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1 A PRESCRITIBILIDADE DAS AÇÕES (MATERIAIS) DECLARATÓRIAS: NOTAS À MARGEM DA OBRA DE AGNELO AMORIM FILHO Roberto Paulino de Albuquerque Júnior (Doutor em direito pela UFPE. Professor Adjunto de direito civil da Faculdade de Direito do Recife – UFPE. Tabelião de notas e registrador de imóveis.) Introdução; 1. Sobre a prescrição e a decadência: fundamentos à luz da teoria do fato jurídico; 2. O critério distintivo de Agnelo Amorim Filho e o problema da prescritibilidade das ações declaratórias; Considerações finais; Referências. Introdução Prescrição e decadência são institutos fundamentais para os mais variados ramos do direito. Estão entre os temas mais relevantes a que se pode dedicar o jurista.1 Constituem elementos de estabilização do discurso jurídico dos mais arraigados, exercendo importante função de tutela da segurança jurídica.2 Em que pese a maturação dos institutos e sua diuturna invocação na praxe do foro, seu manejo envolve conceitos complexos e dificuldades técnicas consideráveis. A este quadro devem se acrescer as mudanças que a regulamentação positiva da prescrição sofreu no Brasil, em especial as resultantes do Código Civil de 2002 e da Lei 11.280 de 2006. 1 Vide, a respeito, SAVIGNY, M. F. C. de. Sistema de derecho romano atual. Madrid: F. Góngora, tomo III, 1879, trad. Jacinto Mesía y Manuel Poley, p. 195. 2 Ainda se vê com certa recorrência no direito brasileiro a referência, sobretudo à prescrição mas também à decadência, como um instituto de natureza punitiva, do qual decorre sanção para aquele que não exerceu, no tempo próprio, o direito de que dispõe. Por exemplo: “Constitui-se uma pena (sanção adveniente) para o negligente, que deixa de exercer seu direito de poder exigir, em juízo, ação em sentido material (...)” (DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 29 ed. São Paulo: Saraiva, vol. I, 2012, p. 432). Pontes de Miranda demonstrou que esse é um falso fundamento (chegando mesmo a dizê-lo “fundamento espúrio”), visto que a prescrição serve à segurança e à paz pública, não constituindo penalidade (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. 3 ed. Rio de Janeiro: Borsói, tomo VI, 1970, p. 100). 2 Qualquer investigação acerca da questão revela, portanto, um modelo cuja interpretação ainda não foi pacificada. Em institutos tão essenciais ao funcionamento do sistema, persistem controvérsias e erros legislativos e hermenêuticos, que ainda estão por receber um tratamento mais adequado. A doutrina brasileira, no entanto, tem importantes contribuições autorais a oferecer em matéria de prescrição e decadência. Dentre elas destaca-se o clássico trabalho do Professor Agnelo Amorim Filho,3 que propôs um critério para a distinção das hipóteses de incidência dos institutos, de modo a permitir a identificação da natureza jurídica dos prazos dispostos pelo legislador. A tese do professor Agnelo aborda o problema sob um ponto de vista indiscutivelmente original e fornece suporte teórico para a solução de um problema de consequências práticas as mais graves no que toca a solução de conflitos que envolvam relações jurídicas que se protraem no tempo. Este artigo se propõe a analisar uma das conclusões da pesquisa de Agnelo Amorim Filho, qual seja, a de que as ações declaratórias são perpétuas, não estando sujeitas a prescrição ou decadência. Para tanto, adotar-se-á como marco a teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda. Pontes de Miranda examinou a prescrição e à decadência à luz de sua concepção original de teoria geral do direito e até hoje não há, no direito brasileiro, estruturação mais completa e precisa a seu respeito. 4 Partindo desta premissa, o objetivo do texto é examinar criticamente o problema da perpetuidade das ações (materiais) declaratórias com apoio no referencial ponteano. Busca-se, com isso, verificar se o critério científico proposto pelo Professor Agnelo ainda é aplicável neste ponto. 3 AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais, vol. 300. São Paulo: RT, out. 1961. 4 Embora boa parte da doutrina demonstre pouca familiaridade com a terminologia e os conceitos da teoria do fato aplicada à prescrição, há importantes exceções. É desnecessário mencionar Marcos Bernardes de Mello, hoje verdadeiro co-autor da teoria do fato jurídico no Brasil, mas entre outros podem ser consultados com proveito: LÔBO, Paulo. Direito civil: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 339-353; EHRHARDT, Marcos. Direito civil. Salvador: JusPodium, vol. I, pp. 461-500; ALVES, Vilson Rodrigues. Da prescrição e da decadência no novo Código Civil. Campinas: Bookseller, 2004, passim; LEONARDO, Rodrigo Xavier. A prescrição no Código Civil Brasileiro: ou o jogo dos sete erros. