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Os negros maometanos no Brasil

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros 
 
RODRIGUES, RN. Os africanos no Brasil [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas 
Sociais, 2010. pp. 44-77. Os negros maometanos no Brasil. ISBN: 978-85-7982-010-6. Available 
from SciELO Books <http://books.scielo.org>. 
 
 
All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non 
Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. 
Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - 
Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. 
Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative 
Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. 
 
 
 
 
 
 
Capítulo II 
Os negros maometanos no Brasil 
 
Raymundo Nina Rodrigues 
43 
 
Enumerando e analisando os colonos daquela época, escrevia ele23: 
A terceira classe é a dos escravos Africanos, sendo os mais 
trabalhadores de todos eles os naturais de Angola. Os Ardrenses, que 
são muito ignorantes, teimosos e estúpidos, tem horror ao trabalho, 
com exceção de um número muito limitado que, pela excessiva 
paciência no trabalho, contribui para aumentar-se o seu valor. Os de 
Calabar pouco são estimados, por causa da sua ignorância e preguiça. 
Os originários da Nigrícia (de Guiné e da Serra-Leoa), mesmo os que 
se acham em pleno vigor, são ainda menos próprios para servirem 
como escravos. Todavia são mais polidos, dispõem de mais elegância 
e beleza de formas, principalmente as mulheres, o que faz que os 
lusitanos os adquirissem para misteres domésticos. Os da Nigrícia, 
naturais do Congo e os Sonhenses, são muito aptos para os trabalhos, 
quando se trate da vida de sociedade, sendo não só esta a razão deste 
mercado, como também o fato de viverem unidos, como 
companheiros, por laços de amizade. 
Mas agora a história dos Negros no Brasil, corrigindo e completando 
a indicação bruta ou em grosso da sede do tráfico,e da procedência dos 
navios negreiros, deve discriminar melhor as nacionalidades dos escravos. 
Dentre estes, se não a numérica, pelo menos a preeminência intelectual e 
social, coube sem contestação aos Negros sudaneses. 
 
23
 Gaspari Barlei, Res gestae Mauritii in Brazilia, Amsteladami 1647, pág. 128. 
44 
 
CAPÍTULO II 
Os negros maometanos no Brasil1 
Sumário: 
I. As guerras santas dos Malés, ou os levantamentos de 
escravos na Bahia no século XIX. II. Insurreições dos Haussás; 1807, 
1809, 1813, 1816. III. Insurreições dos Nagôs; 1826, 1827, 1828, 
1830: a grande revolução de 1835. IV. Causas religiosas das 
insurreições. V. A Igreja Maometana na Bahia; seu chefe ou o 
Limano; seus sacerdotes ou os Alufás; o culto. O Islamismo dos 
Negros. VI. Origem da denominação de Malés dada no Brasil aos 
Negros muçulmanos: sua significação étnica. 
 
1
 Este capítulo foi publicado no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, de 2 de novembro de 
1900. 
45 
 
I. Pode-se avançar com segurança que até hoje ficaram inteiramente 
incompreendidas no seu espírito e na sua significação histórica as repetidas 
sublevações de escravos que, em curtos intervalos se sucederam na Bahia, 
durante a primeira metade do século XIX. Para os cronistas, eram simples 
manifestações dos sentimentos perversos e cruéis dos selvagens de pele 
negra, na estigmatização de cujo procedimento ficavam sempre brandos de 
mais os termos e qualificativos da mais rubra indignação. Para espíritos 
mais benévolos, os levantes apenas constituíam justas represálias de seres 
brutalizados por senhores desumanos. Os escritores de ânimo liberal viam 
nas insurreições dos Negros uma nobre revolta de oprimidos contra a 
usurpação da sua liberdade, em cuja reivindicação davam, por vezes, 
notáveis exemplos do mais belo heroísmo. 
De tudo isto podiam participar as revoltas dos Africanos, mas 
seguramente elas não eram isso. Para apreender a sua verdadeira 
significação histórica, é mister remontar às transformações étnicas e 
político-sociais que a esse tempo se operavam no coração da África. Outra 
coisa não faziam os levantes senão tentar reproduzir delas pálido esboço, 
deste outro lado do Atlântico, sob o influxo dos sentimentos de que ainda 
vinham possuídas as levas do tráfico, em que para aqui se transportavam 
verdadeiros fragmentos de nações negras. E estas bem sabiam manter-se 
fechadas no círculo inviolável da própria língua, de todos desconhecida. 
Essas revoltas de que o estudo pouco aprofundado dos historiadores pátrios 
não tem feito mais do que explosões acidentais do desespero de 
escravizados contra a opressão cruel e tirânica de senhores desumanos, tem 
assim a alta significação da mais acabada sucessão histórica. Elas se filiam 
todas às transformações políticas operadas pelo Islamismo no Haussá e no 
Iorubá sob a direção dos Fulos ou Fulahs. 
É notória a importância etnográfica dos Fulos, Fulahs, Fulbi, Pulos 
ou Peuls, vasta família africana que, em larga faixa transversal, se estende 
na África setentrional, por baixo dos Tibus e Tuaregs. Matéria de longa 
controvérsia tem sido a da natureza branca ou negra desta família africana 
de que Muller fazia os seus Nubo-Fulás, na sua opinião, mestiços, de negros 
e chamitas. Recusada in limine a ideia de uma origem malaia ou asiática, os 
Fulahs são tidos hoje como de raça branca, pelos mais autorizados 
46 
 
antropologistas e etnógrafos. Após sério exame das opiniões variadas, que 
se tem sustentado sobre a origem dos Peuls ou Fulahs, Sergi2 definiu-os: 
Uma ramificação da grande estirpe chamítica, mais afim do ramo 
setentrional do que do oriental e que, como os ibus, adquiriu uma 
individualidade própria, com caracteres peculiares, que tornam difícil 
reconhecer as suas origens primitivas. 
Estabelecidos no belo país do Haussá, para uma época que remonta a 
mais talvez do século XIV, foram os Fulbi que aí propagaram e lentamente 
desenvolveram o Islamismo. Crescendo continuamente em número e em 
poderio, a ponto de, em muitas regiões, acabar por contrabalançar a 
influência dos indígenas Haussás, elesnão conseguiram, todavia, desde 
logo, a dominação política do país. Foi precisamente no começo do século 
XIX, em 1802, que o dam-foidé Othman, constituindo-se, com os fiéis, em 
dijemãa, ou associação religiosa e militar, abriu o período das guerras 
santas, e, inspirando-se no mesmo fanatismo religioso que lançou os Árabes 
vitoriosos sobre a África e sobre a Europa, acabou fundando até 1810 o 
vasto império de Sókotõ, que mais tarde se cindiu nos grandes reinos 
vassalos de Wurnô, Gandô e Adamauhá. Todavia não foi rápida a vitória 
completa sobre os infiéis, só obtida após renhida luta com fortuna vária para 
os dois partidos, aos quais não faltaram revezes e insucessos. 
É deste período e destes acontecimentos que data a imigração dos 
Haussás, para o Brasil, por meio do tráfico. Na carta para sua Majestade, de 
16 de junho de 1607, em que o 6° Conde da Ponte, Governador da Bahia, 
dava conta da primeira insurreição dos Negros Haussás, informava ele: 
Esta colônia, pela produção de tabaco, que lhe é própria, tem o 
privilégio exclusivo do negócio da Costa da Mina: importaram, no 
ano passado, as embarcações deste tráfico oito mil e trinta e sete 
(8.037) escravos, Geges, Ussás (Haussás) e Nagôs, etc., nações as 
mais guerreiras da costa de Leste, e nos mais anos há com pouca 
diferença igual importação, grande parte fica nesta capitania e 
considerável quantidade nesta capital. 
Os negros Iorubanos, a que nós Brasileiros damos, como os 
Franceses, o nome genérico de Nagôs, assim como os Ewes entre nós 
denominados Geges,como vimos, seguramente eram importados no Brasil, 
 
