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Textos da Iniciação Científica. N˚4 1 TEXTOS DA INICIAÇÃO CIENTÍFICA. N˚ 4 Orientação: Profª. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti Departamento de Antropologia Cultural O MARACATU RURAL EM PERNAMBUCO Suiá Arruda Omim Julho, 2004. suiachaves@gmail.com Textos da Iniciação Científica. N˚4 2 O Maracatu rural em Pernambuco Resumo: O trabalho examina o universo dos Maracatus de Baque Solto a partir de uma experiência etnográfica com um Maracatu da cidade de Condado, Zona da Mata Norte de Pernambuco. Os três dias de carnaval junto ao Maracatu Leão de Ouro, no ano de 2004, constituíram um longo percurso, dia e noite, viajando por diversas cidades. Através da análise desses três dias de carnaval somos levados a alguns dos muitos elementos que constituem o misterioso universo dos Maracatus onde se misturam diversão e sacrifício, brincadeira e seriedade, amizade e rivalidade, música, dança e poesia. Palavras-chave: Zona da Mata Norte; Maracatu; ritual; rivalidade; peregrinação. Introdução O carnaval no Estado de Pernambuco é conhecido por sua grande diversidade de manifestações culturais, em suas diferentes regiões. Não por acaso, a festa do Rei Momo em Pernambuco tem como slogan “Carnaval Multicultural”1: em Recife e Olinda há Frevo, Blocos, Maracatus de baque-virado; no Agreste tem Caretas, Papangus, Caiporas; na Zona da Mata tem Maracatus de baque-solto, Caboclinhos, entre outras manifestações. Dentro da multiplicidade do carnaval pernambucano, este trabalho trata especificamente do Maracatu Rural, no contexto das discussões sobre as imagens e representações do índio na cultura popular (Cavalcanti, 2000; 2002). O Maracatu Rural ou Maracatu de Baque-Solto é uma manifestação expressiva no cenário cultural pernambucano, não só como uma manifestação representativa do carnaval, mas também como uma imagem relevante da cultura pernambucana, como um símbolo da expressão popular local.2 A pesquisa foi realizada em dois momentos principais: a 1a etapa foi uma pesquisa bibliográfica sobre o tema e a 2a etapa foi a realização de um trabalho de campo durante o carnaval de 2004, em Pernambuco. Na 1o etapa, a idéia era sistematizar os aspectos primordiais da história e do contexto social em que o Maracatu Rural se desenvolveu, através da literatura já existente 1 Jornal do Comércio. 4 de fevereiro de 2004. 2 Uma série de propagandas de concessionárias automobilísticas, empresas telefônicas, shopping centers locais, carregam a imagem do Caboclo de Lança do Maracatu de Baque-Solto, como referência ao Estado de Pernambuco. Ver monografia de Valéria Vicente, “O Caboclo na Mídia”, orientada por Angela Priston (Departamento de Comunicação.UFPE). Textos da Iniciação Científica. N˚4 3 sobre o tema. Já na 2a etapa, durante o carnaval de 2004, acompanhei um grupo de Maracatu Rural — o Leão de Ouro — de uma pequena cidade da Zona da Mata Norte chamada Condado. Após a realização do trabalho de campo, a idéia é fazer neste relatório, uma sistematização do material produzido no campo a fim de contextualizar o universo do carnaval dentro da brincadeira do Maracatu, e refletir sobre questões que se destacam neste contexto social específico: a religiosidade, a rivalidade e a manutenção da “brincadeira”. O trabalho de campo teve diferentes tipos de contato com o grupo de Maracatu Leão de Ouro. O primeiro contato foi através de uma “sambada”, o ensaio do Maracatu, que acontece antes do Carnaval. No ensaio, eles definem as pessoas que irão compor o grupo, determinam seus personagens, afiam os músicos do ‘terno’ — conjunto de 5 músicos que tocam os instrumentos de base: bombo, tarol, ganzá, cuíca e agogô — e os músicos dos instrumentos de sopro. Na sambada ficou combinado que eu acompanharia o grupo durante o carnaval. O segundo contato foi, portanto, nos três dias de carnaval, em que o grupo