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, vol. 51, 2010. 3 O trabalho será dividido em duas partes. Na primeira, serão resgatados os fundamentos da prescrição e da decadência sob um referencial ponteano; na segunda, se ingressará na teoria de Agnelo Amorim Filho, para abordar o problema da perpetuidade das ações declaratórias sob a ótica da teoria de Pontes. 1. Sobre a prescrição e a decadência: fundamentos à luz da teoria do fato jurídico A função deste primeiro tópico é fixar os parâmetros essenciais da prescrição e da decadência, com apoio na teoria do fato jurídico, para depois cotejá-los com a doutrina majoritária e a legislação em vigor e só então ingressar, no segundo tópico, no critério científico para distinguir a prescrição da decadência de Agnelo Amorim Filho. Na teoria do fato jurídico, a prescrição decorre5 de um ato-fato6 lícito caducificante,7 em cujo suporte fático se encontra (a) a titularidade de um direito, de uma pretensão (e, eventualmente, de uma ação de direito material), (b) a inação do titular e (c) a passagem do tempo. Qualificar o fato jurídico lato sensu gerador da exceção de prescrição como um ato-fato jurídico tem destacada importância. Afastam-se, com isso, exames subjetivistas da conduta da parte cujo direito prescreveu, preponderando o decurso de tempo em inação. Essa justificação teórica tem raízes profundas na doutrina brasileira, remontando a Teixeira de Freitas e ao art. 853 da Consolidação das Leis Civis.8 5 Tem razão Rodrigo Xavier Leonardo quando afirma que a prescrição designa tanto uma espécie de fato jurídico (neste caso, o ato-fato lícito caducificante) quanto a eficácia jurídica (geração da exceção de prescrição, que, exercida, gera efeito deseficacizante) – LEONARDO, Rodrigo Xavier. A prescrição no Código Civil Brasileiro: ou o jogo dos sete erros, cit., p. 1. 6 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado, tomo VI, cit., p. 112. Ato-fato jurídico porque, embora o seu suporte fático exija a presença de uma conduta humana, a vontade nela envolvida é irrevelevante. Confira-se MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 136. 7 A eficácia caducificante implica caducidade de situação jurídica. Ver, a respeito, MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, cit., pp. 140-141 e 255-256. 8 “Art. 853. Nesta prescripção, só motivada pela negligencia do credor, não se exige o requisito da boa-fé.” Teixeira de Freitas remetia o fundamento do art. 853 à Lei da BoaRazão, que ordenava ler-se como não escrita a suposição de pecado como fundamento de lei civil, e arrematava: “Ora, a bôa, ou má fé, não se-póde verificar na prescrição extinctiva, e para ella basta o lapso de tempo, como é hoje de doutrina corrente.” (FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das leis civis. 3 ed. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1876, p. 511). Teixeira 4 Do ato-fato jurídico da prescrição surge a exceção de prescrição,9 situação jurídica que deve ser exercida pelo titular a quem aproveite.10 Uma vez exercida a exceção de prescrição, tem-se por efeito o encobrimento da eficácia11 da pretensão,12 ou da pretensão e da ação de direito material.13 Não há extinção sequer da pretensão, muito menos do direito, operando- se a inexigibilidade do direito e sua continuidade, inclusive para os efeitos de satisfação voluntária.14 referia-se, naturalmente, à boa-fé subjetiva. Depois da reforma do BGB, a boa-fé objetiva foi chamada à regulação do abuso de direito em matéria de prescrição, mas isso não significa inserção de elemento subjetivista. A respeito, confiram-se as considerações de COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Sobre a prescrição e a boa-fé no exercício da pretensão executiva: breves reflexões a partir da reforma do Código Alemão. In DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BASTOS, Antonio Adonias (coords). Execução e cautelar: estudos em homenagem a José de Moura Rocha. Salvador: JusPodium, 2012, pp. 601-622). 9 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado, tomo VI, cit., p. 104. 