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1 PERSPECTIVAS DE MISSÃO NO PRIMEIRO TESTAMENTO Alzira Munhoz - CF Considerando o Primeiro Testamento como um todo, nota-se que o conceito “missão” não aparece explicitamente 1 . A história do Povo de Israel o separava cada vez mais dos povos vizinhos e os seus livros sagrados desenvolviam uma teologia etnocêntrica e excludente, que considerava Israel como o único povo eleito por Deus (Ex 19, 3-6; Dt 7, 1-2. 6-8). As nações, em geral, continuaram à margem, a não ser quando ocasionalmente praticavam um culto agradável a Deus: Melquisedeq (Gn 14,18ss), Jetro (Ex 18,12), Naaman (2Rs 5,17). Com efeito, o povo de Israel desde as suas origens até o período do exílio (VI séc.) não mostrou nenhuma tendência a difundir o conteúdo e a prática de sua fé entre os outros povos. Apenas no período pós-exílico o povo de Israel começou a desenvolver uma visão mais universalista que já estava presente em tradições mais antigas, e que incluía também as “nações” como destinatárias do mesmo projeto de salvação do Deus de Israel. No entanto, a Bíblia, de um modo geral, aponta para uma dimensão teológica ao mesmo tempo particular e universal. O Deus que criou a humanidade é o mesmo Deus que elegeu o povo de Israel. O Deus que “fez sair” Israel do Egito é o mesmo que “fez sair” os Filisteus de Cáftor e os Arameus de kir (Am 9,7). Ele é o Senhor de toda a história e de todos os povos. O povo de Israel desempenha na história, entre as nações, a função de sua testemunha. Entretanto, personagens se integraram ao povo de Israel como: Tamar (Gn 38), Raab (Js 6,25), Rute (Rt 1,16), os gabaonitas (Js 9,19-27), os estrangeiros residentes que se fazem circuncidar (Ex 12,48s; Nm 15,14ss), são sinais da tendência universalista de resistência ao etnocentrismo e ao particularismo de Israel. É importante ter bem claro que também os outros povos têm uma própria história assistida pelo mesmo Deus, também eles têm uma Lei que não é aquela de Moisés, mas aquela de Noé (universalística), também eles são “sujeito teológico”. O encontro entre Israel e as nações favorece o reconhecimento de que também elas possuem uma luz própria que as conduz na direção de Jerusalém (Is 60) ou na direção do Messias (Mt 2,1-12), porque também para elas Deus indica um caminho a seguir (Mt 2,9-10) e nelas estão presentes a “Semente da Palavra” e o Espírito Santo que enche o universo 2 . Por conseguinte, essa realidade exclui qualquer pretensão de nacionalismo religioso e torna patente que os valores humanos e religiosos das nações não podem ser menosprezados, pois são dádivas preciosas do Deus que é a fonte da vida para todos os povos, pois entrando na terra de Canaan, Israel se beneficiou de sua civilização (Dt 6,10s) e em cada época foi influenciado positivamente pelas culturas internacionais (1Rs 5,9-14; 7,13s). Vamos percorrer rapidamente os vários períodos comumente descritos para classificar a trajetória de Israel, tendo presente que essa trajetória não é linear e isenta de conflitos e contradições, o que muitas vezes afastou Israel das nãções. Ainda assim, podemos perceber nessa trajetória muitos elementos que podem iluminar nossa realidade hoje. Porém, não é nosso objetivo fazer aqui uma exegese sobre o período da composição dos textos, mas tão somente perceber os aspectos fundamentais e gerais da teologia de missão do Primeiro Testamento que eles veiculam 3 . 1 No entanto embora não se fale explicitamente de “missão” no sentido atual, a idéia está expressa claramente no verbo “enviar/mandar”. O verbo shalah ocorre 847 vezes e geralmente exprime o fato de “enviar/mandar” um objeto ou uma pessoa para alcançar um determinado objetivo, para cumprir uma determinada tarefa ou para cumprir uma ordem. 2 Cf. BRADANINI, Sérgio. Fundamentos bíblicos da missão no Antigo Testamento. Disponível em: http://www.missiologia.org. br/cursoweb/2nucleo.htm. Acesso em 20/03/2016. 3 Uma visão mais abrangente sobre esse tema encontra-se em: SENNIOR, Donald & STUHLMELLER, Carroll. Fundamentos bíblicos da missão. São Paulo: Paulinas, 1987. Aqui nos restringimos a uma visão sintética. 