apresentou o Maracatu em mais de dez cidades diferentes. Uma semana após o carnaval, retornei a Condado e fiz entrevistas com cinco integrantes do Maracatu Leão de Ouro, sendo assim um terceiro contato. Depois houve um “toque para os orixás” em Chã de Camará, uma fazenda de cana perto de Condado, onde encontrei alguns dos participantes do Maracatu. E por fim, no 1o Domingo de março, assisti a Reunião mensal da Associação de Maracatus Rurais, e tive o último encontro com o dono do Maracatu, Seu Biu Alexandre. Este trabalho conta com diferentes materiais de pesquisa: o diário de campo, um registro pessoal das experiências vivenciadas no campo, as entrevistas gravadas em fita cassete e posteriormente transcritas, jornais do período do carnaval e a literatura já existente sobre o tema. I. Os Maracatus Inicialmente, é necessário fazer uma distinção entre os dois tipos de Maracatu existentes no Carnaval pernambucano: o Maracatu Nação e o Maracatu Rural. A perspectiva antropológica de Geertz (1978) e sua concepção de descrição densa de cultura propõem decifrar a teia de significados tecida pelo homem para dar sentido à sua vida. Nesta perspectiva, a idéia é realizar uma breve reconstrução histórica dos maracatus para permitir uma maior compreensão de seu contexto de significado. Textos da Iniciação Científica. N˚4 4 Maracatu Nação ou Maracatu de Baque-Virado Os maracatus nação foram objeto de diversos estudos tendo, portanto, extensa literatura a respeito. Guerra-Peixe (1981) demonstra o consenso existente entre os estudiosos de Maracatu sobre o surgimento do cortejo real. Ele explica que o cortejo do Maracatu teria se originado das organizações de negros africanos e do funcionamento da instituição do Rei do Congo. Alguns documentos encontrados na igreja do Rosário de Recife indicam que havia eleições e coroação de reis negros já no século XVII. Como revela Guerra-Peixe, a instituição do Rei do Congo consistia na eleição de um Rei e de uma Rainha que deveriam manter organizados sua corte e seu cortejo, sendo seus cargos apoiados nas garantias que lhes ofereciam os senhores de escravo. As coroações eram realizadas no dia de Nossa Senhora do Rosário (Pereira da Costa, 1908) e as chamadas nações, agrupamentos de escravos, festejavam a posse do Rei. O cortejo deveria constituir uma espécie de elite da instituição, composta de figurantes da nobreza, ocupantes de posições honoríficas e oficialidade superior; as nações eram subdivisões de negros em grupos estendidos na zona onde um rei exercia autoridade máxima. (Guerra- Peixe, 1981: 18) Além do funcionamento hierárquico e administrativo da instituição do Rei do Congo, havia, também o auto dos Congos, como registrou Pereira da Costa (1908), que seria um complemento festivo com teatro, dança e música. Na visão deste autor, ao longo do tempo, os autos foram acabando e teriam restado os cortejos de onde derivou o maracatu. Na visão de Guerra-Peixe (op. cit.), o desaparecimento da instituição do Rei do Congo e a decadência do auto dos Congos teria resultado no preenchimento dos cortejos com membros das nações, induzindo o povo a chamar, até os dias de hoje, os maracatus tradicionais de Nação. Maracatu Rural ou Maracatu de Baque-Solto De acordo com Elisabeth Assis (1997), os maracatus rurais teriam surgido na zona da mata norte em fins do século XIX e começo do século XX. Para a autora, os maracatus surgiram com o processo de abolição da escravatura e os possíveis conflitos de terra Textos da Iniciação Científica. N˚4 5 travados na região, entre senhores de engenho eescravos e também entre colonizadores e índios que habitavam a região. Guerra-Peixe (1981) atribui a origem dos Maracatus de Orquestra à crise econômica que assolou o Brasil, no pós 2a guerra, deslocando os interioranos para a capital. No Recife, esses interioranos procurariam brincar a seu modo o carnaval, juntando-se aos