimdesejar,projetarseuprópriomodelo,"cru- zandoraças".Demaneiraqueacompradevacanãocon- denaocompradoraumconsumopassivo,masabreespa- çoaumaparticipaçãoativano"jogodasvacas".Demodo quefinalmenteateoriadosjogosficouabsorvidasignifi- cativamentepelatecnologia.Podemosvislumbrarumes-tágiofuturo,noqualoprogressotecnológiconãoserápri- vilégiodealgunsespecialistasapropriadospeloaparelho administrativo,masjogodoqualas"massas"participarão ativamente,variandoprotótiposlivremente.O inventor davacaprovocouautênticarevoluçãotecnológica,tanto emsentidofuncionalquantoestético,queabrehorizon- tesparaumnovo"estar-no-mundo"dohomemdofutu- ro.Conseguiuistoaotersintetizadoosconhecimentos 56 Natural:mcnte VIL.ÉM FLUSSER 57 maisavançadosdaciênciaeosmétodosmaisrefinadosda tecnologiacomsensibilidadeestéticaagudaecomvisão claraestrutural,cibernéticaeinformadapelateoriados jogos.Não restadúvida:avacarepresentafundamental "decolagem". Masnãodeixaderepresentartambémperigoeame- aça.Na medidaemquevacassetornaremsempremais numerosasebaratas(processoinevitáveldadoo ímpeto doprogresso)eoutrasmáquinasdetiposemelhantesur- girem,ocorrerátransformaçãosutil,masprofunda,no ambientehumano.As máquinasatuais,àsquaisahuma- nidadevemseadaptandoemprocessopenosodesdeaRe- voluçãoIndustrial,serãopaulatinamentesubstituídaspor máquinastipo"vaca".Já quetaismáquinasimpõemum ritmovitaldiferenteetodaumapráxisdiferente,surgirá anecessidadedereadaptaçãoqueterá,necessariamente, porconsequência,novaalienaçãoindividualecoletiva.A fantasiapodeprevernãoapenasdissoluçãodasgrandes cidadese formaçãodepequenosaglomeradosemtorno devacas(aseremchamadas,porexemplo,"aldeias"),mas emconsequênciadisto,também,adissoluçãodaestrutu- rabásicadasociedadeesuasubstituiçãoporoutraapenas imaginável.No entanto,opiornãoseráisto. É conhecidaatendênciahumanapara"espelhar-se" nosseusprodutos.O processoéaproximadamenteeste:o homemprojetamodelosparamodificararealidade.Tais modelossãotomadosdocorpohumano.Porexemplo:o teartempormodeloodedohumano,etelégrafoonervo humano.O modeloérealizadonaformadeumproduto. Emseguida,omodelohumanoportrásdoprodutoées- quecido,eoprodutoseestabelece,porsuavez,emmode- lo paraoconhecimentoecomportamentohumano.Por exemplo:asmáquinasavaporsãotomadaspormodelos dohomemnoséculo18,asfábricasquímicasnoséculo19 eosaparelhoscibernéticosatualmente.Tal retroalimen- taçãonefastaentreo homemeseusprodutoséaspecto importantedaalienaçãoeautoalienaçãohumana. Poisa paulatinasubstituiçãodasmáquinasatuais pormáquinastipo"vaca"poderáresultaremtalidentifi- cação"homem=vaca".O homempodenãoreconhecer navacao seupróprioprojeto,podeesquecerqueavaca éresultadodesuaprópriamanipulaçãodarealidadeem obediênciaaummodeloseu,eaceitaravacacomoalgo dealgumaforma"dado"(porexemplo:podeaceitara vacacomoumaespéciede"animal",portanto,parteda "natureza").Emtalcaso,avacaassumiráautonomiaon- tológicae epistemológica,evirará,por assimdizerpor trásdascostasdo homem,modelodoprópriohomem. Justamenteportratar-sedemáquinaaltamentesofistica- daeantropomorfa(todasasmáquinassão,aliás,antro- pomorfas,pelarazãoindicada),aessência"máquina"da vacapodevir a serencoberta.Em nadaadiantarão,em talcaso,"explicaçõesgenéticas"davaca,explicaçõesque