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EDIÇÃO Monica Casa Nova REVISÃO Marco Antonio Casanova CAPA E PROJETO GRÁFICO Giovana Paape DIAGRAMAÇÃO Alexandre Sacha Paape Casa Nova IMAGEM DE CAPA Alberto Giacometti - A floresta (1950j DASEINSANÁLISE FENOMENOLOGIA E PSICANÁLISE D255e Françoise Dastur e Philippe Cabestan DASEINSANÁLISE: FENOMENOLOGIA E PSICANÁLISE Tradução: Alexander de Carvalho; Revisão: Marco Casanova l ed. - Rio de Janeiro: Via Venta - 2015 Tradução de: Daseinsanalyse: Phenomenologie et Psychanalise 255 p. ; 14x23 cm. Françoise Dastur e Philippe Cabestatt ISBN: 9788564565319 1 . Psicologia, Psicanálise. 2. Fenomenologia - 1. Título 432C I' edição Rio de Janeiro, 2015 Todos os direitos dessa edição reservados à VIA VERITA EDITORA/ Instituto Dasein Rua Safa Vilela 560 Jardim Botânico - Rio de Janeiro, RJ, 22460- 180 Tel.: 2 1 24222 109 www.viaverita.com.br editorial@viaverita.com.br institu todaseil:l@institutodasein. org A. Psicologia e intencionalidade Sabemos que a fenomenologia não se contenta em redescobrir a intencionalidade no seu sentido escolástico, isto é, enquanto estrutura da vontade, mas que ela a abre a outras operações do sujeito, incluindo aí todos os compor- tamentos (VerhaZtenl do sujeito enquanto "dirigir-se a (stch RÍchterz-azia" -. Desde então, a questão é saber para que psicologia assim como para que psicopatologia a intenciona- lidade husserliana abre caminho e, correlativamente, a que tipo de psicologia ela convida a renunciar. Nesta perspectiva, gostaríamos primeiramente de lembrar o que caracteriza, para Husserl, a nova psicologia ou psicologia intencional. Num segundo momento, nós nos interrogaremos sobre a especiÊciaade da redução psico-fenomenológica e, ao mesmo tempo, sobre a prmdmidade ou distanciamento da psicologia intencional e da fenomenologia transcendental. Enfim, a parta de certas dificuldades ligadas à encarnação da subje- tividade transcendental, visaremos, num terceiro momento, à possibilidade de um recomeço do prometo husserliano. Em sua introdução ao volume IX da }7usserZfana. que compreende particularmente o curso do semestre de verão de 1925, intitulado PsícoZogíajenomenoZógzcxz, Walter Biemel escreve: "Aqui, a fenomenologia é posta à prova: o que ela é capaz de realizar num domínio limitado? Ela deve mostrar em que medida uma ciência começa a se transfor- mar, quando ela se desenvolve adotando uma perspectiva fenomenológica"". A ciência em questão é evidentemente a psicologia, e a questão é saber se a fenomenologia é capaz ou não - e, neste último caso, por quais razões - de dar uma nova orientação às pesquisas em psicologia, inclusive colocar, enfim, a psicologia no caminho da cientiâcidade. Como Á crise tias cfênc#as europeias e a jenomenoZogza transcendental testemunha, Husserl tinha claramente a ambição de ser para a psicologia o que, segundo ele e conforme uma concepção kantiana da história das ciên- cias, Galileu tinha sido para a física moderna. Assim. a psicologia encontraria seu fundamento científico no prqeto husserliano de uma "psicologia fenomenológica", isto é, de uma "psicologia intencional". Mas a descoberta da inten- cionalidade fornece a chave de uma compreensão rigorosa das condutas humanas? Bem antes de Sartre e de seu famoso artigo: "Uma ideia fundamental da fenomenologia husserliana: a intencionalidade", Heidegger classificou essa ideia como de primeira ordem entre "as descobertas fundamentais da fenomenologn'. Ao mesmo tempo, porém, ele acentuou que, mal compreendida, a intencionalidade também poderia se tornar slogan (Schiagwodl desastroso para a própria fenomenologia« 1. 0 projeto husserliano de uma nova psicologia A fim de apresentarmos os traços distintivos da psi- cologia husserliana, podemos começar por lembrar aquilo a que ela se opõe e quais são os predecessores imediatos que ela reivindica. Em .A .pZosc!/ia como cíêncfa Hgorosa, assim como em .A crise das ciências europeias e alenomenoZogla trartscendentaZ, Husserl se opõe à psicologia experimental - que Wilhelm Wundt (1832-1920) representa, autor dos Gmncízüge derphgstoZogtsc/un PsychoZogle(Características fundamentais da psicologia fisiológica -- 1874) e fundador do instituto de psicologia experimental de Leipzig, ou que 15. E. Husserl, fbychoZogtephértoménogtque(FbfcoZogiajerzomerioZóglca). trad. fr. Ph. Cabestan, N. Depraz, A. Mazzu, tradução revista por F. Dastur, Paria, Vrin, 2001. ' 16. J. --P. Sartre, l,a 7}anscendance de Z'ego et autres textos p/iértoméZo. gíques IA transcendência do ego e outros textos fenomenológicosl, textos introdutórios e anotados por V. Coorebyter, Paras, Vrín, 2003, p. 87 e sega. M. Heidegger, n'oZegõmertos à Mstóría do conceito do tempo,(curso do semestre de verão de 1925). D. Janicaud, l,'íntentíonnalíté erz questíon l.A íntencÍonaiídacíe em questãol, prólogo, Pauis, Gallimard, 1985, p. 82; J. -F. Courtine, "História e destino fenomenológico da intencionalidade", 1,!nterztionrtaZíté en qLtesfton, D. Janicaud , Paras, Vnn, 1995, p. 13 e segs. 17. M. Heidegger, PlobZêmesjortdamentatlx de Zaphénoménologte IHobiemas ./ürldamerltazs da./bnomenoZWíal, trad. Fr. J. -F. Courtine, Gallimard, 1985, p. 85 ; J. -F. Courtine, "Histoire et destin phénoménologique de I'intentionnali- té", l,'ínterüonnaZfté en questton, D. Janicaud. Paria, Vrín, 1995, p. 13 e sega. 14 15 Hermann Ebbinghaus (1850- 1909), fundador da psicologia experimental da memória, defende. O que ele reprova nessa psicologia é o fato de ela só se preocupar com o estabele- cimento de regularidades psico-físicas e com o lugar da causalidade, abordagens estranhas à vida da consciência intencional. Isso porque essa psicologia experimental en- contra seu princípio, segundo Husserl, no que ele não vai cessar de denunciar ao longo de sua obra e cuja prepon- derância - o que não se deve confundir com a existência enquanto tal - representa o obstáculo maior a uma funda- ção autêntica da psicologia como ciência: o naturalismo«. O naturalismo ou fisicalismo designa essa concep- ção que "não vê nada que não se mostre aos seus olhos como natureza e, antes de tudo, como natureza âisica". Noutros termos, "tudo o que é, ou bem é de ordem pro- priamente física e íàz parte do conjunto homogéneo da