2 Período dos Patriarcas (1850-1550): (cordialidade) Em Gn 10, 22-27 vemos que os antepassados de Israel não estavam separados de outros povos. Em Gn 10 encontramos os povos descendentes do patriarca Noé que repovoaram a terra após o dilúvio. Em Gn 11, 26 Arfaxad é o pai de Taré, avô de Abraão. Há ainda o parentesco com outros povos vizinhos: Ismael (Gn 16); Madian (Gn 25,1-6), Moab e Ammon (Gn 19,30-38), Arameus (Gn 29,1-14), Edom (Gn 36). Em Gn 12, Abraão foi vocacionado não em consideração a si próprio ou só a Israel, mas às nações. Todas fazem parte da “história da salvação” de Deus em favor de todos os povos. Neste texto o povo de Israel sequer é mencionado, nem mesmo uma só vez. Enquanto o Dt 6,1-6 e 7,1-6 fala de Israel como o eleito entre todas as nações, propriedade pessoal de Javé, o Gn 12,3 fala da bênção de Javé para todos os povos da terra e não apenas para Israel: “Em ti serão abençoadas todas as nações da terra”. A universalidade da bênção é um convite-apelo para que Abraão saia do particularismo do seu clã, da sua terra e se abra ao universalismo: “Abrãao, sai da tua terra, da tua parentela, da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei. Farei de ti um grande povo; te abençoarei; engrandecerei teu nome; sê tu uma bênção...”. O apóstolo Paulo, no discurso de Atos 17,26 no areópago de Atenas, quando faz uma narrativa da história da salvação, também não cita Israel como povo eleito. Portanto, Abraão é instrumento da “bênção” para o mundo. Esta evidencia a função de Israel como “mediador” de salvação para “todas as nações da terra”. Nesse contexto, os antigos patriarcas adoravam a Deus como o “Deus de Abraão, de Isaac e Jacó, e também com nomes, sacerdotes e também em santuários cananeus como lugares santos. Assim, por ex. em: Gn 12, 6: “o lugar santo de Siquém”... Gn 12, 8: “Betel”... Gn 13, 18: “Hebrom”... Gn 21,33: “Bersabéia”... Todavia, embora o Gn 12,8 fale que Abraão construiu altares para sua divindade familiar, ele nunca instituiu sacerdócio separado. Até aceitou uma bênção do sacerdote não israelita, Melquisedec, e ofereceu-lhe dízimos como agradecimento. Em suma, Abraão é um vocacionado para as nações e não apenas para Israel. Daí que suas relações como os outros povos são amistosas, respeitosas e até cordiais. 1. Período de Moisés ou período do deserto (1240–1200): (abertura/integração) No período de Moisés o povo já não se sentia satisfeito em agir como os patriarcas, juntando-se aos cananeus em seus santuários, sendo abençoado por sacerdotes cananeus e dirigindo orações a Deus sob títulos cananeus. Através da liderança carismática de Moisés, esse período assinala a inauguração formal de uma nova religião com sacerdócio, ritual e credo próprio. Assim, vemos em: Ex 18; 25,1-31: Um objeto e local sagrado: a arca da aliança e o tabernáculo. Ex 35,1-40; Lv 8; Nm 1,47-54: Ministros sagrados: levitas e sacerdotes. Ex 15; Dt 26,5-10; Js 24: Um credo, ou seja, uma declaração formal de fé. 3 A história de Israel foi semelhante à história de qualquer outro povo. Israel brotou do conjunto da família humana. Os acontecimentos fundantes da história de libertação e formação do povo foram compreendidos gradativamente como atos salvíficos de Deus em favor de Israel, na medida em que eram relembrados e celebrados na liturgia e nas festas religiosas, sob a influência de um líder que tinha fé – Moisés – e que ajudava o povoa olhar os fatos comuns de sua história como “atos salvíficos”. Com efeito, a religião de Israel transformou fatos insignificantes em eventos históricos porque Moisés ajudava o povo a ler os sinais de Deus nos fatos do dia-a-dia. O êxodo dos hebreus do Egito foi uma série de inúmeras fugas que durou mais de um século (Ex 6,1b; 10,27-29; 11,1; 12,39; 14,5). No entanto, somente uma delas ficou registrada na história como “intervenção divina”. Contudo, embora Moisés tenha desempenhado um papel essencial nas origens da religião javista, até sua morte o javismo não era mais que a religião de apenas um pequeno grupo de pessoas