2
 Sergi, ÁFRICA. Antropologia della stirpe Comitica, Torino, 1897, pág. 359. 
47 
 
de longa data. Mas o valor especial da importação do começo do século 
XIX está na influência que a esse tempo principiaram a exercer sobre elesos 
Fulás e Haussás maometanos. Repelidos pelos Fulás, os negros Haussás 
caíram sobre o grande e poderoso reino central de Iorubá e destruíram-lhe a 
capital Oyó. No reinado de Arogangan, Iorubá perdeu, em 1807, a província 
Ilorin, cujo governador Afunjá, sobrinho do rei, se serviu dos Haussás para 
declarar-se independente. Os maometanos em 1825 queimaram vivo a 
Afunjá e desde então elegeu-se ali um rei ou governo muçulmano. Horin 
tornou-se por este modo um centro de propaganda do Islamismo nos povos 
Iorubanos ou nagôs. 
Não eram negros boçais os Haussás, que o tráfico lançava no Brasil. 
As nações do Haussá, os reinos célebres de Wurnô, Sókotô, Gandô, etc., 
eram florescentes e dos mais adiantados da África Central. A língua 
Haussá, bem estudada por Europeus, estendia-se como língua de comércio e 
das côrtes por vastíssima área; e sua literatura, ensina E. Réclus, era 
principalmente de obras religiosas, mas além disso havia manuscritos da 
língua indígena, escritos em caracteres árabes. Dentre as suas cidades 
importantes destacam-se Kanô e Katsena a que Richardson chamou a 
“Florença dos Haussás”. 
Era natural e de prever que de uma nação assim aguerrida e policiada, 
possuída, além disso, de um sentimento religioso capaz de grandes 
empreendimentos como era o Islamismo, não poderia fazer passivas 
máquinas de plantio agrícola a ignorante imprevidência de senhores que se 
davam por tranquilizados com a conversão cristã dos batismos em massa e 
deixavam, de fato, aos Negros, na língua que os Brancos absolutamente 
ignoravam, inteira liberdade de crenças e de pensamento. 
Por sob a ignorância e brutalidades dos senhores brancos reataram-se 
os laços dos imigrados, sob o duro regime do cativeiro reconstruíram, como 
puderam, as práticas, os usos e as crenças da pátria longínqua. O comércio 
continuado com a Costa d’África ia-os instruindo dos sucessos guerreiros e 
religiosos que por lá se desenrolavam e assim se lhes ministravam pabulun 
e estímulo novo para a conversão e para a luta. O Islamismo organizou-se 
em seita poderosa; vieram os mestres que pregavam a conversão e 
ensinavam a ler no árabe os livros do Alcorão, que também de lá vinham 
importados. 
48 
 
Sem compreender-lhe todo o alcance e valor histórico, o Dr. 
Francisco Gonçalves Martius, depois Visconde de São Lourenço, que, 
como chefe de polícia, teve de reprimir a insurreição de 1835, pressentiu a 
importância das crenças religiosas dos Haussás nessas lutas. 
Na parte que deu ao presidente da província, em 29 de janeiro de 
1835, escrevia ele: 
tem sido dadas por mim as providências necessárias para serem 
corridas todas as casas de africanos sem distinção alguma e o 
resultado será presente a V. Ex.ª em tempo competente, podendo 
desde já asseverar a V. Ex..ª que a insurreição estava tramada de 
muito tempo, com um segredo inviolável e debaixo de um plano 
superior ao que devíamos esperar de sua brutalidade e ignorância. 
Em geral vão quase todos sabendo ler e escrever em caracteres 
desconhecidos que se assemelham ao Árabe, usado entre os Ussás, 
que figuram ter hoje combinado com os Nagôs. Esta nação, em outro 
tempo foi a que se insurgiu nesta província por várias vezes, sendo 
depois substituída pelos Nagôs. Existiam mestres que davam lições e 
tratavam de organizar a insurreição na qual entravam muitos fórros 
africanos e até ricos. Tem sido encontrados muitos livros, alguns dos 
quais dizem serem preceitos religiosos tirados de mistura de seitas, 
principalmente do Alcorão. O certo é que a Religião tinha sua parte 
na sublevação e os chefes faziam persuadir aos miseráveis que certos 
papéis os livrariam da morte, de onde vem encontrar-se nos corpos 
mortos grande porção dos ditos e nas vestimentas ricas e esquisitas 
que figuram pertencer -aos chefes e foram achadas em algumas 
buscas. 
A organização religiosa da propaganda e do ensino maometano, a sua 
extensão e influência melhor hão de evidenciar-se e compreender no estudo 
das insurreições. Aqui, como em tantas outras situações históricas, o ardor e 
o zelo religiosos tinham preservado os Negros dessa dissolução do caráter 
que Sergi dá, com razão, como a fatal consequência da aniquilação da 
vontade, que é a consequência primeira da escravidão. 
A grandeza moral de que, em face do perigo e da morte, deram 
notável exemplo alguns dos insurgidos, fornece a verdadeira chave das 
insurreições ou levantes que nem se devem atribuir ao desespero da 
escravidão, pois a eles aderiam libertos e ricos; nem a um nobre sentimento 
de solidariedade social, pois sistematicamente eram excluídos do grêmio 
49 
 
revolucionário os patrícios infiéis ou não convertidos; nem aos laços de 
sangue da mesma raça, pois, como os Brancos, se achavam envolvidos nos 
planos de massacre os Negros crioulos e os africanos fetichistas. Mas o 
Islamismo, que por toda a parte na África, de inopinadas guerras santas, faz 
surgir como por encanto impérios e reinos de duração mais ou menos 
efêmera, era, no fanatismo dos Negros, dos Chamitas e dos seus mestiços, a 
mola e a origem de todas essas explosões. 
Assim claramente o mostra a história das insurreições. 
II. INSURREIÇÕES DOS HAUSSÁS. – É para lamentar que, 
precisamente sobre estas insurreições em que melhor se deviam ter revelado 
a ação e a influência dos negros Haussás, só possuamos dados dos mais 
insuficientes. É que a repressão colonial destes delitos era sumária demais. 
Dela dão excelente ideia as queixas formuladas contra os tribunais pelo 6º 
Conde da Ponte, governador da Bahia, na carta em que participava a D. 
Fernando José, de Portugal, a segunda insurreição dos Haussás, em 1809. 
Em 16 de janeiro de 1809, escrevia este leal servidor : 
As querelas oferecidas, malevolamente e aceitas pelos Juízes 
criminais e nas Correções de ferimentos, mortes, contusões 
acontecidas nestas ocasiões, que verdadeiramente se devem 
considerar de guerra, formal resistência e defesa própria dos que 
legitimamente vão autorizados com Ordens do Governo, ou dos que 
por ele em seu auxílio são convocados, são outros tantos barrancos 
que encontra o bem do serviço que se tornam em favor dos 
perturbadores do sossego público e malfeitores: por V. Ex. foi 
conhecida esta verdade mais de uma vez, governando esta Capitania 
e eu repetidas vezes a tenho sentido e tenho representado a pouca 
consideração com que se respeitam por alguns Magistrados os 
executores das diligências do Real Serviço, com ordens deste 
Governo. Permita V. Ex. que, com o verdadeiro patriotismo que 
professo, com a lealdade, puro amor ao Nosso Soberano e com 
incessante zelo pelo seu Real Serviço conclua com a proposição de 
eterna verdade que – sucessos e circunstâncias extraordinários e que 
os acontecimentos imprevistos em ofensa dos Direitos do Soberano e 
da tranquilidade pública, entregues às solenes e morosas audiências 
ordinárias, animam a maldade a reincidir e então com mais segurança 
de bom êxito de seus temerários projetos. 
50 
 
Difícil decidir o que mais é aqui: se o conforto daquela nobre 
serenidade e isenção de magistratura colonial, acusada e naturalmente tão 
mal segura; se o doloroso sentimento de desalento pela reincidência e 
pertinácia com que revive a eterna propensão humana ao arbítrio e à 
violência. As queixas e as doutrinas de então não são por acaso as de hoje, 
mesmo revolvido sobre elas um século de proclamada civilização? Mas não 
prejudique a reflexão importuna ao escorreito contexto do fato histórico.Todavia, dos levantes dos Haussás, um artigo do Dr. Caldas Brito3 
publicado recentemente no Jornal do Comércio, acrescenta algumas 
informações novas ao que tínhamos escrito neste capítulo quando o 
publicamos em 1900 no mesmo jornal. 
O autor parece não ter lido o que então escrevi, nem ter formado 
ideia exata do valor político e da significação social das insurreições dos 
Africanos. Ainda assim, o seu artigo cobre em parte a grande lacuna que, no 
conhecimento dos levantes, ia de 1813, data a que chegavam as insurreições 
conhecidas dos Haussás, até 1826, quando começaram as dos Nagôs. É de 
esperar que estudos futuros acabem preenchendo a lacuna de 1816 a 1826, 
que subsiste, descobrindo os levantes que nesse período deviam ter tido 
lugar. 
Ao artigo do Dr. Caldas Brito tomamos a descrição do levante de 
1816, e parte do de 1813: 
Insurreição de 28 de maio de 1807. — Em rigor, os pequenos 
levantes de 1807 a 1809 são escaramuças preliminares, meros ensaios da 
grande insurreição de 1813. Da de 1807 instruem-nos as cartas, de 16 de 
junho e 12 de julho, do Conde da Ponte ao Visconde de Anadia. 
Na noite de 26 de maio daquele ano, um indivíduo cujo nome o 
governador não declina mas que afirma ser “de probidade e empregado 
nesta cidade”, procurou falar-lhe para comunicar que um escravo lhe havia 
confiado tramarem os Negros da nação Haussá um levante ou conjuração. 
Designando em cada bairro um Capitão e nomeando um agente a que 
chamaram Embaixador, tinham eles disposto a fuga da maior parte dos 
escravos desta nação, quer da capital, quer dos engenhos do recôncavo, para 
 