provarãoseravacaresultadodemanipulaçãohumana.O impactodavacasedaráemnívelexistencial,nocontato diáriocomela.Emtalnível,todasas"explicações"setor- namirrelevantes(comosãoirrelevantestais"explicações" atualmenteparaosquetêmcontatodiáriocomcompu- 58 Natural:mente tadores).A merapresençacotidianadavacaexercerásua influência"vaquificante".A fantasiaserecusaa imaginar aconsequênciadisto. No entanto,é precisoenfrentaro perigo.A fanta- siadeveserforçada.Revelaavisãode umahumanidade transformadaem rebanhode vacas.Uma humanidade quepastaráe ruminarásatisfeitae inconsciente,consu- mindo erva,naqualumaeliteinvisívelde"pastores"tem interesseinvestido,eproduzindoo leiteparatalelite.Tal humanidadeserámanipuladapelaelitede maneiratão sutil eperfeitaquesetomarápor livre.Isto serápossível graçasàautomaticidadedo funcionamentodavaca.A li- berdadeilusóriaencobriráamanipulação"pastoril"per- feitamente.A vidaseresumiráàsfunçõestípicasdavaca: nascimento,consumo,ruminação,produção,lazer,re- produçãoemorte.Visãoparadisíacaeterrificante.~em sabe,aocontemplarmosavaca,estamoscontemplandoo homemdo futuro? O futuroé,no entanto,apenasvirtualidade.Ainda é tempodeagirmos. O progressonãoéautomático, masresultantedevontadeseliberdadehumanas. O progressorumo àvacapodeseraindasustado.Não, por certo,"reacionariamente".Não pelatentativadenegaras vantagensóbviasdavacaeaforçadaimaginaçãocriativa quenelasemanifesta.Mas pelatentativade apropriara vacaàsverdadeirasnecessidadese aosverdadeirosideais humanos.A vacaé,semdúvida,ameaça.Mas tambémde- safio.Deveserenfrentada. Grama Na frentedaminhacasacrescegrama.Não écurioso isto?~ero dizer:nãoé curiosoo verboaoqualrecorri paradizerquehágramanafrentedaminhacasa?Por que nãodigoquenafrentedaminhacasacrescem,também, formigaseumgato?E por quenãoháverboquedescreva aocorrênciaespecíficadegramanafrentedaminhacasa? Por quenãopossodizer "grameia",como digo "chove" ou "neva"?E sedigoquehágramadonafrentedaminha casa,estareiafirmandoalgoestruturalmenteidênticoàs afirmativasde quehá, também,formigueiroe chuvana frenteda minhacasa?Obviamente,a línguaportuguesa temumjeitodeimporsobreo meupensamentodetermi- nadasformasquemefazemcaptarosfenômenosdomun- do sobaspectosdeterminadospor taisformas.Capto a gramacomoalgoquecresce,eistoéo essencialdagrama. No casodasformigasegatos,o seucrescerécaptadopor Narurabnenrc VILÉM FLUSSER 61 mimcomoacidente.E captoagramacomoelementode umcoletivo(O gramado),queéessencialmentediferente decoletivostantodotipo"formigueiro"quantodotipo "chuva".Depositoconfiançana"sabedoria"escondidana língua:creioquealíngua"sabe"porqueimpõetaisfor- massobreo meupensamento.Creioquea"essência"da gramaéreveladaparamim,enquanto"crescer"eenquan- toelementodedeterminadotipodecoletivo,atravésdas formasdalínguaportuguesa.Souobrigadoacrernisto. Do contrário,cairiaemmutismoouemexcentricidades linguísticasdotipo:"nafrentedaminhacasaestáparado umexércitodegramas".Mas,aodizeristo,tropeçono caminhodo meudiscurso.