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Texto para anais Congadas de Minas Corina Moreira

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CONSTRUINDO UMA NARRATIVA PATRIMONIAL: AS CONGADAS DE MINAS 
Corina Maria Rodrigues Moreira (PUC Minas/Iphan-MG) 
 
Resumo: Conhecidas popularmente pelo nome “Congados” ou “Congadas”, as expressões 
culturais abarcadas por esses termos são diversas e multifacetadas, e dizem de uma tradição 
centenária, que se realiza em território mineiro – mas não só, ainda que majoritariamente – e 
tem forte marca da ancestralidade africana de nossa formação sociocultural. Reinados. 
Irmandades. Candombes. Marujos, Catopés, Moçambiques, Congos, Tamborzeiros, Caboclos. 
Grupos, ternos, cortes, bandas. Chico Rei. Santa Efigênia, Divino Espírito Santo, São Benedito, 
São Jorge. Nossa Senhora do Rosário. Todos esses nomes dizem da devoção, da festa, do 
encontro. Do viver em e pela fé que conforma uma comunidade imaginada unida pelo canto, 
pela dança, pelo som do tambor que homenageiam e celebram o poder do rosário. E é esse 
complexo religioso-cultural que atualmente está em processo de reconhecimento como 
patrimônio cultural do Brasil, fazendo-se mister, assim, o estabelecimento de critérios e recortes 
que possibilitem a construção de uma narrativa patrimonial que, dando-lhe unidade, não 
subsuma sua multiplicidade e polifonia. Este texto discute algumas das trilhas que podem ser 
percorridas para pensar o patrimônio como narrativa e as possíveis formas de produção dessa 
narrativa no âmbito da execução de políticas de salvaguarda patrimonial, tendo por referência 
o processo de patrimonialização dos congados mineiros. 
 
Palavras-chave: patrimônio – narrativa – congados 
 
I 
As políticas contemporâneas de proteção ao patrimônio cultural brasileiro nos remetem 
às décadas iniciais do século XX no país – quando foram criadas as primeiras Inspetorias 
Estaduais de Monumentos Históricos nos estados de Minas Gerais (1926), Bahia (1927) e 
Pernambuco (1928) – mas seus princípios, metodologias e procedimentos estão assentados em 
uma tradição ligada mais diretamente ao pensamento modernista e ao Decreto-Lei 25, de 
30/11/1937, que Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional e constitui-
se como legislação referencial até os dias atuais (FONSECA, 2005). No entanto, ainda que 
consolidados, esses princípios, metodologias e procedimentos vêm sendo permanentemente 
reelaborados, visto que acompanham as transformações conceituais e a ampliação de direitos 
atinentes à cultura e à memória, que tiveram seu quadro legal e teórico significativamente 
alargado especialmente a partir dos anos 1960 e 1970, não só no Brasil, mas também em âmbito 
internacional. Há, a partir dessa época, o que se costuma chamar de incorporação da perspectiva 
antropológica de cultura aos parâmetros, ações e reflexões relativos ao campo da proteção ao 
patrimônio cultural, ampliando-se, assim, o escopo das preocupações e da atuação a ele 
referentes (ABREU, CHAGAS, 2003; FONSECA, 2005). As perguntas referenciais desse 
campo – o que, por que, como e para quem preservar – continuam, de modo geral, as mesmas; 
diferentes são, no entanto, as respostas dadas a elas e as ações concretas que orientam. 
No caso brasileiro, a Constituição de 1988 constitui-se como marco legal dessas 
políticas desde então e, também, como referência da ampliação conceitual acima referida: a 
adjetivação “histórico e artístico” proposta no Decreto-Lei 25 transforma-se em “cultural” a 
partir da Carta Magna – o que, em lugar de excluir, incorpora o histórico e o artístico como 
duas de suas dimensões, as quais, entretanto, não são mais as únicas. Dentre as múltiplas 
implicações dessa transformação na forma de nominação de patrimônio podemos perceber 
tanto a diversificação dos elementos que passam a ser considerados suscetíveis de 
patrimonialização quanto dos procedimentos para seu reconhecimento e proteção, 
transformações que se afirmam com a descentralização das políticas públicas voltadas à 
proteção do patrimônio cultural, através da criação de órgãos, legislação e ações tanto em 
âmbito estadual quanto municipal, e com a ampliação da participação da sociedade civil na 
identificação, reconhecimento e proteção de suas referências culturais, desde os anos 70 do 
século passado, mas sobretudo a partir dos anos 80 e 90. 
Estas transformações, aqui bastante resumidamente indicadas porque já bastante 
estudadas e conhecidas (RUBINO, 1991; GONÇALVES, 1996; FONSECA, 2005; 
CASTRIOTA, 2009; CHUVA, 2009), nos possibilitam perceber que, assim como os conceitos, 
premissas e trajetórias afeitos ao campo do patrimônio cultural estão em permanente 
construção, inscritos no transcurso da história e de suas mudanças e permanências, os próprios 
patrimônios culturais, ou seja, os objetos e processos que são alçados à categoria de 
representantes e constituintes de determinadas memórias e identidades também não estão 
dados, conformando-se em contextos específicos e deles dizendo-nos, o que nos possibilita 
pensá-los como narrativas1 social e historicamente produzidas e, como tal, construídas, 
inventadas. 
Não pretendemos abordar, aqui, os discursos e narrativas do patrimônio como sendo 
unicamente aqueles que dizem a seu respeito – sobre os procedimentos e premissas que 
 