3
 Dr. Caldas Brito, Levantes de pretos na Bahia, in Jornal do Comércio, de 15 de maio de 
1903. 
51 
 
se reunirem debaixo de armas e fazer guerra aos Brancos. Simulou o 
governador não dar crédito à possibilidade do fato e exigiu novas provas, 
pondo o denunciante em relação com o seu ajudante de ordens. Nos três 
dias subsequentes conseguiu assim conhecer os nomes dos capitães e o 
número exato da porta e o sitio do casebre em que se faziam os 
ajuntamentos. No dia 27 foi-lhe indicado que, para as 7 horas da noite do 
dia seguinte, estava aprazada a deserção, combinado que só fora da cidade 
se deviam reunir com as armas de que dispusessem. Em seguida à procissão 
de Corpus Christi, a que assistiu o governador, deu este, escritas pelo 
próprio punho, ordens aos comandantes dos corpos de infantaria e artilharia 
para aprestarem as patrulhas por ele designadas. Às 6 horas, sem toque de 
tambor e sem arruído, estavam tomadas as portas da cidade, distribuídas 
diligências de capitães do mato, cercado e varado o casebre em que se 
faziam as reuniões. Neste foram presos sete dos cabeças ou capitães, 
encontraram-se cerca de quatrocentas flechas, um molho de varas para 
arcos, meadas de cordel, facas, pistolas e um tambor. Os capitães de mato 
capturaram três dos chefes que já haviam fugido, e as patrulhas e rondas 
militares os mais indicados como autores e sedutores. Procedeu-se a 
investigação e devassa judiciárias de que foi incumbido o Desembargador 
Ouvidor Geral do Crime, cuja exposição se remeteu para o reino com a 
carta de 12 de julho. Não consegui descobrir cópia deste documento 
naturalmente mais explicito e instrutivo. 
Como medida preventiva ordenou o governador que dali por diante 
fosse preso e recolhido à cadeia todo escravo encontrado nas ruas depois de 
9 horas da noite, sem declaração escrita de seu senhor, ou fora da 
companhia deste. Rezam outros documentos que ainda por cima recebia o 
preso como ensinamento uma correção de cem açoites. Entrava certamente 
esta medida nos planos de severa repressão, tão preconizado por este 
governador, que teve, todavia, de reconhecer a sua ineficácia apenas dois 
anos depois. 
A respeito deste levante, lê-se no Resumo Cronológico e Noticioso 
da Província da Bahia de J. Alves Amaral4: 
§ 235. 8 de junho de 1807. Houve uma insurreição dos Negros Ussás, 
a qual se desenvolveu em vários pontos do Recôncavo e imediações 
 
4
 Almanaque da Província da Bahia, de Antônio Freire, 1881, pág. 111. 
52 
 
da cidade, sendo muitos dos insurgentes punidos com a pena última 
depois de julgados sumàriamente na Relação da Capital, segundo 
determinou a carta régia de 6 de outubro desse ano. 
Se os insurgidos foram julgados e executados por uma insurreição 
evidentemente abortada, não consegui verificar. Na carta de 12 de julho, o 
Conde da Ponte pedia ao governo da Metrópole, o qual reservava para si o 
direito de determinar o modo de julgar estes delitos, que resolvesse se devia 
seguir-se para o caso o processo mandado observar, pela carta régia de 17 
de julho de 1790, para a insurreição de Minas Gerais; ou se o processo que 
a resolução de 23 de dezembro de 1798 mandou seguir no julgamento dos 
mulatos implicados no movimento insurrecional desse ano nesta Capital. 
Nos livros das cartas regias do Arquivo Público não encontrei essa de 6 de 
outubro de 1807, nem outra resposta à consulta do Conde da Ponte; o Dr. 
Caldas Brito diz que os dois principais culpados, Antônio e Baltazar, foram 
condenados à morte, e os demais açoitados na praça pública, a 20 de março 
de 1808. 
Mas as duas cartas deste governador, de 16 de julho de 1807, deixam 
fora de toda dúvida não ter havido levante algum a 8 de junho de 1807, 
como se afirma naquela efeméride. 
Se o plano de promover uma ação combinada dos escravos desta 
cidade com os dos engenhos vizinhos, invariavelmente seguido nos levantes 
posteriores, não indicasse suficientemente, da parte dos Haussás, o 
pensamento religioso que inspirou todas as suas guerras no Brasil, bastaria 
para o revelar a declaração do Conde da Ponte, de que, no casebre dos 
ajuntamentos, havia, além das varas, flechas e outras armas “certas 
composições supersticiosas e de seu uso a que chamavam mandingas, com 
que se supõem invulneráveis e ao abrigo de qualquer dor ou ofensa”. 
Insurreição dos Haussás e Nagôs a 6 de janeiro de 1809 – Na 
segunda insurreição dos Haussás já figuravam eles associados aos Nagôs, o 
que, dadas as rivalidades e lutas em que as duas nacionalidades viviam a 
esse tempo em África, já por si denuncia o acordo na fé, criado por obra do 
Islamismo. 
A 26 de dezembro de 1808 desertaram os escravos Haussás e Nagôs 
de alguns engenhos do Recôncavo. 
53 
 
A 4 de janeiro de 1809, oito dias depois, desertaram os desta cidade 
que a eles se foram reunir. Por onde passaram, a contar de três léguas desta 
cidade, cometeram toda a sorte de atentados, assassínios, roubos, incêndios 
e depredações. Alcançados pelas forças expedidas em seu encalço, a nove 
léguas desta cidade e cercados em uma mata, onde se fizeram fortes, junto 
ao riacho da Prata, não foi possível induzi-los a penderem-se, dizem as 
partes oficiais, bem suspeitas neste particular. Investiram contra as tropas 
que os bateram, matando grande número e ainda aprisionando 80, entre os 
quais muitos feridos. O movimento do Recôncavo tinha sido importante 
principalmente no distrito de Nazaré e Jaguaribe, vilas e roças vizinhas, de 
onde remeteram 23 presos para esta cidade. Coube ainda ao Conde da Ponte 
reprimir esta insurreição e dela deu contas ao governo da Metrópole nas 
cartas de 12 e 16 de janeiro de 1809. 
Causou então surpresa geral o admirável sigilo em que se urdiu e 
levou a efeito o êxodo dos insurgidos. Mais natural seria considerado o fato, 
se naquele tempo tivessem os interessados melhor conhecimento do povo 
escravizado. Então haviam de saber que uma poderosa sociedade secreta 
Obgoni ou Ohogbo, verdadeira instituição maçônica, governava os povos 
iorubanos, com ação muito superior mesmo à vontade dos régulos. E em 
todos os atos desta associaçãodominava o mais absoluto sigilo. 
Insurreição de 28 de fevereiro de 1813. — Parece ter sido um dos 
levantes mais sérios pelas proporções que tomou. Todos os Negros Haussás 
das armações de Manuel Inácio da Cunha Meneses, de João Vaz de 
Carvalho e de outros fazendeiros vizinhos, em número superior a 600, 
romperam em fortes hostilidades contra esta cidade. Assaltaram, armados, e 
incendiaram, pelas 4 horas da madrugada, as casas e senzalas daquelas 
armações. 
Depois de matarem o feitor e a família deste e outros Brancos que aí 
se achavam, marcharam a atacar a povoação de Itapoan, onde também 
incendiaram algumas casas e, reunidos aos pretos desta localidade, 
assassinaram os Brancos que tentaram despersuadi-los ou lhes resistir. 
Treze pessoas brancas foram encontradas assassinadas pelos Negros 
em Itapoan e na Armação de Manuel Inácio, além de oito gravemente 
feridas. 
54 
 
O Dr. Caldas Brito presta as seguintes informações sobre este 
importante levante: 
Os pretos investiram contra reforços enviados a batê-los tão 
desesperados e embravecidos que só cediam na luta quando as balas 
os prostravam em terra; e durou o combate algumas horas, ficando 
fora da ação 50 Negros, inclusive os que fugiram atirando-se ao rio 
de Joannes, onde pereceram afogados, e três que preferiram enforcar-
se a cair em poder das tropas legais. 
Em fins de maio do mesmo ano o advogado Lasso denunciou ao 
governo que os Negros Haussás preparavam um grande levante, que 
irromperia em a noite do dia 23 de junho e nele tomariam parte, além dos 
ganhadores dos cantos do cais da Cachoeira, cais Dourado e cais do Corpo 
Santo, os principais cabeças, os do Terreiro e do Paço do Saldanha, e que 
alguns pretos de outras raças entravam também na sedição, forros e cativos, 
tanto da cidade como do Recôncavo. Os centros desses conluios eram uma 
capoeira que ficava pelos fundos das roças do lado direito da capela de 
Nossa Senhora de Nazaré, uma roça na estrada do Matatu, fronteira à Boa 
Vista, Brotas e os matos do Sangradouro. O plano combinado era romperem 
desses lugares na véspera de São João, com o pretexto do barulho de 
semelhantes dias, matarem a guarda da Casa da Pólvora do Matatu, tirarem 
pólvora de que precisassem, molhando o resto, e quando acudissem as 
tropas e estivessem entretidos com aqueles sublevados, sairiam os cabeças 
existentes na cidade e degolariam todos os Brancos. 
Divergências entre esses pretos, querendo uns que a insurreição fosse 
naquele dia 10 de julho, levaram um deles, de nome João Haussá, escravo 
de Manuel José Teixeira, a trair os companheiros. Descoberto assim o 
plano, ocultaram tudo quanto pudesse denunciá-los de modo que, dando-se 
uma batida naqueles lugares, não se encontrou vestígio algum. 
Conquanto o Conde dos Arcos estivesse convencido de que essas 
denúncias eram trama do despeito de desafetos, que procuravam 
desmoralizar o seu governo, baixou no dia 20 de junho uma portaria 
proibindo expressamente o divertimento de fogos de São João, mormente os 
busca-pés, rouqueiras e foguetes, punindo o infrator desta ordem, qualquer 
que fosse a sua categoria social. E para que ninguém alegasse ignorância 
publicou-a ao som de tambores pelas ruas mais públicas da cidade. 
55 
 
