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Mein Kampf Adolf Hitler Digitalização e tratamento do texto por Guilherme Jorge (esta obra foi digitalizada para uso exclusivo por parte de deficientes visuais ao abrigo do artigo 80 do CDADC) PREFÁCIo À PRESENTE EDIÇÃO A publicação do livro «Mein Kampf» de Adolf Hitler constitui uma indis- pensável contribuição para o conhecimento necessário de um período essen- cial da História Europeia. O estudo do nacional-socialismo adquire aliás, nos nossos dias, uma impor- tância indesmentível nos meios intelectuais europeus reavivada com os julga- mentos de algumas figuras (Klaus Barbie, p. ex.) que se assumiram como fiéis executores da política alemã daquela época, bem como com a justificada mas não menos polémica prisão de Rudolf Hesse em Spandau. Enquanto regime político, o nacional-socialismo não se distinguirá com facilidade dos regimes não democráticos que têm existido, sobretudo no séc. XX. Poder-se-á dizer até, que os mecanismos de exercício do poder do Estado nacional-socialista já tinham sido experimentados ou vieram mais tarde a ser copiados, sem que daí houvesse uma reacção de opinião pública tão significa- tiva como a que rejeitou aquele regime. Outros regimes foram e são cruéis, aviltaram e aviltam os Direitos Huma- nos, retiraram e retiram a participação do indivíduo na vida colectiva. Mas porque razão só o regime nazi é condenado com tanta veemência, pela opinião pública sobretudo pela História? A razão é esta: nenhum outro regime, nenhuma outra ditadura atacou indivíduos e os tentou exterminar recorrendo a processos científicos de destrui- ção em massa, acrescentando-se, ainda, que não havia uma situação de guerra declarada entre os judeus e os alemães. Este aparelho de destruição era, por sua vez, alicerçado num desenvolvi- mento da ciência aplicada à guerra que ainda hoje constitui a base de todo o progresso subsequente. E a actuação deste aparelho destrutivo que causa uma imediata rejeição e que, principalmente, provoca apreensão. Ora, deve perguntar-se se aquele período da História está nos limites do imaginável ou se, pelo contrário, a nossa época poderá produzir algo para lá do terror nacional-socialista. Não faltam exemplos, por enquanto na literatura de ficção científica, de sociedades que combinam características de terror hitleriano com um alto grau de desenvolvimento tecnológico, e existem já, na nossa época, chefes políticos que se aproximam do tipo de ditador que Adolf Hitler encarnava, se não mesmo o ultrapassam. Pensemos então na potencialidade das novas tecnologias e consequente cerceamento da liberdade, na medida em que invadem a esfera mais íntima do ser humano, e logo veremos que um movimento como o que se produziu na Alemanha teria já hoje uma eficácia destrutiva dificilmente ultrapassável. O exemplo nacional-socialista projecta-se, assim, nos nossos dias como a revelação da fragilidade de um indivíduo ou de um grupo face ao poder do Estado. E é esta a grande lição a tirar dos acontecimentos, pois que chorar os mortos não trará grande benefício. A história do nacional-socialismo e dos seus fundamentos doutrinários, em grande parte vertidos no «Mein Kampf", servirá, então, para conhecer o perigo e combatê-lo. Deste modo, a publicação do «Mein Kampf", que é antes de mais o exercício do direito à infòrmação numa sociedade democrática, deverá contri- buir para a convicção íntima dos homens na rejeição de sistemas totalitários. Se o livro alcançar este objectivo, a editora terá atingido, é minha convic- ção, uma das suas metas essenciais. ÁLVARO DE CASTRO PREFÁCIO Em 1 de Abril de 1924, o Tribunal Popular de Munique ordenava o meu encarceramento em Landsberg-am-Lech. Pela primeira vez, após anos de trabalho incessante, eu tinha assim a possibilidade de me entregar a uma obra que muitos instavam comigo para que escrevesse e que eu próprio sentia oportuna para a nossa causa. Decidi-me, então, nestes dois volumes, a expor não só os objectivos do nosso movimento, mas ainda a sua génese. Uma tal obra será mais fecunda do que um tratado puramente doutrinário. Além disso, tinha assim a ocasião de mostrar a minha própria formação, tanto quanto isso é necessário para a compreensão do livro, e quanto pode servir para a destruição da lenda construída em torno da minha pessoa pela imprensa judaica. Não me dirijo, aqui, a estranhos, mas a esses militantes do movimento que a ele aderiram de todo o coração e cujo espírito procura agora uma explicação mais aprofundada. Não ignoro que é pela palavra muito mais do que por livros que se ganha os homens: todos os grandes movimentos que a história registou ficaram a dever muito mais aos oradores do que aos escri- tores, Mas nem por isso é menos verdade que uma doutrina não pode salvaguardar a sua unidade e a sua uniformidade se não for fixada por escrito duma vez para sempre. Estes dois volumes serão as pedras com que contribuo para o edifício comum. O AUTOR Land sberg-am-Lech. Prisão. Em 9 de Novembro de 1923, ao meio-dia e meia hora, diante da Feldherrnhalle e no átrio do antigo Ministério da Guerra, os homens cu jos nomes seguem tombaram pela sua crença fiel na ressurreição do seu povo: ALFARTH Félix, comerciante, nascido a 5 de Julho de 1901. BAURIEDL Andreas, chapeleiro, nascido a 4 de Maio de 1879. CASELLA Theodor, empregado bancário, nascido a 8 de Agosto de 1900. EHRLICH Wilhelm, empregado bancário, nascido a 10 de Agosto de 1894. FAUST Martin, empregado bancário, nascido em 27 de Janeiro de 1901, HECHENBERGER Ant., serralheiro, nascido em 28 de Setembro de 1902. 11 KaRNER Oskor, comerciante, nascido em 4 de Janeiro de 1875. KUHN Korl, copeiro, nascido em 26 de Julho de 1897. LAFORRE Korl, aluno de engenharia, nascido em 28 de Outubro de 1904- NEUBAUER Kurt, doméstico, nascido em 27 de Março de 1899, PAPE Claus (von), comerciante, nascido em 16 de Agosto de 1904, PFORDTEN Theodor (von der), conselheiro no Tribunal Regional Superior, nascido em 14 de Maio de 1873 RICKMERS Joh, capitão de cavalaria, nascido a 7 de Maio de 1881 SCHEUBNER-RICHTER Mox-Erwin (von), Dr, engenheiro, nascido a 9 de Janeiro de 1884, STRANSKY Lorenz-Ritter (von), engenheiro, nascido a 14 de Março de 1899. WOLF Wilhelm, comerciante, nascido a 19 de Outubro de 1898. As autoridades nacionais recusaram, depois da sua morte, uma sepultura comum a estes heróis. à sua memória comum dedico o primeiro volume desta obra para que o seu martírio irradie constantemente sobre os nossos militantes. Londsberg-o.-L., Prisão, 16 de Outubro de 1924. Adolf HITLER tomo primeiro BALANçO CAPITULO I A casa familiar Uma feliz predestinação fez-me nascer em Braunau-am-inn, aldeola situada precisamente na fronteira destes dois Estados alemães cuja nova fusão nos aparece como a tarefa essencial da nossa vida, a prosseguir por todos os meios. A Austria alemã deve regressar ao seio da grande pátria alemã, e isso não em virtude de quaisquer razões económicas. Não, não: mesmo que esta fusão, economicamente falando, seja indiferente ou mesmo prejudicial, deve mesmo assim efectuar-se, O mesmo sangue pertence a um mesmo império. O povo alemão não terá qualquer direito a uma actividade política colonial enquanto não tiver podido reunir os seus próprios filhos num mesmo Estado. Quando o território do Reich contiver todos os Alemães, se se verificar que ele é incapaz de alimentá-los, da necessidade deste povo nascerá o seu direitomoral de adquirir terras estrangeiras. O arado dará então lugar à espada, e as lágrimas da guerra prepararão as colheitas do mundo futuro e assim que a situação da minha cidade natal me aparece como o símbolo dum grande dever. Ela possui outros títulos para fixar na memória. Esse ninho perdido foi, há mais dum século, teatro duma pungente tragédia que perdurará imortal nos anais da nação alemã. Foi efectivamente ali que, quando da mais completa derrocada que tenha conhecido a nossa pátria, um livreiro de Nuremberga, Johannes Palm, nacionalista endurecido e inimigo dos Franceses, morreu por esta Alemanha que ele amava tão ardentemente mesmo na sua desgraça. Recusara-se obstinadamente a denunciar os seus cúmplices, que eram, aliás, os principais responsáveis. Como o tinha feito Leo Schlageter. Também como ele, foi denunciado à França por um representante do Governo. Um director de polícia de Ausburgo granjeou essa triste glória, e deu assim o exemplo às autoridades neo-alemãs do Reich de Severin.. É nesta pequena cidade do Inn, aureolada por este martírio alemão, bávara de sangue mas politicamente austríaca, que meus pais habi- tavam por 1890. Meu pai era um consciencioso funcionário; minha mãe ocupava-se das lides da casa e rodeava os filhos de cuidados e amor. Essa época ficou pouco gravada na minha recordação, pois, alguns anos depois, meu pai foi ocupar um novo posto um pouco mais abaixo no curso do Inn, em Passau, portanto, na própria Ale- manha . Mas a sorte dum empregado das alfândegas austríaco compor- tava então muitos deslocamentos. Decorrido pouco tempo, meu pai regressava a Lins, e aí se aposentaria. Para o querido velho, isso não devia significar o repouso. Filho dum pequeno jornaleiro agrícola, já 15 16 outrora tivera de deixar a casa paterna. Mal tinha ainda treze anos, afivelou o seu saco de viagem e deixou o cantão de floresta que era a sua terra natal. Apesar do conselho de aldeões experientes, partira para Viena para