natureza üisica, ou bem pode ser de ordem psíquica, mas é, então, apenas uma simples variável dependente da ordem Hisica, ou melhor, um 'epifenõmeno' de segunda classe"«. A psicologia também procede em suas experimen- tações com base no modelo das experiências da ciência Hisica. Antecipando a crítica que Heidegger formula expli- citamente em termos ontológicos, Husserl denuncia o erro da psicologia experimental do século XIX e, de modo mais geral, do naturalismo, que volta a aplicar aos fenómenos psíquicos os conceitos de substância, de causa e de pro- priedades causais, resumidamente, a naturalizar o que por essência exclui tal naturalização porque é, como aârma Á .pZoscÚa como ciência rigorosa, "a contraparte da natu- reza (Gegenwurfz/on ]Vatu4 "«. No entanto, a íim de evitar mal-entendidos, devemos precisar logo que a crítica hus- serliana da psicologia experimental não implica de modo nenhum que essa última seja desprovida de toda legitimi- dade. Do mesmo modo, Husserl não rejeita toda a forma de naturalização da consciência. Ela simplesmente nào poderia ser fenomenologicamente principal. Examinemos, então , o que deve ser a psicologia ou psicologia fenomenológica. Estabelecendo em suas lições de 1925 algo como um livro de íênnília'- da psicologia fenomenológica, Husserl reco- nhece dois mestres precursores imediatos: Wilhelm Dilthey j1833-1911) e Franz Brentano (1838-1917). Sem entrar nas circunstâncias da relação entre Husserl e Dilthey, lembremos que, segundo as Ideen 11, Dilthey "é aquele que verdadeiramente renovou a psicologia", em particular graças a sua obra Ideias para uma psicologia descdtíua e analítica,publicada em 1894". Para Husserl, distinguindo entre ciências do espírito e ciências da natureza, entre ex- plicar (erkZãrenl e compreender (uersíefenl, Dilthey oferece à psicologia a possibilidade de abalar o jugo do natura- lismo e a hegemonia ontológica da coisa. No entanto, nas lições de 1925, Husserl critica Dilthey por seu empirismo e, sobretudo, por não ter compreendido claramente toda a importância da intencionalidade". Desse ponto de vista, porque ela é antes de tudo uma psicologia intencional, a colocação em pé de igualdade desses dados da experiência psicológica, como experiência de data, com aqueles da experiência dos corpos conduz à sua coisiâcação; o olhar que não cessa de ser lançado sobre a ciência da natureza transformando-a, assim, em modelo leva à aberrante concepção desses dados como um tanto de átomos ou complexos de átomos Hisicos, assim como a conceber as tarefas de uma e de outra parte de uma maneira paralela. As faculdades da alma ou, como se preferiu dizer mais tarde, as disposições psíquicas se tornaram análoga, forças âisicas, rubricas para propriedades puramente causais da alma', E. Husserl, l,a crise..., g962-67 21. Z,íz/ref de jamfrZe, Caderneta entregue aos RoÍDos no momento cio casamento, em que constam !r16ormações relatíuas aos cõrt/uses (w. r.J 22. H. Husserl, Reclurches phénoméno!©ues tour Za constimition(Jrzwsü- gaçõesjenomenoZógíazspara a cnrtstltuíçãol, trad. fr. E. Escoubas, Pauis. PUF. 1982, pp. 245-246. W. Dilthey, Idéespour unepsyc/ioZ(yíe descdtlue et anaZytíque(Ideias sobre umapsfcoZogta descrífíua e anaiítlcal, trad. Fr M. Remy, lz monde de Z'esprlt, Paria, Aubier, 1947, vol. 1, pp. 145-245. 23. E. Husserl, PsychoZogÍe phénoménologíque, p. 20. 18. É precisamente "o interesse pelo ponto de esta psico-âsiológico, isto é, a preponderância do desejo de descobrir causahdades ou condiciona- mentos psico-Hisicos" que constitui o obstáculo principal. 19. E. Husserl. La phílosophíe comme Sclence ríggourezzse(.4 .plosoÚa como ciência rlgorosal, trad. Fr. M. B. De Launay, Paras, PUF, 1989, p. 19. 20. Ibid., p. 47. M. Heidegger saúda em 1925 essa última fórmula que constitui, segundo ele, as premissas de uma psicologia personalista. M. Heidegger, .f#'olegõmenos à /zÍsfóda do conceito cíe tempo, p. 165. Essa crítica decisiva do naturalismo é retomada em A case das ciências euro- peias e ajenomerLoZogfa transceridenfaZ. Husserl escreve aí: "A ingénua 16 17 psicologia fenomenológica encontra sua fonte na obra de F. Brentano, que foi o primeiro a estabelecer, contra o que ele mesmo chamava de "a psicologia sem alma" da época, a intencionalidade enquanto característica principal do psiquismo". Ao mesmo tempo, Husserl ressalta que essa psicologia pode descobrir na intencionalidade o princípio descritivo, portanto não metaHisico, da distinção entre o psiquismo e o físico. No entanto, Brentano permanece apenas o pioneiro da concepção pré-fenomenológica: não apenas porque ele não ultrapassa uma concepção pré-feno- menológica da consciência como um ter consciência vazio (eln Zeeres .Bewusst#zabenl e não como um fazer no sentido de Zeisten"; mas também porque ele se mantém, como Dilthey, prisioneiro do empirismo". Isso acontece porque Brentano considera a descrição empírica como o estado inferior de uma psicologia que, em seu estado superior ou genético, deve explicar de modo causal o que foi descrito. Essas poucas considerações históricas podem ser suRcientes para esboçar as três características fundamen- tais da psico[ogia fenomeno[ógica ta] como e]a é apresentada nas lições de 1925: 1. Essa psicologia, diferentemente da psicologia empírica, deve ser uma psicologia racional. Ela ressuscita mufatís mutandts a psicologia racional de Wolf que a crítica kantiana da intuição intelectual parecia ter definitivamente enterrado; 2. Essa psicologia é uma psi- cologia descritiva, num sentido não brentaniano, pois a descrição é descrição de essências ou descrição eidética. Ela pertence enquanto tal às ciências eidéticas, de tal modo que a psicologia racional é, semelhantemente às matemáticas e às ciências exatas, uma ciência descritiva que supõe desconectar a atitude empírica, permanecendo - mas esse ponto particularmente problemático deverá ser aprofundado - numa atitude natural. Assim, a psicologia está em condição de descrever as essências e as conexões de essência da vida psíquica, e ela é enquanto tal uma ontologia material regional; 3. Desse ponto de vista, a vida psíquica se revela antes de tudo uma vida intencional, e a nova psicologia dever ser denominada psicologia feno- menológica ou "psicologia intencional". Essa psicologia pode, portanto, ser deânida como a ciência descritiva dos fenómenos intencionais" Falta, no entanto, determinar mais precisamente que região cabe à psicologia descrever. Em .As icíelas cZíre- trízes para umajerLomenoZogla ou Zdeen .r ( 19 1 3), a psicolo- gia estuda a consciência psicológica enquanto realização (reaZísíemrLgl da subjetividade transcendental, realização essa levada a cabo por uma apercepção de um tipo ori- ginal, cujo ato essencial seria a amarração(.Anknül;!