Em observância da carta de 18 de março foram estes Negros 
processados, e por acórdão da Relação, de 15 de novembro, condenados 39 
réus. Destes morreram 12 nas prisões, 4 escravos de Manuel Inácio foram 
condenados à morte natural e enforcados, no dia 18 do mesmo mês, na 
forca que se levantou na praça da Piedade, com assistência de toda a tropa 
de linha da guarnição; e os demais foram uns açoitados e degradados para 
os presídios de Moçambique, Benguela e Angola, para toda a vida, outros, 
depois de açoitados no lugar do suplício dos companheiros, entregues aos 
senhores. 
A sufocação desta revolta é tida como um dos feitos de grande 
merecimento do Conde dos Arcos, então Governador da Bahia. É, porém, 
notável que aqui só se encontrem a respeito resumidas referências. A Idade 
de Ouro, único jornal que a esse tempo se publicava na Bahia, é 
inteiramente mudo a respeito do levante como da execução dos chefes da 
insurreição. Não me foi possível encontrar o processo destes criminosos 
nem no Arquivo Público, nem no cartório do Júri. 
III. INSURREIÇÕES DOS NAGÔS. — A exemplo dos Haussás, que, para 
a grande revolta de 1813, se haviam ensaiado nas tentativas de 1807 e 1809, 
assim, nos sucessivos movimentos insurrecionais de 1826, 1828 e 1830, os 
Nagôs, impassíveis e indiferentes aos rios de sangue em que tinham sido 
afogados nos pequenos levantes anteriores, amestraram-se e instruíram-se 
na arte de urdir as grandes conspirações, tão bem revelada nas proporções 
que deram à revolta de 1835. 
Insurreições de 1826, 1827 e 1828. — Nas matas do Urubu, em 
Pirajá, tinha-se constituído um quilombo, que se mantinha com o auxilio de 
uma casa fetiche da vizinhança, chamada a casa do Candomblé. 
No dia 17 de dezembro de 1826, alguns indivíduos, naturalmente 
capitães do mato, propuseram-se a ir prender os negros fugidos, na 
suposição de que fossem em número muito reduzido. Opuseram, porém, os 
negros séria resistência: mataram três e feriram gravemente o quarto. 
Excitados com aquele sucesso, atacaram diversas pessoas no caminho do 
Cábula, deixando em estado grave uma mulatinha, um capitão do mato e 
outras pessoas. Na tarde do mesmo dia, 20 praças do batalhão de Pirajá 
seguiram a batê-los, reunindo-se a 12 praças que marcharam desta cidade, 
sob o comando de um oficial. Deu-se o encontro na baixa do Urubu. Os 
56 
 
negros foram cercados em uma pequena mata; segundo a parte oficial, 
recusaram-se a entregar-se, atacando a tropa, que fez fogo sobre eles, 
matando três e ferindo outros. Nessa ocasião foi presa a negra Zeferina, 
com armas na mão, diz a parte oficial; apenas conduzindo um pequeno saco 
de farinha, afirmam diversas testemunhas. Esta negra declarou que os 
negros se tinham levantado contando com uma insurreição dos Nagôs da 
cidade, sobre a qual deviam marchar na véspera de Natal. Esta asserção foi 
plenamente confirmada pelos sucessos ulteriores. Estes vieram mostrar que 
já a esse tempo os Nagôs da cidade preparavam os elementos para uma ação 
bélica de valor e é claro que, entrando em seus planos envolver nela todos 
os negros dos engenhos vizinhos, deviam naturalmente buscar apoio em um 
quilombo tão da proximidade da Capital. 
No entanto, devido talvez à precipitação dos acontecimentos, os 
sucessos de 17 de dezembro de 1826 não passaram do ataque a um pequeno 
quilombo, o qual, se bastou para resistir a meia dúzia de capitães do mato 
desarmados, não podia competir com a força de polícia que em seguida o 
atacou e que, como tudo induz a crer, não esperou ser agredida para 
espingardear os negros. 
A fermentação das ideias de rebelião plantadas pelo Islamismo, 
latente embora, prosseguia, todavia, o seu curso natural. 
Em 22 de abril de 1827, a insurreição de uma parte, naturalmente a 
muçulmana, dos escravos do engenho Vitória, próximo à Cachoeira, 
provocou, nos engenhos do Recôncavo, um levante, que só pôde ser 
reprimido após uma luta de dois dias. 
Na madrugada de 11 de março de 1828, ainda uma parte apenas dos 
negros africanos desertou desta Capital, operou junção com os negros dos 
engenhos vizinhos no Cabrito e, concentrando-se na Armação, dispunham--
se a atacar a cidade. Atacados próximo ao Pirajá pelo corpo de polícia e o 
2° batalhão de linha, foram batidos em luta sanguinolenta em que 
pereceram muitos, sendo os demais presos e punidos. 
Insurreição de 1830. — A 1º de abril de 1830, 18 a 20 negros nagôs 
ladinos atacaram três lojas de ferragens da cidade baixa com o fim de se 
apoderar de armamento. Da primeira retiraram doze espadas de copos e 
cinco parnaíbas, deixando gravementeferido o proprietário da loja e um 
caixeiro. Da segunda, graças à resistência do dono que ameaçou fazer fogo 
57 
 
sobre eles aliás com armas descarregadas, apenas levaram uma parnaíba. 
Da terceira, retiraram mais seis das mesmas armas. Dirigiram-se então pela 
rua do Julião, a atacar os armazéns de negros novos de Venceslau Miguel 
de Almeida, de onde retiraram mais de cem, que os quiseram seguir, ferindo 
gravemente os dezoito que se recusaram a acompanhá-los. Engrossada a 
turba com muitos negros ladinos, tomaram caminho da Soledade, onde 
atacaram a guarda policial, apenas de sete soldados e um sargento. Feriram 
mortalmente um soldado, tomando-lhe a arma. Atacados por soldados de 
polícia e de linha e por paisanos, foram destroçados e dispersos, morrendo 
mais de cinquenta e ficando prisioneiros cerca de quarenta. Muitos, porém, 
dispersaram-se pelos matos de São Gonçalo e do Outeiro. 
Era a explosão parcial de uma insurreição de peso que os Nagôs 
estavam urdindo para o dia 13 de abril, mas que abortou graças à denúncia 
dada em tempo por Alexandrina Joaquina da Conceição, moradora à rua de 
Baixo. Epifânio e outros chefes haviam convidado o negro Jorge a tomar 
parte na revolta, este comunicou o convite a Miguel, que o transmitiu a 
Alexandrina. Com estes esclarecimentos, conseguiu a polícia apoderar-se 
dos Nagôs que chefiavam a insurreição e se andavam provendo de armas. 
Assim foram presos Epifânio, José Luiz Antônio e Francisco, a quem tinha 
tocado saliente papel de amotinador e rebelado na insurreição de 11 de 
maio de 1828. Na devassa procedida foram estes escravos de uma infame e 
vergonhosa covardia. De delação em delação acabaram por enumerar todos 
os cúmplices e indicar as partes em que haviam ocultado as armas já 
adquiridas; uma espada de Francisco foi arrancada de debaixo do soalho, 
onde a tinha guardado; a de Querino, do fosso do quartel do Barbalho. 
Insurreição de 24 de janeiro de 1835. — No dia 24 de janeiro de 
1835, de 9 para dez horas da noite, a nagô liberta Guilhermina fez chegar ao 
conhecimento do juiz de paz do 1º distrito do curato da Sé que, ao toque da 
alvorada, romperia, na madrugada seguinte, uma grande sublevação de 
escravos. A Guilhermina haviam dado esta noticia o nagô liberto Domingos 
Fortunato, seu concubino, e Sabina da Cruz, também nagô liberta. Naquela 
tarde, na cidade baixa, tinha Domingos ouvido a negros saveiristas dizer 
que haviam chegado 
alguns negros de Sant’Amaro, no intuito de reunir-se ao maioral 
Arrumá ou Alumá, que, de mais dias também dali tinha vindo; e no 
outro dia, juntos aos negros da cidade, tomarão conta da terra, 
58 
 