aí aprender um ofício. Passava-se isto por 1850. Era uma decisão bastante amarga a de partir, de se pôr assim a caminho do desconhecido com três escudos no bolso. Quatro anos depois, admi- tido como companheiro, não estava, no entanto, satisfeito. Pelo contrário. A miséria persistente dessa época fortificou a sua resolução de abandonar o seu ofício para se tornar qualquer coisa de mais elevado. Enquanto que antigamente, jovem pobre, a situação do padre da sua aldeia se lhe afigurava o summum da condição humana, agora que a grande cidade lhe tinha alargado as ideias, punha acima de tudo a dignidade de funcionário. Com a pertinácia daqueles que a miséria e a aflição amadureceram precocemente, aquele Jovem de dezassete anos prosseguiu obstinadamente a realização dos seus novos projectos--e tornou-se funcionário. Atingiu o seu obJectivo pelos vinte e tres anos, creio eu, cumprindo assim a sua promessa de Juven- tude de não voltar à sua querida aldeia senão depois de se ter tornado alguém. Agora, o objectivo fora atingido; mas ninguém na aldeia se lem- brava Já do rapazinho de outrora e a própria aldeia tinha-se-lhe tornado estranha . Abandonando finalmente aos cinquenta e seis anos a vida activa, ele não teria, no entanto, podido suportar um único dia de ociosidade. Adquiriu nos arredores do pequeno burgo de Lambach, na Alta Austria, uma propriedade rústica, que valorizou. O ciclo da sua longa carreira laboriosa reconduzia-o, assim, à sua origem familiar. Desta época, datam as minhas primeiras ideias pessoais. Os folguedos em liberdade, a gazeta à escola, a convivência com rapazes vigorosos --o que muitas vezes causava a minha mãe amargas preo- cupações-- tornaram-me absolutamente nada amigo de estar em casa. Interrogava-me raramente sobre a minha vocação; em todo o caso, as minhas inclinações em nada me arrastavam para uma existência seme- lhante à de meu pai. Creio que o meu talento de orador começava então a formar-se nos discursos mais ou menos persuasivos que eu fazia aos meus camaradas: tornara-me um pequeno condutor, ele próprio difícil de conduzir, aliás bom aluno, trabalhando com faci- lidade. Nos meus momentos livres, seguia cursos de canto no cabido dos cónegos de Lambach e encontrava nisso ocasião frequente para me embriagar com a DomDa magnífica das festas religiosas. Que coisa mais natural que a situação do meu reverendo abade me apare- cesse, então, como um ideal digno dos maiores esforços, com todo o prestígio de que se revestira outrora AOS olhos de meu pai o humilde padre da sua aldeia e Foi, pelo menos, o CaSO. Mas como as lutas de juventude de meu pai nunca o tinham feito apreciar os talentos de orador ao ponto de extrair disso conclusões favoráveis sobre o futuro do seu rebento, não podia naturalmente compreender semelhantes pensamentos de juventude. Considerava, preocupado, esta divergências da natureza. De facto, esta vocação não tardou a perder-se e a dar lugar a esperanças que correspondiam melhor ao meu temperamento. Revol- vendo a biblioteca paterna, descobri diversos livros militares, entre os quais uma edição popular da guerra franco-alemã de 1870-1871. Havia ali dois volumes dum jornal ilustrado desses anos. Torna- ram-se a minha leitura favorita. Em pouco tempo, a grande guerra heróica passou para o primeiro plano das minhas preocupações morais. Desde então, rebusquei sempre mais tudo o que se relacionasse com a guerra e com a condição militar. Tratava-se, para mim, de uma revelação importante. Pois, pela primeira vez, de maneira certamente ainda confusa, determinadas ques- tões atormentaram-me o espírito: há então uma diferença, e qual, entre os Alemães que travaram estes combates e os outros? Porque é que meu pai e os outros austríacos não participaram neles? Não somos nós semelhantes aos outros Alemães? Não seguimos o mesmo caminho? Eu examinava e tornava a examinar estes problemas no meu cérebro de criança e das respostas dadas às perguntas que eu formu- lava com prudência, tive de concluir, com uma secreta Inveja no coração, que nem todos os Alemães tinham a felicidade de pertencer ao Estado de Bismarck. Eu não o podia compreender. Foi-me necessário estudar Dos meus modos e mais ainda do meu temperamento, meu pai concluiu que eu não possuia qualquer aptidão para estudos clássicos no liceu. A Realschule parecia-lhe convir-me melhor. Foi confirmado nesta maneira de ver pela minha evidente facilidade para o desenho, matéria que, nos liceus austríacos, era em seu entender demasiado descurada. Talvez também a recordação da sua vida de trabalho o afastasse das humanidades, sem Interesse prático aos seus olhos. No fundo, ele ancorara-se à ideia de que, naturalmente, seu filho também seria funcionário como ele. A sua juventude penosa levava-o muito naturalmente a dar um valor tanto mais excessivo aos seus êxitos tardios, quanto eles eram o fruto exclusivo da sua aplicação ardente e da sua capacidade de trabalho, Orgulhoso por ter vencido na vida por esforço próprio, idealizava para mim uma situação semelhante à sua e, se possível, superior; insistia nisso tanto mais quanto mais se desvelara em facilitar ele próprio a carreira do filho. 17 Não concebia que eu pudesse recusar o que tinha sido outrora toda a sua vida. A decisão de meu pai era, portanto, simples, firme e natural aos seus próprios olhos. Um homem deste carácter, que a dura luta pela existência tornara dominador, não admitia deixar que crianças inexperientes e irresponsáveis decidissem da sua própria carreira . Teria considerado que isso era, do ponto devista do futuro do seu filho, um repreensível e nefasto desfalecimento da autoridade e da responsabilidade paternas, incompatível com a sua concepção do dever . As coisas deveriam, porém, seguir outro curso. Pela primeira vez na minha vida--tinha onze anos--colo- quei-me na oposição. Por tenaz que pudesse ser meu pai para levar a cabo os planos que tinha concebido, o filho não era menos obsti- nado em recusar uma ideia de que não esperava nada de bom. Eu não queria ser funcionário. Nem discursos, nem severas objecções puderam vencer esta resis- tência. Eu não seria funcionário, não e não Em vão procurava meu pai despertar em mim esta vocação mediante descrições da sua pró- pria vida: elas iam contra o seu objecto. Eu tinha náuseas ao pensar que poderia um dia achar-me prisioneiro num escritório; que não seria senhor do meu tempo, mas antes seria obrigado a passar toda a minha vida a preencher impressos. Calcule-se também os pensamentos que esta perspectiva podia despertar num jovem que era verdadeiramente tudo menos um «bom» rapaz no sentido corrente da palavra, O ensino pouco absorvente da escola permitia-me a tal ponto tempos livres que eu vivia mais frequentemente ao sol do que fechado num quarto. Quando hoje os meus adversários políticos esquadrinham a minha vida até aos seus primeiros anos com uma afectuosa atenção, para poderem, com alguma satisfação, denunciar quanto este Hitler já fazia disparates na sua juventude, agradeço ao Céu por assim me proporcionar a ocasião de reviver esses tempos bem-aventurados. Prados e bosques eram então o terreno onde se punha termo a cada diferendo. A frequentação da Realschule em nada modificou o meu emprego do tempo. Mas eu ia ter de sustentar um outro combate. Tanto quanto o projecto paterno de fazer de mim um funcionário chocava simplesmente com a minha repulsa de principio por essa carreira, o conflito era suportável. Eu podia dissimular um pouco as minhas ideias pessoais, e evitar a contradição incessante. A minha firme resolução de nunca me tornar funcionário--e ela era inabalável --bastava para me tranqullizar completamente. Mas a questão foi mais delicada quando o projecto de meu pai se chocou com um outro da minha parte. Tinha eu então doze anos. Como é que isso aconteceu? Já não me recordo; mas, um dia, tornou-se-me evidente que eu devia tornar-me pintor, artista-pintor. O meu talento de desenhador era indis- cutível; fora mesmo uma das causas que tinham levado meu pai a enviar-me para a Realschule, mas ele nunca pensara em fazer aper- feiçoar os meus dons ao ponto de me permitir abraçar esta profissão; pelo contrário. Quando pela primeira vez, depois duma nova recusa da minha parte em adoptar a sua ideia favorita, meu pai me perguntou o que finalmente eu queria fazer, a minha resolução já formada ditou-me uma resposta imediata: ele quase que emudeceu. «Pintor Artista-pintor» Ele duvidou do meu bom senso, julgou ter ouvido mal ou com- preendido mal. Mas quando as minhas explicações completas a esse respeito lhe mostraram o carácter sério do meu projecto, eie opos-se- -lhe tão resolutamente quanto o podia fazer. A sua decisão foi exces- sivamente simples e não deu lugar a nenhuma consideração a res- peito das minhas disposições reais. «Artista-pintor, não, nunca» Mas como seu filho tinha herdado, ao mesmo tempo que as suas outras qualidades, uma teimosia idên- tica à sua, a minha resposta em sentido contrário foi igualmente enérgica. Dos dois lados, ficou-se por ali. O pai não abandonou o seu «nunca», e eu confirmei o meu «apesar de tudo». Na verdade, este conflito não tinha consequências muito diver- tidas. O digno homem vivia amargurado e eu também, tal era o amor que lhe tinha. Meu pai proibiu-me qualquer esperança de alguma vez aprender pintura. Eu dei um passo mais e declarei, pela minha parte, que não queria estudar mais. Muito naturalmente, com semelhantes declarações, fiquei em posição de Inferioridade e o digno homem dispôs-se a exercer doravante a sua autoridade sem mais considera- ções: vendo isto, encerrei-me num silêncio prudente, mas pus a minha ameaça em execução. Pensava eu que quando meu pai veri- ficasse a ausência de qualquer progresso na Realschule me deixaria, a bem ou a mal, correr para a felicidade com que eu sonhava. Não sei se este cálculo teria resultado. O que é certo, era o meu visível insucesso na escola. Eu estudava o que me agradava, sobretudo o que julgava que me pudesse servir mais tarde como pintor. Sabotava completamente o que me parecia sem importância a este respeito, ou o que não me interessava. As minhas notas dessa época ocupava sempre os extremos da escala, consoante o assunto e o Interesse que eu lhe dedicava. Ao lado de muito bem e excelente, eu ostentava tambÉm medíocres ou mesmo Insuficiente, Era em geo- grafia, e mais ainda em história universal, que eu mais sobressaía. Eram essas as minhas duas matérias favoritas nas quais eu dominava a classe. Quando, presentemente, após tantos anos, faço o balanço desta época, dois factos significativos me aparecem. 