recifenses, resultando nos agrupamentos chamados maracatus de baque solto. Esta tese é acatada pela maioria dos pesquisadores deste período. Ele cita o exemplo do Maracatu Cambinda Estrela que foi fundado em 1935 que, como outros grupos, não era filiado à Federação Carnavalesca Pernambucana, pois era considerado uma deturpação dos velhos maracatus. Em 1952, o Cambinda Estrela tinha a seguinte estrutura: porta bandeira (pessoa que também desempenha função de baliza), dama-do-passo, porta- buquê, 10 baianas, 2 caboclos, 10 caboclos de lança, boneca Dona Aurora. O conjunto instrumental era composto de gonguê, ganzá, tarol, cuíca, surdo, zabumba e saxofone, trombone e trompete. Guerra-Peixe (1981) chama atenção para a boneca que — de modo diverso dos Maracatus Nação, que fazem sua boneca de madeira com feições negras — esta Dona Aurora é feita de pano, com traços e cor branca. Muitos são os elementos considerados pelo autor como deturpadores em relação às Nações. Isso fica mais claro quando se trata da música: Os maracatus de orquestra não nos parecem senão a mistura ou fusão de elementos tomados dos antigos maracatus, do Recife, com os originados de localidades diversas, do Estado de Pernambuco. Pelo menos musicalmente, esclareça-se. (Guerra-Peixe, 1981: 98) Esta visão emerge no discurso de diversos autores sobre o Maracatu de orquestra: o caráter alterado destes novos grupos visto como algo que não corresponde a um contexto original. Este discurso se assemelha às questões trazidas acerca da autenticidade e pureza dos candomblés e da deturpação dos cultos que deles se originaram e se misturaram sem manter as verdadeiras tradições.3 Em relação à dança, Guerra-Peixe explica: (...) dos Maracatus tradicionais dissemos que neles não há dança própria. As baianas sambam sob a influência das danças dos Xangôs e os Caboclos movem-se ao seu modo. (...) no Maracatu-de-orquestra as 3 Interessante sobre este tema o livro “A Cidade das Mulheres” da antropóloga americana Ruth Landes. Textos da Iniciação Científica. N˚4 6 danças são ainda mais vagamente delineadas, numa fusão ou mistura de samba e marcha. (Guerra-Peixe, 1981: 100) Nesta perspectiva, podemos notar a relevância da estreita ligação dos integrantes dos Maracatus Nações com os cultos de Xangô do Recife (Nagô) e, de outro lado, a forte tendência dos participantes dos Maracatus Rurais para o Catimbó que, como descreve Guerra-Peixe, é um “culto popular de características eminentemente nacionais” (1981: 23). Estas relações entre a religião e o Maracatu podem levar a diversas questões acerca das interseções entre as comunidades religiosas e os grupos carnavalescos. Nesta direção, podemos refletir sobre as concepções de identidade e alteridade entre os grupos de Maracatu nação e Maracatu de Orquestra e também entre os diferentes grupos que, dentro de uma destas modalidades, têm internamente suas formas de identificação e diferenciação. Segundo Katarina Real (1974), a vida social nas Nações é quase exclusivamente ligada aos orixás, as atividades são mais religiosas que profanas. Quanto aos Maracatus Rurais, a autora diz que eles representam as Nações de ‘índios africanos’, concepção complexa da imaginação popular pernambucana. Como define Elisabeth Assis: o maracatu baque virado é uma nação, sendo associado à África e a seus descendentes aqui escravizados. O caboclinho é uma tribo, representante dos povos desta terra, os índios. E o maracatu rural seria o quê? (...) Com fortes influências Ameríndias reúne elementos negros caboclos e índios, numa mistura, aparente, para quem de longe observa. Apesar de comungarem elementos comuns, a música é audivelmente distinta entre os três, seus traços étnicos, sua origem e sua representação sócio-cultural. (Assis, 1997: 21). A partir da proposta de Mauss (2003) do fato social total em que uma realidade específica é formada por uma trama de fatos