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Fonte: Revista História N º 56 Maio de 2003 O culto de Churchill Pedro Aires Oliveira Departamento de História da FCSH mpoliveira@fcsh.unl.pt Volvidos quase 40 anos sobre a sua morte, Winston Churchill (1874-1965) permanece tão popular como sempre, ao ponto de podermos falar de um verdadeiro "culto" em torno da sua figura. Um dos aspectos curiosos do revivalismo em torno de Churchill é que ele é tão forte nos Estados Unidos da América como no seu país de origem, a Grã-Bretanha. Afinal de contas, Churchill era meio meio-americano pelo lado da mãe, e os laços com a América desempenharam um papel crucial na sua vida pessoal e política (para o bem e para o mal: em 1929, Churchill perdeu parte da sua fortuna pessoal no Crash de Wall Street). Apesar da sua relação com alguns presidentes americanos ter conhecido momentos de azedume e crispação, especialmente com Roosevelt, Churchill tornou-se uma figura venerada por praticamente todos os presidentes norte-americanos desde o fim da II Guerra. Eisenhower, que em 1956 ajudou a colocar o último prego no caixão do império britânico ao demarcar-se da aventura do Suez, foi mesmo um dos grandes impulsionadores do culto de Churchill nos EUA. Ronald Reagan citou Churchill no seu discurso de posse em 1980 e mandou colocar um retrato de Churchill na Sala de Crise da Casa Branca. Depois de visitar os Cabinet War Rooms, em 2001, George W. Bush pediu à embaixada britânica em Londres que adquirisse um busto de bronze de Churchill para decorar a Sala Oval. O seu Secretário de Estado, Colin Powell, é um membro da Churchill Society of America. Nos dias que se seguiram aos trágicos atentados contra as Torres Gémeas e o Pentágono, não faltou quem comparasse o Gound Zero em Manhattan com as áreas londrinas do East End devastadas pelas bombas da Luftwaffe, e apelidasse o mayor Rudolph Giuliani de "Churchill de Nova York" (mais tarde, Giuliani haveria de revelar que nos momentos de maior desalento procurara conforto e inspiração na biografia de Churchill que Roy Jenkins acabara de publicar).1 Churchill e as "lições de Munique" A campanha que Churchill moveu contra o appeasement, a sua defesa intransigente de uma política musculada face aos regimes ditatoriais, têm sido sistematicamente invocadas, tanto nos Estados Unidos como na Europa, nos momentos em que a via diplomática parece esgotada e o emprego da força surge como o passo seguinte. As "lições de Munique" tornaram-se uma das narrativas políticas mais influentes da segunda metade do século XX, e a recente crise iraquiana mostra como ela continua bem presente no imaginário dos estadistas ocidentais. De 1945 em diante, foi rara a crise internacional em que não se estabeleceram paralelos com "Munique" e o seu bem conhecido guião: um agressor, uma vítima e as consequências da "paz a qualquer preço".2 Foi assim com a Guerra da Coreia, a Crise do Suez, a Crise dos Mísseis de Cuba, o envolvimento franco-americano no Vietname, a Guerra das Malvinas, os conflitos da ex-Jugoslávia, a 1ª Guerra do Golfo e, mais recentemente, com a crise do Iraque. A presciência de Churchill, o seu realismo lúcido, a sua recusa em estabelecer compromissos com tiranos, têm ainda o mérito de fornecer um mecanismo de legitimação para os governantes apostados em ignorar os instintos "pacifistas" das respectivas opiniões públicas e os conselhos de aliados pusilânimes. Numa recente entrevista à BBC, transmitida em plena "crise das inspecções" ao Iraque, o historiador Paul Kennedy declarou que a administração Bush vive obcecada pela história, especialmente pela história da II Guerra Mundial, e que tanto o presidente como o seu vice, Dick Cheney, não perdem uma oportunidade para divulgar os livros que têm à cabeceira, invariavelmente obras de estratégia e história militar onde a figura de Churchill surge em primeiro plano. Aliás, algumas passagens de discursos proferidos por George W. Bush após o 11 de