1.º--Tornei-me nacionalista. 2.º--Aprendi a compreender e a penetrar o verdadeiro sentido da história, A antiga Austria era um Estado com nacionalidades múltiplas. E era então muito difícil a um súbdito do Reich aperceber-se bem do que podia ser a vida quotidiana de cada um num semelhante Estado. Depois da guerra franco-alemã, magnífica marcha triunfal de heróicos exércitos, os Alemães tinham vindo cada vez mais a desinteres- sar-se mais da Alemanha que ficava para lá das suas fronteiras e, em larga medida, não se haviam dignado apreciar-lhe o valor, ou não tinham sido capazes de o fazer. No que toca aos Austríacos alemães em particular, confundia-se demasiado facilmente uma dinastia no seu declínio e um povo funda- mentalmente são. Foi no entanto preciso que o Alemão de Austria fosse da melhor das raças para ter marcado com o seu cunho um Estado de cinquenta e dois milhões de habitantes, e isso a um ponto tal que mesmo na Alemanha se podia pensar--sem razão, aliás --que a Austria era um Estado alemão. Erro pesado de consequências, mas magnífico testemunho pelos dez milhões de Alemães da Marca do Leste. Poucos Alemães do Reich tinham ideia de que era preciso lutar constante- mente na Austria pelo triunfo da língua alemã, das escolas alemãs e, muito simplesmente, para all ser alemão. Somente hoje que esta triste necessidade é a de vásTos milhões de nossos irmãos que, fora do Reich, sob uma dominação estran- geira, sonham com a pátria comum, voltam para ela as suas aspi- rações, tentam obter ao menos o direito sagrado à língua materna, é num círculo mais extenso que se compreende o que significa: dever combater pela sua raça. Talvez também alguns se dignem medir a grandeza do Douls- chtum 1 da Marca do Leste do Reich que, reduzida exclusivamente aos seus meios, o cobriu em primeiro lugar em direcção a Leste durante séculos, e depois, através duma série extenuante de escara- muças de pormenor, se opõs ao recuo das fronteiras da língua alemã; e isso numa época em que o Reich se interessava, em boa verdade, por colónias, mas não, diante das suas portas, pela sua carne e o seu sangue. Como por toda a parte e sempre, como em cada combate, na rivalidade das lÍnguas da antiga Austria, houve três clãs: os comba- tentes, os sábios e os traidores. Assim acontecia desde a escola, pois é notável que a luta das línguas se desencadeie sobretudo nesse lugar onde se formam as gerações vindouras. Trata-se de conquistar a criança e é aela que se deve dirigir o primeiro apelo do combate: <Criança alemã, não esqueças que és um Alemão. Rapariguinha, pensa que deves ser um dia uma mãe alemã. Todo aquele que conhecer a alma da juventude compreenderá que é ela que pode escutar com mais alegria um tal apelo. Sob mil formas, ela conduzirá a seguir a luta à sua maneira e com as suas armas. Recusará cantar canções estrangeiras; exaltará tanto mais as glórias alemãs quanto delas a quiserem afastar; economizará nas suas guloseimas o tesouro de guerra dos grandes; será rebelde e muito circunspecta contra os professores estrangeiros; ostentará as insígnias interditas do seu próprio povo, feliz por ser punida ou mesmo espan- cada por esta causa. Ela é, portanto, em pequeno, a Imagem fiel dos grandes, muitas vezes mesmo com uma inspiração melhor e mais bem dirigida. Assim, também eu tive ocasião de participar, relativamente Jovem, na luta entre as nacionalidades da velha Austria. Fizeram-se pedi- tórios a favor da Marca do Sul e da Liga Escolar, e, com o espírito entusiasmado pelas centáureas azuis e as cores .negro-vermelho- -ouro, soltávamos sucessivos Heil; em vez do hino Imperial, entoávamos, contra advertências-punições, o nosso querido Deutschlond ueber alles, Os Jovens eram assim educados politicamente numa época em que os nacionais dum pretenso Estado nacional pouco mais conheciam da sua raça que a sua língua. Escusado será dizer que nunca fil um tibio. Não tardei a tornar-me um «nacional-alemão» fanático, o que era aliás bastante diferente do partido que ostenta hoJe este nome. Esta evolução realizou em mim progressos muito rápidos, e, desde os quinze anos, já eu conseguira separar patriotismo dinástico e nacio- nalismo de raça, com uma inclinação muito nítida para este último. Aquele que nunca se deu ao trabalho de estudar a situação inte- rior da monarquia dos Habsburgos tem dificuldade em compreender uma tal preferência. Ela só podia nascer neste Estado do estudo na escola da história universal, pois existe verdadeiramente uma história parti- cular da Austria e o destino deste Estado está a tal ponto ligado à vida e ao desenvolvimento de tudo o que é alemão que se não pode imaginar uma separação da história em história alemã e história austríaca. Quando a Alemanha começou a dividir-se em duas poten- cias, foi a história da Alemanha que se dividiu. Os emblemas conservados em Viena da grandeza imperial passada pareciam mais agir por um prestígio maravilhoso do que como garantia duma comunidade eterna. Nos dias da derrocada dos Habsburgos, elevava-se dos Austríacos alemães um apelo instintivo no sentido da sua reunião à terra materna. Este apelo unânime, que traduzia o sentimento profundo que dormitava no coração de cada um, só é explicável pela educação histórica, fonte jamais estancada, que mesmo nos dias de esquecimento, para além do bem-estar do momento, faz com que a voz do passado fale baixinho dum novo futuro. Hoje ainda, o ensino da história mundial nas escolas primárias superiores é muitas vezes mau. Poucos professores compreendem que a finalidade do ensino da história não é aprender datas e factos; que não tem interesse que a criança saiba exactamente a data duma batalha ou do nascimento dum marechal, ou da coroação dum monarca. A questão não é essa. Estudar a história, é procurar as causas determinantes dos acon- tecimentos históricos. A arte de ler e de estudar consiste no seguinte: conservar o essencial, esquecer o acessório, Toda a minha vida foi talvez determinada pelo facto de eu ter tido um professor de história que compreendia, como muito poucos, o interesse primordial a atribuir a estas considerações quanto ao ensino e os exames: o Dr. Leopold Poetsch, da Realschule de Linz, personificava tudo isso de maneira ideal. Era um digno velho de aspecto resoluto, mas cheio de bondade, A sua veia fascinante subjugava-nos e arrebatava-nos ao mesmo tempo. Hoje ainda, não é sem emoção que evoco este homem grisalho que tantas vezes, no calor da sua exposição, nos fazia esquecer o presente, nos transportava magicamente para o passado e emprestava uma realidade viva a qualquer recordação histórica ressequida que ele arrancava às brumas dos séculos. Permanecíamos sentados, o espirito iluminado, como- vidos até às lágrimas. Com maior felicidade ainda, este professor sabia não só escla- recer o passado pelo presente, mas também tirar do passado ensi- namentos para o presente. Melhor do que ninguém, ele explicava os problemas de actualidade que nos mantinham atuantes. Tirava do nosso pequeno fanatismo nacional meios de educação; apelava muitas vezes para o nosso sentimento nacional da honra para restabelecer, mais depressa do que por qualquer outro meio, a ordem nas nossas fileiras . Esse professor fez da história o## punho da deusa do direito eterno e do inexorável castigo que abateu o inimigo mais mortal da Alemanha austríaca, o arquiduque Francisco Fernando. Foi varado por balas que tinha ajudado a fundir. Não protegia ele, no entanto, essa eslavização da Austria que se mani- festava de cima para baixo. Os encargos do povo alemão eram enormes, os sacrifícios em dinheiro e sangue que se lhe exigia eram espantosos, e até os mais cegos viam a sua inutilidade. O mais doloroso para nós era ainda constatar que a política dos Habsburgos a nosso respeito era moral- mente coberta pela sua aliança com a Alemanha; esta sancionava, assim, de algum modo, a lenta exterminação do germanismo na velha monarquia. Procurando hipócritamente dar no exterior a impres- são de que a Austria continuava a ser um Estado alemão, a casa imperial alimentava contra si sentimentos de revolta, de desprezo e de ódio. Só os dirigentes do Reich não se apercebiam de nada disto. Como que atacados