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• 55 Em palestra para o “Chá de Epidemiologia” (seminários quinzenais or- ganizados por Eduardo Faerstein no Instituto de Medicina Social da Uerj), em 16 de outubro de 2008, intitulada “O self como risk-taker: confrontos, aproxi- mações e dissensões entre a epidemiologia e a sociologia”, Luiz Antonio de Castro Santos comentou um texto sugerido para debate dias antes do evento. Nesse texto (Béhague et alii, 2008), as autoras propõem-se a estabelecer um diálogo entre a antropologia e a epidemiologia. Antes de colocarmos em ques- tão outras contribuições importantes para o debate naquela manhã, iremos focalizar de perto o texto citado. No artigo citado, ainda que as autoras busquem discutir algumas interfaces entre a antropologia e a epidemiologia nas pesquisas em saúde, a nosso ver — já antecipamos uma conclusão geral —, verifica-se um diálogo ainda bastante travado entre as disciplinas. A antropologia e, particularmente, a sociologia estão ausentes do debate, ou têm nele uma voz oblíqua. Uma indicação ligeira sobre o peso relativo das referências intelectuais: das dezenas de citações no texto, apenas meia dúzia, se tanto, poderá ser rigorosamente classificada como “literatura antropológica”. Dominique Béhague e Helen Gonçalves são antropólogas sociais, com inserção frequente pelos caminhos da epidemiologia. Tomemos como exemplo da produção de Helen Gonçalves seu ensaio sobre “as percepções corporais” de tuberculosos que abandonam o tratamento, publicado em coletânea organizada pelos antropólogos Luiz Fernando Duarte e Ondina Leal (Gonçalves, 1998).O ensaio reflete um primeiro momento, bastante fecundo, de sua carreira antro- DIÁLOGOS E EMBATES ENTRE AS CIÊNCIAS SOCIAIS E A EPIDEMIOLOGIA: a retórica dos riscos “I saw guns and sharp swords in the hands of young children” Bob Dylan, A hard rain’s a-gonna fall, 1962 Por Alba Zaluar e Luiz Antonio de Castro Santos • Alba Zaluar e Luiz Antonio de Castro Santos Alba Zaluar é antropóloga, professora titular do Instituto de Medicina Social da Uerj e Pesquisadora do CNPq. Publicou recentemente “Pesquisando no perigo: etnografias voluntárias e não acidentais”. MANA 15(2): 557-584, 2009. Luiz Antonio de Castro Santos é sociólogo, professor associado do Instituto de Medicina Social da Uerj e pesquisador do CNPq. Publicou recentemente, com Lina Faria, Saúde & História (Hucitec, 2010). 56 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate pológica. Diferentemente do texto Anthropology and Epidemiology (Béhague et alii, 2008), os conceitos-chave do ensaio antropológico (cujas características formais fogem inteiramente do molde “introdução, métodos, resultados, dis- cussão”, adotado em textos epidemiológicos) são as representações ou percep- ções de um ator-doente. A autora dialoga com a teoria antropológica que se poderia dizer “de raiz” (Mary Douglas e Lévi-Strauss, entre outros autores), não apenas com a antropologia médica. Desde logo, distancia-se da antropologia médica, não raro mais “médica” do que “antropológica”. No texto em inglês, no qual Helen Gonçalves colabora, estamos diante de um outro conceito-base, que é o risco. Assim, é como se os temas evocados por Helen Gonçalves caminhas- sem sobre duas sendas distintas: no primeiro texto temos uma conceituação antropológica do “self as risk taker” (Mary Douglas, 1992); no segundo, com Béhague e Victora, temos uma conceituação epidemiológica do “self as risk- averse” (ainda Mary Douglas). Esta é a baliza epistemológica do texto publica- do em Ciência e Saúde Coletiva. Do primeiro para o segundo exemplo, passamos da ênfase do ator que corre riscos, ou que não os considera como princípio fundador de suas ações, para o ator que lhes é avesso, que deles foge para maximizar suas life-chances, uma vida saudável pautada em escolhas suposta- mente racionais. Estamos, é claro, num cenário de tipos ideais ou categorias construídas1. Mas há um pouco mais. No primeiro artigo, a noção de estigma aproxi- ma a discussão antropológica sobre os