1 A temática da narrativa tem forte presença no âmbito da teoria literária, mas não se restringe a este campo de 
saber, trazendo contribuições significativas para as ciências sociais e para a historiografia, por exemplo. A esse 
respeito ver Benjamin (1987), Lyotard (1988), Burke (1992). 
constituem o campo do patrimônio – mas sim pensar os próprios patrimônios como constructos 
produzidos no seio de pensamentos e práticas afeitos à valoração, escolha, guarda, proteção de 
referentes materiais ou processuais que, em um dado momento, são imbuídos de significados 
relativos à memória e aos sentimentos de pertencimento a determinado lugar, contando-nos 
histórias. Para tanto tratarei de um processo específico de patrimonialização ora em curso – o 
pedido de Registro das Congadas de Minas como patrimônio cultural do Brasil – objetivando 
desvelar os riscos de naturalização e essencialização da ideia de patrimônio cultural que 
dificultam a percepção de que as ações de nominação (BOURDIEU, 1996) e proteção 
patrimonial se assentam, sempre, sobre julgamentos, opções e escolhas – “iluminando” 
determinadas memórias, práticas e lugares e “ensombrecendo” outros (CARMAN, 2006) e 
expressando as vozes partícipes do seu próprio processo de constituição enquanto objeto 
patrimonial. 
 
II 
O Registro é o instrumento de reconhecimento legal dos chamados bens culturais de 
natureza imaterial, estabelecido pelo Decreto nº 3551, de 04/08/2000, que Institui o Registro de 
Bens Culturais de Natureza Imaterial que Constituem Patrimônio Cultural Brasileiro, cria o 
Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Ainda que a perspectiva 
de salvaguarda do patrimônio imaterial tenha aparecido explicitamente no texto constitucional, 
que em seu artigo 216 afirma que o patrimônio cultural brasileiro constitui-se por “bens de 
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de 
referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade 
brasileira” (BRASIL, 1988), é apenas em 2000 que se inaugura uma política sistemática de 
proteção a essa categoria do patrimônio cultural brasileiro, com a publicação do referido 
Decreto. No entanto, faz-se necessário destacar que ainda que referida a esta base legal, a 
política de patrimônio imaterial busca em fontes bem mais remotas as referências para a 
consolidação de seus discursos e práticas, remetendo a finais dos anos 1930, quando Mário deAndrade, ao elaborar o anteprojeto que previa a organização do campo da preservação do 
patrimônio cultural no país já incluía, em suas reflexões, a dimensão intangível do patrimônio 
ao indicar a proteção de manifestações da cultura popular, do folclore e da cultura indígena.2 
 