de cegueira, caminhavam ao lado dum cadáver e julgavam descobrir, nos sinais de decomposição, os indícios duma ressurreição. Esta infeliz aliança do jovem Reich e do ilusório Estado aus- tríaco trazia em si o germe da guerra mundial e da derrota. Terei ainda de abordar a fundo este problema ao longo do livro; que me baste precisar que, desde a minha primeira juventude, eu tinha chegado a algumas ideias essenciais nas quais, de futuro, não mais cessaria de me firmar, a saber: Que a salvação do germanismo tinha como condição o aniqui- lamento da Austria. Em seguida, que não existe qualquer relação entre o sentimento nacional e a fidelidade a uma dinastia. E, sobretudo, que a Casa dos Habsburgos faria a desgraça da nação alemã. Desde essa época, eu tinha chegado em conhecimento de causa aos seguintes sentimentos: ardente amor da minha pátria, a Austria alemã; ódio profundo ao Estado austríaco. De futuro, graças a estas concepções, que eu ficava a dever à escola, a história universal facilitou sempre mais a minha com- preensão da acção histórica no presente, isto é, da política, não terei, portanto que aprendê-la, é ela que me deverá instruir. Já precocemente revolucionário em política, não tardei a sê-lo também em matéria de arte. A sede administrativa da Alta Austria possuia então um teatro que, em suma, não era mau. Ali se representava com bastante fre- quência. Aos doze anos, ouvi ali pela primeira vez Guilhermo Tell e, alguns meses mais tarde, a primeira ópera da minha vida, Lohengrin. Fui imediatamente conquistado. O meu entusiasmo juvenil pelo mestre de Bayreuth não conheceu limites. Sempre, de então para cá, as suas obras me atraíram de novo, e é uma sorte para mim que esta modes- tas interpretações numa pequena cidadede província me tenham deixado a possibilidade de ouvir mais tarde outras muito superiores. Mas tudo isso--sobretudo após a dolorosa passagem da idade ingrata --fortificou e minha aversão profunda pela carreira a que meu pai me destinava. Cada vez mais, persuadi-me de que nunca encon- traria a felicidade na pele dum funcionário. E a minha aptidão para o desenho, confirmada na Realschule, incitava-me a perseverar na minha resolução. Súplicas e ameaças já nada puderam alterar. Eu queria tornar-me pintor e tudo menos funcionário. Com a idade, fui, aliás, interessando-me sempre mais pela arqui- tectura. Considerava-a então um complemento natural da arte do pintor, e regozijava-me interiormente pelo facto de o quadro da minha activi- dade artística se ter desse modo ampliado. Não desconfiava de que, um dia, os acontecimentos tomariam um curso bem diferente. A questão da minha profissão Iria ser decidida mais depressa do que eu esperava. Tinha eu treze anos quando perdi subitamente o meu pai. Um ataque de apoplexia prostrou-o em pleno vigor e terminou sem sofri- mento a sua carreira terrestre, mergulhando-nos a todos na mais profunda dor. O seu mais caro deseJo fora ajudar o filho a fazer a sua carreira para lhe poupar as provações do seu próprio começo de vida. Ele deve ter compreendido que o não tinha realizado. Mas, mesmo muito inconscientemente, ele havia lançado em mim os germes dum futuro que nem um nem outro suspeitávamos. Aparentemente nada mudou a principio. Minha mãe considerou-se obrigada a prosseguir a minha educação segundo os deseJos de meu pai, isto é, tendo em vista a carreira de funcionário. Eu próprio estava, mais do que nunca, decidido a não me tornar tal sob nenhum pretexto. O programa e os métodos da escola primária superior interessavam-me cada vez menos, à medida que mais se afastavam do meu ideal. Uma doença de algumas semanas veio subitamente resolver a questão do meu futuro e pôr fim a todos os conflitos familiares. Eu tinha os pulmões gravemente atingidos. O médico aconselhou minha mãe a não me encerrar mais tarde, fosse sob que pretexto fosse, num escritório e, em particular, a interromper durante um ano pelo menos os meus estudos na Reals- chule. O objecto dos meus desejos secretos, depois das minhas lutas perseverantes, achava-se, assim, quase alcançado duma só vez. Ainda debaixo da impressão causada pela minha doença, minha mãe autorizou-me a trocar a Realschule pela Academia. Foram dias felizes, que me pareceram quase um sonho, e que, aliás, não deveriam passar dum sonho. Dois anos depois, a morte de minha mãe interrompia brutalmente estes belos projectos. Ela sucumbiu a uma longa e dolorosa doença que desde o princípio não deixou senão uma fraca esperança de cura. O golpe atingiu-me, porém, duma maneira terrível. Eu tinha respeitado meu pai, mas amara a minha mãe. As duras realidades da existência obrigaram-me a tomar resolu- ções rápidas. Os magros recursos da família tinham sido pouco e pouco esgotados pela grave doença de minha mãe; a pensão de órfão que me era concedida não me bastava para viver, e era-me preciso, fosse de que maneira fosse, ganhar eu próprio o meu pão. Parti para Viena com uma mala de mão contendo fatos e roupa branca. Habitava-me o coração uma vontade inabalável. Meu pai tinha conseguido, cinquenta anos antes, forçar o seu destino. Eu faria como ele. Tornar-me-ia alguém,--mas não um funcionário 25 Anos de estudos e de sofrimentos em Viena Quando minha mãe morreu, já eu tivera alguma luz sobre o meu futuro. Durante a sua última doença, eu tinha-me deslocado a Viena para fazer o exame de admissão à Academia de Belas-Artes. Munido dum espesso maço de desenhos, metera-me a caminho persuadido de que seria admitido sem dificuldade. Tinha sido de longe o melhor dese- nhador da Realschule, e desde então as minhas capacidades haviam-se desenvolvido extraordinariamente, de modo que, bastante satisfeito comigo próprio, acalentava as melhores esperanças. Uma preocupação, no entanto: parecia-me que eu era ainda mais dotado para o desenho do que para a pintura, sobretudo para o desenho de arquitectura. E também o meu gosto pela própria arqui- tectura não cessava de aumentar. Esta evolução precisou-se no decurso duma estada de quinze dias que fiz em Viena apenas com dezasseis anos. Eu tinha ido estudar a Galeria de pintura do Hofmuseum, mas só tive olhos para o próprio edifício. Todos os dias, de manhã até à noite, corria duma curiosidade para outra, mas eram sobretudo os edifícios que me cativavam. Permanecia horas diante da Ópera, horas diante do parlamento; toda a Ringstrasse me pareceu um milagre das mil e uma noites. Encontrava-me, portanto, pela segunda vez nesta bela cidade e aguardava, ardendo em impaciência, mas cheio duma orgulhosa con- fiança no êxito, o meu exame de admissão. Estava tão convencido do êxito que o anúncio do meu desaire me colheu de surpresa como um trovão num dia claro. Tive, no entanto, de lhe dar crédito. Quando me fiz apresentar ao reitor e lhe solicitei a explicação da minha não admissão à secção de pintura da Academia, ele afirmou-me que os desenhos que eu tinha apresentado revelavam indiscutivelmente a minha falta de disposições para a pintura, mas deixavam aparecer, em contrapartida, possibilidades no domínio da arquitectura. Estava fora de questão para mim a frequência da seCção de pintura da Academia, mas apenas a da secção de arquitectura. Não se podia à primeira vista admitir que eu nunca tivesse ainda frequentado uma tal escola, nem recebido um ensinamento correspondente. Saí completamente abatido do Palácio Hansen sobre a Schiller Platz, duvidando de mim próprio pela primeira vez na minha vida. Pois o que eu acabava de ouvir dizer sobre as minhas inclinações revelava-me, de súbito, como um intempestivo relãmpa,go, uma discor- dância de que eu já sofria há muito tempo sem me poder dar conta exactamente da sua natureza e das suas causas. Então, daí a poucos dias, vi-me arquitecto. Em boa verdade, o caminho estava semeado de dificuldades, porque aquilo que eu até aqui tinha descurado por desafio na Reals- chule ia agora vingar-se amargamente. Antes dos cursos da escola de arquitectura da Academia, era preciso seguir os do curso técnico de construção e a admissão a este último necessitava de estudos com- pletos numa escola primária superior. Tudo isto me faltava comple- tamente. Tudo parecia indicar que a realização do meu sonho fosse impossível. Quando, após a morte de minha mãe, voltei a Viena pela terceira vez--desta vez por vários anos--, tinha recuperado calma e decisão. Readquirira coragem e fixara-me definitivamente o obJectivo a atingir. Queria tornar-me arquitecto e as dificuldades deparadas eram daquelas que se vencem e não daquelas diante das quais se capitula. E eu queria vencê-las, tendo sempre diante dos olhos a imagem de meu pai, modesto oficial de sapateiro de aldeia que veio a ser funcionário. A minha base de partida era melhor e o combate tanto mais fácil; no que me pareceu então uma dureza do destino, vejo hoje a sabedoria da Providência. A deusa da necessidade tomou-me nos braços e ameaçou muitas vezes destruir-me: a minha vontade cresceu, assim, com o obstáculo e finalmente triunfou. Estou grato a esta época por me ter tornado duro e capaz de ser duro. Mais ainda, estou-lhe reconhecido por me ter afastado do nada da vida fácil, por ter arrancado a um ninho delicado uma criança demasiado acarinhada, por lhe ter dado a preocupação por nova mãe, por te-la lançado, contra a suavontade, no mundo da miséria e da indigência e por lhe ter feito, assim, conhecer aqueles por quem ela devia mais tarde combater. Foi