tuberculosos, da discussão sociológica de um Erving Goffman (1988) ou de um Oracy Nogueira (2009), mestres do estudo dos processos estigmatizantes que podem advir das políticas públicas, de movi- mentos sociais ou da própria cultura, em sociedades tribais e complexas. Pensa- mos, desde logo, no fato de que a noção de risco, em epidemiologia, pode conduzir as políticas antitabagistas a baixar taxas de morbidade e mortalidade. No entanto um trágico efeito não antecipado (ou negligenciado) destas políti- cas tem sido o de tornar os fumantes uma camada de outcasts, de novos lepro- sos ou pestosos do século 21. Temos aqui, a rigor, não uma questão epidemiológica, mas antropológica e sociológica. Aqui chegamos a nosso comentário final sobre o texto de Béhague e colegas: trata-se de uma tentativa auspiciosa de demarcar pontos de conver- gência e de reflexão crítica, mas ainda caminhamos sobre a senda do risco, não das representações sociais. O texto não traz o vigor interpretativo da antropo- logia. O desafio é estabelecer um diálogo sem sincretismos. Não há espaço epistemológico para “médias” nem “medianas” entre os dois campos. As (o)posições devem ser esclarecidas em sua inteireza, como propostas até certo ponto antípodas. 2 Isso não está lá, no texto por outras tantas razões bem- vindo, de Béhague e colegas. O que sentimos é que a aventura colaborativa não traz ainda as anunciadas “epistemological lessons”, mas sim lições epidemiológicas... No fundo, estamos diante de uma tentativa da epidemiologia de questionar posições hegemônicas em suas próprias fileiras, de um passo importante para reconhecer seus limites e posicionar-se, ainda que de modo 1 Lembremos que foi justamente ao procurar distinguir categorias que Mary Douglas sugeriu a adoção de diferentes mensagens para diferentes grupos culturais, nas campanhas contra a Aids (Douglas, 1992:102-121; Guivant, 1998: 10). 2 Para uma discussão estimulante sobre o estado da arte da epidemiologia dos riscos nas décadas de 1980 e 1990, particularmente sobre a “relatividade” dos próprios “riscos relativos“e a eclosão da “epidemia dos riscos” na literatura médica, veja-se o texto de Castiel, 1996. Castiel aborda também a extensa literatura sociológica, apontando o cenário dos “novos agravos” que se abre (ou se fecha?) tanto para o campo biomédico como para as ciências humanas. • 57 hesitante, diante do desastre ético e político de algumas políticas de saúde entrincheiradas na noção de risco. Esse questionamento dentro do próprio ter- ritório de disciplina talvez tenha alcançado seu ponto mais alto e previsivel- mente polêmico no livro recente do epidemiologista Geoffrey C. Kabat, docente do Albert Einstein College of Medicine, em Nova York, ao criticar os exageros e distorções que, como bem aponta, têm caracterizado o tema dos riscos ambientais à saúde (Kabat, 2010). As noções e posições abraçadas pela literatura epidemiológica dos riscos não levam em conta a multiplicidade de subjetividades e a própria história dos debates e da formação conflitiva dos conceitos, embora tendendo para acordos e consensos periódicos, na Antropologia e na Sociologia. São muitos os exem- plos em que tais falhas transparecem no discurso epidemiológico, a despeito dos propósitos da literatura de fazer um bom diálogo interdisciplinar. A própria idéia, hoje corriqueira nos campos das ciências sociais, de que as representa- ções constituem o componente mental de qualquer ação social, de que elas constituem a mediação simbólica de cada uma das transações sociais envolven- do seres humanos, deve conduzir à consciência, entre autores da epidemiologia, de suas implicações teóricas profundas. Uma delas é que isso tem consequências sobre as intervenções propostas e feitas na Saúde Pública por seus agentes, na medida em que se faz necessário levar em conta o que pensae pratica o sujeito que venha a ser objeto de tais intervenções. Não apenas para a epidemiologia, mas igualmente para a saúde coletiva, tais consequências teóricas e programáticas representam duros desafios, que