10 Sobre a Lei 11.280/06 e o reconhecimento da prescrição de ofício, permita-se remeter a: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo - ou de como o art. 3º da Lei 11.280/2006 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dosTribunais, n.25, 2006; ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de . Três problemas sobre a prescrição no direito brasileiro: primeiro esboço. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; CAMPOS, Alyson Rodrigo Correia. (Org.). Do direito civil. Recife: Nossa Livraria, 2013. 11 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado, tomo VI, cit., pp. 102- 107. “A prescrição não extingue coisa alguma, mas, tão somente, encobre a eficácia da pretensão, da ação e/ou da exceção. Por consequência, o direito subjetivo continua a existir incólume, mas tem encobertas as suas exigibilidade e impositividade representadas pela pretensão e pela ação, respectivamente, bem assim a oponibilidade da exceção de direito material.” (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, cit., p. 140). 12 Na teoria do fato jurídico, tem-se precisa individuação da eficácia jurídica a partir da distinção entre as situações jurídicas que caracterizam posições jurídicas subjetivas. As relações jurídicas enchem-se por direitos subjetivos, pretensões, ações de direito material e exceções. Direito subjetivo é a vantagem que advém a alguém em decorrência da incidência da regra jurídica; pretensão é a possibilidade de exigir uma prestação; ação de direito material consiste no poder de impor a satisfação da prestação e exceção é defesa material que se exerce contra pretensão, ou contra pretensão e ação de direito material, paralisando-as de forma permanente ou temporária. Acresça-se a essa descrição os direitos formativos, extintivos ou geradores, que geram o poder de interferir em esfera jurídica alheia independentemente de cooperação. Consulte-se, por exemplo, MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 172-173. 13 A confusão entre ação material e “ação” processual, ou seja, entre impositividade do direito no plano material e pretensão a tutela jurídica processual induz a erros consideráveis, evidenciados em um tema como o da prescrição. Quem nela incorre regride a patamar da doutrina já superado por Teixeira de Freitas, a seu tempo (FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das Leis Civis, cit., p. XCI). Sobre a ação material, consulte-se o ensaio de NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria da ação de direito material. Salvador: JusPodium: 2008. 14 Os efeitos da prescrição (e da decadência) não são manipuláveis pelo intérprete no momento da aplicação. Admití-lo significaria trazer um elemento de instabilidade a um instituto voltado ao oposto efeito de atribuir segurança ao sistema. Diverge-se, nesse particular, da 5 Daí a advertência de Pontes de Miranda: quando se fala em “direito prescrito”, emprega-se elipse, devendo entender-se direito com pretensão ou ação de direito material encobertas.15 O exercício da exceção de prescrição transforma o direito, portanto, em direito inexigível, com o intuito de proteger o devedor que não pode ser compelido a guardar prova da quitação do débito ad aeternum (ainda que possa aproveitar a quem, sendo devedor, não adimpliu). A decadência, ou preclusão, na terminologia pontiana, tem eficácia extintiva.16 Não torna o direito inexigível, vai além – apaga o direito e todos os efeitos irradiados do fato jurídico.17 Salvo se se tratar de decadência convencional, nos termos do art. 211 do Código Civil, independe a decadência de exercício de exceção (por si ou por meio de terceiro legitimado extraordinariamente, como no caso do reconhecimento de ofício pelo juiz). Seus efeitos operam ipso facto pelo decurso do prazo.18 Pois bem, comprimida ao máximo a leitura da prescrição e da decadência na teoria do fato jurídico, deve-se passar à sua recepção, ou à dificuldade dela, na doutrina brasileira majoritária. Na literatura ainda há referência, por exemplo, a prescrição extintiva e aquisitiva, confundindo-se prescrição e usucapião como se fossem expressão de um instituto unificado sob uma teoria comum.19 Há décadas Pontes de Miranda já demonstrava com clareza a impossibilidade de assimilação de um a outro: A prescrição é exceção; a usucapião não no é. Ninguém adquire por prescrição, posto se possa adquirir em virtude de fato jurídico em cujo suporte fático esteja o fator tempo (e.g., art. 698). Ninguém perde direito por prescrição (...) Por haver regras jurídicas comuns à prescrição e à usucapião, tentaram a leitura de NEVES, Gustavo Kloh Muller. Prescrição e decadência no direito civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 115. 