2 Em 1936 o então Ministro da Educação, Gustavo Capanema, pede que Mário de Andrade elabore um projeto de 
lei para a proteção do patrimônio cultural brasileiro. Mário apresenta um projeto que define o Patrimônio Artístico 
Nacional como “todas as obras de arte pura ou de arte aplicada, popular ou erudita, nacional ou estrangeira, 
pertencentes aos poderes públicos, a organismos sociais e a particulares nacionais, a particulares estrangeiros, 
residentes no Brasil” (ANDRADE, 2002, p. 272), operando uma visão ampliada de arte, que não se restringe aos 
Essa dimensão, no entanto, foi excluída do Decreto-Lei 25/1937, que criou o Serviço do 
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/SPHAN e instituiu o tombamento como principal 
instrumento legal voltado à preservação do patrimônio histórico e artístico nacional, 
privilegiando seus aspectos materiais (FONSECA, 2003, 2005; GONÇALVES, 1996; 
RUBINO, 1996). Entre as décadas de 1940 e 1960 os debates a respeito da cultura popular e 
dos modos de vida tradicionais centraram-se na perspectiva do folclore, desvinculando-se da 
perspectiva dinâmica que orientava as propostas de Mário de Andrade, mas contribuindo, 
sobremaneira, para a documentação e a própria permanência de muitas das manifestações da 
chamada cultura popular que persistem ainda hoje. Esse debate foi intensificado em meados 
dos anos 1970, época na qual, como dito anteriormente, foi incorporada ao campo do 
patrimônio e da cultura popular uma visão antropológica da cultura, quando a temática da 
diversidade cultural se transforma em um dos eixos dos discursos e das ações das políticas 
culturais, de maneira geral, e das políticas de patrimônio, em particular, tanto em âmbito 
nacional quanto internacional.3 
Consolida-se a partir da promulgação da Constituição de 1988, então, a demanda por se 
instaurar diretrizes com vistas à proteção do chamado patrimônio imaterial, tomando-se por 
referência as múltiplas trajetórias e referências conceituais e políticas que conformam o campo 
ao longo do tempo.4 A publicação do Decreto 3.551, no ano de 2000, coloca-se nesse sentido 
como marco para a elaboração de políticas públicas – com suas normativas, metodologias e 
procedimentos – voltadas para o conhecimento, o reconhecimento e a salvaguarda desse 
patrimônio, estabelecendo-se, no interior do órgão federal dedicado à elaboração e execução 
das políticas de proteção ao patrimônio cultural, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico 
Nacional/IPHAN, um setor especificamente voltado para a salvaguarda desse patrimônio.5 
 
objetos mas estende-se à ação e ao processo de criação, incluindo aí a dimensão intangível dos bens culturais e 
sendo, por isso, considerado um visionário da contemporânea noção de patrimônio imaterial. 
3 Esses debates foram consolidados em uma série de cartas patrimoniais, tais como: Convenção sobre a salvaguarda 
do patrimônio mundial, cultural e natural, Paris, 16 de novembro de 1972; Recomendação sobre a salvaguarda da 
cultura tradicional e popular, Paris, 15 de novembro de 1989; Carta de Mar Del Plata sobre o patrimônio intangível, 
Mar Del Plata, junho de 1997; Carta de Fortaleza – Patrimônio Imaterial: estratégias e formas de proteção, 
Fortaleza, novembro de 1997; Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, Paris, 17 de outubro 
de 2003; Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Paris, 20 de outubro 
de 2005. 
4 A separação entre patrimônio material e patrimônio imaterial é polêmica, mas funda-se em uma opção política, 
tendo em vista a hegemonia da atenção aos chamados bens “de pedra e cal” desde a inauguração da política de 
proteção patrimonial no país e a necessidade de ampliar as ações para a salvaguarda de bens que se caracterizam, 
sobretudo, por serem processuais e dinâmicos e, portanto, para cuja proteção o instrumento do tombamento não 
se adequa. 
5 O Departamento de Patrimônio Imaterial/DPI foi criado em 2004, estando vinculado a ele o Centro Nacional de 
Folclore e Cultura Popular/CNFCP. 
A instauração deste instrumento legal específico voltado para o patrimônio imaterial 
consolidou e amplificou, transformando em política pública, uma série de ações que vinham 
sendo desenvolvidas no país com vistas ao conhecimento, divulgação e promoção dos bens 
culturais de caráter processual,6 sistematizando princípios, instrumentos e procedimentos com 
vistas à salvaguarda desses bens. No entanto, a política nacional de salvaguarda do patrimônio 
imaterial, em sua realização concreta e cotidiana, trilha uma infinidade de direções e levanta 
um sem número de questões – por exemplo, sobre os limites de uma política voltada para a 
proteção de expressões culturais dinâmicas e vivas; sobre o caráter nacional dessa política; 
sobre as dificuldades enfrentadas para a ampliação da sua base social ou sobre os obstáculos 
que existem, no âmbito das políticas de cultura, para o atendimento das demandas que levanta 
junto à população, para citar apenas alguns exemplos – que não podem ser, todas, abordadas 
num único esforço reflexivo, fazendo-se assim necessária a opção por algumas de suas 
interfaces e dimensões. Assim é que tomamos o processo de Registro das Congadas de Minas 
como um objeto “bom para pensar” as dinâmicas de fabricação de um objeto patrimonial, no 
âmbito das políticas de salvaguarda do patrimônio imaterial, e sua constituição enquanto uma 
narrativa que diz de determinadas memórias e identidades. 
 