sociais, a idéia é tentar relacionar a sobreposição de diversos níveis de realidades no Maracatu: a diversão, a religiosidade, a dança, a música, a poesia, a representação, a amizade, a solidariedade, a rivalidade, a proteção, a doença, etc. Passarei agora à abordagem de determinados aspectos do maracatu rural, a partir do contexto social e do universo de representação do grupo Leão de Ouro, observados no carnaval de 2004. Textos da Iniciação Científica. N˚4 7 II. O Maracatu de Baque-Solto Leão De Ouro No estandarte do maracatu Leão de Ouro, assim como na maioria dos maracatus, há bordados: o tipo de maracatu, baque solto ou baque virado, o nome do maracatu, a cidade em que ele foi fundado e a data de fundação. Por exemplo: MARACATU DE BAQUE-SOLTO LEÃO DE OURO. TUPAOCA ALIANÇA 1972. Na entrevista (ver anexo II) realizada com o atual dono do Leão de Ouro, Seu Biu Alexandre, ele conta que, apesar do maracatu agora estar na cidade de Condado, ele tem que ter na bandeira a sua cidade de fundação. Biu passou a tomar conta do Leão quando seu antigo dono, Memezo, ficou muito doente e não teve mais condição de cuidar. Ele já brincava no Leão antes e acabou aceitando cuidar do brinquedo, apesar de dizer que, por ele, o maracatu estava acabado, pois é só problema para quem organiza. O Leão de Ouro é considerado um maracatu ‘pequeno’ e pobre. No ano de 2004, o grupo teve 53 brincantes e recebeu diversas doações das fantasias, devido à oficina de bordado realizada na Associação de Maracatus Rurais. Os maracatus ‘grandes’, entendendo- se por isso ricos também, quando fazem novas fantasias para o carnaval, doam as antigas para os grupos pequenos. Essa associação entre o maracatu grande e rico e o maracatu pequeno e pobre tem um razão evidente. Para o maracatu ser ‘grande’, em termos numéricos, ele precisa ser ‘rico’ para pagar o ‘cachê’ de uma extensa quantidade de personagens. Portanto, o maracatu que tem 60 caboclos de lança, é porque tem ‘riqueza’ para sustentá-los. Todos os personagens têm um cachê que varia de acordo com o grau de responsabilidade deles para o cortejo. O Mestre do Maracatu, os Caboclos de Lança, os Reiamar e o “terno” são os que têm o maior cachê. Cada um à sua maneira, eles têm a responsabilidade de proteger a sua bandeira e cuidar dos demais integrantes do grupo. Considerando a particularidade de cada folguedo e as variações do número de componentes que há em cada grupo de maracatu, segue abaixo uma relação dos personagens, a localização deles no cortejo do maracatu rural e o número de brincantes do grupo em questão: Na frente do cortejo puxando o maracatu: Mateus: personagem presente em outras brincadeiras como o boi e o cavalo-marinho, usa um chapéu de funil com fitas de celofane; Catita ou Catirina: um homem vestido de mulher e com a cara pintada de preto; Textos da Iniciação Científica. N˚4 8 Burra: um homem vestido de burra que estala um chicote no chão. Envolvendo o miolo do maracatu: Caboclos de Lança: (21) lanceiros. O caboclo usa um ‘surrão’ de metal pendurado nas costas, coberto por uma ‘gola’ de lantejoulas. Na cabeça tem um chapéu feito com tiras de celofane coloridas. Carregam uma lança de madeira decorada com fitas de pano, chamada ‘guiada’. Além de pesada e exótica, a fantasiado Caboclo emite um estrondoso barulho, produzido pelos grandes sinos de metal que compõem o ‘surrão’. O rosto é pintado de vermelho, usam óculos escuros, e na boca levam um cravo branco, que é sua proteção. No miolo: Bandeira: o homem que carrega o estandarte com o nome e o símbolo do maracatu, veste uma roupa de súdito real; A corte: Rei, Rainha e dois carregadores de guarda sol que ficam cobrindo o casal real. Ficam atrás da bandeira; Boneca: preta de pano. É o símbolo do maracatu; A Dama da boneca: uma baiana que carrega a boneca, fica perto do estandarte ao centro. Reiamar (2): reiamar, ficam atrás da corte, puxando cada