15 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado, tomo VI, p. 103. 16 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, p. 140. 17 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado, tomo VI, p. 135. 18 “Nos prazos preclusivos o que importa é o tempo mesmo, sem atinência ao credor ou ao devedor; escorre como tempo puro, sem ligação subjetiva, indiferente aos sujeitos ativo e passivo.” (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado, tomo VI, p. 135). 19 Por exemplo, MALUF, Carlos Alberto Dabus. Código Civil comentado. São Paulo: Atlas, vol. III, p. 3 e 7. 6 unidade conceptual; mas essa unidade falhou sempre. Também falha, a olhos vistos, a artificial e forçada simetrização entre os dois instititutos.20 Afora esse equívoco apriorístico relacionado às distintas naturezas dos institutos, pode-se apontar outros, recorrentes:a) Identificar a prescrição como operante no plano da “ação” processual, retirando-a do campo do direito material;21 b) Atribuí-la eficácia extintiva de direito, confundindo-a com a decadência ou preclusão;22 c) Atribuí-la eficácia extintiva de pretensão;23 d) Suprimir a ação de direito material24 ou mesmo confundí-la com a pretensão.25 20 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado, tomo VI, p. 104. 21 Por todos, confira-se: LEAL, Antônio da Câmara. Da prescrição e da decadência: teoria geral do direito civil. São Paulo: Saraiva, 1939, p. 20; CAHALI, Yussef Said. Prescrição e decadência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 32. 22 Essa era a posição de PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 435, posteriormente retificada, como se pode verificar da 23ª edição, de 2010, à página 584. Na doutrina estrangeira, a mesma idéia é sustentada por MESSINEO, Francesco. Manual de derecho civil y comercial. Buenos Aires: EJEA, tomo II, trad. Sentís-Melendo, 1979, p. 60; ANDRADE, Manuel A. Domingues. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Coimbra Editora, vol. II, 2003, p. 445. 23 Exemplificativamente, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, vol. III, tomo II, 2003, p. 152. 24 Por exemplo, GONÇALVES, Carlos Roberto. Curso de direito civil brasileiro. 4 ed. São Paulo: Saraiva, vol. I, 2007, pp. 469-470. A supressão da ação material na descrição do conteúdo da relação jurídica e portanto na explanação acerca da prescrição é muito comum. A partir desta opção, remetem os autores, de forma consciente ou não, toda a impositividade ao plano processual, o que causa contradição insuperável quando se tiver de examinar hipóteses em que a satisfação se exige e se impõe fora do processo, como na legítima defesa da posse. 25 “A violação do direito subjetivo cria para o seu titular a pretensão, ou seja, o poder de fazer valer em juízo, por meio de uma ação (em sentido material), a prestação devida, o cumprimento da norma legal ou contratual infringida, ou a reparação do mal causado, dentro de um prazo legal (arts. 205 e 206 do CC). O titular da pretensão jurídica terá prazo para propor ação, que se inicia (dies a quo) no momento em que sofrer violação de seu direito subjetivo. Se o titular deixar escoar tal lapso temporal, sua inércia dará origem a uma sanção adveniente, que é a prescrição. Esta é uma pena ao negligente. É perda da ação, em sentido material, porque a violação de direito é condição de tal pretensão à tutela jurisdicional.” (DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, cit., p. 430). 