III 
Expressão cultural diversa e multifacetada, com forte presença em grande parte do 
território mineiro, o pedido para o reconhecimento das Congadas de Minas como Patrimônio 
Cultural do Brasil foi feito ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Iphan 
conjuntamente por algumas prefeituras da região do Triângulo Mineiro, com apoio de uma 
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário também da região. Apesar de seu caráter regional, o 
próprio pedido já apontava a ampliação do escopo territorial a ser abrangido, estendido para 
todo o estado, e sugeria, em linhas gerais, os parâmetros para a delimitação do objeto de 
patrimonialização, ao indicar o caráter centenário da expressão cultural e sua vinculação com a 
ancestralidade africana e afro-brasileira. 
No entanto, “as congadas” são muitas. Em primeiro lugar, vale destacar que o termo 
“congadas” foi cunhado pelos folcloristas para designar a diversidade de expressões afeitas à 
devoção a Nossa Senhora do Rosário e outros santos do panteão afro-católico-brasileiro de 
 
6 Dentre as instituições que se destacam neste trabalho, temos o Centro Nacional de Folclore e Cultura 
Popular/CNFCP, herdeiro da Comissão Nacional de Folclore (1947) e da Campanha de Defesa do Folclore 
Brasileiro (1958), berço do Instituto Nacional do Folclore (1976) que originou o CNFCP; e os extintos Centro 
Nacional de Referências Culturais/CNRC (1975-1979) e Fundação Pró-Memória (1979-1990). 
origem banto, e não é unanimemente reconhecido pelos detentores desse bem cultural. Esta 
questão do nome é, inclusive, foco de constantes reflexões no âmbito do processo de 
patrimonialização em curso. Vale ressaltar, ainda, que essa diversidade de termos associados 
ao complexo religioso-cultural nominado como “Congadas” já estava posta pelos próprios 
folcloristas, mas foicoletada também durante a pesquisa que está sendo realizada para instrução 
do processo para seu reconhecimento como patrimônio cultural brasileiro. Assim é que 
Reinados, Irmandades, Congados, Candombes, Marujos, Catopés, Moçambiques, Congos, 
Tamborzeiros, Caboclos; grupos, ternos, cortes, bandas; Chico Rei, Santa Efigênia, Divino 
Espírito Santo, São Benedito, São Jorge e Nossa Senhora do Rosário são referências, nomes e 
expressões que dizem de uma prática na qual devoção, festa e encontro, canto, dança e tambor 
se conjugam para conformar um complexo religioso-cultural de homenagem e celebração ao 
poder do rosário7 designado, até o momento nesse processo, sob o nome de Congadas. 
Expressão que se manifesta como vivência cotidiana e abarca, junto à devoção e à 
celebração, uma série de saberes – da confecção e preparação de instrumentos, vestuários e 
alimentos aos ritos e segredos ancestrais que o estruturam e em sua maior parte são transmitidos 
oralmente e através da experiência – e um sem número de lugares de referência – como igrejas, 
trajetos de procissão e moradias de pessoas referenciais para a comunidade congadeira – os 
congados possuem, também, dinâmicas próprias de sociabilidade, como as visitações e redes 
de ajuda e apoio, que se concretizam não apenas na ocasião das festas e ritos mas também no 
dia a dia desses grupos.8 Como, então, estabelecer critérios e recortes que possibilitem sua 
constituição como uma narrativa patrimonial que lhe dê unidade, mas não subsuma sua 
multiplicidade e polifonia? Como agenciar a diversidade de memórias e espaços que se 
conjugam na conformação dessa comunidade imaginada?9 Qual passado deve ser mobilizado 
na tessitura dos laços de continuidade que configuram essa como uma expressão da tradição?10 
 