estão longe de ser enfrentados na abundante produção do campo, a exemplo do silêncio sobre os fumantes — cujas repre- sentações simplesmente não têm sido consideradas, como indivíduos destituí- dos dos direitos básicos à fruição dos espaços públicos. Um dos autores mais importantes no debate sobre riscos, o sociólogo alemão Ulrich Beck, chega a propor que a nova modernidade é a “sociedade do risco” (Beck, 1992). Beck não se propõe a debater, como faz Randall Collins magistralmente, a recente vulnerabilidade dos espaços sociais que promovem os ritos de sociabilidade, alvo das campanhas antitabagistas (Collins, 2004, esp. cap 8; Castro Santos, 2007). As preocupações centrais de Beck, também assina- ladas por outros autores como Anthony Giddens e Scott Lash (Beck et alii, 1994), voltam-se para os riscos tecnológicos e ambientais que poderíamos cha- mar “de grande impacto”, no tocante às consequências para o futuro da espécie humana e do planeta, no projeto histórico da modernidade. Diante dos confli- tos em torno dos malefícios da tecnologia, que mudam o eixo do seguro/ inse- guro, uma multiplicidade de grupos, associações e movimentos sociais – “peri- tos” de toda sorte — almejam ser especialistas, ou posicionam-se como tal, visto que a informação é cada vez mais partilhada e mais necessária para en- frentar os efeitos da ação humana sobre o planeta. Mary Douglas e Aaron Wildavsky situaram a questão da (in)segurança sob um ângulo fundamental- mente cultural. Sua questão norteadora contempla culturas singulares — tan- to sociedades tribais como complexas: ao indagarem “Quão seguro é suficiente- • Alba Zaluar e Luiz Antonio de Castro Santos 58 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate mente seguro para uma cultura em particular?”, acabam por questionar igual- mente a possibilidade de peritos chegarem a definir níveis “universalmente” aceitáveis de segurança. Isto é: a rigor, não existem peritos (Douglas e Wildavsky, 1982). Nas palavras da socióloga Julia Guivant, “temos que lidar com conheci- mentos que são incertos, aspecto que a perspectiva técnica sobre os riscos não considera ao superintelectualizar os processos decisórios e superenfatizar os impedimentos dos leigos, classificados como irracionais” (Guivant, 1998, p. 4). Nessa perspectiva, trata-se de comparar práticas sociais ou culturas em ação que permitam descobrir quais impulsionam as pessoas para novos espaços, novos experimentos, ações cujos resultados são imprevisíveis ou desconheci- dos, ou ainda simplesmente respostas a desafios. Tem muito mais a ver com voar de planador, mergulhar em grande profundidade, apostar em jogos de azar, inclusive na bolsa de valores, correr em alta velocidade, do que fumar um cigarro sem saber quando, onde e se vai se contrair um câncer. Essa comparação destina-se a responder questões que sempre atormentaram os humanos: quan- do se proteger, quanto arriscar para usar a liberdade? As respostas das culturas e das pessoas têm sido múltiplas e é preciso, antes de tudo, entender o que está em jogo no risco. Mais recentemente, harmonias e discordâncias marcam o posicionamento de autores da estatura de Giddens, Beck e Lash. Tanto em suas obras, como, de modo geral, na literatura recente, há pontos de notável convergência. Os dois primeiros autores coincidem em propor que o conceito de sociedade de risco passe a substituir o de sociedade de classes. Em seu excelente balanço da lite- ratura sobre os riscos ambientais e seu enfrentamento pelas ciências sociais, Julia Guivant (1998) aponta com precisão as limitações de tal “virada” interpretativa, por refletir de modo particular a situação observada nos países centrais. Giddens não supõe um caráter tão marcante nos processos de mudan- ça, como faz Beck, mas esse viés não está ausente de seus trabalhos. Guivant sugere uma “simultaneidade” de processos nos países dependentes. “Podemos considerar, por exemplo, que a sociedade brasileira é atravessada pelos proble- mas da sociedade de escassez, na qual a distribuição da riqueza é altamente