seminômades, religião de características migratórias. Houve um longo processo (monarquia) para que ele se tornasse a religião oficial de Israel, centralizada no templo de Jerusalém. Aí sim o javismo passou a ser uma religião que excluía os demais povos. A própria arquitetura do templo foi planejada a partir de uma mentalidade excludente (lugar separado para os gentios, as mulheres, os homens, os sacerdotes etc.). Conforme Bradanini 4 , Ex 19,4-6 indica a situação de Israel diante de Javé (eleição = dom) e diante das nações (eleição = missão). Mesmo sendo um texto tardio, ele reflete elementos de uma tradição mais antiga. A expressão “Vós sereis para mim um reino sacerdotal e uma nação santa” indicaria ao mesmo tempo a relação especial entre Javé e Israel e a relação entre Israel e as nações: ambas estão sob a soberania divina: “Toda a terra é minha” (v.5). Israel deve exercer entre as nações a mesma função que o sacerdote exerce no meio do seu povo. A “nação santa” deve santificar o nome de Javé diante do mundo. 2. Período dos Juízes (1200-921): (fusão/imposição) Em Js 24,28-29 e Jz 2,6-9, acredita-se que o espírito carismático de Moisés é transmitido para Josué e deste para diversos juízes e a juíza Débora. No início, Israel não era um grupo étnico fechado, com uma cultura própria. Pelo contrário, era uma mistura de grupos com uma “infinidade de outras gentes” (Ex 12,38): escravos, egípcios, súditos empobrecidos de reis cananeus (hapirus), inimigos do Oriente, muita “gente que se misturou com eles” (Nm 11,4). Neste período há plena aceitação de novas expressões provenientes das culturas circundantes. Lentamente, ocorre uma miscigenação entre os hapirus de Canaã, os escravos que fugiram do Egito e os demais grupos provenientes do deserto. Embora Javé seja a divindade que predomina, outras formas de culto podem coexistir paralelamente. Divindades femininas são aceitas ao lado da religião oficial. Não há preocupação em converter esses grupos para a fé javista. E todos exerceram influência positiva ou negativa sobre os israelitas. Aos poucos, porém, a religião de Israel se impõe aos demais grupos, pelo fato de ser uma religião estruturada com sacerdotes, lugar sagrado, liturgias e festas organizadas. Javé torna-se a divindade dominante que não aceita divindades concorrentes. De outro lado, aos poucos Israel se sente fascinado pelo tipo de governo monárquico de povos vizinhos e exige de Samuel um governo no mesmo estilo, que se consolidará com a monarquia. 4 Cf. BRADANINI, Sérgio. Fundamentos bíblicos da missão..., p. 5. 4 5. Período da Monarquia (921-585): (afastamento/exclusão) O período da monarquia está repleto de conflitos sangrentos em que elementos políticos e religiosos se misturam. Nesse sentido, a relação de Israel com outros povos é cheia de hostilidade. Israel quase sempre está envolvido nas turbulências dos povos que se enfrentam por questões de prestígio ou pela posse da terra (egípcios, cananeus, madianitas, filisteus etc.), tendo como resultado hostilidades com os pequenos reinos vizinhos e a submissão às grandes potências internacionais (Egito Assíria, Babilônia). Com a consolidação da monarquia Israel vai se fechando numa estrutura político-religiosa que no deserto era adaptada à realidade do povo e às condições geográficas e sócio-econômicas, mas com a monarquia vai se tornar sempre mais rígida, fria, formal e excludente. Com efeito, Davi e Salomão ajustaram o regulamento mosaico à riqueza e aos costumes da cidade, estatizaram a religião, tornaram Israel sempre mais sectário. Salomão centralizou o culto no templo de Jerusalém e o tornou obrigatório, impondo ao povo vários tipos de dízimos. Além disso, ele e todos os demais reis que se seguiram introduziram no país o culto a divindades estrangeiras. Isso explica porque nesse período as nações estrangeiras são consideradas pelos profetas como inimigas de Israel. Estes não se cansarão de denunciar a mordomia, os abusos de poder, os cultos importados, conclamando a fidelidade à religião javista: “Desde o dia em que vossos pais saíram da terra