Setembro parecem claramente inspiradas na oratória churchilliana: "We will not waver, we will not tire, we will not falter" é um eco mais ou menos óbvio do célebre "...we shall fight on the beaches, we shall fight on the landing grounds, we shall fight in the fields and in the streets, we shall fight in the hills, we shall never surrender..."3 E num momento em que os Estados Unidos se preparam para estabelecer um protectorado militar na antiga Mesopotâmia, a faceta "imperialista" de Churchill também não poderia ser mais oportuna: afinal de contas, foi ele quem mandou a RAF bombardear as irrequietas tribos iraquianas em 1921, quando exercia o cargo de ministro das Colónias e o Iraque era administrado por Londres ao abrigo do sistema de mandatos da SDN. Ao que poderíamos acrescentar: e foi Churchill que em 1911 comprometeu a Grã-Bretanha com uma esfera de influência no Irão, curiosamente um dos estados visados por George W. Bush no seu célebre discurso do "Eixo do Mal"... Enfim, o jogo das analogias poderia nunca acabar. Com efeito, Churchill é um pouco um "homem para todas as estações", uma figura cuja autoridade moral muitos procuram para conferir credibilidade às suas causas (veja-se como nas disputas acerca do papel da Grã-Bretanha face à construção europeia o seu nome é frequentemente invocado tanto pelos euro-entusiastas como pelos eurocépticos). Um vitoriano no século XX Nascido em plena era vitoriana (1874), no seio de uma família da grande aristocracia britânica (descendentes do Duque de Marlborough), Churchill viria a falecer 91 anos mais tarde, em plena Guerra Fria, quando os Beatles estavam no auge da sua popularidade e o sol já se pusera no império britânico. Durante a sua aventurosa juventude, combateu no Afeganistão, participou na última carga de cavalaria do exército britânico em Omdurman, no Sudão, foi feito prisioneiro na Guerra Anglo-Boer e tornou-se um jornalista famoso e bem pago graças aos seus empolgantes relatos de guerra. A sua ascensão política foi fulgurante, embora recheada de controvérsia: tendo ingressado na Câmara dos Comuns como deputado conservador, transferiu-se para o Partido Liberal em 1904, por discordar da orientação proteccionista adoptada pelo governo de Lord Balfour. Embora essa "troca de camisola" lhe tenha custado muitos inimigos e detractores, Churchill rapidamente se converteu numa das figuras mais emblemáticas do "Novo Liberalismo", acumulando sucessivos cargos ministeriais até ao deflagrar da 1ª Guerra Mundial (subsecretário de Estado das Colónias, ministro do Comércio e do Interior, Primeiro Lorde do Almirantado). No desempenho dessas pastas adquire uma reputação ambivalente: por um lado, é uma das figuras de proa do reformismo social que caracteriza uma nova geração de políticos liberais (veja-se o seu empenho na reforma dos serviços prisionais, na criação de uma rede de protecção social mínima, na melhoria das condições de trabalho de mineiros e operários); por outro lado, é um dos governantes que exibe um temperamento mais "beligerante" sempre que confrontado com acções contestatárias. A sua relação com os sindicatos e o movimento das sufragistas foi pontuada por várias confrontações graves, já que ao primeiro sinal de desacatos a reacção instintiva de Churchill era a de chamar a tropa para lidar com o assunto. Junto do movimento operário Churchill ganhará então uma reputação de reaccionário que só se atenuará durante a II Guerra Mundial (coligação com os Trabalhistas, aliança anglo-soviética). O primeiro grande revés da sua carreira, porém, sofrê-lo-á no plano militar, já depois de iniciada a Grande Guerra. Perante o impasse a que o conflito chegara na frente ocidental, Churchill torna-se o principal mentor da abertura de uma segunda frente no Mediterrâneo Oriental, por forma a atingir as Potências Centrais no seu ponto mais vulnerável. O resultado é a célebre débâcle dos Dardanelos, em 1915(um desembarque anfíbio anglo-francês que os turcos