/üngl da consciência ao corpo (leíbl". Descobrimos, assim, a questão da constituição do ego psíquico e, mais ampla- mente, a questão do homem enquanto ser psíquico-nisico, "assunto muito obscuro", segundo a LógÍcajormaZ e lógica transcendental. tanto quanto "maravilhoso (wunderbar) "", de acordo com outro texto de 1935, e que está no início de uma metáfora não menos enigmática: o paralelismo da sub- jetividade transcendental com a subjetividade psicológica. Na verdade, toda a dificuldade reside em compreender com precisão como se estabelece a realização da subjetividade transcendental, isto é, como se opera a constituição do sujeito psicológico e em que sentido o psíquico é ao mesmo tempo idêntico à sulãetividade transcendental e diferente dela: idêntico, pois se dá como sua simples realização, e 27. Ibid., P. 47 28. E. Husserl, Idées directHcespour uneplzénoménoZogle aldeias diretrizes para uma fenomenologia), trad. fr. P. Ricoeur, Paria, Gallimard, 1950, $53 29. E. Husserl, logíquejormelZe et ZogÍque transcendentale(Lógica formal e lógica trasncendentall, trad. õ'. S. Bachelm'd, Paios, PUF, 1957, g96a, p. 320 : 11usserllana XE Zur FPtãrtomenoZogíe der ]rttersubÜektíütaf ] 928-35 jllusserZíarta XI/. Para a /enomenoZotga da tntersubÜetiuldade), ed. Por 1. Kern, M. Njjhoff, La Haye, 1973, texto 31, g8, p. 549-56, trad. fr. M. Richir, "lntentionnalité et être-au-monde" jlntencionalidade e ser-no mundo), em L'!ntentÍonnaZíté en questíon, D. Janicaud [ed.), p. 132-45. 24. Franz Brentano, PsychoZo@e d'un poínt de zme erWíríque(Psicologia de um ponto de vista empírico), trad. Fr. M. De Gandillac, Paria, Aubier, 1947, p. 16. La case des scíences européennes ef Za p#lénomértoZogíe transcendantaZe(A crie das ciências mropeías e alenomenoZogla traí.s- cendertfczZI saudara por sua vez "o extraordinário mérito" da tentativa de Brentano de reforma da psicologia; g68, p. 262. 25. Fazer, completar, realizar.(N.T.) 26. E. Husserl, /?sycftoãagéphénomérnZogüZze IPsicologiafenomenológca), p. 35. 18 19 diferente por estar atrelado ao corpo e, uía corpo, inscrito no mundo como reificado. Desse modo, as /deen .r(Ideias l) reservam à psicologia racional o campo - talvez contradi- tório, como veremos adiante - de uma subjetividade cujas determinações são ao mesmo tempo as da subjetividade transcendental e as da subjetividade mundana, isto é, da alma (SeeZel que é, para Husserl, uma realidade quase natural, incarnada, localizada, dotada de estados e de pro- priedades à maneira das coisas. Daí se poder perguntar se a psicologia racional tem como tarefa liberar, a exemplo da fenomenologia transcendental, as estruturas de uma subjeü- vidade intencional constitutiva ou se ela estuda o psiquismo enquanto objetividade real, constituída e não intencional.de uma atitude específica, quer dizer, de uma redução ou epokhê psico-fenomenológica. Cruzamos, agindo assim, a questão dos caminhos ou vias de acesso à subjetividade transcendental da natureza, caminhos e vias sobre os quais o fundador da fenomenologia não cessou de meditar" Ainda que simpliíiquemos um pouco a situação, podem-se distinguir na obra de Husserl três possibilidades diferentes para a psicologia. (1) No quadro da via cartesiana, que Husserl pega emprestada no curso da primeira de suas JMedítações cadeslanas e que é dominada pela investiga- ção da apoditicidade, a tomada do psíquico enquanto tal ressalta a atitude natural: "a vida psíquica (SeeZenZebenl da qual fala a psicologia sempre foi concebida como vida psíquica no muncío"". Do mesmo modo, em Zddas díretrtzes para umajenomenoZogla, a psicologia não exige em nenhum caso o abandono da atitude natural: ela é o fruto de uma conversão reflexiva que faz abstração - "como isolamos o espaço e a figura espacial quando fazemos geometria" -- de tudo que não pertence ao psíquico, compreendido como a ideia da totalidade dos estados da alma. Desse modo, para a psicologia, nossas percepções das coisas são dados, como as vivências, de realidades corporais e espirituais, realidades das quais se deve fazer abstração a âm de reter apenas o que é puramente psíquico. Além disso, cuidadosa em extrair üa redução eidética a essência dos fenómenos psíquicos, essa psicologia é considerada racional em opo- sição à psicologia empírica indutiva " 2. Que redução para que psicologia? Essa última questão concerne, para dizer a verdade, à natureza da redução psicofenomenológica - chamada às vezes de redução fenomenológico-psicológica - e, correlati- vamente, à natureza da psicologia que ela torna possível. De fato, se a psicologia reside, diferentemente da fenomenologia transcendental, na atitude natural, ela não esta condenada a elaborar apenas uma psicologia realista que, por isso, reifica seu objeto ao ponto de ficar cega à intencionalidade da consciência? Noutros termos, a psicologia não deve estar em condições de elucidar e compreender a diferença entre "uma árvore bem pequena', da qual se pode enunciar que está queimando, e "uma árvore percebida enquanto tal" que não pode queimar, isto é, entre o objeto real, inscrito ele mesmo nas relações reais e que pode ser presa das chamas, e o objeto intencional, que é o sentido da visada intencional e que é, enquanto tal, ininflamável?" Se for esse o caso, a psicologia deve ser, então, capaz de se liberar da atitude natural", formulando para si a questão da possibilidade 30. Adiantamos que esse argumento virá justificar a necessidade de uma redução fenomenológico-psicológica. E. Husserl, l,a case..., p. 265. 