do Egito até hoje, enviei-vos todos os meus servos, os profetas; cada dia os enviei, incansavelmente” (Jr 7,25). Todavia, o povo nem sempre aceita a solicitude de Javé mediante os profetas: desde a saída do Egito e da constituição da Aliança, o povo de Israel não obedece à voz do seu Deus! (Cf. Jr 11,7-8). Daí para frente, encontramos muitos textos que advertem fortemente contra o espírito sectário que se fortalecia sempre mais nas estruturas de Israel: Sl 87,4: “Gente do Egito e de Babel enumero entre aqueles que me conhecem; também das pessoas da Filistéia, de Tiro e da Etiópia se diz: este homem nasceu ali; mas de Sião há de se dizer: todos nela nasceram”. Este texto apela para a universalidade e é frontalmente contra o nacionalismo particularista e excludente de Israel. Já o profeta Amós compara a libertação de Israel do Egito e sua entrada em Canaã, da mesma forma que os filisteus e arameus: Am 9,7: “Não me sois vós, ó filhos de Israel, iguais aos etíopes? Não fiz eu subir os filisteus de Caftor e os arameus de Kir como fiz Israel subir do Egito”? Israel deve se lembrar que Javé é um Deus universal, pois todos os povos dependem dele. Isso exclui qualquer pretensão de nacionalismo religioso. Os valores humanos das nações não devem ser menosprezados, pois são dádivas de Deus, pois ao entrar na terra de Canaã Israel se beneficiou de sua civilização (Dt 6,10s) e em cada época é influenciado positivamente pelas culturas internacionais (1Rs 5,9-14; 7,13s). No salmo 22,27-28 também aparece bem explicito o tema da universalidade da salvação: “As extremidades da terra hão de se lembrar e voltar-se para o Senhor. A família das nações se prostrará perante a sua face, porque o Senhor há de governar os povos...”. Outros textos, até mesmo no exilío, mostram que a salvação não é exclusiva de Israel. As nações virão a Jerusalém para serem instruidas por Javé, indicando o “retorno” à paz universal (Is 2,2-4); se voltarão para o Deus vivo (Is 45,14-17.20-25) e participarão do seu culto (Is 60,1-16; Zac 14,16). O Egito e a Assíria se converterão e Israel servirá de elo de ligação (Is 19,16-25). Pondo fim à dispersão de babel, Javé reunirá todos os povos e todas as línguas (Is 66,18-21) e todos chamarão a Sião de “mãe” (Sl 87,5). O Servo de Javé, segundo esta perspectiva, desempenha uma função de mediador (Is 42,4.6). Assim, no último dia deve existir um único povo de Deus. Estes e outros textos visam mostrar que a eleição de Israel não era exclusiva. A vontade salvífica de Javé se estende a todos os povos. O livro de Jonas (pós-exílio) reflete uma reação ao exclusivismo que se instalou no tempo da monarquia; Javé não quer que Israel fique encurralado num gueto nacionalista e religioso; por isso ele apela incondicionalmente para que Israel se abra a 5 outros povos. Javé é Deus de todos sem particularismos, nem exclusões. Em Jonas não aparece uma necessária adesão de Níniveà fé de Israel. O povo de Nínive pode se converter a partir de sua própria crença. Parece que o autor quer corrigir uma interpretação errada de eleição a fim de que Israel não se torne um obstáculo na relação entre Javé e as nações. 6. Período do exílio e pós-exílio: (duas posturas distintas) No período do exílio e no pós-exílio predominam duas teologias: a de Ezequiel, que defende a rejeição das nações; e a do Segundo Isaías que chega à conclusão da salvação das nações. O profeta e sacerdote Ezequiel pregou na Palestina antes da invasão e tomada de Jerusalém pelos Babilônios e depois, no exílio para onde foi levado como prisioneiro junto com as autoridades de Jerusalém. Foi o porta-voz da tradição sulista de Jerusalém, e representava tudo o que era ligado ao templo e ao sacerdócio. Por sua vez, a linha teológica do Segundo Isaías aparece nos capítulos 40 a 55 do livro de Isaías e representava a tradição do norte da Palestina, expressa no livro do Deuteronômio (Segunda Lei), refletidas também nos livros de Oséias e Jeremias. Alguns pontos de comparação entre os ensinamentos dos dois profetas, Isaías e Ezequiel, permitem-nos perceber as duas posições