desigual entre as classes sociais, junto com os problemas da sociedade de risco, sem ainda contar com uma reflexividade ativa como a que Beck identifica nas sociedades mais industrializadas” (Guivant, 1998, p. 34). Mas seria injusto com Beck e Giddens dizer que não assinalaram como os efeitos da sociedade de risco estão desigualmente distribuídos na sociedade. São os mais pobres os mais vulneráveis, para os dois autores (Beck, 1992). Justamente ao contemplar as sociedades contemporâneas, a literatura tem procurado demonstrar o caráter plural das noções sobre os riscos e sua (in)aceitabilidade, bem como a desintegração das certezas outrora existentes na sociedade industrial. Na falta de consensos facilmente reconhecíveis, sem cerne legitimador, os indivíduos têm ao mesmo tempo mais possibilidades de fazer escolhas, de tornar seu self social, ou selves, no plural, ainda mais plurais e complexos, e assumir uma responsabilidade maior por suas próprias biografi- (...) questões que sempre atormentaram os humanos: quando se proteger, quanto arriscar para usar a liberdade? As respostas das culturas e das pessoas têm sido múltiplas e é preciso, antes de tudo, entender o que está em jogo no risco. • 59 as. Por isso mesmo, nessa sociedade de indivíduos, a liberdade de agir segundo escolhas pessoais é ao mesmo tempo o apanágio e a responsabilidade de cada um. Em outra perspectiva teórica, para sairmos do individualismo que pode deslizar para o utilitarismo, é preciso reconhecer que a busca de novas certezas, avatares e proteções para si e para os outros se torna como que uma compulsão por novos elos de reconhecimento, com base nos laços sociais que unem e constroem as subjetividades. Este é o programa de outra rede de pesquisas, comandada pelo grupo francês do MAUSS, “Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais” — e apoiada na contribuição clássica sobre a dádiva e a reci- procidade, do antropólogo Marcel Mauss. O alcance e os limites da precaução. Algumas políticas de saúde, impostas como soluções para a redução dos “riscos relativos”, têm ignorado, como vimos afirmando, a livre fruição de laços sociais que produzem e reproduzem as subjetividades. No caso do cerco aos fumantes, estamos diante do não-lugar da sociabilidade, ou da limpeza “sani- tária” dos espaços públicos, para livrarmo-nos de comportamentos suposta- mente desviantes. Um novo conceito, de roupagem sociológica, jurídica e mé- dica, tem sido aclamado como o “princípio da precaução”, um mandato para que ações em defesa da saúde pública por parte dos governos em todo o mundo sejam consideradas legitimas, mesmo na ausência de evidências cientificas in- contestáveis3. Ora, uma provocação recente de Bruno Latour sobre essas questões (Latour, 2010) convida-nos a virar pelo avesso o próprio princípio da precau- ção, do modo como vem sendo interpretado pelos governos e aplicado por legis- ladores e autoridades da saúde, liderados pela comunidade epidemiológica. Latour postula humildemente a adoção de “novas regras” do método experimental, não mais as antigas “regras” de Emile Durkheim, que, por vias transversas, continuam presentes em toda démarche científica. Há tempos, diz Latour, a ação racional se supunha decorrente do saber científico – “le savoir expert”. A passagem do saber à ação era legitimada pela suposição do conhecimento com- pleto sobre causas e consequências (ibid: p. 1). Um especialista ou consultor de saúde pública, na ausência de um conhecimento sólido sobre causas e efeitos, toma “precaução” contra o risco, para eliminá-lo. Na leitura latouriana, a pre- caução deve conduzir àconvivência com riscos, sob certas condições. Não se trata de uma ressurreição de um ethos anarquista ou revolucionário. Na verda- de, a ação precavida ou prevenida, movida pelo princípio correspondente, con- siste em “sondar, explorar, tatear”, ter em conta as vozes do outro (p. 1). “Pour s’entendre, il faut entendre “ (p. 2). Os riscos “nunca exatamente calculados” têm a necessária contrapartida de uma responsabilidade compartilhada, de