7 O texto do Código Civil contribui consideravelmente para a confusão doutrinária. Embora adote o conceito de pretensão, o que tem contribuído para reduzir o número de adeptos da prescrição como causa de extinção da “ação” processual, a redação do art. 189 se mostra imprecisa ao referir-se à extinção da pretensão e ao surgimento da pretensão como efeito da violação do direito,26 o que só é verdade quando se tem em mente direito absoluto, em que a pretensão nasce quando alguém se nega a se abster de violá-lo.27 Em matéria de decadência, por sua parte, continua a doutrina a afirmar que seu prazo não está sujeito a interrupção ou suspensão.28 Não há fundamento para tal conclusão, em que pese sua recorrência. Pontes de Miranda já observava, sob o Código Civil de 1916, que o legislador pode instituir hipóteses de suspensão e interrupção do prazo decadencial. Na falta de disposição expressa, o prazo flui de forma ininterrupta, não se aplicando a ele por analogia as causas que incidem sobre o prazo prescricional,29 mas não há impedimento a que tal disposição venha a ser editada, solução posteriormente adotada pelo art. 207 do Código Civil. Ressalte-se que a busca pela precisão conceitual e terminológica poderia representar um anacrônico retorno à jurisprudência dos conceitos e seu formalismo logicista,30 ou, o que é pior, mero capricho destinado apenas a deleite estético. 26 “Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.” 27 “O Legislador Civil de 2002 quando, imiscuindo-se indevidamente em matéria científica, adotou a norma do art. 189, declarando, in verbis, que “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”, cometeu duas graves incorreções, a saber: (i) A primeira, consiste na afirmativa de que a pretensão nasce como consequência de violação do direito. Nada mais equivocado. A pretensão é, tão somente, fase de exigibilidade do direito, de modo que surge sempre que o direito subjetivo pode ser exigido. A ação é que nasce como decorrência de violação, mas não do direito, e sim da pretensão (...) (ii) A segunda diz respeito à afirmação de que a prescrição tem caráter extintivo. Como mostramos acima, a prescrição não extingue coisa alguma, apenas encobre a eficácia da pretensão (=exigibilidade do direito) e da ação (=impositividade do direito), o que resulta claro da circunstância de que, se não for alegada oportunamente, não mais o poderá ser, perdendo toda a sua eficácia.” (MELO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, cit., p. 141). Rodrigo Xavier mostra que, levado às últimas consequências, o dispositivo inviabilizaria, por exemplo, a existência de pretensões inibitórias (LEONARDO, Rodrigo Xavier. A prescrição no Código Civil Brasileiro, cit., p. 15). 28 Por exemplo, PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil brasileiro, 2010, cit. p. 590. 29 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado, tomo VI, cit., p. 136. 30 Entre tantos outros, consulte-se a exposição de CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, trad. Menezes Cordeiro, 2002, pp. 28-38. 8 Assim seria se a livre permuta dos conceitos não produzisse efeito prático, o que aqui não é o caso. Sempre que uma abstração conceitual traz consequências práticas efetivas, a preservação do apuro técnico na sua utilização é pragmaticamente justificada. O jurista que não compreende os instrumentos teóricos aqui descritos31 para a explanação da prescrição e da decadência utiliza-se de técnica imprecisa e comete erros propriamente ditos quando da argumentação e da decisão jurídica. Por exemplo, aquele que supuser ser a prescrição causa de extinção da ação em sentido processual terá de concluir que a sentença que acolhe a prescrição será prolatada sem resolução de mérito. Quem adota a tese de que a prescrição extingue direitos não consegue explicar a eficácia do pagamento de dívida com a pretensão encoberta. Aquele que desconhece a natureza de ato-fato atribuída ao fato jurídico prescrição e defende seu enquadramento como sanção pode afastar sua aplicação com base em análise subjetivista, como exames de intenção ou culpa no não-exercício da pretensão. Além disso, quem não compreende o funcionamento das exceções se verá em dificuldades quando tiver de analisar a Lei 11.280/06 e a declaração de ofício da prescrição. Por fim, o jurista que insistir em afirmar que os prazos de decadência não se interrompem ou se suspendem se verá em contradição ao aplicar o art. 208 do Código Civil, que impõe causa de impediência ou suspensão do prazo de decadência contra incapazes ou o art. 26, § 2º,do Código de Defesa do Consumidor, que faz o mesmo em relação ao prazo decadencial para reclamação contra vícios na pendência de reclamação ou inquérito civil. 2. O critério distintivo de Agnelo Amorim Filho e o problema da prescritibilidade das ações declaratórias 31 Há uma hipótese subjacente a este raciocínio, já colocada neste texto e que precisa ser sublinhada por clareza: a teoria do fato jurídico propõe o modelo mais completo disponível no direito brasileiro para a análise da prescrição. Depois dela não houve uma proposta revolucionária que justifique seu afastamento e os autores citados que não a aplicam no todo ou em parte utilizam-se das mesmas estratégias conceituais e argumentativas, mas em fase evolutiva anterior. 