teológicas e em qual delas Jesus fundamentou sua missão. EZEQUIEL - Acentua os atos cúlticos ou litúrgicos na reconstrução do Povo de Israel:(36,16-38). - Concentra a vida dentro de Jerusalém e do Templo: (caps.40-48). - Fortalece o papel dos sadoqueus, ou seja, do sacerdócio de Jerusalém, contra os levitas (40,46; 43,19; 44,15-31). - Admite função para o rei davídico, então denominado “príncipe” (46,2). - Identifica o momento do retorno à Palestina pelo aparecimento da glória de Deus no templo (43,1-9). - Termina na rejeição dos gentios: (caps. 38-39). ISAÍAS - Dá menor importância à linguagem sagrada e à função litúrgica: (43,22-28). - Fala simbolicamente a respeito de Jerusalém e nunca menciona o templo, salvo na passagem duvidosa do cap. 44,28 b. - Ignora o sacerdócio mesmo em passagens como 52,11-12 (em Dt 18,1-8 são defendidos os privilégios dos levitas não sadoquitas). - Devolve os privilégios régios ao povo comum: (55,3-5). - Chama a Ciro, o estrangeiro gentio, de o “ungido” de Javé (45,1), o novo Moisés a conduzir o Povo para a liberdade: (45,1-7; 41,25-29). - Chega à conclusão da garantia da salvação dos gentios: (49,6). As diferenças entre Ezequiel e o Segundo Isaías envolviam o sacerdócio, o templo e o critério para a qualidade de membro do povo eleito. Eram fatores políticos, porém, que forçavam Israel a reconsiderar a sua teologia. Levantou-se, por ex. o problema se as nações gentias poderiam ser ou não instrumento de Javé, não só para castigar Israel, mas também para contribuir positivamente à sua salvação. Poderia Deus dignar-se escolher um estrangeiro gentio, o rei persa Ciro, para ser outro Moisés e libertar o povo? Poderia a experiência babilônica de Israel, de adoração sem templo, sem papéis fundamentais para sacerdotes sadoquitas, indicar a vontade de Deus para liderança religiosa e formas de oração no 6 futuro? Poderiam as normas do templo serem afrouxadas (Segundo Isaías), ou elas deveriam ser apertadas (Ezequiel)? Os dois profetas apelavam para a tradição palestinense a fim de manter as suas conclusões divergentes: Ezequiel, para os costumes e centros do Sul de Jerusalém (Reino de Judá). O Segundo Isaías apelava para o Norte (Reino de Israel). Enquanto Ezequiel pode ter parecido mais tradicional porque havia resistido por quase quinhentos anos muitas invasões, o Segundo Isaías se fundamentava na proposta de “recriação” de Jerusalém, Davi e Salomão, e nas formas mais simples de adoração com Moisés e os juízes. A teologia de Ezequiel dominou os quinhentos anos após o exílio. Já a proposta do Segundo Isaías exerceu influências menores, mas manteve vivo um ideal religioso que Jesus iria evocar em sua missão e em sua oração. Enquanto os sucessores de Ezequiel mantinham clara e sempre mais rígida a linha de continuidade teológica, que quase se transformou em ”gueto” em Jerusalém – principalmente depois que o sacerdote Esdras decretou regras muito rígidas a serem aplicadas (Cf. Esdras 10) – as tradições mantidas pelos seguidores do Segundo Isaías vislumbravam uma salvação e um reino universal que iluminava o próprio templo e todo o seu ritual. As influências do Segundo Isaías foram projetadas nos Salmos 96 a 99. Por isso, enquanto as regras do templo, herdadas de Ezequiel eram muito restritivas, os símbolos do templo que vieram do Segundo Isaías estenderam-se livremente por todo o mundo da diáspora e na Palestina. Os quinhentos anos após o exílio, que prepararam o caminho para a manifestação de Jesus, mostram que foram tomadas sérias medidas para preservar a pureza do povo de Israel. O exclusivismo ou sectarismo (racismo na verdade) predominou fortemente no exílio e terminou em séria controvérsia entre os dois grupos rivais que se centravam em torno de Ezequiel e do Segundo Isaías, ambos reivindicando o título de “autêntico Israel”. Os que retornaram do exílio e se fixaram novamente na “terra prometida” também reivindicavam para si esse título rejeitando as pessoas que haviam ficado na Palestina. A luta durou um século e foi definitivamente resolvida pelo sacerdote Esdras por volta de 428 