repelem com êxito, infligindo-lhes pesadas baixas). Despromovido no âmbito do gabinete, Churchill prefere solicitar a integração numa unidade militar e durante alguns meses combate na frente ocidental. A chegada ao poder do seu amigo Lloyd George, em 1917, revelar-se-á providencial. Para quem prometia a vitória a qualquer preço, o contributo de um homem com a fibra de Churchill tornava-se quase indispensável (veja-se o entusiasmo com que apadrinhou a introdução de novas armas, como os aviões, o tanque e - o que hoje nos pode parecer chocante - os obuses tóxicos). O seu desempenho eficaz no Ministério das Munições permite-lhe recuperar algum capital político e nos anos seguintes volta à primeira linha da acção ministerial em pastas como a Guerra (1919-1921) e as Colónias (1921-22). Durante a Conferência de Paz, torna-se o grande campeão de uma intervenção aliada na Rússia, com vista a apoiar os exércitos contra-revolucionários. O seu ódio aos bolcheviques assume contornos quase obsessivos, e as suas denúncias veementes da tirania leninista granjeiam-lhe a fama de reaccionário e "anticomunista primário". Hoje, cotejando as suas descrições das atrocidades bolcheviques com tudo o que sabemos acerca do "Terror vermelho" verifica-se que afinal os avisos de Churchill eram inteiramente certeiros. No entanto, em determinadas ocasiões, Churchill era também capaz de privilegiar o pragmatismo e o compromisso. A questão irlandesa foi um desses casos. Embora razões afectivas e preconceitos de classe o inclinassem para uma linha intransigente em relação aos nacionalistas irlandeses, Churchill acabaria por apoiar o diálogo encetado por Lloyd George com o Sein Finn em 1921. Na realidade, a parceria que estabeleceu com o líder carismático do IRA, Michael Collins, foi decisiva para a celebração do acordo que criou o Estado Livre da Irlanda, o embrião da República irlandesa. Na pasta das Colónias, que exercerá entre Abril de 1921 e Outubro de 1922, são sobretudo as convulsões do Médio Oriente, onde a Grã-Bretanha adquirira novas responsabilidades após o colapso do império otomano, que absorvem as suas energias. Apoiante entusiástico do compromisso assumido por Lord Balfour relativamente à criação de uma pátria judaica na Palestina, cedo se apercebe das dificuldades que Londres teria de enfrentar caso se dispusesse a conciliar as aspirações judaicas com os direitos dos árabes palestinianos. Nisso não foi mais bem sucedido do que todos os outros estadistas que até hoje procuraram um acordo satisfatório para ambas as partes. Como sucedeu com tantos outros homens políticos, a experiência da guerra e o espectro da "ameaça vermelha" vão provocar uma viragem à direita em Churchill (em 1927, por exemplo, elogiou Mussolini como o maior legislador italiano de todos os tempos). Depois da queda do governo liberal em 1922, começa a sondar o terreno para um regresso ao Partido Conservador, que se consumará dois anos mais tarde. Mau grado os ressentimentos que muitos ainda lhe guardam pela "traição" de 1904, Churchill é um activo demasiado valioso para ser remetido para os bancos de trás da Câmara dos Comuns. Em 1926, Baldwin oferece-lhe a pasta das Finanças, uma área onde estava manifestamente pouco à vontade. A sua insegurança leva-o a seguir uma política financeira ortodoxa e a promover o regresso da libra ao padrão-ouro ("o maior erro da minha vida", dirá ele mais tarde), de onde vem a resultar uma perda de competitividade das exportações britânicas e uma subida em flecha do desemprego. Implacável, Keynes satiriza-o num panfleto que ficou célebre: As Consequências Económicas do Senhor Churchill (1925). Com a crise económica vem também a contestação social, que culminará na greve geral de 1926. Encarando o movimento grevista como um desafio à própria ordem constitucional, Churchill reage com a impetuosidade do costume. E entre os elementos mais moderados do Partido Conservador vai ganhando corpo a ideia de que a sua belicosidade