nessa época que os meus olhos se abriram para dois perigos que eu mal conhecia de nome e cuja assustadora importância para a existência do povo alemão eu estava longe de suspeitar: o faxismo e o judaísmo, Viena, cujo nome evoca para tantas pessoas alegria e despreo- cupação, lugar de festas de felizes mortais, não passa desgraçadamente para mim da recordação viva do mais triste período da minha existência. Hoje ainda, o seu nome apenas desperta em mim a lembrança penosa de cinco anos de indigência. Cinco anos durante os quais tive, primeiro como servente de pedreiro, depois como pequeno pintor, de ganhar o meu sustento, magro sustento, que nem mesmo podia saciar a minha fome crónica. Pois a fome era então o guardião fiel que nunca me abandonou, a companheira que tudo partilhou comigo. Cada livro que eu comprei teve a sua participação; uma representação na ópera valia-me a sua companhia no dia seguinte: era uma batalha continua com a minha amiga implacável. No entanto, aprendi então como nunca o fizera antes. Fora da minha arquitectura, fora das raras visitas à ópera, fruto dos meus jejuns, não tinha outra alegria senão os livros, em número sempre crescente. Lia então enormemente e a fundo: o tempo livre que me restava depois do meu trabalho era exclusivamente consagrado ao estudo. Em alguns anos, constituí-me assim conhecimentos que ainda hoje me servem. Acrescentarei que foi nessa época que ganharam forma em mim as ideias e as teorias gerais que se tornaram a base inabalável da minha acção de então. Depois, poucas coisas tive de acrescentar a isso, nada que alterar. Pelo contrário. Estou hoje firmemente convencido de que é em geral na juven- tude que aparece no homem o essencial dos seus pensamentos cria- dores. Distingo entre a sabedoria do velho, que comporta uma maior profundidade e uma previdência resultante da experiência duma longa vida, e o génio criador da juventude que, com uma fecundidade ines- gotável, distribui pensamentos e ideias sem poder imediatamente valo- rizá-los devido à sua mesma abundância. Ela fornece os materiais e os planos de futuro aonde irá beber a idade madura, na medida em que a pretensa sabedoria dos anos não tiver sufocado o génio da Juventude. A vida que eu até então tinha levado em casa era sensivelmente a de todos os jovens da minha idade: ignorava a preocupação do dia de amanhã e não existia para mim problema social. O círculo da minha juventude compunha-se de pequeno-burgueses, ou seja, um mundo que tinha muito poucas relações com o dos verdadeiros trabalhadores manuais. Pois, por surpreendente que isso possa parecer à primeira vista, o fosso que separa esta classe econo- micamente pouco favorecida da dos trabalhadores manuais é muitas vezes mais profundo do que se pensa. Existe quase inimizade--e a razão disso está em que as pessoas que se elevaram de fresca data acima do nível dos trabalhadores manuais receiam tornar a cair num antigo meio que desprezam um pouco, ou pelo menos parecer ainda fazer parte dele. Acrescente-se a isso tudo o que há de repelente na recordação da grosseria das relações com essas classes baixas e na sua completa ausência de cultura; para as pessoas de condição mesmo modesta que tenham uma vez ultrapassado esse nível social, é uma obrigação insuportável o recair nele por alguns instantes. Verifica-se igualmente que, muitas vezes, as pessoas dum nível social elevado descem até aos mais humildes dos seus concidadãos com menos prevenção que os novos-ricos. Chamo de novo-rico a todo aquele que se elevou pelos seus próprios meios duma situação dada a uma situação superior. A esse, o duro combate que travou faz perder muitas vezes toda a sensibilidade e toda a piedade pelos desgraçados que ficaram para trás. Deste ponto de vista, o destino favoreceu-me. Obrigado a regres- sar ao mundo de miséria e de Insegurança material que meu pai Já conhecera, perdi os antolhos da minha educação demasiado estreita de pequeno-burguês. Aprendi, então, a conhecer os homens e a distinguir entre uma aparência insignificante ou maneiras brutais, e a sua verdadeira natureza. No começo do século, Viena era já uma cidade cheia de iniqui- dades sociais. A riqueza e a indigência vizinhavam ali sem transição. No centro e nos bairros contíguos, sentia-se bater o pulso dum império de cin- quenta e dois milhões de habitantes, adornado com todo o encanto das suas nacionalidades múltiplas. Uma corte magnífica atraía a si, como um imfi, a riqueza e a inteligência do resto do Estado. Acres- cente-se a isso os efeitos da centralização sistemática da monarquia dos Habsburgos. Esta centralização impunha-se para manter solidamente ligados povos tão dissemelhantes; mas tinha como consequência uma con- centração extraordinária das altas, das altíssimas autoridades na capital do Império e residência do Imperador. Viena não era apenas o centro político e intelectual da velha monarquia danubiana, mas também o centro económico do país. O exército dos militares de elevada patente, dos funcionários, dos artistas e dos intelectuais, opunha-se ao exército ainda mais nume- roso dos trabalhadores. Face à riqueza da aristocracia e do comércio, ostentava-se a mais complete indigência. Diante dos palácios da Rinqs- trasse, vegetavam milhares de desempregados, e por baixo deste vio triumpholis da antiga Austria, na obscuridade da lama dos seus esgotos, habitavam os desalojados. Em nenhuma cidade alemã podia estudar-se melhor a questão social do que em Viena; mas que ninguém tenha ilusões. Este estudo não pode ser feito a partir de cima. Todo aquele que se não tenha visto ele próprio reduzido a uma semelhante miséria nunca a conhe- cerá. Em qualquer outro caso, tudo o que existirá nele será tagarelice superficial ou sentimentalidade falsa--ambas igualmente preJudiciais e insusceptíveis de atingir o coração do problema. Não sei o que será mais nefasto, se a indiferença que demonstram todos os dias a maioria dos favorecidos da sorte e mesmo dos novos-ricos em face das misérias sociais, se a condescendência arrogante e tantas vezes desas- trada, mas sempre tão cheia de graça, de certas elegantes que se gabam de «ir até ao povo». Estas pessoas enganam-se tanto mais que, com o seu espírito desprovido de instinto, se limitam a tentar compreender por alto. Surpreendem-se, depois, das opiniões que professam não terem qualquer êxito, ou de serem rejeitadas com indigna- ção; facilmente se vê nisso uma prova da ingratidão do povo. Não constitui verdade muito agradável para esse género de cérebros que uma actividade social nada tenha a ver com tudo isso, sobretudo que ela não possa pretender a qualquer reconhecimento, uma vez que não tem de distribuir favores, mas sim de restabelecer direitos. Não corri o risco de estudar dessa maneira a questão social. Alistando-me no seu exército maldito, a miséria pareceu bem menos convidar-me a «estudá-lo» de perto do que me tomou a mim próprio por sujeito. Não é a ela que cabe o mérito de a cobaia ter sobrevivido à operação. Quando procuro hoje reunir as minhas impressões dessa época, não o consigo fazer completamente. As mais essenciais, muitas vezes aquelas que mais de perto me punham em causa, foram as únicas que sobreviveram no meu espírito. São elas que se encontrará aqui, junta- mente com os ensinamentos que delas retirei então. Nunca me foi muito difícil encontrar trabalho, visto que não era como operárioespecializado, mas como trolha ou trabalhador auxiliar, que eu procurava ganhar o meu pão. Encontrava-me, assim, na mesma situação que aqueles que sacu- diam com os seus pés o pó da Europa animados do designio impla- cável de refazer a sua existência num mundo novo e de conquistar uma nova pátria. Libertos de todas as considerações paralisantes de dever e de posição, de companhia e de tradição, eles agarram qualquer ganho que se ofereça e fazem todos os trabalhos, penetrados da ideia de que um trabalho honesto nunca diminui, seja ele qual for. Da mesma forma, eu tinha-me decidido a saltar a pés juntos nesse mundo novo para mim e a triunfar. Não tardei a dar-me conta de que era menos difícil encontrar um trabalho qualquer do que conservá-lo, A Insegurança do pão quotidiano apareceu-me como um dos lados mais sombrios desta vida nova. Bem sei que o trabalhador especializado não é posto na rua tão frequentemente quanto o operário não especializado; no entanto, ele não pode contar com nenhuma certeza. Se se arrisca menos a ter fome por falta de trabalho, resta-lhe recear o lock out ou a greve. A Insegurança dos salários quotidianos é uma das mais graves chagas da economia social. O jovem cultivador dirige-se para a cidade, atraído por um tra- balho que lhe dizem ser mais fácil--que o é talvez realmente--e cuja duração é mais breve. É sobretudo tentado pela luz fascinante que so resplandece nas grandes cidades. Habituado a uma certa segurança de ganho, tem o hábito de só largar o seu antigo emprego quando tem ao menos um novo em vista. Finalmente, a falta de trabalhadores agrícolas é tão grande que nos campos um longo desèm- prego é inverosímil. É um erro acreditar à priori que o jovem que se dirige para a cidade seja talhado numa madeira pior do que aquele que continua a trabalhar a terra. Pelo contrário: a experiência mostra que são as naturezas mais sãs e vigorosas que mais facilmente emi- gram. Por emigrante, não entendo apenas aquele que parte para a América, mas