31. Poder-se-ia perguntar, além disso, se uma psicopatologia fenomenológica não supõe igualmente o abandono da atitude natural. Em todo caso, é o que sugerem os trabalhos do psiquiatraW. Blankenburg. Cf. írlP'a, capítulo 111, B, l. 32. Segundo uma classiâcação(se não excita, pelo menos bem cõmodal feita por um de seus discípulos, lso Kern, podem-se distinguir três vias da redução fenomenológica: a via cartesiana, cuja pertinência é posta em questão em A crise das ciências europeias e a./ênomenoZcUía transoertdentaZ lg43l; a via pela antologia e a via pela psicologia intencional. lso Kern, "Les trois vales de la réduction phénoménologique transcendantale dais la philosophie de Edmund Husserl'(As três vias da redução fenomenológica transcendental na âlosofia de Edmund Husserl), trad. Fr. Ph. Cabestan et N. Depraz, Reu/tle dephénoménoZogíe 4L7:ER, N' 1 1, 2003, p. 285 e sega. 33. E. Husserl, JWédítatÍons cadésíennes, trad. fr. M. B. De Launay, Pauis, PUF, 1994, gl l 34. E. Husserl, La Phénoménologíe et Zes jortdements des scíences (A psicologia e os ./ündamerLtos das ciências), trad. Fr. D. TifTeneau, Paras, PUF, 1993, 111, g8 e g12. 20 21 l21 No entanto, a partir dos anos vinte, Husserl explora a via da psicologia e considera a possibilidade de uma redução psico-fenomenológica enquanto etapa para a via da subjetividade transcendental. Aparece nesse momento a ideia de que a psicologia nova não pode se desenvolver na simples atitude natural, mas supõe uma mudança de atitude. A fim de melhor compreender do que se trata aí, pode-se apoiar na segunda versão do artigo para a EncycZo- poedía bHfannÍca (1927), versão ainda mais interessante por Heidegger ter colaborado com sua redação". Contraria- mente à primeira versão, que retoma a concepção exposta na F}Zosc!/ta pHmelra, essa segunda versão introduz uma nova concepção da redução psico-fenomenológica, fonte de um desacordo explícito entre Heidegger e Husserl: na parte redigida por Heidegger, a redução psico-fenomenológica se confunde com a simples reflexão no sentido de uma conver- são do olhar na atitude natural, de tal modo que a psicologia se mostra como uma psicologia pura na medida em que faz "abstração de todas as funções da alma no sentido da organização da corporeidade ll,eíbZíc/üeltj"n. Não obstante, Husserl completa a exposição introduzindo uma apor/lê em relação ao mundo existente que, no entanto, não concerne à alma (SeeZel nem às afinidades da alma. Husserl escreve: "Quando a psicologia busca lançar luz sobre a subjetivídade da alma enquanto campo de julgamento e de experiências puramente internas, deve ser 'deixado fora do jogo' o mundo que vale para toda alma. Seu julgamento de fenomenólogo deve se abster de toda crença em relação ao mundo. Por exemplo, na descrição que eu faço, enquanto psicólogo, de minha própria percepção como evento próprio a minha alma ISeeZel, não devo julgar diretamente a coisa que percebo, do modo como se faz nas ciências da natureza. Devo apenas julgar o meu 'percebido enquanto tal''«. Encontramos, assim, a ideia de uma colocação entre parênteses limitada, que não põe em questão a pertença da alma mesma ao mundo, e que é necessária para proceder à análise intencional da consciência psicológica. Nessas condições, depreende-se que a psicologia não perde sua ingenuidade transcendental e que essa epokflê psicológica não se confunde com a epokhê transcendental, a partir da qual a alma se desenvolve, por sua vez, como uma objetidade (obÜecüté) transcendental constituída. 3. Essa concepção de epok#lê psico-fenomenológica, longe de ser isolada e efémera, conhece várias retomadas, por exemplo, nas Clort4erénctas de .Amsterdam de 1928. No entanto, a ingenuidade transcendental do psicólogo não deixa de ser problemática: se a redução psicofenomeno- lógica é necessária a uma psicologia intencional, não é esta, então, insuficiente? Como justificar, senão por razões pragmáticas extraídas da dificuldade da epokhê transcen- dental e do caráter inabitual da atitude transcendental", aos quais ainda se pode acrescentar o cuidado de manter a psicologia distante da fenomenologia, essa meia-medida da redução psico-fenomenológica? Se é verdade que o que a epokhê transcendental desenvolve pertence por direito , como não cessa de repetir Husserl, a uma psicologia intencional", por que não considerar que a abertura de uma psicologia verdadeiramente fenomenológica deve estar subordinada a uma epokhê incondicionada, já que é ela mesma que pratica a fenomenologia transcendental? Em suma, a psicologia intencional enquanto "psicologia transcendental" não se confunde com a fenomenologia"? 38. E. Husserl, /Vates sur /{eídegger(Notas sobre Hetdegge4, p. 107 39. Husserl, J\4édítaüorts cadéstennes, gõl , p. 197-8, 'tratar separada- mente da psicologia intencional como ciência positiva, de uma parte, e da fenomenologia transcendental, de outra parte, não seria bem entendida em lugm nenhum, e, sob certa ética, é evidente a esta última que se torne o trabalho efetivamente guia, ao passo que a psicologia descurada da revolu- ção copernicana se contentará com ]he pegar emprestados os resultados" 40. Antes de reaparecerem La crise,.., a expressão "psicologia transcen- dental" é encontrada em 191 1 sob a pena de Husserl: "Não há, portanto, nada que gere obstáculo à tentativa, em redução fenomenológica, de uma psicologia transcendental, de uma ciência de vivências". Husserl acres- centa em nota: "A fenomenologia enquanto psicologia transcendental" E. Husserl, H'obiêmes jondamerLtalu de Za p ténoménoZogíe, trad. fr. J English, Paria, PUF, 1991, p. 174; La crise..., $72. 35. E. Husser], ]Votes sur Heídegger, trad. fr. J. -L. Fidel, Paria, Minuit. 1993, p. 93 e sega. 36. /bld., P. 95. 37. E. Husserl, PsychologÍe p/ténoménoZogque, p. 108. 