uma accountability social, de uma “vigilância permanente” pela sociedade, não sobre ela. 4 Nos termos emprega- dos pelo campo da saúde no Brasil, trata-se da vigilância não imposta 3 Para uma posição em defesa do princípio da precaução no Brasil, consulte-se Dallari, 2006. Em importante trabalho, diz a autora: “De certo modo, pode-se afirmar que a análise dos elementos que constituem o princípio de precaução remonta aos fundamentos da Saúde Pública. Fica evidente (sic) que para instaurar a prevenção, elemento historicamente essencial ao conceito de Saúde Pública, é indispensável a contínua vigilância não só dos dados epidemiológicos, como do ambiente político em que eles ocorrem, implicando, sobretudo, os grandes valores que a sociedade pretende abrigar, sua opção ética. É justo reconhecer, portanto, que o novo ‘princípio de precaução’ tem servido mesmo para despertar o Estado para uma de suas missões essenciais e prioritárias: proteger e preservar a Saúde Pública” (Dallari, 2006, p.25). Vemos com preocupação o aceno para a conduta missionária do Estado, que pode vir a “despertá-lo” para a formulação de políticas de saúde eticamente infundadas e politicamente autoritárias, ainda que em nome “dos grandes valores que a sociedade pretende abrigar”. (Agradecemos à médica sanitarista Sylvia Ripper nos ter chamado a atenção para o artigo de Dallari). • Alba Zaluar e Luiz Antonio de Castro Santos 4 “Autrement dit, dans tous les modèles d’action, la vigilance va de pair avec la prise de risque. (...) Plus je prends de risque plus j’apprends comment et surtout face à quoi devenir vigilant”. (Latour, 2010, p. 1). 60 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate institucionalmente, mas vivida como “controle social” – tampouco o controle como conceito sociológico durkheimiano, que remete às normas e regras sociais introjetadas pelos sujeitos, mas o controle como exercício de estreita atenção e avaliação da população sobre os próprios dispositivos da vigilância institucional. A vigilância é, na verdade, outra coisa, diferente da “vigilância sanitária” — é a atenção, o conhecimento informado, participado e participativo diante do risco. Não se coloca como um aspecto acessório da precaução; ao contrário, é seu elemento essencial. Do mesmo modo, ao se romperem os liames estreitos entre a expertise e a ação, a perplexidade ganha espaço no lugar da certeza, como nova parceira da vigilância e da própria ação consciente do risco. A ciên- cia experimental torna-se agora, sugere Latour, “uma ciência experimental co- letiva”, ampliada para o próprio terreno da ação e das experiências coletivas, mergulhada “na dura incerteza das controvérsias”. (p. 3). “O princípio da pre- caução nos impede, no fundo, de desqualificar o interlocutor com quem se faz necessário o entendimento” (p. 2). Em suma, a voz do saber não é tampouco a voz de um dono da expertise diante de “peritos alternativos”, mas diante do não-saber dos leigos, colaboradores de vastas experiências em escala globalizada. O modelo experimental subsiste num sentido estreito, mas a ciência experi- mental «coletiva» de que nos fala Latour corresponde a processos de larga am- plitude para tornar possível um outro princípio, o princípio do bom governo. Cauteloso diante da busca dos famosos “determinantes sociais” da saúde pela epidemiologia, o bom governo deverá de fato contemplar as “indeterminações” do mundo real (Guivant, 1998,p. 35) e divulgar os limites da certeza científica à população sensível ao risco cotidiano e ao modo de enfrentá-lo. As drogas e a cultura Se a literatura anglo-saxã sobre riscos e cultura foi o destaque a partir da década de 1980, particularmente com a contribuição de Mary Douglas, auto- res franceses têm sido bastante presentes na produção internacional recente. Já sublinhamos a crítica notável de Latour às conceituações da “precaução”. Outras presenças devem agora ser consideradas. Alguns intelectuais importan- tes no debate sobre o tema, na França, além de pesquisadores de outros países, participaram de um