também o jovem criado que se decide a deixar a aldeia natal para se dirigir para a grande cidade desconhecida. Também ele está preparado para correr os riscos dum destino incerto. O mais das vezes, segue para a cidade com algum dinheiro e não desanima logo aos primeiros dias, se por desgraça não encontrar imediatamente trabalho. Mas se o lugar encontrado for perdido ao cabo de pouco tempo, é mais grave: encontrar uma nova colocação, sobretudo no Inverno, é muito difícil, senão impossível. A coisa é ainda suportável durante as primeiras semanas. Ele recebe o subsídio de desemprego das caixas do sindicato e, pior ou melhor, consegue tirar-se de apuros. Todavia, uma vez gastos o último dinheiro e o último centimo, quando a caixa de desemprego, com o andar do tempo, cessa de pagar o socorro, chega a grande miséria. Ele vegeta agora por aqui e por ali, faminto: vende ou empenha tudo o que lhe resta; chega assim, na sua maneira de vestir e nas suas companhias, a uma completa degra- dação do corpo e do espirito. Que ele já não disponha agora de alojamento, e que isso aconteça no Inverno, como é muitas vezes o caso, e a sua miséria é completa. Encontra, finalmente, algum trabalho. Mas a história recomeça. Uma segunda vez, será seme- lhante. Uma terceira vez, será pior, até que ele aprenda pouco a pouco a suportar com indiferença este destino eternamente incerto. A repe- tição criou o hábito. Assim, o homem outrora trabalhador relaxa-se em todas as coisas até se converter num simples instrumento nas mãos de gente que nada mais pretende do que ignóbeis lucros. O seu desemprego era- -lhe tão pouco imputável sem razão que, duma só vez, lhe é perfei- tamente indiferente combater por reivindicações económicas ou aniqui- lar os valores do Estado, da sociedade ou da civilização. Torna-se grevista senão com alegria, pelo menos com indiferença. Pude acompanhar este processo em milhares de exemplos. E quanto mais os observava, mais viva era a minha reprovação destas cidades com alguns milhões de habitantes, que atraem tão avida- mente os homens para os tratar assim depois de maneira tão horrível. Quando chegam. pertencem ainda ao seu povo; se perma- necem, estão perdidos para sempre. Também eu calcorreei as ruas da grande cidade; experimentei todos os golpes da fortuna pu-de julgar-lhes os efeitos. Outra coisa: frequentes alternâncias de trabalho e de desemprego, ao mesmo tempo que tornam irregulares as receitas e as despesas necessárias à existência, destroem com o tempo, na maior parte dos operários, qual- quer sentimento de economia e qualquer sentido de organização da sua vida quotidiana. Visivelmente, o corpo habitua-se pouco a pouco à abundância nos períodos bons e à fome nos maus. Sim, a fome suprime qualquer projecto duma organização melhor a realizar nas épocas em que o ganho será mais fácil. Ela faz dançar, diante daquele que tortura, numa persistente miragem, as imagens duma «boa vida» fácil; ela empresta a este sonho atractivos tais que ele se converte num desejo doentio que será preciso satisfazer a todo o preço, desde que a féria o permita, por pouco que seja. O hòmem que mal acaba de encontrar trabalho perde então todo o bom senso e qualquer mode- ração, e lança-se numa vida larga sem olhar ao dia de amanha. Em vez de regular inteligentemente o seu modo de vida durante toda a semana, subverte-o por completo. O seu salário dura, a principio, cinco dias em sete, mais tarde apenas três, mais tarde ainda um único dia; por fim, vai-se todo numa noite de festa. E em casa, há muitas vezes mulher e filhos. Acontece que tam- bém eles se deixam ganhar por este género de vida, sobretudo quando o marido é bom para eles, isto é, quando os ama à sua maneira. A féria da semana é gasta em comum, em casa; dura dois ou três dias: bebe-se, come-se, enquanto há dinheiro; depois, suporta-se a fome em comum. A mulher escapa-se então até à vizinhança, compra um pouco a crédito, contrai pequenas dívidas nos lojistas e procura aguentar assim os últimos dias da semana. Ao meio-dia, sentam-se todos em frente duma magra pitança--dando-se por muito felizes se houver alguma coisa que comer--, e espera-se pelo dia da féria. Minam-se planos e, com a barriga vazia, sonha-se com a felicidade que vai voltar. O problema da habitação era ainda pior e a miséria dos aloja- mentos dos operários não especializados de Viena era pavorosa. Ainda hoje estremeço quando penso nesses antros miseráveis, nesses abrigos e alojamentos sobrepovoados, cheios de porcaria e duma repugnante sujidade. Que teria acontecido, que aconteceria se destes infernos de miséria uma vaga de escravos encolerizados se lançasse sobre o resto da humanidade que, numa total inconsciência, deixa correr os acontecimentos, sem mesmo suspeitar que, mais cedo ou mais tarde, o destino, se não for conjurado, trará consigo fatais represálias. Como estou hoje reconhecido à Providência que me fez aprender nesta escola; desta vez, eu não podia desinteressar-me do que me não agradava e fiquei rápida e profundamente esclarecido. Para não desesperar completamente dos homens que então me rodeavam, era-me preciso fazer abstracção dos seus modos e da sua vida, e ter apenas em consideração as razões da sua degradação. Podia, então, suportar esse espectáculo sem esmorecer--já não eram então os homens que sobressaíam de todos esses quadros de des- graça e desespero, de torpeza e depravação, mas os tristes resultados de tristes leis. No entanto, tendo eu próprio muita dificuldade em viver, estava protegido contra capitular em qualquer lamentávelsenti- mentalidade à vista dos produtos, resultado final desse processo de degradação. Não, não era assim que era necessário concebê-lo. E afigurava-se-me que só um duplo caminho podia conduzir à melhoria deste estado de coisas: Estabelecer melhores bases para o nosso desenvolvimento inspi- rando-se num profundo sentimento de responsibilidade social, Aniquilar com uma decisão brutal os rebentos não melhoráveis. A natureza não se interessa tanto pela conservação do ser como pelo crescimento da sua descendência, suporte da espécie. O mesmo se passa na vida. Não há razões para melhorar artificialmente os aspectos maus do presente--melhoria, aliás, praticamente impos- sível--, mas antes para preparar vias mais sãs tendentes ao desen- volvimento futuro do homem acompanhando-o desde o principio. Desde os meus anos de luta em Viena, persuadira-me de que: O fim da actividade social nunca deve ser o de alimentar uma adormecedora prosperidade, mas antes o de evitar estas carências essenciais da nossa vida a económica e cultural que conduzem neces- sariamente à degenerescência do indivíduo, ou que, pelo menos, podem ocasioná-la. A dificuldade de corrigir por todos os meios, mesmo os mais brutais, uma situação social criminosa, nefasta para o Estado, de modo algum provém do facto de se hesitar em relação às causas. A hesitação dos que não adoptam as medidas de salvação que seriam indispensáveis tem origem no seu sentimento muito legítimo de serem eles próprios os responsáveis pela depravasão trágica de toda uma classe. Este sentimento paralisa neles qualquer firme reso- lução de agir; nada mais sabem encarar do que reformas tímidas e ins# É a ver quem mais deplora esta ausência de fierté nacionale e quem denunciará com veemência tais sentimentos. Mas quantos se perguntaram porque é que eles próprios nutrem «melhores sentimentos» Quantos se apercebem de que o seu orgulho muito natural de pertencer a um povo privilegiado se liga, mediante um número infinito de laços, a tudo o que tornou a sua pátria tão grande, em todos os domínios da arte e do espírito Quantos vêem a que ponto o seu orgulho de serem Alemães deriva do seu conhecimento da grandeza da Alemanha Acaso os nossos meios burgueses fazem ideia de que o povo escarnece quase completamente esse orgulho. Não me venham objectar agora que o mesmo se passa em todos os países e que os trabalhadores, apesar de tudo, são ali pela sua pátria. Que isso fosse verdade, não desculparia a nossa atitude negligente. Mas as coisas não se passam assim. O que chamamos, por exemplo, a educação patrioteira (chouvineJ do povo francês não é mais do que a exaltação excessiva da grandeza da França em todos os dominios da cultura ou, como dizem os Franceses, da «civilização». Um jovem francês não é ensinado a aperceber-se objectivamente da realidade das coisas: a sua educação mostra-lhe, com a visão subjectiva que se pode imaginar, tudo o que tem alguma importância para a grandeza do seu país, em matéria de política e de civilização. Uma tal educação deve sempre limitar-se a noções de ordem geral muito importantes. E é necessário que elas sejam gravadas no coração e na memória do povo por uma constante repetição. Entre nós, pelo contrário, ao pecado de omissão, de carácter negativo, acrescenta-se a destruição positiva do pouco que cada um teve a sorte de aprender na escola. Os ratos que envenenam a nóssa política devoram esses restos no coração e na memória dos humildes, supondo que a miséria não se tenha já encarregado de o fazer. Imaginemos, então, o seguinte: Em dois quartos duma cave habita uma família de sete traba- lhadores. Entre as cinco crianças, um garoto de três anos. É a idade em que uma criança toma consciência. As pessoas dotadas conservam até à mais avançada idade recordações dessa época. A exiguidade e o abarrotamento do alojamento são