cordão de baianas. Têm um grande cocar na cabeça e usam um saiote de penas. Trazem uma gola, porém, mais curta do que a do caboclo e carregam nas mãos uma machadinha de índio; Baianas (15): formam dois cordões simétricos. Usam um vestido longo e armado, com as cores do seu orixá e na cabeça usam um lenço; Mestre do Maracatu: carrega uma bengala e um apito. Faz de improviso as loas ou sambas que movem o maracatu. Atrás do cortejo: Terno (5): conjunto musical: cuíca, ganzá, bumbo, tarol e gonguê; Músico: tocador de trompete. No total eram 55 integrantes do Maracatu Leão de Ouro contando com o Presidente e o Dono do Maracatu que, ao início de cada apresentação, soltava fogos de artifício, anunciando a chegada do cortejo. Atualmente, é muito comum a presença de crianças na brincadeira, em geral filhos dos integrantes do brinquedo. No Leão havia duas baianinhas, um caboclinho e um reiamar-mirim. Porém, ao longo do carnaval, alguns adoeceram e não voltaram a brincar devido à grande demanda de energia necessária para brincar carnaval. Textos da Iniciação Científica. N˚4 9 III. O Carnaval: a Peregrinação Nos três dias de carnaval, do domingo até a terça-feira de carnaval, o Leão de Ouro se apresentou em 10 cidades: Condado, Araçoiaba, Itaquitinga, Chã de Esconso, Upatininga, Carpina, Paudalho, Recife, Olinda e Buenos Aires (PE). Havia um ônibus, cedido pela prefeitura de Aliança, para transportar todos os integrantes do Maracatu e alguns familiares que acompanham e um caminhão para levar os surrões, os chapéus e as guiadas dos Caboclos de Lança. A cada nova cidade, todos saem dos ônibus, os caboclos vestem seu aparato, as baianas vestem sua armação, todos se ajeitam e o maracatu segue em direção ao palco para sua apresentação. Na maior parte das cidades em que passamos, os palcos eram montados por algum político local, aparentemente, já em clima de campanha. É costume que o mestre do maracatu que se apresenta faça uma saudação ao ‘ilustre patrono’ da festa com uma loa improvisada. Nas cidades do interior pernambucano é muito estreita esta relação entre os políticos locais e o carnaval, pois eles são a principal fonte de renda para a apresentação destes grupos de maracatu e caboclinho durante o carnaval. O grupo só se apresenta na cidade que fizer o contrato da apresentação cujo valor vai de R$50 a R$150 reais por grupo. Para o Maracatu, em quanto mais cidades ele se apresentar melhor, pois mais dinheiro ele recebe. Esta questão é muito problemática, pois a estrutura de apresentação dos maracatus no carnaval depende deste jogo político, que remete às tradicionais trocas de favores eleitorais, ainda mais se tratando de populações rurais com uma condição material restrita. Assisti inclusive um vereador pagando, por fora, a um mestre de maracatu, para ele falar o nome de um candidato a prefeito ao invés do nome do próprio prefeito que promovera a festa. Neste sentido, o carnaval é também um período em que os políticos se mostram ao povo. Demonstram, assim, uma valorização da ‘cultura carnavalesca popular’ e geram um campo de negociações políticas, eleitorais e econômicas. Nos palcos destas cidades do interior, é preciso esperar numa fila. Às vezes espera- se por horas, até o grupo se apresentar. As filas tinham, na maioria das vezes, diversos grupos de maracatu rural e caboclinho e, uma vez ou outra, havia uma “troça” ou bloco. Estas filas de espera também criam um espaço de relações muito interessante. É neste momento que os integrantes dos grupos aproveitam para olhar os outros grupos e obviamente compará-los com o seu próprio maracatu. Este movimento é muito sutil, pois Textos da Iniciação Científica. N˚4 10 em tese o maracatu deve ficar todo organizado na fila, pronto para se apresentar. Porém, os comentários são os mais maldosos possíveis em relação aos outros maracatus, deixando transparecer uma grande rivalidade entre os