matando os brancos, cabras e negros crioulos, bem como os negros 
africanos que se recusassem a aderir ao movimento, e só poupando 
os mulatos, destinados a servir de lacaios e escravos. 
Por seu turno, Sabina, ao regressar à noite à sua casa na rua da 
Oração, achou-a na maior desordem, o que atribuiu a uma desavença que 
tivera pela manhã com o seu amásio Vitório ou Sule. Debalde foi procurá-lo 
na casa próxima de Belchior, onde de costume guardava as chaves na sua 
ausência. De busca em busca, foi descobri-lo na rua do Guadelupe, em casa 
de uns negros de Sant’Amaro que, ela sabia, ele costumava frequentar. Ao 
escutar no corredor para ver se lhe percebia a voz, tal sussurro em língua 
nagô ouviu que deliberou esperá-lo na porta. A esse tempo saia da casa a 
negra Edum, de nação Egbá, que lhe afirmou estar ali Sule. E, como lhe 
pedisse Sabina que o fosse chamar, garantiu-lhe Edum que ele só sairia 
quando fosse hora de tomar a terra. Contou-lhe então Edum 
que, pela madrugada quando tocasse alvorada, foguetes partidos das 
lojas da praça de Palácio, dariam o sinal de saída para matar os 
brancos, negros crioulos e cabras, poupando apenas os mulatos para 
escravos e lacaios. 
E, como retorquisse Sabina que no dia seguinte eles haviam de ser 
senhores era de surra e não da terra, Edum aprazou-a para ajustar contas 
depois da guerra. Assustada, Sabina foi então procurar Guilhermina a fim 
de que, levando esta o fato ao conhecimento dos brancos, lhe dessem dois 
soldados para dali retirar ela o seu amásio. 
Comunicado o fato ao presidente da província, imediatamente foram 
tomadas todas as providências. Postas de prontidão as forças do exército da 
polícia, foram reforçadas todas as guardas o chefe de polícia, Dr. Francisco 
Gonçalves Martius, depois Visconde de São Lourenço, seguiu para 
arrabalde do Bonfim, onde residiam muitas famílias, a fim de providenciar 
de modo que se evitasse a junção dos sublevados com os negros dos 
engenhos próximos. 
Começaram desde logo as buscas nas casas dos Africanos. Sob 
denúncia de que, na loja da segunda casa da ladeira da Praça, estava reunido 
grande número de negros Africanos, foi esta cercada e, apesar das evasivas 
coniventes do pardo Domingos Marinho de Sá, principal inquilino do 
prédio, as autoridades penetraram nele e dispunham-se, já às 11 horas da 
59 
 
noite, a dar minuciosa busca, quando de súbito se entreabriu a porta da loja 
e dela partiu um tiro de bacamarte, seguido da irrupção de uns 60 negros 
armados de espadas, lanças, pistolas, espingardas, etc., e aos gritos de: mata 
soldado! Fàcilmente desbaratada a pequena força, ferido o Tenente Lázaro, 
seguiu o grupo para a Ajudá, onde fez as repetidas tentativas de 
arrombamento da cadeia. Não o conseguindo, saiu no largo do Teatro, onde 
pôs em debandada uma força de oito soldados permanentes que sobre eles 
dera uma descarga. E, a grandes gritos, atacando ferindo os que 
encontravam e, matando mesmo dois pardos, dirigiu-se o troço ao quartel 
da artilhana, no Forte de São Pedro. Aí mataram um sargento e, posto a 
intenção manifesta fosse operar junção com o troço revolucionário do 
bairro da Vitória, não se animaram a atacar o quartel. Retrocediam já, 
quando o troço de Vitória, atravessando a rua do Forte de São Pedro, 
debaixo de vivo fogo do quartel, operou a junção planejada. Daí seguiram a 
atacar o quartel dos permanentes ou de polícia, na Mouraria, onde houve 
forte tiroteio. Fechado o portão e tendo os revolucionários dois mortos e 
muitos feridos, seguiram para o lado da Barroquinha, indo sair pela segunda 
vez na Ajudá. Deste ponto encaminharam-se para o Colégio, atacaram a 
guarda que se recolheu, fazendo fogo sobre eles um reforço de 
permanentes. Mataram aí um soldado de artilharia que lutou com raro valor, 
matando antes de morrer um negro e ferindo diversos. Desceram então para 
a Baixa dos Sapateiros, mataram em caminho mais um pardo, seguiram 
para os Coqueiros e, saindo em Águas de Meninos, travaram luta com a 
cavalaria. 
O chefe de polícia, que tinha seguido para o Bonfim e se propunha a 
retirar para ali a força de cavalaria, em tempo pôde receber aviso de que os 
insurgentes estavam atacando a cidade e marchavam para Águas de 
Meninos sobre o quartel da cavalaria. 
Apenas teve tempo de providenciar para que as famílias fossem 
recolhidas à Igreja do Bonfim, como ponto de defesa mais fácil e natural, 
retrocedeu ao posto ameaçado, onde chegou às 3 horas da madrugada. Fez 
recolher ao quartel uma força de infantaria a fim de defender a porta e fazer 
fogo das janelas e estendeu a cavalaria em linha de combate no largo para 
receber os assaltantes. Quase em seguida chegava ali o grande troço de 
Africanos, que intrèpidamente atacaram ao mesmo tempo o quartel e a 
cavalaria. Repelidos do quartel e perseguidos pela cavalaria, que carregou 
60 
 
fortemente sobre eles, tiveram de debandar, morrendo mais de 40, ficando 
muitos feridos e precipitando-se ao mar uma grande parte dos quais muitos 
pereceram afogados, refugiando-se os demais na mata vizinha. 
Estava debelada a insurreição, que só aqui foi atacada em ofensiva. 
Em resposta a uma acusação do Dr. Rebouças feita em 1838,o Visconde de 
São Lourenço5 acentua esta circunstância, mostrando que os africanos 
intimidaram a guarda de palácio, contiveram o batalhão de artilharia, 
obrigaram o corpo de polícia a fechar o quartel da Mouraria e só na 
cavalaria encontraram resistência e ataque. 
Ainda assim, das 6 para as 7 horas da manhã, da casa de João 
Francisco Rates, no Pilar, saíram seis negros, armados e vestidos em trajes 
de guerra, os quais lançaram fogo à casa do senhor e tomaram para Águas 
de Meninos, onde para logo foram mortos. Eram retardatários que 
naturalmente ignoravam a precipitação do ataque a que a denúncia obrigou 
os Africanos. O chefe de polícia avaliou em mais de 60 o número dos 
mortos na ação, afora o grande número de feridos, que pereceram depois. 
IV. CAUSAS RELIGIOSAS DAS INSURREIÇÕES. A insurreição de 1835, 
cuja história completa compulsamos, em detido exame, nos autos dos 
processos-crimes a. que deu lugar, põe em forte destaque a influência do 
Islamismo nos negros brasileiros, ao mesmo tempo que descobre os intuitos 
religiosos de toda esta série de levantes de escravos da Bahia. Por ocasião 
da última, a propaganda religiosa e guerreira dos negros maometanos havia 
atingido o auge do seu desenvolvimento. Eram outras tantas escolas e 
igrejas maometanas: a casa dos nagôs libertos Belchior e Gaspar da Silva 
Cunha, na rua da Oração, onde pregava de mestre o alufá ou marabu Luis, 
Sanim na sua nação Tapa, escravo de Pedro Ricardo da Silva; a casa dos 
nagôs libertos Manuel Calafate e Aprígio, na loja do segundo sobrado à 
ladeira da Praça; a casa do liberto haussá, Elesbão do Carmo, na sua terra 
Dandará, no beco de Mata-Porcos; a casa do nagô Pacífico, Licutan entre os 
seus, nas lojas da casa de seu senhor, no Cruzeiro de São Francisco. E afora 
estas, outras muitas de importância menor. 
 