22 23 Tal é a solução considerada pela KrisÍs': que espera ligar a psicologia à âlosofia transcendental segundo -- a fórmula é surpreendentemente do próprio Husserl - "o incesto da identidade e da diferença"". Nessa perspectiva, falta reconsiderar a ideia de redução fenomenológico-psicológica e tê-la em conta coma uma sucessão de etapas que permite ao psicólogo reduzir progressivamente a validade do mundo e chegar a uma redução rigorosamente universal ao termo do qual ele mesmo se torna o observador à margem de si mesmo. Não se trata mais de opor redução fenomenológico-psicológica e redução transcendental, quando sim de situar essa última redução no prolongamento "natural" da primeira. Desse modo, escreve Husserl, "por meio do simples desenvolvi- mento da ideia de uma psicologia descritiva desejosa de deixar exprimir-se a essencialidade própria da psgchê, realiza-se necessariamente a inversão (umsteZZz.zngl da epokhê fenomenológico-psicológica e de sua redução em epokhê e redução transcencíenfals"«. Tal é a condição para que a psicologia perca deânitivamente a ingenuidade primeira da atitude natural e se eleve à compreensão do ego apodítico cujo mundo, incluindo a alma do psicólogo, mostra seu ser: "a antiga objetivação ingénua de si, en- quanto 'eu' empírico humano de minha vida psíquica, se vê presa num movimento novo. Todas as apercepções de um novo gênero, exclusivamente ligado à redução feno- menológica, com sua nova língua 1...1, tudo isso que era anteriormente fechado e indizível, entra agora no fluxo da objetivação de si, na vida psíquica, e é percebido dora- vante como seu pano de fundo intencional de prestação constitutiva, novamente entregue"". De agora em'diante, a psicologia fenomenológica é uma "psicologia transcendental" ou ainda "uma psicologia eidética da subjetividade transcendental"", que apresenta, por outro lado, uma dimensão genética segundo a qual o eu não é um polo de identidade vazio, mas possui suas capacidades, suas tomadas de posição e suas convicções que remontam a experiências e posições anteriores e que são enquanto tais os hábitos adquiridos pelo eu. A partir desse ponto de vista, o eu tem uma história da qual a psi- cologia transcendental genética tenta depreender a forma ou uma tipiâcação geral. É de tal psicologia que ressalta, então, a associação enquanto princípio da génese passiva da constituição dos obÜetos previamente dados. Do mesmo modo, é a essa psicologia genética e transcendental de que trata o estudo, a partir da consciência de horizonte, das intencionalidades "inconscientes" cuja análise coincide, escreve Husserl, "com as descobertas da recente 'psicologia profunda' (cujas teorias, no entanto, não são identificáveis com as nossasl, que são os abetos do amor, as humilha- ções, os 'ressentimentos' e os modos de comportamento que essas afeições motivam inconscientemente"" No entanto, é próprio à psicologia, diferentemente da fenomenologia, que ela volte à atitude natural, a fim de buscar empiricamente, sobre o território do mundo, mas livre de sua ingenuidade anterior, a ciência universal dos homens do ponto de vista de seu ser psíquico, individual e social". Ê nesse quadro e sobre a base de uma eidética da subjetividade transcendental que as pesquisas psico- .Êsiológicas podem encontrar seu lugar legítimo. 3. Da mundanização da subjetividade transcendental: objeção 41. Abreviação de Díe KHsís der Eüropãtschen Wtssertscfla/ten und dÍe H'anszendenfale P/lãnomenoZogfe IA crise das dênclas europeias e a jenomenotogía fran.scendentail .(N.T.j 42. E. Husserl, l,a case..., p. 232. 43. ÜÍd., P. 287. 44. JbÍd., p. 238. Já na segunda versão do artigo para a Encyciopoedta brítanníca, Husserl considera a possibilidade de uma "psicologia pura- mente â[osóâca" que repouse numa "redução transcendental rigorosa", E. Husserl, motes sur Heídegger p. 107. Pode-se íàzer uma objeção dupla a essa concepção da psicologia que foi traçada aqui em linhas gerais. A primeira concerne à encarnação da subjetividade transcendental e à 45. E. Husserl, Notas sur Jleídegger p. 107 46. E. Husserl, l,a crise,.., g72 47. ibid., g72, p. 291. 24 25 coordenação do psíquico e do somático, isto é, em termos cartesianos, à união de alma e corpo; a segunda, à articula- ção ontológica da subjetividade transcendental e do psíquico, ou seja, da alma enquanto objetidade real. A üm de explicar nossa primeira objeção, lembremos inicialmente que, para Husserl, a mundanização da subjetividade transcendental -- que evoca a queda metaHlsica da alma no mundo -- se opera de duas maneiras distintas que correspondem a duas mo- dalidades de encamaçào da subjetividade transcendental. uma psico-patologia, estudando os transtornos psíquicos a partir das doenças que aíetam o corpo"- Desse modo, a psicologia tem inicialmente como objeto a subjetividade espiritual, e ela é para as outras ciências do espírito, tais como a história, a sociologia, as ciências políticas etc., o que a 6lsica é para as outras ciências da natureza, como a geologia, a astronomia, a meteorologia etc. Todavia, como acabamos de ver, a psicologia tem também como objeto o espírito naturalizado, isto é, a alma enquanto realidade interligada com o corpo dentro da natureza. Essa concepção da psicologia personalista e da psicologia naturalista pode parecer satisfatória em razão de sua abertura e da diversidade de formas de pesqui- sas psicológicas que Ihe parecem dar razão: eidéticas, empíricas, experimentais. Isso não vale igualmente para o fenomenólogo, na medida em que, de maneira geral, Husserl parece reconduzir o dualismo cartesiano de alma e corpo, conferindo à encarnação um estatuto derivado ou de segunda ordem em comparação com uma subjetivida- de transcendental que seria desde sempre originalmente desencarnada. Além disso, é forçoso reconhecer que a ligação husserliana do espírito e do corpo assim como a da alma e do corpo levantam numerosas dificuldades. Quer se trate da localização do espírito ou da alma no corpo, de tal maneira que o corpo sqa o "órgão da vontade" para o espírito, quer se trate da dependência causal da alma com referência ao corpo, a encarnação da subjetividade transcendental parece diretamente submetida a essa forma de "subüetivismo espiritualista" que persiste em colocar o corpo fora da consciência, e que falha consequentemente em esclarecer "a engrenagem" do psíquico sobre o Hisico. Como escreve Rudolf Bernet, "uma consciência cuja essên- cia vital não é carnal pode no máximo se aliar ao corpo, mas não habitar encarnando nele"«. Não obstante, essa crítica deve ser fortemente ressaltada, se for verdade que Husserl, no desenvolvimento de sua distinção entre Leíb e 48. E. Husserl, Rechercpspfünoménologíquespour !a consfifutfon, p. 337. 