grupos. Os integrantes do Leão de Ouro reuniam-se para comentar como os caboclos do Maracatu de fulano estavam mirrados, os vestidos das baianas estavam “tronchos”, o mestre era ruim, os “reiamar” estavam pobres de penas, etc. Todo tipo de depreciação dos outros grupos ganha espaço neste momento, como num ritual de afirmação de identidade de grupo. No passado, esta rivalidade entre os maracatus tinha conseqüências drásticas, como luta corporal e até morte. De acordo com Biu Alexandre, os caboclos no maracatu saiam para brigar. Em outros tempos, o maracatu era constituído apenas por homens, mesmo as baianas eram homens, como observou Katarina Real nos anos 1960: “tudo sobre os maracatus rurais me dá a impressão de uma sociedade secreta masculina.” (Real, 1974: 93) De acordo com a entrevista de Biu Alexandre e de seu filho Aguinaldo, que é caboclo de lança do Leão de Ouro, uma das diversões dos caboclos de maracatu no carnaval de antigamente era brigar e para tanto se fazia uma preparação espiritual o “calço”. Que nem antigamente, que o povo fazia calço para isso mesmo, para pular a janela de costas, para encontrar o camarada dele e mete-lhe o cacete, bater pau um com outro e até se matá e furar uns aos outros. Às vezes ele pegava uma briga com amigo dele, antes do carnaval, aí guardava aquilo ali tudinho, para pegar durante o carnaval, ia descontar só na semana de carnaval. Agora não tem mais isso não, até porque os maracatus agora são cheios de meninos, ninguém que botá as crianças em bico de pau. Mas antigamente a diversão era brigar. Desconta a mágoa de São João no Carnaval. O carnaval antigamente era pau. O problema da briga hoje em dia é a cachaça, a droga e o amostramento. (Aguinaldo, Caboclo de Lança do Leão de Ouro. Entrevista realizada em 28 de fevereiro de 2004, Condado) A preparação para o carnaval é um aspecto muito importante no que diz respeito ao terreno místico-religioso do maracatu. O “calço” é realizado em terreiros de Umbanda ou de Catimbó, para proteger o brincante durante o carnaval. Como descreve Katarina Real: Há muita influência do catimbó, xangô de caboclo e mestres do além entre os associados não há dúvida (...) Também há indicação de influência do toré, dança guerreira indígena (e culto secreto) que existe nos subúrbios do Recife e no interior de Pernambuco e Alagoas. (Real, 1974: 93-94). Textos da Iniciação Científica. N˚4 11 Mário de Andrade em Música de Feitiçaria no Brasil (1983) sugere a idéia de que a dança está num terreno sagrado, elaborando a relação entre a dança e o transe, atribuindo um caráter místico ao Maracatu: Onde o Maracatu se distingue profundamente de todas as outras danças dramáticas, e quaisquer das danças negras, é na coreografia. Nisso ele se conservou fortemente eivado de origem mística, porque a maneira que vi dançar as pretas velhas do maracatu, na frente da sede do Leão Coroado, concorda exatamente com as coreografias de candomblé baiano, descritas por Nina Rodrigues. (Andrade, 1983) Apesar de esse trecho também parecer uma articulaçãoprecipitada entre suas leituras e sua rápida experiência etnográfica, esta observação é interessante por indicar a importância dessas práticas religiosas para os carnavais afro-americanos. Peter Burke (2000) discute esta ligação não só pela incorporação de práticas religiosas ao Carnaval — como no caso do Maracatu, em que muitos dos integrantes do cortejo são adeptos dos Xangôs ou por meio da presença do afoxé (instrumento religioso hoje também utilizado no Carnaval) — mas pela maneira própria de sua dança como sugeriu Mário de Andrade. Burke indica que na África Ocidental, de onde vieram a maioria dos escravos, a dança em grande parte se associava intimamente à prática religiosa: “A dança era um ritual sagrado que provocava perda de consciência e no qual os dançarinos eram possuídos por espíritos e divindades, como no caso dos iorubás no