poderá ser um obstáculo à pacificação das tensões sociais e ao apaziguamento do movimento operário. A travessia do deserto Após a queda do Governo de Baldwin em 1929, Churchill enceterá uma longa travessia do deserto em termos políticos. Para combater as suas tendências depressivas (aquilo a que chamava o seu "black dog"), entrega-se a alguns dos seus hóbis: as viagens, a pintura, a alvenaria (foi ele quem construiu os muros da sua casa de campo em Chartwell) e, sobretudo, a escrita da história (ver caixa). Quando os conservadores regressam ao poder em 1931 (coligados com os Trabalhistas), é ostensivamente ignorado na formação do gabinete. Uma sucessão de erros políticos vão deixá-lo ainda mais isolado nos anos seguintes. Se na questão do abandono do livre-câmbio (1931) ainda se consegue manter em sintonia com a direcção do partido, já na questão da atribuição do estatuto de Domínio à Índia prefere entrar em ruptura aberta com o governo. Sentimentalmente ligado ao modelo imperial da era vitoriana, imbuído de um racismo muito típico das elites europeias do início do século, Churchill empenha-se activamente na oposição ao India Bill. Num dos momentos mais exaltados, qualifica Ghandi como "um faquir de um tipo bem conhecido no Oriente" e troça da possibilidade de algum dia o "Raj britânico ser substituído pelo Rajá Ghandi". Enfim, toda a polémica mais não faz do que confirmar a imagem de figura anacrónica e intransigente que acerca dele se foi alicerçando entre os conservadores moderados. O seu segundo passo em falso dá-se com a chamada "crise da abdicação", quando vem a público defender que se concedesse mais algum tempo a Eduardo VIII para este tomar uma decisão quanto ao seu futuro (a coroa ou Wallis Simpson). Embora os seus biógrafos estejam geralmente de acordo em relação à conduta desinteressada de Churchill nesta questão (ditada pela sua amizade de longa data com o soberano), a verdade é que na época a ideia que passou para a opinião pública foi a de que Churhill tentara explorar a crise para fins exclusivamente pessoais ("salvar" o rei e tornar-se o seu primeiro-ministro). Hostilizado pela esquerda, olhado com desconfiança pelo establishment conservador, Churchill esbarrará com uma indiferença generalizada quando se entrega a uma nova batalha: a defesa do rearmamento britânico como resposta à ameaça da Alemanha nazi. Como observa François Bédarida, a mitologia churchilliana tende a exagerar a precocidade do diagnóstico de Churchill em relação à verdadeira natureza do ditador alemão. Até 1937, pelo menos, Churchill ainda parecia inclinado a conceder-lhe o benefício da dúvida, não obstante as suas repetidas denúncias de alguns dos aspectos mais cruéis do regime nacional-socialista, nomeadamente o tratamento dado às minorias. Educado na tradição do balance of power, Churchill mostra-se sobretudo apreensivo diante da possibilidade de uma nova hegemonia continental, que dificilmente deixaria incólume o império britânico. Ao contrário de muitos dos seus correligionários, não acredita na eficácia do apaziguamento de um regime tão abertamente expansionista como o alemão e duvida que uma potência liberal como a Grã-Bretanha pudesse alguma vez estabelecer um modus vivendi duradouro com Hitler. Até à crise de Munique, Churchill teve de resignar-se a desempenhar o papel de Cassandra da política britânica, mas após o desmembramento da Checoslováquia as suas predições passam a ser escutadas com outra atenção. Com a invasão da Polónia em Setembro de 1939, a sua autoridade política é completamente restaurada. Churchill torna-se o homem do momento. Chamberlain, o grande artífice do "apaziguamento", vê-se praticamente forçado a admiti-lo no governo (novamente como Primeiro Lorde do Almirantado) e até mesmo o desastre da campanha norueguesa (na qual lhecoube uma grande parte da responsabilidade) acabará por jogar a seu favor. Com o Blitzkrieg alemão a evoluir de forma vertiginosa na Europa ocidental, Chamberlain