49. R. Bernet, l,a üe du sz4/ef. Rec#wrces sur ['ínferpréfaüon de ]ÍusserZ karts Za phénoménoZode IA vida do sujeito. Investigações sobre a inter- pretação de Husserl na fenomenologia), Pauis, PUF, 1994, p. 177 l.A mundanização da subjetividade transcendental é sinónimo inicialmente de sua espiritualização (Vergels- ttgung). Assim, apreendida na atitude personalista que é nossa atitude cotidiana, a subjetividade transcendental é esta subjetividade da pessoa, cujo ego pessoal é também o egoda liberdade, e que está ligada a um corpo e a um mundo circundante ([/mweZt). Mais precisamente, de um ponto de vista personalista, a subjetividade está fundada sobre a camada do corpo Hisico no sentido em que ela se expressa (ausdrücken) pelo corpo e em que o corpo é o órgão da vontade (WÍZZensoryanl. Além disso, na atitude personalista, o mundo circundante üa comunicação entre as pessoas se torna um mundo espiritual e, correlativa- mente, a subjetividade transcendental, uma subjetividade espiritual. Mais importante ainda, a ligação da pessoa com o mundo circundante é sempre uma ligação intencional e faz sobressair a relação chamada de relação de motivação. 2. Mas a mundanização é sinónimo também de naturali- zação (NaturaZlsíemng), e a subjetividade transcendental é, enquanto alma (SeeZel, entrelaçada no corpo por um liame de dependência causal. Desse ponto de vista, a psicologia enquanto psicologia naturalista empírica tem como objeto o estudo de determinações psicológicas da realidade psíquica. Vê-se que a fenomenologia husser- liana reconhece certa legitimidade nas pesquisas experi- mentais psicoíisiológicas ainda que elas se subordinem a determinações conceituais que são obra da psicologia eidética intencional. E, no prolongamento dessa psico- -âsiologia, Husserl pensa poder fundar a possibilidade de 26 27 Kõzper, introduz no cerne da subjetividade transcendental uma corporeidade que Ihe pertenceria de todo direito". Resta, no entanto, a legitimidade que Husserl reco- nhece, a despeito de sua crítica do naturalismo ou íisicalis- mo, às pesquisas psicoíisicas". Ele declara a esse propósito que toda crítica da causalidade psiconisica deriva de uma argumentação filosóÊca tardia jnachkommeri4 e acrescenta: "o enigma(RãtseZI da causalidade psicoHisica ou fisiopsíquica pertence à essência de toda causação"". Noutros termos, Husserl reconhece tanto o enigma quanto a sua ligação com um enigma mais geral, inerente a toda causação e que a fe- nomenologia deve admitir enquanto tal. Semelhante tomada de posição não deixa de apresentar riscos, pois parece abrir a porta ao que parecia ter sido deÊnitivamente descartado por meio da crítica ao fisicalismo. De fato, será que, ao aceitar reinscrever a subjetividade transcendental nas re- lações causais naturais, a fenomenologia não se condena ao mesmo tempo a ignorar o modo de ser da subjetividade transcendental e a re{/icó-la? Por exemplo: o álcool leva à embriaguez, assim como a mescalina, diz-se, a alucinações. Por isso, porém, o fenomenólogo pode pisar nos calos do senso comum e tomar a embriaguez e a alucinação por efeitos psíquicos de causas somáticas? Isso redundaria, no caso da alucinação, a coisiíicar a imaginação inserindo a imagem alucinatória enquanto estado psíquico na relação de dependência causal com o corpo (Kõ7per). No entanto, é a isso que chega Husserl quando reconhece a legitimidade das pesquisas psicoHisicas. Naturalmente pode-se perguntar mais uma vez se essa concepção não é uma concessão las- timável à ontologia da Vor/mnden/wÍt(da presença à vistas , do mesmo modo que a uma filosofa da natureza ainda mais discutível quando ela reduz esta última, no segundo volume das Ideias dlretrízes, a um encadeamento causal«. 50. D. Franck, Clmír et colos. Sur Za phénoménoZogle de MzsserZ(Cine e corpo Sobre a fenomenologia de Husserll, Paria, Minuit, 1981, p. 107. 51. E. Hsserl, Za crise... g64, p. 250. 52. E. Husserl, Recherc/nsplzénoménoZog@uespour Za constfMüon, p 352. 53. Mas essa concepção da natureza é explicitamente - ainda que talvez insuâcientemente - relativizada em A Crise..., que distillgue a natureza da ciência excita, que é o produto de uma idealização, e a natureza Nossa segunda objeção coincide, como vamos ver, com a primeira. Ela foi tomada de empréstimo de Roman Ingarden (1893- 19701, filósofo de origem polonesa e discípulo de Husserl. Ela diz respeito novamente à mundanização da subjetividade transcendental, assim como à distinção entre o ego transcendent:al e o ego mundano que, de acordo com a atitude, naturalista ou personalista, é o ego psíquico ou ego espiritual. Ora, de modo pertinente, Ingarden escreve numa de suas Observações críticas às "Meditações cartesianas"": "Estamos inclinados a estabelecer uma identidade entre o eu enquanto eu puro e o eu enquanto eu õntico do indivíduo psicofisico que é uma parte do mundo. Mas subsiste, então, a grande dificuldade que ninguém, até onde sei, indicou ainda: como o eu puro constituinte e o eu puro constituído podem ser ao mesmo tempo um e o mesmo, se as proprieda- des que lhes são atribuídas se excluem mutuamente e não podem, assim, compor juntas a unidade de um objeto?"" De fato, o ego mundano é contingente e mortal, e seu conhecimento reclama, diz-nos Husserl, o sem fim da experiência, ao passo que o ego transcendental é o ego puncfum, um polo de identidade não substancial", que não pode nem nascer nem morrer. Uma solução consistiria em lembrar que, para Husserl, a subjetividade mundana com- preende, segundo uma metáfora comum, a subjetividade efetivamente sentida, aquela do mundo da vida e que é efetivamente dada na intuição. Husserl, l,a crise..., Só4 54. Remarques crítiques adressées aux "Méditaüons cartésiennes'. IN. T.l 55. "Remarques critiques du professeur Roman Ingarden de Cracovie' E. Husserl, À4édítaílÍons cadésÍennes, p. 225. Diz-se que "a maravilha de todas as maravilhas é o eu puro e a pura consciência". Mas há outra maravilha para Husserl, que é "o modo maravilhoso com que a subjeti- üdadetranscendental absolutamente concreta está em completa coesão IKbngmerzzl com o eu humano psíquico', /{usserZíana XK texto 31, g8, p 550, trad. fr. M. Richir na obra dirigida por D. Janicaud, .4 intencio- nalidade em questão, p. 132. 