encontro internacional, “Drogues et Cultures”, organizado pela agência OFTD (Observatoire Français des Drogues et des Toxicomanies) e pela Chaire Santé de Science Po, realizado em Paris, de 11 a 13 de dezembro de 2008. [http://www.drugsandcultures2008.com]. A efervescência extraordiná- ria dos debates foi assinalada na conferência de encerramento pelo sociólogo Robert Castel (ibid: 13 de dezembro de 2008, vídeo). Castel enfeixou algumas das questões e conclusões mais candentes, sugerindo cautela na análise da toxicomania, ao distinguir entre usuários e toxicômanos e ao apontar a conve- niência de limites para a adoção dos chamados “heterocontroles” sobre usuári- os, inclusive sobre os consumidores pesados. Castel aponta para a necessária prudência na adoção de práticas institucionais coercitivas e punitivas, com base no saber médico e jurídico. O consumidor — leve ou pesado — é um A vigilância é, na verdade, outra coisa, diferente da “vigilância sanitária” — é a atenção, o conhecimento informado, participado e participativo diante do risco. • 61 sujeito social; o consumo de drogas é um comportamento social que deve ser trabalhado pela ciência social. Esta é uma afirmação banal para os cientistas sociais, lembra Castel; no entanto parece escapar aos saberes de ordem médica e jurídica, cuja aplicação chega mesmo a prescindir do cientista social. Ainda que não tenha diretamente abordado as questões do narcotráfico, suas obser- vações são por certo igualmente aplicáveis a este último tema, no qual o dis- curso forense e policial tende a desconsiderar as análises de sociólogos e antro- pólogos. Na produção francesa mais recente, reforçam-se o tom e a crítica das contribuições pioneiras no campo, com releituras e apreciações dos trabalhos de Mary Douglas, além de uma interessante adaptação do clássico de Howard S. Becker sobre a “carreira moral” dos usuários de maconha. Desta feita, o tema de Becker é revisto pela mira dos novos outsiders do século XXI, os fumantes franceses (Becker, 1963; Peretti-Watel, 2007). Acentua-se a variada exposição ao risco — em que se observa, para o tabaco e para as drogas, a questão da regularidade e da quantidade de consumo. Estas últimas, surpreendentemente, são quase sempre negligenciadas nas análises dos males derivados do fumo, como se qualquer nível de exposição produzisse agravos idênticos. Discutem- se as atitudes sociais de grupo, bastante diferenciadas em relação aos riscos e relacionadas a representações sociais igualmente diferenciadas. Em sua pales- tra no Seminário “Drogues et Cultures”, o sociólogo Patrick Peretti-Watel enfatiza o caráter polissêmico da noção de risco e os modelos da epidemiologia que levam ao conhecimento/desconhecimento do comportamento social do usuário de drogas (Conférence Drogues et Cultures, 13 dezembro de 2008, vídeo). Outro autor nesse debate na França, o antropólogo David Le Breton (1991, 2004), ressalta em seus trabalhos o gosto pelo risco que caracteriza algumas categorias de pessoas, tais como empreendedores e desportistas. Em vez de evitar a ação arriscada, esses indivíduos e suas “tribos” optam por bus- car o risco, procurando e valorizando justamente a experiência, ao enfrentá-lo, de vivenciar “paixões de risco” (ibid, 1991) e “condutas de risco” (ibid: 2004). A lógica desta procura não pode ser entendida sob a ótica da racionalidadena aversão ao risco, ou, acrescentamos, a partir dos paradigmas da escolha racio- nal, mas sim como uma forma de se confrontar inconscientemente com a morte e buscar o reconhecimento ou um sentido na vida pessoal e diante de seu “grupo de referência”. Esse sentido, como têm mostrado os sociólogos interacionistas, pode ser proporcionado pelo “grupo de referência”, ou construído na ação do próprio sujeito, mesmo sem a interferência efetiva ou direta do grupo ou da coletividade. O risco incerto Decorre do exposto que a própria idéia da preservação da vida acima de tudo, a valorização da longevidade e a opção pela tranquila vida dos que não se arriscam, deve ser relativizada para que