7 O rosário – cordão com contas utilizado para se acompanhar a recitação da oração Ave Maria – é um dos 
principais signos de identificação que une os “congadeiros”. 
8 Vale ressaltar, aqui, que estas dimensões indicadas se aproximam dos Livros de Registro criados pelo Decreto 
3551 de 04 de agosto de 2000, quais sejam: Formas de Expressão, Saberes, Lugares e Celebrações. 
9 O conceito de comunidades imaginadas foi cunhado por Benedict Anderson (2008) com vistas à compreensão 
da formação do sentimento nacional surgido no bojo da instituição dos Estados nacionais modernos, mas tem sido 
utilizado também para outros contextos históricos, na medida em que se consolidou como importante instrumental 
teórico que auxilia no entendimento da criação de sentidos de identificação e de laços de identidade na 
conformação de grupos sociais diversos. 
10 Lançamos mão, aqui, de uma ideia de tradição que a vê como legado do passado, mas não de forma estanque, 
imóvel, e sim como processo criador dos seres humanos sobre esse legado. A esse respeito, ver Hobsbawm e 
Ranger (1984) e Coutinho (2002). Vale destacar, ainda, que a ideia de tradição possui importância central no 
universo congadeiro, ao que se pode perceber até o momento, mas seu(s) sentido(s) ainda deverá(ão) ser 
investigado(s) de forma mais detalhada no decorrer das pesquisas que estão sendo realizadas para fundamentar seu 
processo de Registro (INVENTÁRIO, 2014), 
Como lidar com o caráter de sagrado e de segredo que a caracteriza? Quais espaços, memórias 
e identidades se conjugam nesse processo e quem os delimita e define? Enfim, como lidar com 
o jogo de luz e sombra que permeia todo processo de invenção do patrimônio? 
Essas questões nos possibilitam perceber não só o caráter de recorte, escolha, que 
caracteriza um processo de patrimonialização, em sua relação com as dinâmicas da identidade, 
como também a constituição de bens patrimoniais como processo de fabricação, de 
transformação, de produção narrativa; perceber como uma expressão múltipla e multifacetada, 
eivada por especificidades, desencontros e acordos, constituída por expressões, saberes e 
celebrações diversas, transmuta-se em objeto único, “as Congadas de Minas”, o que não 
significa dizer que seja um processo que não possua veracidade – no sentido de se constituir a 
partir de referentes disponíveis no universo de significações dos grupos nele envolvidos e de 
serem por eles apropriados, de diferentes formas e com motivações diversas, fazendo parte de 
seu cotidiano. O que se discute aqui, portanto, não é o valor de autenticidade desses processos 
e dos bens patrimoniais que deles emergem, mas a necessidade de que percebamos que eles não 
são dados, constituindo-se como artefatos – textos – criados a partir do olhar que se lança sobre 
o universo no qual se inserem e imiscuídos das relações de poder e de interesse que os 
caracterizam. 
E aqui surge uma nova questão, que diz respeito justamente ao que vimos aqui 
chamando de constituição dos patrimônios como narrativas: quem constrói essa narrativa? 
Quem são os “falantes” que a produzem? O poder público – com a diversidade de agentes que 
o compõem - que tem o poder de reconhecimento e acautelamento dos bens patrimonializados? 
Os praticantes/devotos? Suas associações representativas? Os pesquisadores? Os 
“apreciadores” do “espetáculo”? E é nesse sentido que podemos dizer, também, que a 
conformação de um patrimônio enquanto narrativa dá-se de forma dialógica, polifônica 
(BAKHTIN, 2002), no entrecruzar das várias “falas” que dele dizem, num jogo em que poderes 
se afirmam e se esvanecem, de acordo com os interesses que informam o presente e as 
perspectivas do que se guardar para o futuro. Faz-se necessário, assim, que o estabelecimento 
de critérios e recortes que possibilitem a construção de uma narrativa patrimonial, no âmbito 