56. E. Husserl, PsgchoZogte phénomélogíque{ p. 196. Como o sublinha J. Benoist, "polo não é substância. Polo é movimento", e, para pensar o eu transcendental, é necessário precisamente acabar com o modelo de substancia", J. Benoist, "Que'est-ce que I'ego transcendental?", Autour de HusserZ. l,'ego et Za rafson 10 que é o ego transcendental ? Sobre HusserZ. O ego e a razão), Paras, Vrin, 1994, p; 14-15. 28 29 transcendental, assim como o ego transcendental, como núcleo (Kem). Desse modo, parece que a contradição se esvaneceriajá que esses termos não se referem exatamente à mesma instância: certamente o ego mundano é um obÜeto contingente e mortal, mas isso é apenas o íluto, melhor, o invólucro, de um ego transcendental que não nasce nem morre. Entretanto, para dizer a verdade, essa metáfora do núcleo mascara mais que resolve a dificuldade. Cer- tamente, ela parece relativamente pertinente para o que diz respeito às relações da subjetividade transcendental e da subjetividade espiritual ou eu pessoal. Nesse caso, a estrutura intencional da subjetividade transcendental e da subjetividade espiritual garante, parece, a compati- bilidade ou paralelismo das descrições da fenomenologia transcendental e da psicologia personalista. Por exemplo, a descrição psicológica dos diferentes tipos de motivação da pessoa em seu mundo circundante - do mesmo modo como as relações intencionais sobre a descrição transcendental da consciência cuja estrutura intencional se mostra aqui como o nx:tcleo da subjetividade espiritual. Por outro lado, essa metáfora do núcleo perde toda pertinência quando se trata da alma enquanto objeto da psicologia na atitude naturalista. De fato, a alma é, diz Husserl, o espírito naturalizado. Daí que mesmo a alma nào possa de modo nenhum participar do modo de ser da coisa, e que uma psicologia no sentido de uma 6lsica da alma seja consequentemente impossível. Apesar disso, porém, a alma não deixa de possuir, em virtude de sua naturaliza- ção, um modo de ser análogo ao da coisa. Também a alma pertence à natureza em sentido amplo. Toda a dificuldade é, então, compreender como a subjetividadeintencional, üa sua encarnação mundana, pode ser ao mesmo tempo algo como uma coisa. Não é necessário admitir que a alma e a subjetividade transcendental sejam distintas e ontologicamente contraditórias, no sentido em que elas não compartilham o mesmo modo de ser; de sorte que uma, a alma, é a careta reificada da outra e que elas nào poderiam, consequentemente, ser articuladas e unificadas segundo o íio condutor da metáfora nuclear? É nessa perspectiva que se podem ler as observações de Heidegger a Husserl, anexas a sua carta de 22 de outubi'o de 1927, a respeito do artigo para a .EncycZopoedfa Brítanníca. Heidegger pergunta a Husserl: "0 que é o 'ego absoluto' quando ele se distingue do psíquico puro? Qual é o modo de ser desse ego absoluto? Em qual sentido ele é idêntico ao eu sempre factual, em que sentido ele é diferente?"" Parece bem diHicil conservar desse modo essa concepção da subÜetividade transcen- dental, encarnada, mundanizada e naturalizada, isto é, da alma enquanto objeto da psicologia experimental. Na verdade, ao querer preservar certa validade das pesquisas psicológicas e psicoíisiológicas, essa concepção hipoteca gravemente o projeto de uma psicologia fenomenológica, reintroduzindo aí de um único golpe um tipo de explica- ção que a descoberta da intencionalidade e do modo de ser da subjetividade transcendental parecia ter excluído. No entanto, essas objeções diferentes no encontro com o pensamento husserliano ainda deixam de lado o elemento decisivo, que constitui o próprio solo da Z)aseln- sanáZíse e a partir do qual ela se separa irremediavel- mente da psicologia fenomenológica. De fato, é evidente para Husserl que a fenomenologia enquanto ciência da subjetividade transcendental é o fundamento verdadeiro da filosofias. A fenomenologia encontra, então, seu ponto de partida numa epokhê universal concernente ao ser do mundo e graças à qual a solidão humana se torna "solidão transcendental". E Husserl se põe a combater como antro- pologismo toda tentativa de fundação a partir do nascia mundano-concreto, cuja analítica ele considera, e por con- sequência Ser e Tempo, uma antropologia filosófica". Isto porque, para o fundador da fenomenologia, o Baseia é um existente (1)asetendesl para o ego transcendental apenas a 57. E. Husserl, Jfotes sur fleídegger, Carta de Heidegger a Husserl de 22 de Outubro de 1927. '1'rad. fr. J. -F. Courtine, p. 1 18 58. E. Husserl, /Vates sur /íeídegger, "Phénoménologie et anthropologie' trad. fr. D. Franck, p. 57 e sgs. 59. "Husserl não compreende o sentido da questão do ser posta por Heidegger, já que ele compara a analítica ontológica desenvolvida a partir da hermenêutica da facticidade com uma antropologia filosófica' R. Crisün, Edmund Hussert-Madin Heidegger: Ptlãnomenologie (! 927}, Berlin, Duncker & Humblot, 1999, p. 27 30 31 título de conteúdo de certa apercepção empírica. É, então, unicamente a partir da fenomenologia transcendental, üa psicologia fenomenológica e antropologia, que as estruturas eidéticas desse existente (.DaseÍnl podem ser elucidadas. Por outro lado, para Heidegger, é preciso partir do Z)aseín enquanto ser-no-mundo, e "As considerações 'unilaterais' da somatologia e da psicologia pura só são possíveis sobre a base da integridade concreta do homem que, como tal, determina primariamente seu modo de ser"". Com isso, é no quadro ontológico da analítica existencial que uma psicologia intencional é possível. Portanto, como descreve Heidegger, que ao faze-lo se inscreve na analítica existencial ao mesmo tempo em continuidade e em ruptura com a fenomenologia husserliana, é necessário que compreen- damos que, se a intencionalidade é a ratio cognoscencí{ da transcendência do l)aseÍn, a transcendência do Baseia é a ratio essend{ da intencionalidade« Conclusão Essa crítica do projeto husserliano de uma psico- logia fenomenológica, conduzida essencialmente de um ponto de vista ontológico, não pode mascarar a importân- cia do projeto em favor da l)aseírtsanáltse. Inicialmente, como veremos mais detidamente na parte histórica deste ensaio", a fenomenologia husserliana suscitou impor- tantes trabalhos em psicopatologia como o de Ludwig Binswanger a propósito da mania e da melancolia ou de Wolfgang