9 O critério distintivo entre prescrição e decadência permanece um problema relevante no direito brasileiro. Como se sabe, no Código Civil de 1916, não havia identificação clara acerca da natureza dos prazos para exercício de direitos, o que motivou a doutrina a debater o tema sob a ótica do critério específico que pode ser utilizado para identificar quando um dado prazo apontado pela lei é prescricional ou decadencial. Não se trata de distinguir os efeitos de cada instituto, matéria em que, apesar dos equívocos recorrentes e demonstrados, a doutrina se mostra mais à vontade. Trata-se de construir uma teoria suficientemente efetiva para demonstrar em que situações ocorre prescrição e em quais outras haverá decadência. Mesmo após o Código de 2002, com a identificação de uma série de prazos na parte geral como sendo prescricionais (art. 206) e com indicação de outros na parte especial com indicação expressa de decadência (v. g., art. 505), ainda persiste interesse em debater o não pacificado critério. É que há prazos ao longo do Código sem declinação de sua natureza (v. g., art. 550), isso para não mencionar a extensa legislação extravagante. Neste ponto, como já dito, o referencial clássico32 é o texto de Agnelo Amorim Filho, que enfrenta a matéria concluindo, em síntese:33 (a) sujeitam-se à prescrição os direitos prestacionais, dos quais decorrem ações condenatórias; (b) sujeitam-se à decadência os direitos formativos com prazo para exercício previsto em lei, dos quais decorrem ações constitutivas; (c) são perpétuas as ações declaratórias e os direitos potestativos sem prazo para exercício previsto em lei. O critério proposto representa indiscutível evolução na matéria e mostra potencial para a solução de uma série de questões práticas, em especial no 32 Clássico sim, sem dúvida, mas apesar de representar o principal esforço para a solução de um problema relevante e ainda polêmico, não é mencionado em muitas das obras gerais a tratar do tema. 33 AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais, vol. 300. São Paulo: RT, out. 1961. Em sentido semelhante, ALVES, Vilson Rodrigues. Da prescrição e da decadência, cit., pp. 787-788. 10 que toca ao ambiente do direito privado. Não é, porém, perfeito e insuscetível de debate, como um breve olhar crítico pode apontar. Agnelo Amorim partiu da teoria ternária das ações. Funda seu critério nas ações de direito material (ou, para talvez fazer mais justiça às suas escolhas, na carga eficacial preponderante das sentenças), mas ignora os direitos dos quais defluem ações mandamentais e executivas.34 Se é possível afirmar que, como regra geral, as ações executivas estarão sujeitas à prescrição (vide, por exemplo, a ação reivindicatória ou a de petição de herança), no que diz respeito às ações mandamentais essa definição a priori não é tão clara. Seu principal acerto, em se tratando de matéria privada, parece residir nos dois postulados básicos: direitos prestacionais prescrevem, direitos formativos podem decair.35 Esses dois fundamentos solucionam toda uma série de problemas práticos. Permitem, por exemplo, identificar que o art. 550, referido acima, que consagra prazo de dois anos de natureza não identificada para o exercício do direito formativo à anulação da doação é decadencial. Ocorre que, mesmo no que toca a essas duas conclusões tão úteis, é necessário opor uma importante ressalva. É que a prescrição e a decadência são institutos de direito positivo.36 Não há em sua estrutura uma imunidade à influência legislativa, o que inclusive explica como diferentes ramos do direito podem ter diferentes regramentos acerca da matéria. 34 O enfrentamento adequado da matéria no âmbito das ações mandamentais e executivas, diga-se de passagem, só pode fazer com a diferenciação entre o plano material e pré- processual. Neste sentido, confira-se ARAÚJO, Gabriela Expósito; GOUVEIA FILHO, Roberto Pinheiro Campos; ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. Da noção de direito ao remédio jurídico processual à especialidade dos procedimentos das execuções fundadas em título extrajudicial: ensaio a partir do pensamento de Pontes de Miranda. In DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BASTOS, Antonio Adonias (coords). Execução e cautelar: estudos em homenagem a José de Moura Rocha. Salvador: JusPodium, 2012, pp. 501-523. 