5
 Francisco Gonçalves Martins, Suplemento à minha Exposição dos acontecimentos do dia 7 
de novembro em resposta às anotações e comentários a uma Exposição por um Anônimo e 
outras acusações, Rio de Janeiro, 1838, pág. 38. 
61 
 
Na casa de Belchior e Gaspar da Silva Cunha, que sublocavam 
quartos a outros negros, só se falava em língua iorubana ou nagô, sendo 
para muitos inteiramente desconhecidos os nomes cristãos dos parceiros. 
Concorriam ali Ojô, Ová, Narnosin, Sanim (Luiz), Sule (Vitório), Dadá 
(Mateus)), Aliará (Jorge), Edum, etc.. 
Ali foi apreendida grande cópia de livros e papéis escritos em 
caracteres árabes, assim como fardamentos ou roupa de guerra, consistindo 
principalmente em grandes alvas ou túnicas brancas e barretes com diversos 
distintivos. São acordes os depoimentos em afirmar que os escritos eram de 
rezas males ou musulmis e que bem viva e intensa era ali a propaganda 
religiosa. Gaspar da Silva Cunha declara 
que os papéis não são dele e sim de Belchior porque ele não sabe ler, 
mas que esses papéis são de reza, pois andavam a persegui-lo para 
aprender e deixar de ouvir missa Como costumava, por assim lhe ter 
ensinado seu senhor. 
Depõe a escrava Marcelina, de nação Mandubi (?), inquilina de 
Gaspar e Belchior, 
que os papéis achados são de reza dos males, escritos e feitos pelos 
mestres que andam ensinando. Estes mestres são de Nação Haussá, 
porque os Nagôs não sabem e são convocados para aprender por 
aqueles e também por alguns de nação Tapa... Eles aborreciam, 
dizendo que ela ia à missa adorar pau, que está no altar, porque as 
imagens não são santos. 
Mas é o próprio Belchior quem declara que 
também ia à sua casa Luiz, de nação Tapa, velho com alguns cabelos 
brancos e mãos fouveiras, de nome Sanim na sua terra, o qual era o 
mestre de ensinar a ele respondente e aos outros a reza dos males e 
também quem ensinou ou lembrou que se fizesse uma junta em que 
cada negro desse uma ou meia pataca para se tirar dali vinte patacas 
para comprar roupa, sendo o excedente destinado a pagar semana a 
seus senhores, ou para se forrarem. 
 Não era, todavia, somente a instituição da caixa militar que, em 
seguida ou por entre as predicas e rezas das sextas-feiras e domingos, criava 
Sanim, pois dos documentos em caracteres árabes ali encontrados, constava 
todo o plano, muito bem urdido, da sublevação. Negando tudo o mais, 
62 
 
limitou-se Sanim a asseverar “ser falso que ele ensinasse a reza dos Males, 
porque, quando veio para terra de branco, não tratou mais disso e nem se 
lembra delas,” o que, na puerilidade do recurso de defesa, equivale a 
confessar que na África era missionário, alufá ou rabau. 
Muito mais prestigioso era o alufá Licutan, batizado Pacífico e 
escravo do Dr. Varela. Na porta da casa do seu senhor, ao Cruzeiro de São 
Francisco, reunia os patrícios nagôs e levava-os para o seu quarto. Sabia ler 
e escrever os papéis de reza malê. E, tendo sido depositado na cadeia por 
penhora que a seu senhor haviam feito os frades carmelitas, era diàriamente 
visitado pelos de sua nação. Antônio Pereira de Almeida, carcereiro daquela 
prisão, declara 
que, tendo sido Licutan recolhido em dias do mês de novembro, logo 
no dia seguinte teve muitos negros e negras que o fossem visitar e as 
visitas continuaram todos os dias e a todas as horas, pois que ele 
estava entre portas como simples depósito; e mais com a 
especialidade de que todos se ajoelhavam com muito respeito para 
lhe tomar a bênção. A ele testemunha constou que os outros nagôs 
tinham reunido dinheiro para libertar Pacífico quando fosse à praça. 
Pacífico protestou que aos patrícios que o procuravam para se 
queixar do mau cativeiro por que estavam passando, se limitava a 
aconselhar sofressem, com paciência, como ele. Mas, interrogado sobre o 
seu nome nagô de Licutan, disse que se chamava he Bilai (?), mas que, em 
verdade, também se podia chamar Licutan, porquanto estava no caso de 
adotar o nome que bem lhe parecesse. Licutan não tinha sido apenas um dos 
chefes da insurreição. A sua libertação havia constituído mesmo um dos 
escopos ou objetivos primordiais dela. Por duas vezes o troço 
revolucionário foi ter até a Ajudá e tentou tomar de assalto a cadeia em que 
Pacífico estava recolhido. E, como se tanto não bastasse para demonstrar os 
intuitos dos insurgidos, veio corroborar esse fato o efeito moral que sobre 
Pacífico produziu o malogro da jornada. 
Domingo (dia seguinte ao da insurreição) — depõe o liberto mina 
Paulo Rates, fiel da cadeia —, Pacífico deitou a cabeça e não 
levantou mais, muito apaixonado e chorando quando, pela manhã, 
entravam presos os outros negros, dos quais um lhe deu um livro ou 
papel dobrado com as tais letras (caracteres árabes) e o mesmo negro 
Pacífico ou Licutan pôs-se a ler e a chorar. 
63 
 
 Ainda acrescentou Rates ter um dia por acaso ouvido a um grupo de 
nagôs dos que diàriamente visitavam a Licutan, comunicar a este que já 
tinha sido completada a soma necessária para libertá-lo, mas que a isso se 
recusava o seu senhor. E então acrescentaram que não se afligisse com isso 
Licutan, pois, “quando acabasse o jejum, eles haviam de ir lá para que ele 
saísse fôrro (liberto) de uma vez”. A alusão à insurreição e à sua 
dependência da medida propiciatória dos jejuns maometanos ou males 
revela-se aqui em plena evidência. 
A propaganda na casa ou escola de Manuel Calafate, Aprígio e 
Conrado, na loja do segundo prédio da Ladeira da Praça, nem era menos 
ativa, nem menos compreensiva. Nas buscas judiciais, aí se encontraram 
nove tábuas de escrever, de madeira preta e amarela, que o nagô Inácio 
declarou pertencer aos pretos Benedito, Belchior, Joaquim, Aprígio e 
Conrado, e duas pretas e uma pequena amarela, que pertenciam a Manuel 
Calafate. Ainda encontraram quatro livros pequenos e mais papéis escritos 
com caracteres árabes e seis saquinhos de couro (Amuletos ou mandingas) 
“em que,declarou o negro Inácio, se dava um juramento de não morrer na 
cama e sim como pai Manuel Calafate”. 
A acentuar bem o caráter de guerra religiosa veio a declaração do 
negro iebu Carlos, sobre quem tinham pairado um instante suspeitas de 
conivência revolucionária, de que “os nagôs que sabem ler e escrever são 
sócios da insurreição, nem davam a mão a apertar, nem tratavam bem aos 
que não o eram, chamando-os de caveri.” 
Vasta também a esfera de ação e influência da escola do Alufá ou 
marabu, Dandará. O haussá liberto Elesbão do Carmo, em sua terra 
Dandará, morava no Gravatá, mas tinha alugado uma casinha no beco dos 
Tanoeiros na cidade baixa. Ali erigiu ele a sua tenda de comércio, a sua 
igreja de catequese muçulmana e a sua escola de propaganda 
revolucionária. “Era mestre em sua terra, declarou ele, e aqui tem ensinado 
os rapazes, mas não é para mal”. Na sua tenda, encontraram-se, com uma 
túnica guerreira e um rosário preto sem cruz das Males, tábuas e papéis 
escritos em caracteres árabes. A atestar a difusão do ensino muçulmano, 
tábuas e papéis assim escritos foram encontrados em casa de José da Costa, 
no beco de Mata-Porcos; na casa de Joaquim, na ladeira da Preguiça; na de 
Miguel Gonçalves, na mesma rua e em diversas outras. 
64 
 
Dominada a insurreição, cujos danos foram muito reduzidos, graças 
às medidas que a denúncia permitiu tomar ainda em tempo, dos 281 negros 
presos foram condenados à morte 16, dos quais só 5 foram executados a 14 
de maio de 1835, a saber: os libertos Jorge da Cunha Barbosa e José 
Francisco Gonçalves e os escravos Gonçalo, Joaquim e Pedro. Os outros 
tiveram a pena comutada em galés perpétuas uns, muitos em açoites, alguns 
em prisão com trabalho. A todos os libertos a que tocou esta última pena, o 
regente Diogo Antônio Feijó comutou-a, por proposta do presidente da 
província em banimento para a Costa d’África; pois alegava o Visconde de 
São Lourenço, então chefe de polícia, que “os africanos forros trazem quase 
todos, no gozo da liberdade, o ferrete da escravidão e não utilizam nada ao 
país com a sua estada.”Banimento para os libertos, açoites para os escravos, 
tal a fórmula repressiva cômoda e econômica que permitia sufocar os 
germes de futuros levantes sem prejuízo na propriedade humana. E o senhor 
de Sanim, cuja sentença de morte foi confirmada pelo Tribunal de Relação 
da província, obteve em revista do Supremo Tribunal de Justiça novo 
julgamento para seu escravo, que foi então condenado a 600 açoites. 
Era evidente que a justiça, o governo e o clero não chegaram a 
compreender o espírito da insurreição. Os mestres, missionários, alufás ou 
marabus, ocuparam lugar secundário na repressão. Pedro Luna, o Alumá, a 
quem se fizeram referencias insistentes como a chefe muito influente, foi 
denunciado, mas em seguida posto em liberdade. Não rezam os autos por 
que Elesbão do Carmo, ou Dandará, não foi pronunciado. 
Pacífico ou Licutan, condenado a mil açoites que recebeu. Sanim ou 
Luiz, condenado à morte, teve a pena de 600 açoites em novo julgamento. 
Manuel Calafate parece ter perecido na luta. 
E, todavia, a insurreição de 1835 não tinha sido um levante brutal de 
senzalas, uma simples insubordinação de escravos, mas um 
empreendimento de homens de certo valor. Admirável a coragem, a nobre 
lealdade com que se portaram os mais influentes. 
A Joaquim Gege, escravo de Soares, que, companheiro de casa de 
Manuel Calafate, recusava dar informações sobre seus cúmplices, 
contrariava o escravo Inácio a cada negativa que opunha ao interrogatório 
em acareação. Negou conhecer Aprígio, mas Inácio asseverou ser Joaquim 
morador na mesma casa com Manuel Calafate e Aprígio. “Depois do que, 
65 
 