se compreenda por que algumas pesso- • Alba Zaluar e Luiz Antonio de Castro Santos 62 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate as e alguns grupos preferem justamente o curso oposto. A definição do risco na abordagem das ciências sociais é, portanto, uma construção social múltipla, polifônica, sendo um dos seus presentes sentidos aquele usado na Epidemiologia e tomado, como indicamos neste ensaio, de modo quase sempre polêmico por sociólogos e antropólogos. Essa discussão torna-se crucial para entendermos o que está em questão. Se considerarmos o risco dentro de esquemas de racionalidades que enfatizam o cálculo, a partir de variáveis socioeconômicas ou ecológicas, todas elas probabilísticas, deixaremos de lado o que não pode ser medido porque pertence à esfera da liberdade humana, daquilo que um funda- dor da Antropologia – Bronislaw Malinowski – chamou “os imponderáveis da vida real”. Esses imponderáveis são considerados por todo cientista social nas suas tentativas de entender, explicar ou interpretar o mundo. A retórica da Epidemiologia não abre espaço para a intersubjetividade necessária na incorpo- ração, pelo observador despido da arrogância racionalista da filosofia do sujei- to, das representações sociais plurais, diferenciadas e coexistentes na situação vivida na pesquisa. Perdem-se assim, nas interpretações correntes, os recursos interpretativos da Antropologia e da Sociologia, particularmente no uso dos conceitos que poderiam criar variáveis quantificáveis mais confiáveis. Por isso mesmo, não se podem deixar de lado antigas teorias sobre a diferenciação de gêneros, de classes sociais, de formações sociais e as mais contemporâneas, de interações simbólicas e definições da situação vivida e da sociabilidade. O apego a redes de suporte social, recentemente enfatizadas em trabalhos de epidemiologistas – o cultivo de “supportive relationships” – teria muito a ganhar com o cuidadoso exame dos trabalhos dos interacionistas sim- bólicos sobre os rituais de convivência social que possam vir a reduzir o impac- to dos “riscos” sobre a saúde de maneiras insuspeitadas ou inesperadas (a exemplo de Collins, 2004). Há, por certo, rituais destrutivos ou antissociais que têm sua racionalidade igualmente avessa ao cálculo. Nas sociedades urbanas contempo- râneas aparecem inegáveis diferenças na relação que os jovens das classes po- pulares têm com a sua masculinidade, claramente atrelada, por sua vez, à capa- cidade de tomar e enfrentar riscos. Estes jovens procuram brigas e “rachas” de carro, como forma de entretenimento e fortalecimento de suas cliques. São muitos os estilos de masculinidade entre jovens de classes médias e altas, entre “nativos” e migrantes de outros estados, entre jovens da segunda geração de migrantes, entre os jovens negros, pretos, pardos, mulatos de diferentes áreas das cidades brasileiras. Por outro lado, não cabe generalizar e associar os estu- dos que correlacionam as formas hegemônicas de socialização do homem, vol- tadas para comportamentos de coragem, de agressividade, de combate, de competitividade e de desafio aos perigos, com condutas violentas e de risco. Tais estudos criariam um “macho genérico” estereotipado e “essencializado”, sempre propenso à violência e ao perigo, o que significaria afirmar uma deter- minação direta, sem mediações, entre ser homem e adotar condutas de risco. O apego a redes de suporte social, recentemente enfatizadas em trabalhos de epidemiologistas – o cultivo de “supportive relationships” – teria muito a ganhar com o cuidadoso exame dos trabalhos dos interacionistas simbólicos sobre os rituais de convivência social que possam vir a reduzir o impacto dos “riscos” sobre a saúde de maneiras insuspeitadas ou inesperadas. • 63 Se considerarmos a violência e o risco como polifônicos, torna-se im- prescindível incluir as definições, sensibilidades e sentimentos das pessoas envolvidas na situação ou na interação em foco. Do ponto de vista do ordenamento social, pode-se dizer que uma manifestação de força torna-se