35 Parece correto afirmar que há direitos formativos sem prazo para o exercício, como o direito ao divórcio direto, que pode ser exercido muitos anos após a separação de fato, ou o direito de tapagem, que igualmente se pode exercer a qualquer tempo. Em sentido aparentemente divergente: “Os direitos potestativos estão sujeitos a prazos decadenciais, que os extinguem.”(LÔBO, Paulo. Direito civil: parte geral, cit., p. 341). 36 Neste sentido, MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado, tomo VI, cit., p. 100. Correta a leitura de Gustavo Kloh: “A escolha eficacial cabe ao legislador.” (NEVES, Gustavo Kloh Müller. Prescrição e decadência no direito civil, cit., p. 24). 11 Logo, mediante regra jurídica expressa, pode-se atribuir prazo decadencial a direito prestacional ou prazo prescricional a direito formativo. Por regra expressa, pode-se até mesmo criar direitos prestacionais imprescritíveis. Se a lei atribui prazo decadencial a direito que, no silêncio legislativo, prescreveria, ou o contrário, tem o poder para assim determinar, ainda que mereça crítica. É por isso que não há atecnia na aplicação das regras que estabelecem, por exemplo, a imprescritibilidade da pretensão de indenização do Poder Público por danos causados pelos agentes públicos (CF, art. 37, §5º). Assentadas as bases do critério de Agnelo Amorim e da principal crítica que se pode opor a ele (a sua subsidiariedade, uma vez que a norma tem o poder de determinar a eficácia do prazo que estipula), pode-se passar ao problema da imprescritibilidade da ação declaratória. Agnelo Amorim Filho não foi o único a dizer que as ações declaratórias seriam imprescritíveis. Esse entendimento é, inclusive, bem difundido na doutrina37 e na jurisprudência.38 Ele provavelmente é, porém, o autor que mais se debruçou sobre a justificativa dessa imprescritibilidade, que decorre de seu critério científico para a distinção entre prescrição e decadência. Para Agnelo, como na ação declaratória não haveria exercício de direito prestacional nem tampouco de direito formativo, não se poderia apor-lhe prazo prescricional ou decadencial. Em suas palavras: Ora, as ações declaratórias nem são meios de reclamar uma prestação, nem são, tampouco, meios de exercíciode quaisquer direitos (criação, modificação ou extinção de um estado jurídico). Quando se propõe uma ação declaratória, o que se tem em vista, exclusivamente, é a obtenção da "certeza jurídica", isto é, a proclamação judicial da existência ou inexistência de determinada relação jurídica, ou da falsidade ou autenticidade de um documento. Daí é fácil concluir que o conceito de ação declaratória é visceralmente inconciliável com os institutos da prescrição e da decadência: as ações desta 37 Entre tantos outros: THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil, cit., p. 158. Um exemplo folclórico de ação declarativa perpétua, muito comumente citado na doutrina, seria a ação de nulidade. Folclórico porque na verdade sequer se trata de ação declarativa, mas sim constitutiva – vide MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado das ações. São Paulo: Revista dos Tribunais, tomo IV, 1973, p. 29 e seguintes. 38 Por exemplo, na jurisprudência recente: STJ, ReSP 1.351.575/MG, 2ª Turma, pub. 16/05/13. 12 espécie não estão, e nem podem estar, ligadas a prazos prescricionais ou decadenciais. 39 Percebe-se na exposição do autor a tendência a enxergar a ação declaratória como um instrumento exclusivamente processual, sem conteúdo material, posição em que não está sozinho. 40 É preciso salientar a existência de pretensão a declarar e a ação material declaratória, anteriores à pretensão à tutela jurídica e ao remédio jurídico processual. Neste sentido, Pontes de Miranda: Não se pode sustentar que não existe pretensão à tutela jurídica para a declaração, nem que não exista a ação (no sentido do direito material), nem que apenas exista a “ação” (remédio jurídico processual). Existem os três. A ação declarativa, no sentido do direito material, está apontada. Se desfavorável a sentença, a declaração (direito pré-processual e processual) é pela inexistência da ação declarativa de direito material.41 Logo, se há pretensão à declaração e ação de direito material declaratória, a tese de