Daomé e na Nigéria” (Burke, 2000: 224). O autor destaca, portanto, que a possessão religiosa vista como um ritual ou mesmo como uma encenação, se assemelha a um determinado estado de espírito que os foliões carnavalescos incorporam e personificam no seu comportamento com o uso das fantasias de Carnaval. Toda a literatura sobre maracatu rural aponta para esta questão religiosa ligada aos cultos afro-indígenas. Como explica Elisabeth Assis: A ligação existente entre o maracatu, seus rituais de preparação e o cotidiano de seus atores sociais, demonstra a manutenção dos elementos ameríndios que remetem à sua origem. Desta forma, manter uma expressão cujos valores remetem à zona rural, reafirmando-a através do baque do maracatu, do reconhecimento e auto-definição de sua ruralidade, da manutenção de rituais ligados aos cultos afro-ameríndios, guarda significados, traduzindo seus traços de identidade aos quais está vinculada.(Assis, 1997: 135) Textos da Iniciação Científica. N˚4 12 IV. Considerações Finais Para concluir este relatório optei por problematizar alguns aspectos do maracatu rural que considero de extrema relevância para a discussão desta manifestação carnavalesca dentro do contexto social da zona da mata pernambucana. Não se pode deixar de falar das inúmeras dificuldades que a maioria dos grupos de maracatu passa para manter o brinquedo. As famílias vivem em condições muito pouco privilegiadas para arcar com as despesas que um maracatu demanda, já que quase não têm nenhuma doação de fora do maracatu. As fantasias são feitas, na maior parte das vezes, com as economias pessoais dos integrantes dos grupos. Estes, quase em sua totalidade, trabalham em usinas e engenhos da região, que os contratam na época do corte da cana. Eles moram em casas sem água encanada, sem luz, sem sistema de esgoto. Mesmo com uma condição material precária, os brincantes de um Maracatu gastam seu dinheiro em fantasias caríssimas. De acordo com Manuel Salustiano, vice-presidente da Associação de Maracatus Rurais, somente a gola do caboclo custa no mínimo R$500,00. Portanto, os folgazões economizam o ano todo para, nos três dias de carnaval, esbanjar todo luxo possível. Esta é uma das muitas batalhas do integrantes dos Maracatus e dos demais brincantes populares, manter o Maracatu vivo e belo. Um aspecto importante é o da rivalidade. Os maracatus são conhecidos pela rivalidade entre os grupos e, na preparação para o carnaval, há uma forte preocupação em ser melhor do que os outros. Inácio, o Reiamar do Leão de Ouro, deu a receita para aprender a complexa dança dos tuxáuas: A dança do reiamar é um problema, como se fosse uma inveja, cada cabra quer fazer melhor do que o outro, então a dança é um negócio que a gente aprende fazendo, tentando fazer melhor do que outro. É sempre tentar ser melhor do que o outro. Às vezes você chega numa federação e tem um cara dançando, aí você fala ‘esse cara dança bem mais eu vou tentar fazer meu papel melhor do que ele.’ A gente aprende às vezes com inveja do outro. A gente vai aprendendo aos poucos. A roupa é a mesma coisa, a gente vai melhorando, enfeitando, tem que mudar o visual para ficar mais bonito. (entrevista realizada em 29 de fevereiro de 2004, em Upatininga) Portanto, a rivalidade tem um caráter motivador no maracatu que se conjuga na tentativa de melhorar sempre o brinquedo em relação aos demais, tanto em termos materiais como na disposição e energia dos seus participantes. Textos da Iniciação Científica. N˚4 13 Por fim, não se pode deixar de falar da preparação espiritual como um ponto fundamental para a compreensão do universo simbólico do maracatu rural. Nesta preparação mágico-religiosa, além de haver um resguardo sexual para qualquer integrante do maracatu, os caboclos fazem o “calço” e ingerem o “azougue”, mistura de cachaça, pólvora, limão, entre outras coisas, que serve para deixá-los “azougados”, agitados e ativos por muitas horas. Como bem define Bonald Neto (1987: 292), o azougue é o ‘dopping popular’, o que os faz agüentar três dias de carnaval, viajando de uma cidade para outra, com uma fantasia de quase 25 quilos, quase sem comer e sem dormir. “Azougue eu tomo pra me distrair, azougue eu tomo pra me transformar”: os versos de Maciel Salú4 traduzem o espírito carnavalesco dos maracatuzeiros. Através da criação deste universo místico em que se tem uma série de restrições e obrigações a serem cumpridas, eles se transformam em seres capazes de enfrentar uma verdadeira “guerra” durante o carnaval e sem ficarem cansados ou adoentados. Quando alguém fica doente a explicação é imediata: alguém desrespeitou o resguardo. Na fala de Biu Alexandre: “Eu mesmo uma vez, não respeitei de dia, de noite fui acidentado. Fui ‘pular a cerca’ e me cortei mesmo, foi um corte da peste no pé”. O mestre do Leão de Ouro, Negoinho explica a sua preparação: Chegando o carnaval, ninguém pode pegar no apito, só o mestre. (...) todo o segredo do mestre tá no apito. Quando a mãe de santo calçá, vem todo aquele segredo na bola do apito, se bobear não canta nada. Se alguém pegar desmantela, pode até acabar o Maracatu, a bengala não, o segredo é o apito, todo cuidado é pouco. Se não fizer o calço brinca, só que com o calço é mais seguro. Bloco pode sair sem calçar, urso pode sair sem calçar, caboclinho, tudo brincadeira pequena, agora, Maracatu não, tem que ser calçado, se não calçar desmantela. Os caboclos, as baianas, também calça, tem procurar uma casa segura para ser protegido no meio do caminho. Maracatu não é toda que se apronta nesse negócio, só o segredo de um Maracatu é o mestre, entre o apito e o mestre. Carnaval o mestre tem que calçar o apito. Sem apito mestre não brinca. (entrevista realizada no dia 29 de fevereiro de 2004, em Itaquitinga.) A idéia é a de que o carnaval é uma espécie de prova de resistência, pois mesmo sendo uma diversão, tem um sabor de sacrifício. É uma brincadeira que leva até ao auto- flagelo, como coloca Elisabeth Assis: a imagem do caboclo de lança é de um guerreiro. Seu surgimento, na verdade, nos faz pensar nos conflitos de terra existentes na zona rural, 4 Faixa 8 do CD: Maciel Salú e o terno do terreiro. Textos da Iniciação Científica. N˚4 14 entre trabalhadores e senhores de engenho. Numa perspectiva fenomenológica poderíamos, ainda, fazer uma digressão, encontrando origem destes conflitos rurais num momento anterior. Entre os colonizadores e os índios foram travadas intensas batalhas, no processo de interiorização do Brasil, onde a expropriação aliada ao genocídio marcaram este momento. A figura do caboclo de lança – numa versão pitoresca – teria saído destes conflitos, estabelecendo sua imagem do guerreiro pronto paraa guerra, para o confronto, e , acima de tudo para a resistência. (Assis, 1997: 28) É neste plano que parece acontecer, no cortejo, não só a representação simbólica de uma guerra, tendo os caboclos de lança nas trincheiras, como também uma batalha com o próprio corpo, em que o brincante do Maracatu luta com sua resistência física, com a exaustão mental, indo até os últimos limites do corpo e da saúde pelo carnaval. “ A vida é uma aventura, quem batalha sempre alcança Olho grande e ganância não leva ninguém a nada Mãe natureza, sois sagrada, eu respeito e quero bem Quem trabalha Deus ajuda, quem faz pela vida tem.” Maciel Salú BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Mário de. 1982. Danças Dramáticas do Brasil. In: Oneyda Alvarenga (org.). Belo Horizonte: Ed. Itatiaia. ANDRADE, Mário de. 1983 [1933]. Música de Feitiçaria no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: INL/PROMEMÓRIA. ARAÚJO, Alceu Maynard. 1964/1967. Folclore Nacional. vol. I e II. São Paulo: Ed. Melhoramentos. ASSIS, Maria Elizabete A. 1997. 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