rezam os autos, o interrogado disse ao preto Inácio que como tinha saído 
azá (azar, o insucesso ou malogro da insurreição), e ele não queria morrer, 
só por isso é que acusava os outros.” Bela resposta que, na algaravia do 
desconhecido negro, encerra a mesma lição moral de tantas outras que 
tiveram sorte e passaram à história. Nos autos vem sublinhado que o nagô 
Joaquim de Matos “chegou ao ponto de negar conhecer até ao seu próprio 
companheiro de morada Inácio de Limeira”. Mais sublime de heroísmo foi 
porventura a conduta do nagô Henrique, escravo de Maia. Gravemente 
ferido na mão e no dorso e vítima de tétano, já presa das violentas 
contraturas em que devia sucumbir no hospital, 48 horas depois, 
impossibilitado de sentar-se, a gemer durante todo o interrogatório, 
declarou “que ele não conhecia os negros que o haviam convidado (a tomar 
parte na insurreição) e que não dizia mais nada, porque não é gente de dizer 
duas coisas. O que disse está dito, até morrer”. 
Quis o destino que os heróis da insurreição tivessem execução 
condigna. Não se tendo encontrado carrasco, os negros condenados à morte 
não puderam ser enforcados Como criminosos, pelo que foram fuzilados 
como soldados. O plano da insurreição estava na altura do valor dos seus 
promotores. Próximo ao arrabalde de Itapagipe demoravam então diversos 
engenhos com numerosa escravatura. Promover a sublevação dos negros da 
cidade, operar a junção dos grupos das diferentes freguesias, atacar de 
surpresa a guarnição, incendiar a cidade e em seguida reunir-se aos 
escravos das fazendas, era, de fato, mais audaz, porém mais exequível do 
que promover, como se tinha feito até então, um levante extramures para 
depois atacar a cidade, avisadas as tropas e guarnecidos os fortes. 
Está este plano consignado nos documentos apreendidos na casa de 
Gaspar e Belchior. Escritos em caracteres árabes, deles só se conhece hoje a 
tradução feita pelo negro haussá Albino, se tradução se pode chamar uma 
explicação sumária do conteúdo e destino de cada uma das peças que lhe 
foram apresentadas. 
Não encontrei os documentos, mas a transcrição da sua tradução 
oficial, além de desmascarar a instigação fanática dos levantes, tem o valor 
de estereotipar para o Islamismo africano o mesmo rebaixamento fetichista 
que denunciamos no catolicismo dos nossos negros. Nestas conversões não 
são as almas e os espíritos que se elevam à compreensão das religiões 
66 
 
superiores. Estas é que tem de descer até ao sentimento religioso de alcance 
muito reduzido, das raças inferiores. 
Aos sete dias do mez de Fevereiro de 1835, nesta leal e valorosa 
cidade de São Salvador, Bahia de todos os Santos, a casa da 
residencia do Juiz de Paz do 1° districto de Curato da Sé, o cidadão 
José Mendes da Costa Coelho; onde eu, Escrivão do seu cargo, me 
achava, ahi compareceu o preto de nação Ussá e de nome Albino, 
escravo do Advogado Luiz da França de Athayde Moscoso, que o 
mesmo Juiz informado de que o dito preto sabia ler e escrever os 
caracteres arabicos, usados pelos negros insurgidos, tinha mandado 
vir a sua presença, deferiu-lhe o juramento aos Santos Evangelhos 
em um livro delles, em que poz sua mão direita, para que debaixo 
delle, como christão que era, declarasse e dissesse a verdade do que 
lesse nos papeis que lhe apresentava, numerados de um a nove, e, 
recebido por ele o dito juramento, prometeu cumprir da forma que 
ele os entendesse, passando a examinar um por um, declarou o 
seguinte: 
Que o papel número primeiro dizia que a gente havia de vir da 
Victoria, tomando a terra e matando toda a gente da terra de branco e 
passarião por Aguas de Meninos até se juntarem todos no Cabrito, 
atraz de Itapagipe, para o que as espingardas não haviam de fazer mal 
algum; sendo resto rezas escriptas, para livrar o corpo; 
Que o segundo consta delle já ter sido escripto, ha mais de anno e 
meio, para o fim tambem de guardar o corpo das ofensas de qualquer 
arma, contém orações que, depois de passadas as taboas, são estas 
lavadas para se beber a agua que livra das armas; 
Que o terceiro é um escripto ou bilhetede um negro para outro, 
dizendo que deviam sahir todos das duas até ás quatro horas 
invisiveis, e que depois de fazerem o que pudessem iriam juntar-se 
no Cabrito, detraz de Itapagipe, em um buraco grande que ahi há, e 
com a gente do outro engenho que fica atraz e junto, porque esta 
gente já tinha feito aviso e quando esta não viesse eles iriam juntar-se 
no mesmo engenho, tendo muito cuidado de fugir dos corpos das 
guardas para surpreendeu-os, até eles sahirem logo da cidade; 
Que o papel némero quatro é uma especie de A B C, por onde se 
principia a aprender a escripturação de Males; 
67 
 
Que o quinto, que foi achado em um breve com terra embrulhada, 
são Como que caminhos riscados e cerco feito, dizendo que por todo 
o caminho que passassem, ou ainda sendo cercados, não lhes há de 
acontecer cousa alguma, e por isso tinha a dita terra figurando o 
terreno do dito caminho; 
Que o sexto hé uma especie de proclamação para ajuntar gente, com 
signaes ou assinaturas de varios e assignado por um nome Mala-
Abubakar, afirmando que não há de acontecer cousa alguma no 
caminho, por que hão de passar livremente; 
O setimo é lição de quem aprende; 
Que o oitavo hé um escrito por um negro de nome Aliei para um de 
nome Adão, escravo de hum Inglez na Victoria, o qual diz que ás 
quatro horas havia de lá estar, e que o outro não sahisse sem .ele lá 
chegar; 
Que o nono hé butua especie de folhinha, em que os Males sabem o 
tempo dos jejuns para matarem depois carneiros. 
Apresentando-se-lhes duas taboas, huma escripta e outra limpa e sem 
letras, disse que a limpa já estava lavada das letras, como ele acima 
disse, cuja agua se bebe por mandinga, mas depois que tem vinte 
vezes escriptas, e que a outra, a escripta era a segunda lição de quem 
aprende a escrever. 
E nada mais disse sobre os dictos papeis e taboas, e por isso mandou 
o Juiz lavrar este, em que assignou com o senhor do mesmo escravo, 
por este não saber ler nem escrever e com as testemunhas presentes. 
E eu José Fernandes de Oliveira Lima, Escrivão juramentado, o 
escrevi. 
Para conservar ao documento todo o valor histórico não lhe alteramos 
a redação nem a ortografia. 
V. Em todos os fatos que precedem, atestam-se evidentes a extensão 
e influência do Islamismo professado pelos africanos que vieram para o 
Brasil. A conversão tinha alastrado e era legião o número dos fiéis. 
Importa, porém, reconhecer que o Maometismo não fez prosélitos 
entre os negros crioulos e os mestiços. Se ainda não desapareceu de todo, 
circunscrito como está aos últimos Africanos, o Islamismo na Bahia se 
extinguirá com eles. É que o Islamismo com o Cristianismo são credos 
68 
 