da elaboração e execução de políticas públicas para a salvaguarda do patrimônio cultural, seja 
feito tomando por base a escuta das diferentes vozes que conformam a prática cultural que se 
pretende proteger, resguardar, sob pena dessa narrativa nada dizer daqueles – e para aqueles – 
que a têm como referência de memória, identidade e tradição. 
No caso específico dos congados, aqui abordado, esse processo de constituição de uma 
narrativa patrimonial vem sendo realizado, no âmbito das políticas federais de salvaguarda do 
patrimônio cultural, de forma lenta e paciente11 através da execução de uma série de 
procedimentos técnicos e políticos que visam não apenas sistematizar um conhecimento a 
respeito desse universo, a partir de uma, digamos, visada patrimonial, mas sobretudo mobilizar 
os diversos atores sociais que o constituem, no sentido de colocá-los em diálogo para a 
construção de ações conjuntas que contribuam para a continuidade da existência dessa prática 
cultural enquanto tradição e tradução das memórias e identidades não só daqueles que a 
exercem, mas também de outros grupos sociais que a compartilham como referência cultural.12 
Nesse sentido foi realizado, em duas etapas que duraram cerca de um ano cada (entre 2012 e 
2014), um mapeamento inicial da prática cultural no estado, objetivando não apenas levantar 
informações a respeito desse universo – foram levantados, nesse mapeamento, 1.174 grupos e 
701 festas associadas aos congados, em 332 municípios mineiros (INVENTÁRIO, 2014) – mas 
sobretudo identificar seus praticantes13 e, assim, ter a possibilidade de criar estratégias para o 
estabelecimento de uma comunicação equânime com esses grupos e pessoas, para além 
daqueles já pesquisados e conhecidos anteriormente.14 Findado esse mapeamento, deu-se início 
à articulação dos diversos atores que compõem este universo – aí extrapolando-se o âmbito dos 
detentores, mas trazendo também para o diálogo os poderes públicos locais, universidades e 
associações da sociedade civil que, de uma forma ou de outra, se relacionamcom ele –, a qual 
culminará na realização de uma série de sete Encontros Regionais de Congadeiros, prevista 
para os primeiros meses de 2016, com vistas não só à divulgação da política nacional de 
patrimônio imaterial, do processo de Registro e das informações até o momento levantadas mas, 
sobretudo, à produção conjunta dos critérios e recortes que conformarão essa narrativa 
patrimonial chamada, até o momento, as Congadas de Minas, e quem sabe, assim, possibilitar 
que as diversas vozes que a compõem participem de sua produção no âmbito das políticas de 
salvaguarda do patrimônio cultural. 
 
 
11 O pedido foi apresentado ao presidente do Iphan no final de 2008 e em 2009 o processo de Registro foi aberto 
com a indicação de que os estudos fossem ampliados para as regiões Sudeste e Centro Oeste; em 2011 deliberou-
se pelo início das pesquisas em Minas Gerais, quando o processo foi encaminhado para a Superintendência do 
Iphan no estado, que desde 2012 conduz sua instrução. 
12 O conceito de referência cultural é central na formulação do campo do patrimônio imaterial no Brasil, 
remontando ao pensamento de Aloísio Magalhães e à criação do CNRC, em meados dos anos 1970, e remete à 
ideia de que os bens culturais não valem em si mesmos, mas são resultados de processos de atribuição de sentidos 
e de valores. A questão base que funda esta ideia é: referência para quem? A esse respeito ver Fonseca (2006). 
13 Indivíduos referenciais, grupos e associações existentes, chamados de “detentores” no âmbito da política 
nacional de patrimônio imaterial. 
14 Vale ressaltar a grande quantidade de estudos existente sobre o assunto, mas que em geral se voltam para um 
grupo ou um município específico, não possibilitando um conhecimento mais ampliado da realidade dos congados 
no estado (INVENTÁRIO, 2014). 
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