um incómodo permanente; em consequência disso, geram-se discussões. Essas pessoas não vivem juntas, mas estão amontoadas umas em cima das outras. Os mínimos desacordos que se resolvem por si mesmo numa casa espaçosa, ocasionam ali incessantes disputas. Vá lá que ainda se perdoe isso entre crianças: um instante depois, já não pensam mais no assunto. Mas, quando se trata dos pais, os conflitos quotidianos tornam-se muitas vezes grosseiros e brutais a um ponto difícil de imaginar. E os resultados destas lições da realidade fazem-se sentir nas crianças. É preciso conhecer estes meios para saber até onde podem ir a embriaguez, os maus tratos. Um infeliz garoto de seis anos não ignora pormenores que fariam estremecer um adulto. Envenenado moralmente, e fisicamente subalimentado, este pequeno cidadão vai frequentar a escola pública onde mal aprende a ler e a escrever. Está fora de questão o trabalho em casa, onde lhe falam da classe e dos seus professores com a pior das grosserias. Aliás, nenhuma instituição humana é ali respeitada, desde a escola até às mais altas corpora- ções do Estado; religião, moral, nação e sociedade, tudo é arrastado pela lama. Quando o rapazinho deixa a escola aos catorze anos, não se sabe o que domina nele: se uma incrível inépcia em relação a tudo o que seja um conhecimento positivo, se insolência cáustica e imoralidade de pôr os cabelos em pé. Que atitude terá na vida onde vai ingressar este homenzinho para quem nada é sagrado, e que, em compensação, pressente ou conhece todas as baixezas da existência... A criança de treze anos torna-se, aos quinze, um detractor decla- rado de toda e qualquer autoridade. Apenas aprendeu a conhecer a lama e a torpeza, com exclusão de tudo o que lhe poderia ter elevado o espírito. E eis o que vai ser a sua educação viril. Vai imitar os exemplos que recebeu na sua juventude--o do pai. Regressará a casa, sabe Deus quando, espancará ele próprio, para variar, a pobre criatura que foi sua mãe, blasfemará contra Deus e contra o universo até ser acolhido numa casa de correcção qualquer. Aí, receberá o último polimento. E os nossos burgueses muito surpreendidos com o fraco entu- siasmo nacional» desse «jovem cidadão» O mundo burguês vê todos os dias no teatro e no cinema, em maus livros e em jornais imundos, como se lançam baldes cheios de veneno sobre o povo, e admira-se depois com o fraco «porte moral» e com a «indiferença nacional» da massal Como se o écran, a imprensa duvidosa e o resto se aplicassem a vulgarizar o conhecimento da nossa grandeza nacional I Sem falar da educação anterior. .. Aprendi e compreendi bem a fundo um principio de que eu ainda não tinha suspeitado: Transformar um povo em nação pressupõe a criação dum meio social são, plataforma necessária para a educação do indivíduo. Só aquele que tiver aprendido, na família e na escola, a apreciar a gran- deza intelectual, económica e, sobretudo, política do seu pds, poderá sentir--e sentirá--o orgulho de lhe pertencer, Só se luta por aquilo que se ama; só se ama o que se estima: E para estimar, é preciso ao menos conhecer. Acordado o meu interesse pela questão social, comecei a estu- dá-la muito seriamente. Um mundo novo, até então desconhecido, oferecia-se a mim. Em 1909 e 1910, a minha situação tinha-se modificado e eu já não tinha de ganhar a vida como servente de pedreiro. Estabe- lecera-me por conta própria como desenhador e aguarelista. Era um ofício nada lucrativo; ganhava apenas o bastante para viver, mas era interessante tendo em vista a profissão a que eu me destinava. Dora- vante, também, já não me sentia morto de cansaço à noite e incapaz, ao voltar das obras, de lersem que pouco depois caísse em sono- lência. O meu trabalho actual não deixava de estar relacionado com a minha futura profissão e, além disso, eu era senhor do meu tempo e podia reparti-lo melhor do que anteriormente. Pintava por necessidade, e estudava por prazer. Isso permitia-me completar com conhecimentos teóricos indis- pensáveis o que as lições extraídas da realidade me tinham ensinado sobre o problema social. Estudava praticamente todos os livros que me caíam nas mãos relacionados com esse assunto e, além disso, reflectia muito. Creio bem que o meio que me cercava me tomava nessa época por um excêntrico. Como era muito natural, entregava-me, além disso, com paixão à arquitectura. Considerava-a, em pé de igualdade com a música, a rainha das artes. Ocupar-me do seu estudo não era um trabalho, mas uma verdadeira felicidade. Podia ler ou desenhar pela noite dentro 37 sem sentir qualquer fadiga. E fortalecia-se a minha crença de que o meu belo sonho de futuro se realizaria, mesmo que eu tivesse de esperar longos anos. Estava firmemente convencido de que me tor- naria famoso como arquitecto. Em comparação com isso, o grande interesse que eu dedicava à política não me parecia significar grande coisa. Pelo contrário: eu julgava limitar-me a satisfazer uma obrigação elementar de qualquer ser pensante. Todo aquele que não possuísse luzes a esse respeito perdia qualquer direito à crítica, ou ao exercício de um cargo qualquer. Neste domínio ainda, eu lia e estudava muito. Para mim, ler não tinha o mesmo sentido que para a média dos nossos pretensos intelectuais. Conheço pessoas que lêem interminavelmente livro atrás de livro, letra após letra, sem que eu possa no entanto dizer que sejam pessoas «lidas:». Possuem uma enorme acumulação de conhecimentos, mas o seu espirito não sabe nem catalogá-los nem reparti-los. Falta- -lhes a arte de distinguir num livro os valores que deverão ficar para sempre retidos na cabeça e as passagens sem interesse--a não ler, se possível, ou, pelo menos, a não arrastar como um lastro inútil. Ler não é um fim mas, o meio facultado a cada um de preencher o quadro que lhe traçam os seus dons e as suas aptidões. Cada um recebe, assim, os instrumentos e os materiais necessários para o seu ofício, quer estes o ajudem simplesmente a ganhar a vida, quer lhe sirvam para satisfazer aspirações mais elevadas. A segunda finali- dade da leitura deve ser adquirir uma visão de conjunto do mundo em que vivemos. Mas nos dois casos é necessário, não que estas leituras venham ocupar um lugar na série dos capítulos ou dos livros que a memória conserva, mas que venham inserir-se no seu lugar próprio como a pedrinha dum mosaico, e contribuam assim para constituir, no espírito do leitor, uma imagem geral do mundo. Caso contrário, este cria para si próprio uma miscelânia de noções desordenada e sem grande valor, apesar de toda a enfatuação que ela possa inspirar ao seu infeliz proprietário. Pois este está muito seriamente convencido de que é uma pessoa instruída, que com- preende alguma coisa da vida e que possui conhecimentos, quando cada desenvolvimento duma tal instrução o afasta ainda mais das realidades; não lhe resta outra coisa, muitas vezes, senão acabar num sanatório, ou seguir a carreira política. Nunca semelhante cérebro conseguirá extrair do amontoado dos seus conhecimentos aquele que poderá servir num determinado momento; pois este lastro intelectual não foi classificado tendo em vista as necessidades da vida; foi simplesmente empilhado segundo a ordem dos livros lidos e tal como o conteúdo destes foi assimilado. E se as necessidades da vida lhe dessem sempre a ideia duma justa utilização do que ele leu outrora, ainda seria preciso que mencionassem o livro e o número de página, caso contrário o pobre tolo, nem mesmo dispondo duma eternidade de tempo, encontraria o que con- vém. Mas a página não é mencionada, e a cada instante crítico estas pessoas nove vezes avisadas encontram-se no mais terrível dos emba- raços; procuram convulsivamente casos análogos, e, como é Justo, dão sempre de caras com uma falsa receita. Como se poderia de outro modo explicar que os maiores pontr- fices do Governo cometam tantos disparates, apesar de toda a sua ciência? Ou então seria preciso ver neles, não já um deplorável estado patológico, mas a mais vil patifaria. Pelo contrário, aquele que sabe ler discerne instantaneamente num livro, num jornal ou numa brochura, o que merece ser conservado quer em vistas das suas necessidades pessoais, quer como mate- riais de interesse geral. O que ele adquire desse modo incorpora-se na imagem que ele tem já desta ou daquela coisa, ora corrigindo-a, ora completando-a, ora aumentando-lhe a exactidão ou precisando- -lhe o sentido. Que de súbito a vida levante um problema, e a memória daquele que soube ler fornece-lhe imediatamente uma opinião baseada na contribuição de numerosos anos; submete-a à sua razão em função do caso novo de que se trata, e consegue assim escla- recer ou resolver o problema. A leitura só tem sentido e utilidade compreendida desta maneira. Por exemplo, um orador que não forneça à sua razão, sob uma forma idêntica, os elementos que lhe são necessários, é incapaz de defender a sua opinião em face dum contraditor, mesmo que seja ele quem esteja sobejamente dentro da razão. Em qualquer discussão, a memória abandona-o vergonhosamente. Ele não encontra argumentos nem para apoiar o que afirma, nem para confundir o adversário. Enquanto se trata apenas, como no caso do orador, de satisfação pessoal, ainda se admite; mas se o destino fez de semelhante homem, ao mesmo tempo omnisciente e impotente, o chefe dum Estado, o caso torna-se muito mais grave. Desde a minha mocidade que me esforcei