aC. Esdras exigiu que todas a mulheres estrangeiras e os seus filhos fossem abandonadas por seus maridos (Esdr 10). Essa atitude terminou no rompimento entre Jerusalém e Samaria e se transformou numa terrível hostilidade que perdurou por vários séculos. Dessa forma o judaísmo pós-exílico, liderado pelos sacerdotes, foi combinando muito bem religião e política e acabou por sufocar e fazer desaparecer a profecia. Além disso, ele se fechava na sua pureza ritual e étnica ignorando e evitando o mundo à sua volta. Por sua vez, o grupo da tradição do Segundo Isaías fazia vistas largas às normas de pureza rituais e étnicas. Era, porém, um grupo pequeno e fragilizado. Está refletido nos caps. 56 a 66 de Isaías e nos livros de Jonas e Rute. Era um grupo de religiosos rebeldes que desafiavam o judaísmo a se estender para fora da Palestina. Em Isaías 40,5 se diz que “A glória do Senhor será manifestada a todos os mortais” e não apenas a Israel. E em Isaías 19,24 há uma valorização do povo estrangeiro que é chamado a integrar o povo de Israel não mais como inimigo: “Bendito seja o meu povo do Egito, a Assíria, obra de minhas mãos, e Israel, minha herança”. Quando Israel estava quase se tornando uma seita, também o Segundo Isaías (45,1-7) conclama-o para a abertura e não hesita em atribuir ao persa Ciro os atributos próprios de Moisés, o libertador. Ciro, embora desconhecesse a Javé, foi por ele “tomado pela mão”, “ungido” e “chamado pelo nome”. Em Is 49,6 Israel é convocado a levar a luz de Javé até os confins da terra: “Ele disse: não basta que sejas o meu servo, para restaurares as tribos de Jacó e reconduzires os sobreviventes de Israel. Eu te constituo como luz para os povos, para que a minha salvação chegue até as extremidades da terra”. Da mesma forma, o Terceiro Isaías (cap. 56 a 66 – profeta anônimo do pós-exílio), cuja função é sustentar a esperança do povo na reconstrução nacional, também não deixa de ser crítico em relação ao integrismo e ao formalismo religioso dos repatriados de Israel que queriam 7 reconstruir seu mundo fechado e egoísta. No capítulo 66,18-21, por meio do profeta, Deus mostra que o seu projeto tem dimensões universais: “Eu venho para reunir todas as nações e línguas;elas vão chegar e ver a minha glória” (v.18). Conforme o Primeiro Testamento, desde Babel (Gn 11) as nações haviam sido dispersadas. Agora o Terceiro Isaías mostra que Deus as quer reconduzir a si para formar de todas elas um só povo. Mas não só isso; Deus promete mais: “Porei um sinal no meio delas e dentre os seus sobreviventes enviarei mensageiros às nações. Eles vão proclamar minha glória entre as nações de Társis, Etiópia, Líbia, Mosoc, Tubal e Grécia e entre as ilhas distantes que ainda não ouviram falar de mim nem viram a minha glória” (Is,66,19). Assim, os convertidos das nações que se tornam missionários universais do projeto de Deus recordam todas as nações da terra representadas em Gn 10. Esses convertidos serão promotores do reencontro de todos os judeus apresentando-os em Jerusalém. O Terceiro Isaías culmina afirmando um novo sacerdócio, não mais preso a um povo ou descendência, cuja ação não consiste mais em oferecer sacrifícios de animais. A função do novo sacerdócio (leigo) é estar a serviço da libertação das pessoas, pois elas pertencem única e exclusivamente a Deus: “Os meus mensageiros vão trazer de volta do meio de todas as nações os irmãos de vocês como oferenda ao Senhor...” (v. 21). REFERÊNCIAS: BRADANINI, Sérgio. Fundamentos bíblicos da missão no Antigo Testamento. Disponível em: http://www.missiologia.org. br/cursoweb/2nucleo.htm. Acesso em 20/02/2015. BOSCH, David J.. Missão transformadora: mudanças de paradigma na teologia da missão. São Leopoldo: EST– Sinodal, 2002. SENNIOR, Donald, STUHLMELLER, Carroll. Fundamentos bíblicos da missão. São Paulo, Paulinas, 1987. MULLER, Karl. Teologia da missão. Petrópolis, Vozes, 1995. SRTONIOLLO, Ivo. Roteiros bíblicos. In: Vida Pastoral, jul./ ago. 2001, p. 59-60. Profª Alzira Munhoz – CF Belo Horizonte 04/04/2016.
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