violência quando ultrapassa um limite ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações. É, portanto, a percepção do limite (e do sofrimento que provoca) que vai caracterizar um ato como violento. Do mesmo modo, o risco é também aquele ato ou situação que ultrapassa a capacidade de cada um, ou de um grupo social, de contemplar possíveis desfechos e sondar (“explorar, tatear”, nos lembra Latour) os resultados (in)esperados. Estamos diante de outra lógica, de riscos nunca exatamente calculados. Risco e incerteza se fundem. A detecção da conduta do risco e da con- duta violenta depende das sensibilidades ou emoções, tais como o medo e a orientação do ator para este sentimento. O conhecimento maior ou menor dos efeitos maléficos que pode trazer uma situação definida como de risco, tanto para o indivíduo como para seu grupo de referência ou para a coletividade, pode influir no curso da ação tomada pelo ator. Não obstante, os valores e disposições do sujeito para enfrentá-la, individualmente ou em grupo, podem ser decisivos e contrariar a ação que se “esperaria” daquele conhecimento ou da informação sobre efeitos maléficos. Por isso mesmo, é preciso atentar para as zonas existentes de conflito social e basear qualquer tentativa de prevenção de violência, redução de riscos ou de “agravos”, na interatividade dos personagens nelas envolvidos. Se o comportamento é essencialmente social, se o sujeito é um ator social, isto não significa que as políticas de redução de conflitos possam prescindir do envolvimento de cada ator, da palavra de cada um deles. Estamos diante de diferentes personagens, nos bastidores das relações de grupo e zonas de confli- to. É preciso, pois, analisar como os atores vivenciam o risco, se eles o procuram ou são tragados por ele, no duplo sentido para os fumantes de tabaco e para o usuário de drogas ilegais. (Do mesmo modo, ça va sans dire, a ciência social não pode ser tragada pela retórica dos riscos). Do ponto de vista sociológico e antropológico, importa entender como os atores avaliam os efeitos de uma droga sobre seus corpos e mentes e o quantum de prazer ou de sofrimento que lhes proporcionam. A própria idéia de compulsão e de excesso deve ser relativizada e incluir a subjetividade dos agen- tes. Mesmo assim, é possível conceber uma grade de condutas que variam entre o controle da ação e a compulsão, entre o racional e o irracional, entre precau- ções tomadas para diminuir os efeitos maléficos e a exposição desabrida e desa- fiadora, apesar do conhecimento supostamente adquirido sobre tais efeitos. Talvez se possa conseguir traçar, como fez Becker há tanto tempo, alguns perfis sociais daqueles que buscam ou não fogem das condutas arriscadas, desde a rebeldia juvenil até uma indiferença diante do desfecho que apenas apressaria a finitude humana. Como conduzir tais atores a contemplar ações pautadas em REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECK, Ulrich. Risk society. 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Estamos de volta aos imponderáveis da vida real, às suas indeterminações, às tentativas ainda assim necessárias de devolver aos homens e mulheres o sentimento do mundo, com seus desígnios e segredos finalmente libertos para “sondar, explorar, tatear”, livres de leis e regulações pré-fabricadas e precariamente negociadas. GUIVANT, Julia Silva, “Trajetórias das análises de risco: da periferia ao centro da teoria social”. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais. , v.46, p.3 - 38, 1998. KABAT, Geoffrey C. Riscos ambientais à saúde: mitos e verdades. Prefácio à ed. brasileira de Renato Veras. Trad. de E. Furmankewics. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010. LATOUR, Bruno. Du principe de précaution au principe du bon gouvernement : vers de nouvelles règles de la méthode expérimentale. http:// www.bruno-latour.fr/ poparticles/poparticle/p088.html - acesso em 26/07/2010. LE BRETON, David. Passions du risque. Paris: Métailié, 1991. LE BRETON, David. 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