~e excentricidadelinguís- ticafoi esta?O exércitoparadodegramasnãocaptará, eletambém,umaspectoda"essência"domeugramado, aspectoesteescondidopelalínguacorriqueira?E não teráistoavercomofamoso"poderrevelador dapoesia"? Nãoacabo,poracaso,dedarpalavraà grama,numsenti- dohusserliano,asaber:dar"nova"palavraàgrama?Não acabodeterpermitidoàgramaarticular-se,paramim,de umamaneiraportuguesarelativamentenova?Nãodarei, atalpergunta,nemrespostaafirmativanemnegativaaes- tasalturas.Registrareiapergunta. Nafrentedaminhacasacrescegrama.Comocresce, umpoucomaisadiante,trigo.E comocresce,nocentro dacenavistadaminhajanela,umcedrofrondoso."Cres- cer"serápoisaformanaquala línguacaptaaessência daplanta?Erro.A gramanafrentedaminhacasacresce muitomaiscomocrescemoscabelosnaminhacabeça,e muitomenoscomocresceo cedro.A essênciadagrama, reveladapelalíngua,nãoéasua"plantidade",maso fato dequeagramapodeserdeixadacresceroupodesercor- tada.A essênciadagramaésuacortabilidade.É espécie do mesmogêneroaoqualpertencemtambémcabelos e unhas.Gêneroesteessencialmentemanipulávelpor manicure.A técnicaadequadaà manipulaçãodagrama éensinadanossalõesdebeleza.O crescerdagramaées- sencialmentediferentedocrescerdocedro(etambémdo trigo).O critériodetaldiferençaessencialestánapráxis. O barbeiroéquasecompetenteparaagrama,nãoparao cedro.Mastaldiferençaessencialéescondidapeloverbo "crescer"dalínguaportuguesa.~em tambémistoseja registrado. A cortabilidadedagrama(quelheéessencial)está ligada,aparentemente,aocaráterdo coletivodoqualé elemento.Coletivosdo tipogramado,cabeleiraebarba sãocortáveis,coletivosdo tipotrigalsãocolheitáveis,e coletivosdotipopinheiralsãomanipuláveisdeoutrama- neira.(Paranãofalaremcoletivosdotipoformigueiroe famíliadegatos.)Masacasounhasnãoserãoigualmente cortáveis,enãoseráistoo "essencial"dasunhas?~al é o seucoletivo,"unhal","unhado"ou"unheiro"? A tentativadecorreraosocorroda"sabedoria"escondida nalínguaportuguesafalha:aessênciadagramaéescon-didapeloverbo"crescer",atéseforçarmosligaçãoentre talverboeo substantivo"gramado".Devemosconstatar um tantoextralinguisticamentequea gramapertence, essencialmente,à classedosfenômenoscortáveis,à qual 62 Natural:mente VILÉM F.LUSSER 63 pertencemtambémo cabeloeaunha,masnãoo trigo,a formigaeo gato.(Emboratalclassificaçãosetornepossí- velapenasgraçasàlínguaepor intermédiodalíngua.)O quesurpreendeéo fatodequetal classificaçãonãocoin- cidede maneiraalgumacom asclassificaçõescientíficas ditas"objetivas". Tais classificaçõesobjetivas(comoaliástodo o dis- cursocientífico)tendema encobrira essênciadosfenô- menosque explicam.Dizem, por exemplo,que grama e trigo sãoparentespróximoseparenteslongínquosdo cedro,masque seuparentescocom formigasé muito remoto,e quesuarelaçãocom cabelose unhaséhierar- quicamenteconfusa.É queaobjetividadecientíficaé,na realidade,resultadodedeterminadoponto devistasobre o mundo,ponto devistaestetomadoinconscientemen- tepor preferencialsemjustificaçãoexplícita,e assumido inconscientemente.Por certo,o ponto devistacientífico nãopodesero assumidopor Deus "subspecieaeterni". Porquesobtalponto devistaacortabilidadeserevelaes- sênciadenumerososoutroscoletivos:dospinheirais,dos formigueirose dahumanidade.Somos,de tal ponto de vista,essencialmentetãocortáveisquantoo éagrama.Se assumirmosponto de vistatão distanciado,não apenas ahumanidadeserevelaráespéciedegramado,mastodaa biosferaespéciedemusgocortávelacobrira superfíciedo planetaT erra.Tal