por ler bem, no que fui felizmente servido pela minha memória e a minha inteligência. Deste ponto de vista, a minha estada em Viena foi útil e fecunda. As minhas observações quotidianas incitaram-me a estudar incessan- temente os problemas mais diversos. Estando em condições de veri- ficar alternadamente a realidade pela teoria e a teoria pela realidade, não tinha que recear nem a atrofia do espírito em considerações pura- mente teóricas, nem o contentar-me com realidades superficiais. A minha experiência quotidiana foi então determinante em rela- ção a dois assuntos essenciais--além das questões sociais--, e incitou-me ao seu estudo teórico aprofundado. Quem sabe, quando eu tiver aprofundado as teorias e a essência mesma do marxismo, se eu não me tinha então lançado verdadeira- mente de cabeça neste problema? O que eu sabia da social-democracia na minha juventude era insignificante e completamente falso. Era-me agradável que ela combatesse pelo sufrágio universal e secreto, pois a minha razão dizia-me já que isso devia enfraquecer o regime dos Habsburgos, que eu tanto detestava. Estava convencido de que o Estado danubiano, se não sacrificasse o germanismo, não poderia subsistir, mas que, mesmo à custa duma longa eslavização do elemento alemão, ele não obteria nenhuma garantia de vida duradoura, pois não se deve dar valor excessivo à força de coesão que o eslavismo confere a um Estado. Saudava, portanto, com alegria cada movimento susceptível de provocar a derrocada deste Estado inaceitável, que condenava à morte o germanismo em dez milhões de seres humanos. E, quanto mais a confusão das línguas minasse e dissolvesse até mesmo o Parlamento, mais cedo soaria a hora fatal da derrocada desse império babilónico. Essa seria também a hora da liberdade para o meu povo daAustria alemã. Depois, já nada se oporia à sua reunião à mãe-pátria. A actividade da social-democracia, portanto, estava longe de me ser antipática. Que ela se propusesse enfim, como eu era então sufi- cientemente tolo para acreditar, melhorar a sorte do trabalhador, incitava-me mais a apoia-la do que a denegri-la. O que dela mais me afastava era a sua hostilidade a qualquer luta pela conservação do germanismo na Austria e a sua vulgar adulação dos «camaradas» eslavos; estes aceitavam de boa vontade estas manifestações de amor, tanto mais que elas estavam ligadas a concessões práticas, mas con- servavam, por outro lado, uma arrogância altaneira, dando assim a justa recompensa a esses mendigos obsidiantes. Assim, aos dezassete anos, não tinha ainda grande noção do marxismo, e atribuía o mesmo significado à social-democracia e ao socialismo.Nesse ponto também, a mão rude do destino devia abrir- -lhe os olhos para este logro dos povos. Eu aprendera a conhecer o partido social-democrata meramente como espectador de algumas manifestações populares, e não fazia a menor ideia da doutrina em si mesma, nem da mentalidade dos seus sequazes. Posto de repente em contacto com os brilhantes resul- tados das suas concepções e da sua formação, alguns meses bastaram --em vez de dezenas de anos, que poderiam ter sido necessários noutras condições--para me fazer compreender que peste se dissi- mulava sob uma máscara de virtude social e de amor do próximo, e quanto a humanidade deveria sem tardança ver-se livre dela, sem o que a Terra bem poderia ser desembaraçada da humanidade. Foi no próprio local das obras que teve lugar o meu primeiro contacto com os sociais-democratas. Desde o principio, a coisa não foi muito divertida. O meu vestuário era ainda correcto, a minha linguagem polida, e a atitude reservada. Estava a tal ponto preocupado com o meu futuro que pouco me importava com a companhia que me rodeava. Procurava apenas trabalho para não morrer de fome e a fim de poder, mesmo tardia- mente, prosseguir a minha instrução. Talvez eu nunca fizesse caso dos meus vizinhos se, no terceiro ou quarto dia, um acontecimento não me tivesse forçado a tomar posição: ordenaram-me que aderisse ao sindicato. Eu nada conhecia então da organização sindical e não pudera ainda formar uma opinião sobre a sua utilidade ou a sua inutilidade. Convidado formalmente a entrar para ela, declinei a proposta decla- rando que não estava ao corrente da questão e, sobretudo, que não queria ser obrigado a fazer fosse o que fosse. Foi sem dúvida à pri- meira destas razões que fiquei a dever o não ser posto imediata- mente na rua. Talvez pensassem que dentro de poucos dias eu seria convertido e me tornaria dócil. Enganavam-se, porém, por completo. Quinze dias depois, mesmo se a minha adesão tinha sido precedente- mente possível, ela era de todo em todo impossível. Com efeito, eu tinha entretanto aprendido a conhecer a sociedade que me rodeava, e nenhuma força no mundo teria podido fazer com que eu entrasse para uma organização cujos representantes me tinham aparecido sob uma luz tão desfavorável. Nos primeiros dias, mantive uma prudente reserva. Ao meio-dia, uma parte dos operários espalhava-se pelas estala- gens vizinhas, enquanto que o resto permanecia no terreno de cons- trução onde absorvia uma refeição muitas vezes bem miserável. Estes eram os homens casados, a quem as mulheres traziam a sopa em pobres utensílios. Para o fim da semana, o seu número era sempre mais elevado; só mais tarde compreendi a razão disso: falava-se de política. Eu bebia a minha garrafa de leite e comia o meu naco de pão isolado num sítio qualquer, estudando prudentemente o ambiente, ou então pensando na minha triste sorte. Ouvia, no entanto, mais coisas do que me era necessário; parecia-me mesmo que às vezes me faziam avanços de propósito para me dar ensejo a que eu tomasse posição; mas o que eu assim aprendia era extremamente revoltante. Ouvia rejeitar tudo: a nação, invenção das classes «capitalistas»-- quantas vezes não ia eu ouvir essa expressão--, a pátria, instru- mento da burguesia para a exploração da classe operária; a autoridade das leis, meio de oprimir o proletariado; a escola, instituição desti- nada a produzir um material humano de escravos, e também de guar- diões; a religião, meio de enfraquecer o povo para melhor o explorar a seguir; a moral, principio de tola paciência para uso de carneiros, etc. Nada havia de puro que não fosse arrastado pela lama. A principio, eu conseguia calar-me, mas a coisa não podia durar. Comecei a tomar partido e a replicar. Mas tive de reconhecer que isso seria um esforço inútil enquanto eu não possuísse conhecimentos precisos sobre os pontos discutidos. Comecei, então, por recorrer às fontes da pretensa sabedoria dos meus interlocutores. Absorvi livro atrás de livro, folheto atrás de folheto. Agora, no terreno de construção, a coisa aquecia muitas vezes. Eu batalhava, de dia para dia melhor informado que os meus inter- locutores sobre a sua própria ciência, até ao dia em que a razão encontrou pela frente os seus mais temíveis adversários: o terror e a força. Alguns dos palradores da opinião adversa forçaram-me a aban- donar o terreno de construção, sob pena de cair de escantilhão dum andaime. Sozinho, não podendo encarar a hipótese de qualquer resis- tência, optei pela primeira alternativa e parti, rico de mais uma experiência . Afastei-me cheio de desgosto, mas tão indignado que me teria sido doravante inteiramente impossível voltar as costas a essa situação. Passada a primeira indignação, a minha pertinácia tornou a vir ao de cima. Estava firmemente decidido a regressar, apesar de tudo, ao trabalho nas obras. Aliás, ao cabo de algumas semanas, esgotadas as minhas magras economias, a miséria tornou a apoderar-se de mim. Já não tinha agora por onde escolher. E o jogo recomeçou, para ter- minar como da primeira vez. Perguntei então a mim próprio: serão estes homens dignos de pertencer a um grande povo? Angustiante interrogação, pois, se a resposta é afirmativa, acaso justifica semelhante povo os trabalhos e os sacrifícios que dos melhores exige a luta que eles deverão travar? E se é negativa, o nosso povo é verdadeiramente muito pobre em homens. Nesses dias de inquietação, de ansiedade e de meditação pro- funda, eu via engrossar o exército ameaçador daqueles que estavam perdidos para o seu povo. Foi com sentimentos muito diferentes que eu vi, alguns dias depois, desfilar interminavelmente, a quatro e quatro, operários vie- nenses que tomavam parte numa manifestação popular. Permaneci ali durante perto de duas horas e, retendo a respiração, vi desenrolar-se lentamente a longa serpente humana. Com o coração contraído, aban- donei finalmente a praça e regressei a casa. De caminho, avistei numa tabacaria o Arbeiterzeitung, principal órgão da antiga social-democracia austríaca. Encontrava-o também num café popular barato, onde eu ia com muita frequência ler os jornais; até então, porém, eu não con- seguia ler mais de dois minutos aquela miserável folha, cujo tom agia sobre o meu espirito como se fosse vitriolo. Debaixo da impressão da manifestação a que acabava de assistir, obedeci a uma voz inte- rior que me levou a comprar desta vez o jornal e a lê-lo completa- mente durante o serão, a despeito da violenta cólera que em mim excitou, em numerosas ocasiões, aquele tecido de mentiras. Melhor que nos livros dos teóricos, eu podia doravante estudar na imprensa quotidiana dos sociais-democratas o desenvolvimento do seu pensamento
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