perde a confiança do parlamento e coloca-se o problema da sua sucessão. Embora o frio e cerebral Lorde Halifax reunisse à partida mais apoios entre os círculos políticos, Jorge VI percebe que naquela conjuntura o país apenas aceitaria alguém com a determinação obstinada de Churchill. A hora mais bela Empossado na chefia do gabinete a 10 de Maio de 1940, Churchill rapidamente galvaniza os britânicos com a sua oratória ("ele mobilizou a língua inglesa e enviou-a para a batalha", escreveu um jornalista americano). Numa série de discursos memoráveis, declara não ter nada mais a oferecer do que "sangue, esforço, lágrimas e suor", e que a sua única política é a vitória, "a vitória a qualquer custo, a vitória apesar do terror: a vitória, por muito longa e custosa que a estrada possa ser". Um pacto de sangue fora estabelecido entre o primeiro-ministro e o seu povo: os dois sobreviveriam juntos, ou os dois pereceriam juntos. Entre a evacuação de Dunquerque e a Batalha de Inglaterra, os britânicos vivem a sua "hora mais bela", um momento irrepetível de unidade patriótica e abnegação colectiva. Com o passar dos anos, porém, a lenda da "hora mais bela" foi ganhando algumas matizes. Graças aos relatórios do organismo que monitorizava o comportamento da opinião pública, o Mass Observation, sabemos hoje que o derrotismo foi um sentimento muito mais difundido do que alguma vez se pensou. E estudos baseados em documentos diplomáticos revelam que figuras destacadas da elite governante estavam longe de ter descartado a hipótese de uma paz de compromisso com Hitler. Num magnífico ensaio (Five Days in London. May 1940, 1999), o historiador John Lukacs reconstituiu de forma minuciosa as manobras felinas de Lord Halifax no gabinete de guerra com vista a persuadir os seus pares das vantagens de um entendimento com Hitler, usando Mussolini como intermediário. Ainda recentemente, alguns historiadores mais à direita, como John Charmley, alegam que Churchill terá cometido um erro crasso ao não explorar essa possibilidade (cf. Churchill: the End of Glory, 1993). No fundo, ao ter enveredado pela via da resistência a Hitler a qualquer preço, Churchill acabaria por empenhar todos os recursos do império britânico quando podia simplesmente ter celebrado uma trégua e aguardado tranquilamente que a Alemanha e a Rússia se aniquilassem mutuamente. Economicamente arruinada pelo esforço de guerra, pressionada a descolonizar pelos EUA, a Grã-Bretanha viu-se assim apeada do seu estatuto de grande potência no fim da guerra e empurrada para um declínio lento e inexorável. Uma visão que, todavia, tem sido refutada de forma convincente por outros historiadores de impecáveis credenciais conservadoras, como Andrew Roberts, que nota que qualquer trégua com Hitler mais não seria do que uma "segunda paz de Amiens", ou seja, o prelúdio para um ataque em força de uma Alemanha suprema no continente (cf. Hitler & Churchill. Secrets of Leadership, 2003). Salvar o país e perder as eleições A derrota nas eleições gerais de 1945 constituiu um dos maiores reveses da sua carreira, mas, apesar da frustração, Churchill reage com um fair-play notável e não se conforma com a ideia da reforma. Durante o consulado trabalhista, lidera os Conservadores na Câmara dos Comuns, dedica-se novamente à escrita da história e realiza conferências pelo mundo inteiro. Em Fulton, Missouri, profere o famoso discurso da "Cortina de Ferro" (1946), que ajuda a concentrar as mentes dos norte- americanos em relação ao expansionismo soviético. Um livro recente, do historiador Klaus Larres (Churchill's Cold War: The Politics of Personal Diplomacy, 2002), permite-nos a contextualizar melhor a sua actuação na fase inicial da Guerra Fria. Enquanto os EUA possuíram o monopólio das armas nucleares, Churchill não hesitou em mobilizar a sua oratória contra as alegadas ambições hegemónicas de Moscovo, contribuindo de forma decisiva para a cristalização do antagonismo ideológico