pontodevistadistante,no entanto,não é nemcientíficonemexistencialmenterelevante.Apenas distânciasmensuráveisemunidadestemporaise espaciais compatíveiscomasdimensõeshumanassãosignificativas. Pontosdevistasobos quaisa diferençaentregramadoe humanidadesedilui sãodesumanos,portanto,pecamino- sos.Argumentoapreciávelcontracertasreligiosidades. GramaéessencialmentecabelodaTerra,ecabeloes- sencialmentegramado corpo.De quepontodevista?Do ponto devistado barbeiroe jardineiro.Tais pontosde vistanãoforamassumidosaleatoriamente,foramimpos- tos pelo fenômenomesmo.Não podemosassumirnão importa queponto de vistaperantea grama.Não, por exemplo,o ponto de vistado geólogoou do banqueiro. Emboraestespontosdevistatambémabranjamgramae cabelo,nãocaptarãoo queéessencialemambos.Parage- ólogosebanqueirosgramaecabelonãoocupamo centro do interesse;parabarbeirose jardineirosocupam.A es- sênciaserevelaapenasquandoo fenômenocontemplado ocupao centrodo interesse. Gramaé essencialmentecabelodaTerra.É proble- ma,comoo é não importaquefenômenonos cerca.O problemadagramaéeste:deixarcrescê-Iaou cortá-Ia.É problemaprático,provaquegramaé fenômenoconcre- to.Não setratadeexplicá-Ia,trata-sedemodificá-Ia.Não é problemado tipo: "qual a distribuiçãodos números primos na sérienaturalde números?",porqueprovoca práxis.Não, obviamente,deum ponto devistaobjetivo, masdo ponto de vistado jardineiro.Objetivamente,o problemadacortabilidadedagramasurgirámuito tarde no discursoqueexplicaagrama.Primeiro,surgirãopro- blemasrelativosa,morfologia,metabolismo,genéticaetc. da grama.Provaqueo ponto devistaobjetivo(científi- 64 Natural:mcnre VILÉM FLL'SSER 65 co)abstraiedesconcretizaagrama.O pontodevistado jardineirocaptaaessênciadagramaconcreta.Masé fato queo jardineiropodecortaragramacientificamente.A ciênciaé umavoltalongaquepassapeloslabirintosda abstraçãoparareencontrarofenômenoconcretodoqual partiu.Talvoltaenriqueceapráxis(eavisão)concretado jardineiro.Masquandosetratadedescobriraessênciada grama(suacortabilidade),melhorépôrentreparênteses talvolta. GramaéessencialmentecabelodaTerra.A decisão dedeixá-Iacresceroucortá-Iadepende,emparte,dasi- tuaçãoculturalnaqualnosencontramos.É, emparte, questãodemoda."BeautifyAmerica,havea haircut" (embelezea América,corteos cabelos),implicatam- bém:("corteou nãoteugramado")."TheGreeningof America"(O tornarverdeaAmérica)évisãodaAméri- cadopontodevistadojardineiroebarbeiro.Tal ponto devistapodeserdescoberto,aliás,emmuitaespeculação daNovaEsquerda(Marcuse),edeuma"filosofia"inspi- radapelaecologia.Há esteticismoimplícitoemmuitas dessastendênciasnovas,porquetaistendênciasnascem emsalõesdebeleza.ParaaNovaEsquerda,o proletário portadordofuturonãoé,aparentemente,ometalúrgico, maso barbeiro.Seráefetivamentenovotalesteticismo? Ou nãoseráromântico,combarbas(egramados)lon- gas?Críticaimpertinente.Tudo o queénovo tem,em certosentido,barbalonga."Nil novisubsole."Masnão esqueçamosqueaessênciadabarbaésuacortabilidade. Nãocortaragrama,deixarcrescê-Ia,estáatualmentena moda.Dizemquedistodependeaprópriasobrevivência dahumanidade.Abaixoo aparelhocortadordegrama, porqueabaixotodoaparelho!O pontodevistadobar- beiro(oudoantibarbeiro,queéamesmacoisa)contesta o pontodevistado aparelho(o dooperárioedonode fábricadeautomóveisecortadoresdegrama).Asbarbas longasdeambosospontosdevistasão,noentanto,cortá- veis.Cornoécortávelabarbalongadacontradiçãoentre opontodevistaéticodafábricadecortadoreseoponto devistaestéticodojardineiro.