Blankenburg sobre a esquizofrenia. Além disso, e principalmente, a fenomenologia husserliana estabelece já a convicção propriamente ontológica que, como um fio de Ariadne, guia nossa pesquisa. Segundo essa convicção, o homem em seu ser não é uma coisa e não poderia ser reduzido ao que Heidegger chama de ente presente à vista (uorhandenj". É precisamente essa convicção, decisiva também tanto de um ponto de vista psicológico quanto psicopatológico, que dá fôlego a Husserl quando ele de- nuncia o preconceito naturalista ou, mais exatamente, íisicista que é, a seus olhos, o de toda psicologia moderna. Esse preconceito, típico então da modernidade, deri- va-se mais precisamente do dualismo cartesiano que coloca em paralelo a alma e o corpo e que pretende, a partir daí, elaborar uma psicologia "exata" tendo como modelo a âisica. Trata-se de um contrassenso fundamental para Husserl quanto à natureza da psicologia e do psíquico. Ora, "o psíquico, considerado puramente em sua essência própria, não tem natureza, não tem em-si pensável no sentido natural, nem em-si causal espaço-temporal, idealizável e matematizável, nem leis do tipo das leis da natureza"" Aparece aqui em toda a sua clareza a necessidade não 60. Carta de Heidegger a Husserl de 22 de outubro de 1927. 61. M. Heidegger, H'oblêmes jondamentazu de Za p/lénoménoZogía(P+o- hienas ./Undamentats da jenomenologlal, p, 90. M. Haar, Ftoiégomênes à une 'désconsfmctíon' de Z'Ínfenfíonnallté husserZíenne IProlegõmenos a uma 'desconstrução' da intencionalidade husserliana) in D. Janicaud jed.), L'!ntentíonrtaZíté en questíon, p. 1 75. 62. Cf. {rlP'a capítulo ll e lll. 63. O autor usa o termo subslstant(subsistente) ao traduzir o termo mrlmnden; e subslstance [subsistêncial, ao termo Vorhanden/left. Preferi- mos usar respectivamente ente .presente à esta e .presença à esta por serem as traduções já tradicionais para os conceitos de Heidegger en- contrados em Ser e Tempo. (N.T.) 64. Husserl, l.a crise-.,p. 250 32 33 apenas de elaborar outras categorias(ou existenciais) para descrever esse ente cuja existência caracteriza seu modo de ser, mas também de entrar em guarda frente a toda reintrodução subreptícia, üa naturalismo principalmen te, da ontologia da presença à vista (Vorhandenheít). Tal é precisamente a tarefa da qual se encarrega a analítica existencial e a DaseínsanáZlse. em 1964". Antes, então, de se chegar à questão sobre o que significa isso que Heidegger chama de "analítica do Baseia"" ou "analítica existencial"", é necessário começar esclarecendo a própria noção de Daseín, palavra que Heidegger escolheu para designar o ser do homem e que, assim, pode-se dizer, representa o que o pensa- mento heideggeriano trouxe de mais novo no contexto fenomenológico. Como ele explicou na introdução que acrescentou em 1949 a seu curso inaugural de 1929 em Freiburg sob o título "0 que é a metafísica?", "toda a reflexão se interrompe, se se contenta com constatar que no lugar de Bewusstseín (consciência) emprega-se em Ser e Tempo a palavra l)aseín. Como se o debate se tratasse do uso de palavras diferentes"". Não se tratava, para Heidegger, em 1927 de realizar uma simples mudança terminológica, mas, ao contrário, de propor uma nova concepção do ser do homem. B. Analítica existencial e Daseínsízná/íse O termo "DaseÍnsanãZíse" não aparece em Ser e Tempo, obra maior de Heidegger, mas é em referência à problemática da "análise fundamental preparatória do Dasetrt" que aí se expõe, que Binswanger a emprega. Esse termo foi inicialmente traduzido em francês por "anaZgse exfstentíeZZe" (análise existencial)" nas primeiras tradu- ções que foramfeitas das obras de Binswanger". Mas essa denominação é em sua origem um contrassenso sobre o sentido original que Heidegger deu ao termo l)aseln: é a razão pela qual se passou a conservar o termo alemão Daseín nas traduções francesas da obra de Heidegger. Essa palavra, que significa literalmente ser (Sela) aí jdal, foi traduzida de diferentes maneiras em francês: de início por "réaZíté-humalne" (realidade humanas, nas primeiras traduções feitas de alguns capítulos de Ser e Tempo por Henry Corbin em 1938"; depois por "être-là" jser-aí) na primeira tradução, de Rudolf Boehm e Al- phonse De Waelhens, da primeira seção de Ser e Ter7tpo 1. A concepção heideggeriana do ser do homem A palavra [)aseÍn aparece na língua a]emà no sécu]o XVlll, no momento em que se buscou traduzir a palavra latina exístentía. Nesse contexto, ela tem o sentido de o "ser aí" ou "estar aí" de algo, ou seja, de sua presença efetiva e de sua factualidade, em oposição à sua "quididade" ou essência, segundo a oposição tradicional que a õlosoíia grega clássica estabeleceu entre existência e essência. Heidegger, porém, que designa com essa palavra exclu- 65. Para diferenciar o termo eictstentÍeZ(ExísterlzíeZI em alemão) do exls- tentíaZ IExísterlzlaQ, nós os traduziremos respectivamente por exístencfáHo e exísfendaZ. (N.T.) 66. L. Binswanger, .AnaZyse exlstentíeZZe et psychanaZyse ./}eudlenne. Oíscou,s, marcou« et n'e«d.(.AMüse exÍstendaZ e psicanálise./}e«díana. Discurso, percurso e l+eud. Trad. fr. R. Lewinter, Paria, Gallímard, 1970 e .írttroductíon â Z'anaZgse exístentíeiZe, trad. fr. J. Verdeaux e R. Kuhn. Paras, Éditions de Mnuit, 1971. 67. M. Heidegger, Qu'est-ce que !a métaphÊ/süZue ? suÍÜ cí'eidraits sur r'être et Ze ternos et d'une coltÓérence sur HdZderZÍn, trad. par H. Corbin, Paras, Gallimard, 1938. Ver o prefácio do tradutor, p.13. 68. M. Heidegger, Qu'est-ce que Ja métaphysique? Suíü d'extraits sur I'être ef Ze temos et d'une corláêrence sur HõlderZín, trad. de H. Corbin, Paria, Gallimard, 1938. Cf. Prefácio do tradutor, p. 13. 69. M. Heidegger, Être et Terztps, trad. de F. Vezin, Pauis, Gallimard, 1986, S9, p. 73 (4 1). Nós nos permetiremos modiÊcar essa tradução sela por nossa própria conta, seja nos apoiando na primeira tradução de R. Boehm e A, De Waehlens ou na tradução fora de catálogo publicada em 1965 por Emmanuel Martineau pela Éditions Authentica. A paginação do texto original alemão está indicada na margem nas três traduções. 70. /bÍd., S 1 1, P. 83 (50). 71. HEIDEGGER, Questíons { Paria, Gallimard, 1958, p. 32. 34 35
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