entre o Ocidente capitalista e o Bloco comunista. O seu objectivo, porém, nunca foi a III Guerra Mundial, mas tão somente a negociação de um compromisso com a URSS a partir de uma posição de força. A partir do momento em que os russos testaram a sua primeira bomba atómica (1949), Churchill depressa se converteu num dos principais advogados de uma détente com a URSS, especialmente após a morte de Estaline em 1953. O seu grande sonho, a realização de uma cimeira onde os líderes das três potências nucleares acertariam os termos de uma "coexistência pacífica", nunca se veio a concretizar durante a sua vida. Em 1955, Churchill concorda finalmente em ceder o lugar de primeiro-ministro ao seu lugar-tenente, Anthony Eden, que alguns meses mais tarde haveria de lançar a Grã-Bretanha na desastrosa aventura do Suez e assim acabar de vez com as suas ilusões imperiais. A nova vaga de biografias Apesar de todas as controvérsias (a sua apologia do eugenismo, a decisão de bombardear Dresden) e de todos os revisionismos (de esquerda e direita), Churchill permanece como uma das figuras mais populares da história contemporânea, um ícone que toda a gente imediatamente associa ao "V" da vitória, ao charuto, e a um número incontável de máximas e epigramas. Aliás, num recente concurso promovido pela BBC para apurar "o maior britânico de todos os tempos", foi sem surpresas que Churchill recolheu o maior número de votos (mais supreendente - ou talvez não... - terá sido o segundo lugar alcançado pela Princesa Diana). Uma visita a qualquer livraria no Reino Unido é elucidativa acerca do florescimento do culto de Churchill, tão numerosas são as biografias à disposição do leitor. A explicação para este revivalismo pode ser dupla. Por um lado, o desencanto generalizado face aos políticos que na década de 90 sucederam a estadistas como Thatcher, Kohl e Mitterrand terá aguçado a curiosidade do público pelas vidas dos "grandes homens" (De Gaulle em França, Adenauer na Alemanha, etc.). Por outro lado, o facto de cada vez mais arquivos disponibilizarem documentos até há pouco tempo classificados, e do arquivo Churchill ter recentemente concluído o seu processo de microfilmagem e digitalização, poderá ter contribuído para aquilo que Piers Brendon apelidou de "uma explosão de estudos sobre Churchill". Entre as obras mais recentes, destaca-se a biografia assinada por Roy Jenkins (1920-2003), antigo ministro Trabalhista, presidente da Comissão Europeia nos anos 70 e autor de várias aclamadas biografias históricas. Deputado durante o último governo chefiado por Churchill, o autor ainda pôde vê-lo em acção na sua arena preferida (o parlamento de Westminster) e isso talvez explique a excepcional qualidade das páginas dedicadas à actividade parlamentar de Churchill. Sem trazer dados novos, o livro de Jenkins vale sobretudo pela forma como nos ajuda a perceber alguns dos paradoxos e contradições de uma personalidade "maior do que a vida". Em português, o público tem agora à sua disposição duas obras importantes. Uma é a versão abreviada da monumental biografia em 8 volumes de Martin Gilbert, o biógrafo "oficial" do clã Churchill. Apelidá-la de hagiografia será porventura injusto, mas o extremo formalismo de Gilbert acaba por induzir um efeito quase soporífero nos leitores, que sem dúvida obterão uma imagem mais viva de Churchill se mergulharem no excelente estudo de François Bédarida, historiador francês que se especializou em temas britânicos. Equilibrado e bem informado, o Churchill de Bédarida tem além do mais um suave perfume gaulês que lhe confere um toque bem original (a título de exemplo, veja-se a apreciação crítica do autor em relação ao distanciamento de Churchill do projecto europeude Adenauer, Shuman e Monnet). Noutro registo, alguns ensaios recentes procuram também avaliar o seu legado histórico situando-o numa perspectiva de longa duração. É o caso de John Lukacs, que procura sobretudo responder aos revisionistas de direita (Charmley e Niall Ferguson) em Churchill: Visionary. Statesman. Historian (2002); de John Ramsden, que em Man of the Century: Winston Churchill and His Legend (2002) examina algumas das ambiguidades do Churchill estadista e demonstra até que ponto as suas perspectivas acerca do papel internacional da Grã-Bretanha continuam a influenciar poderosamente a política inglesa na actualidade; e David Cannadine, um dos mais originais historiadores britânicos dos nossos dias, autor de In Churchill's Shadow: Confronting the Past in Modern Britain (2002), uma colecção de ensaios que procuram explicar a relação dos britânicos com o seu passado vitoriano e pós-vitoriano, e em particular a sua a tendência para se agarrarem aos vestígios da grandeza imperial, ou seja, para viverem "na sombra de Churchill". Para saber mais: François Bédarida, Churchill, Lisboa, Verbo, 2001 Martin Gilbert, Winston Churchill. Biografia, Lisboa, Bertrand, 2002 Keith Robbins, Churchill, Mem Martins, Inquérito, 1997 CAIXA Churchill, o historiador Apesar de ter nascido num berço de ouro, Churchill nunca herdou qualquer fortuna significativa. Mas pela vida fora nunca prescindiu de um estilo de vida próprio da alta aristocracia (de resto, indispensável para alguém com as suas ambições políticas), que só conseguiu manter graças a lucrativos contratos de edição. Churchill estreou-se nas lides literárias como correspondente de guerra (para além dos conflitos em que participou, cobriu também a Guerra Hispano-Americana), e depois publicou um romance, alguns relatos de viagem, a biografia do seu pai, Lorde Randolph Churchill, e um primeiro livro de memórias (My Early Life, 1930). Além de nutrir uma profunda paixão pela história (a sua verdadeira religião, segundo alguns), Churchill percebeu exactamente a importância de ser ele próprio a escrevê-la. Aproveitando os períodos em que esteve afastado do poder, rodeou-se de talentosos historiadores que lhe faziam a pesquisa de fontes e o mantinham a par da bibliografia pertinente. Entre os historiadores que colaboraram consigo destacam-se os nomes de William Deakin, Asa Briggs, Alan Bullock, J. H Plumb e G. M. Young. Para lá da biografia do Duque de Marlborough, o seu antepassado mais ilustre e o grande cabo de guerra que derrotou os exércitos de Luís XIV, Churchill notabilizou- se pelos seus estudos sobre as duas guerras mundiais (os monumentais The World Crisis, 6 vols., e The Second World War, 6 vols.), e, já mais no fim da vida, pelo The History of the English Speaking Peoples, um tributo à ideia de liberdade na sua variante anglo-saxónica. Pelo conjunto da sua obra histórica, Churchill seria galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1953. Destaques: Num dos momentos mais exaltados, qualifica Ghandi como "um faquir de um tipo bem conhecido no Oriente" e troça da possibilidade de algum dia o "Raj britânico ser substituído pelo Rajá Ghandi". Numa série de discursos memoráveis, Churchill declara não ter nada mais a oferecer do que "sangue, esforço, lágrimas e suor", e que a sua única política é a vitória. Um pacto de sangue fora estabelecido entre o primeiro-ministro e o seu povo: os dois sobreviveriam juntos, ou os dois pereceriam juntos. A partir do momento em que os russos testaram a sua primeira bomba atómica (1949), Churchill depressa se converteu num dos principais advogados de uma détente com a URSS, especialmente após a morte de Estaline em 1953. 1 Raymond Carr, "The Greatest Briton", Spectator, 7 de Dezembro de 2002, pp. 40-41, e Andrew Roberts, Hitler & Churchill. Secrets of Leadership, Londres, Weidenfeld & Nicolson, 2003, pp. xvii-xix. 2 Cf. David Chuter, "Munich, or the Blood of Others", in C. Buffet e B. Heuser (ed.), Haunted by History. Myths in International Relations, Berghahn Books, Oxford, 1998, pp. 65-79 3 Edward Rothstein, "Churchill, Heroic Relic or Relevant Now", The New York Times, 29 de Março de 2003. 9
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