perpetuidade sofre a sua primeira refutação. Há pretensão e ação, no plano material, a serem encobertas pela prescrição ou extintas pela decadência. A essa constatação deve-se acrescer a idéia de que a prescrição e a decadência são institutos jurídico-positivos e por isso o critério é subsidiário. Como dito, regra jurídica expressa pode estabelecer soluções não ordinárias em matéria de prescrição. Por que, então, não seria possível fixação de um prazo prescricional para o exercício de ação declarativa, ainda que existam ações declarativas imprescritíveis e que estas sejam a maioria, reveladora de uma regra geral? Daí o acerto da afirmação de Pontes de Miranda: embora as ações declaratórias sejam por regra imprescritíveis, podem elas estar sujeitas a prazo prescricional ou decadencial,42 se o legislador entender por limitá-las no tempo. 39 AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico, cit.. 40 Vide THEODORO JÚNIOR, Humberto, Comentários ao novo Código Civil, cit., p. 158: “São, por fim, estranhas à prescrição as ações puramente declaratórias, pois não veiculam pretensão alguma (...).” 41 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado das ações. São Paulo: Revista dos Tribunais, tomo II, 1971, p. 9. 42 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado das ações, tomo II, cit., p. 80. 13 Por fim, é possível identificar exemplos de ações declarativas prescritíveis, que contradizem a regra do critério agneliano. Uma delas era a de impugnação da filiação pelo marido dentro do prazo de dois meses contados do nascimento do filho de sua esposa, contida no Código Civil de 1916, no art. 178, §3º. Considerações finais Temas clássicos, exaustivamente debatidos pela doutrina e recorrentemente examinados pela jurisprudência, podem aparentar uma calmaria irreal. Assim ocorre com a prescrição e a decadência, institutos em que há aparente consenso, mas que permanecem cheios de questões delicadas e indefinições teóricas. A obra de Agnelo Amorim Filho permanece atual e relevante na doutrina brasileira sobre a matéria, em que pese ainda haver no Brasil quem trate de prescrição e de decadência, em manuais e textos específicos, sem mencioná- la. Não é possível abordar a matéria sem tê-la em consideração. O critério científico de Agnelo precisa, no entanto, ser revisto sob o crivo de um exame crítico. O diálogo entre a teoria de Agnelo e a teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda permite identificar alguns pontos de revisão do critério proposto e avançar na discussão de forma proveitosa. Assim, pode-se sintetizar as conclusões do presente trabalho: a) A exposição de Pontes de Miranda a respeito da prescrição e da decadência é, ainda hoje, a mais precisa existente no direito brasileiro e não foi refutada pelos autores que se seguiram a ele. O desconhecimento de seus pressupostos conduz a equívocos graves na doutrina e na jurisprudência. b) O critério distintivo de Agnelo Amorim Filho não foi totalmente refutado. Permanece útil como critério subsidiário de identificação da natureza de um prazo quando não há expressa indicação da norma. 14 c) O legislador tem o poder de escolha da eficácia do prazo. Portanto, pode impor prescrição, decadência ou atribuir perpetuidade, a despeito do critério distintivo analisado, que é, como dito, subsidiário. d) As ações declarativas são, por regra, perpétuas. Contudo, nada impede o legislador de atribuir-lhes prazo prescricional ou decadencial. É preciso deixar claro que nenhuma dessas conclusões nega a importância do que escreveu Agnelo Amorim Filho. Muito pelo contrário, a reafirmam. O debate aqui travado, e refletido, por certo, em todo o volume em sua homenagem, deixa patente a originalidade de sua tese e a necessidade de que ela venha a ser mais difundida e mais discutida na doutrina nacional. Trata-se verdadeira e propriamente de uma tese: uma contribuição original e relevante à história das idéias do pensamento jurídico brasileiro. Hoje, uma tese clássica, por seus méritos indiscutíveis e sua repercussão. E como tal, constitui uma referência obrigatória para todo aquele que decidir se dedicar ao estudo da prescrição e da decadência no Brasil. Referências ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo - ou de como o art. 3º da Lei 11.280/2006 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro. Revista de Direito Privado. 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