~em cortabarbasassim transcendemodas(étransmoderno).Estruturalista?Sim, masestruturalista-barbeiroqueprecisacortarsuaprópria barba.Cortaraprópriabarba:práxisreflexiva? Gramaé essencialmentecabeloda Terra.Deixar crescê-Iaé permitirà Terraqueseja.Atitudechthonica, telúricaetc.,portanto.Atitudecontráriaà repressãourâ- nica(espiritual)daTerraexercidapeloaparelho(decortar grama).Cabeloé essencialmentegramadocorpo.Deixar crescê-Ioé permitiraocorpoqueseja.Atitudecontrária à repressãodocorpopeloaparelho.O corpo-Terra,con- juntonão-históricoemrevoluçãocontraahistóriapro- movidapeloespírito-aparelho.Rousseau-Marx-Marcu- se?Não,fundamentalmente.Fundamentalmente:salão debeleza.Esteticismonietzschianoemrebeliãocontrao "niilismo"dojudeu-cristianismo.Urgedefinirmelhora relaçãoentregramaeTerra,eentrecabeloecorpo,para descobrirfenomenologicamenteaTerraportrásdagra- maeocorpoportrásdocabelo.Gramaecabelo"cobrem" Terraecorpo.É porculpadagramaedocabeloquenão 66 Narural:menre osvemos.SerágramaaindaTerra(MagnaMater,útero etc.)eserácabeloaindacorpo(conjuntodeexperiências concretasedegestos)?Não,porquegramaecabelosão essencialmentecortáveis,eTerraecorpoessencialmen- teincortáveis.Terranãoécortável,porquefundamenta. Corponãoécortável,porqueestásemprepresenteco- migo.Terraecorposãoincortáveis,porquenãoestãono tempo.Daíasuanão-historicidade.Deixarcrescergrama ecabeloé aindadecisãohistórica(espiritual,enquadra- dano aparelho):édeixarencobertaanão-historicidade daTerraedocorpo.Possivelmente,o métodoopostoé maisindicado?Cortargramaecabelotãoradicalmente queapareçaaTerraeocorpo?Fazerfuncionaroaparelho atéqueelepróprioseleveaoabsurdo?O barbeirocomo proletárioportadordofuturo,nosentidode"revelador" daconcreticidadenão-históricadaTerraedocorpo?Ou seráistocolaborarcomoaparelhoeserporeleabsorvido? Não:éapropriarosalãodebeleza. Asfalhasda"sabedoriadalíngua"comrelaçãoàgra- maforamdevidamenteregistradas.É quealínguafazpar- tedoaparelhocortadordegrama.É possíveltranscender alínguaeo aparelho.A visãofenomenológicaopermite. Masdepoisénecessáriorecorrernovamenteàlínguaeao aparelho.A visãofenomenológicaopermite.Masdepois énecessáriorecorrernovamenteà línguae aoaparelho, paraforçá-Iosafuncionaremcontrasipróprioseemfa- vordaessênciadagrama.ProgramarazoáveL Dedos Procuroobservá-Iosenquantobatemasteclasda máquinadeescreverparaproduziremo presentetexto. Tarefadura,porquesituaçãocomplexa.Devoobservar osdedosenquantoescrevemtextoquetemaobservação dededosporassunto.Mastarefaapaixonante.Porquea complexidadedasituaçãosedeveaoconstanteespelhar- sedaobservaçãono observado.Trata-se,portanto,da complexidadedassituaçõesreflexivas.Ao observaros dedos,reflito-meneles,eosdedosserefletememmim, aoseremobservados.~ando concentromeuinteresse sobreosdedos,encontroamimpróprioemtalcentro.Eu soumeusdedoseosmeusdedossãoeu.Eusoudelestan- toquantoelessãomeus.Possivelmente,aco-implicação
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