impostos aos Negros, hoje ainda muito superiores à capacidade religiosa 
deles, e que, apesar das transações feitas com o fetichismo, só se podem 
manter com o recurso de circunstâncias todas exteriores, especialmente 
mediante uma propaganda continua. 
Abandonados a si mesmos, os negros crioulos preferem naturalmente 
obedecer à sua inclinação espontânea para o fetichismo, adaptando a ele o 
culto católico. Muitas causas concorrem hoje para garantir ao Catolicismo 
sobre o Islamismo uma decidida preferência dos Negros. Em primeiro 
lugar, o desaparecimento gradual, para o Islamismo, da proteção isoladora 
das línguas africanas, em geral sempre desconhecidas da população crioula. 
Oferecendo aos Negros, contra as prepotências e violências dos senhores, 
um abrigo ou recesso inacessível, elas favoreciam a catequese muçulmana, 
dando um refúgio espiritual aos escravos, acossados pela religião católica 
dos dominadores. Em segundo lugar, a maior aproximação em que das 
mitologias mais ou menos desenvolvidas dos Negros, fica o Catolicismo 
com os seus santos e as pompas do seu culto externo. Temos demonstrado 
em diversos trabalhos que a faculdade de estabelecer equivalências e 
identidades entre os santos católicos e as divindades ou orishás nagôs 
representa na Bahia um dos maiores atrativos dos Negros para o 
Catolicismo. Finalmente, conta ainda o Catolicismo em seu favor com o 
exemplo ambiente de toda a população, em cujo seio vivem os negros 
crioulos, e que se diz católica. 
No entanto, pelo menos um bom terço dos velhos africanos 
sobreviventes na Bahia é musulmi ou malê, e mantém o culto perfeitamente 
organizado. Há uma autoridade central, o Iman ou Almámy, e numerosos 
sacerdotes que dele dependem. O Iman é chamado entre nós Limamo, que é, 
evidentemente, uma corrupção ou simples modificação de pronúncia de 
Almámy ou El Imámy. Os sacerdotes ou verdadeiros marabus chamam-se 
na Bahia alufás. Conheço diversos: na ladeira do Taboão nº 60, o haussá 
Jatô; na mesma rua nº 42, o nagô Derisso; no largo do Pelourinho, na 
ladeira das Portas do Carmo, o velho Nagô Antônio, com casa de armador 
junto à igreja de N. S. do Rosário; um haussá na ladeira do Alvo; outro na 
rua do Fogo; dois velhos haussás no Matatu. 
Acredito que Pacífico ou Licutan era Limamo em 1835 e que a sua 
prisão, bem como a recusa de seu senhor às propostas de sua libertação 
foram as causas ocasionais mais poderosas da insurreição daquele ano. 
69 
 
Ainda hoje os africanos sobreviventes dão como motivo da insurreição, 
conhecida geralmente pelo nome de Guerra dos Males, a recusa oposta 
pelos senhores à libertação dos negros que ofereciam pelos seus resgates o 
valor então estipulado de um escravo. Muitos senhores apoderavam-se 
mesmo desse dinheiro pela violência. No entanto o Limamo atual, cuja 
confiança tenho captado, me informa que naquele tempo era Limamo o 
negro Mala Abukar, que, como vimos, assinava a proclamação escrita em 
árabe e encontrada pela polícia. E diz ele que o nome brasileiro de Abukar 
era Tomé, negro que mais tarde foi deportado para a África. Entretanto, 
nenhum negro deste nome desempenhou papel importante na insurreição, o 
que pode ter sido devido a que o sigilo dos fiéis o pôs a salvo da ação 
policial. Mas do inquérito só constam dois Tomés, dos quais um morreu 
aqui e não se diz que o outro tenha sido deportado. 
O atual Limamo é o nagô Luis, e a sede da igreja maometana, a sua 
residência no Barris, à rua Alegria n.º 3. O Limamo é um homem alto e 
robusto, mas já fortemente curvado pela idade. Não me consta que tenha 
harém, mas a sua prole é numerosa. A sua mulher atual é uma negra crioula 
de mais de 30 anos, que esteve por algum tempo no Rio de Janeiro, onde se 
converteu ao Islamismo. É uma negra bem disposta, inteligente, sabendo ler 
e escrever alguma coisa e muito versada na leitura do Alcorão. Como ela 
não conhece o árabe e o Limamo não sabe ler nem escrever o português, 
existem na casa um Alcorão em árabe para o Limamo e uma versão 
portuguesa para sua mulher. Nem um, nem outro tem, porém, a precisa 
instrução para o cargo, nem sabem falar o árabe e a sua ignorância junta a 
uma boa dose de fanatismo mullumi faz deles antes marabus graduados do 
que verdadeiros sacerdotes do profeta. Queixam-se amargamente da 
ingratidão dos negros crioulos filhos de males, os quais preferem a vida 
fetichista dos negros de santo ou iorubanos ou a conversão católica a 
perseverar na fé de seus maiores. Temem-se muito do ridículo, do desprezo 
ou mesmo das violências da população crioula, que os confunde com os 
negros de candomblés ou feiticeiros. 
Os fiéis seguem mais ou menos regularmente os preceitos musulmis, 
mas todos os ofícios e atos religiosos são praticados sob a maior reserva. 
Afirmam que, como um nobre protesto contra as violências sofridas em 
1835 pelos Males, nunca mais a igreja musulmi baiana deu forma pública às 
suas festas. Mesmo entre os negros há quem afirme, porém, que essa 
70 
 
reserva vem ainda como consequência do terror que a repressão do último 
levante incutiu nos negros. O que parece, no entanto, é que, se essa foi acausa, a reserva se mantém hoje pela decadência manifesta em que caiu a 
igreja. 
A modesta casa da rua da Alegria, que serve atualmente de mesquita, 
tem uma sala interna destinada aos ofícios e atos divinos. Ali reunem-se os 
Males todas as sextas-feiras para a prece ou missa comum. Duas vezes por 
ano há um grande jejum, que dura 60 dias, sendo que só a 30 dias são 
obrigados os crentes, os outros 30 a mais se exigem apenas dos sacerdotes. 
Os atos fúnebres são praticados com toda a regularidade pelos alufás 
nas freguesias por que se distribuem, pois está esta cidade dividida em um 
certo número de circunscrições eclesiásticas a cargo de outros tantos alufás. 
Na sala de visitas ou de estudo e de ensino do Limano vê-se uma 
grande mesa com os livros religiosos, com tábuas de escrita, tinteiros, penas 
especiais, etc.. Ao lado uma grande arca de madeira polida, onde presumo 
se guardem os paramentos sacerdotais. Nunca vi o Limamo no exercício 
das suas funções; mas já vi o alufá Jató vestido de alva e turbante. Das 
paredes estão pendentes quadros com o plano do templo de Meca, com 
inscrições em árabe, com pombas do Espírito Santo, etc.. 
Tão fetichistas como os negros católicos ou do culto iorubano, os 
Males da Bahia acham meio de fazer dos versetos do Alcorão, das águas de 
lavagem, das tábuas de escrita, de palavras e rezas cabalísticas, etc., outras 
tantas mandingas, dotadas de notáveis virtudes miraculosas, como soem 
fazer os negros cristianizados com os papéis de rezas católicas, com as fitas 
ou medidas de santos, etc.. Possuo grande coleção de gris-gris, mandingas 
ou amuletos dos negros musulmis. Não querendo confiar na tradução dos 
escritos árabes pelos negros Males desta cidade, enviei alguns exemplares 
para Paris, onde foram traduzidos no Office Hasenfeldes traductions 
légales et autres en toutes langues, 12, Place de la Bourse. O padre 
maronita, Pierre Andourard, teve a gentileza de traduzir outros. São todos 
versetos do Alcorão ou algumas palavras místicas, escritas de modo 
simbólico ou mágico. Bem o demonstra a tradução francesa, cuja versão 
portuguesa damos em seguida. 
Peça nº 1. 
71 
 
No alto 
“Em nome de Deus Clemente e Misericordioso, derrame-se a benção 
de Deus sobre nosso mestre Maomé, sobre sua família e sobre seus 
companheiros, bem assim a saudação.” 
 O resto do papel (frente e verso), salvo o quadrado do meio, está 
coberto da fórmula seguinte, repetida indefinidamente: 
“Obedeço à ordem do Senhor Misericordioso”. O quadrado do meio 
é ocupado pela invocação dos nomes dos principais personagens 
sagrados do Islam. Notadamente lê-se: 
 “Ali (genro do profeta), Gabriel, Maomé, Joseph, Ismael, Salomão, 
Moisés, Davi, Jesus”, etc.. 
Peça nº 2. 
“Certamente de dialeto árabe, mas de árabe muito incorreto, muito 
mal escrito e muito mal ortografado, e sobretudo truncado de modo a 
não permitir tentar-se mesmo dar dele uma tradução literal. Parece 
que o autor deste escrito celebra a excelência do Korão. 
“No verso: “uma estrela, em cada raio a palavra Maomé”. 
“Em um canto: “Em nome de Deus clemente misericordioso”. 
“Os retoques vermelhos (com sangue) anunciam que o dono do 
talisman foi satisfeito na sua súplica, seu pedido ou seu voto. Esta 
peça tem primazia no Culto”. 
Peça nº 3. 
“Centésima sexta Surata do Korão, repetida seis vezes. A tradução 
desta Surata é a seguinte:” 
“Um. — À boa inteligência dos Koraischitas (Tribo de Meca, de que 
fazia parte Maomé).” 
“Dois. — À boa inteligência para enviar caravanas no inverno e no 
verão.” 
“Três. — Adorem eles o Deus deste templo, Deus que os alimentou 
contra a fome e lhes deu confiança contra o temor”. 
Peça nº 4. 
“Fragmento da mesma Surata.” 
72 
 
“Nota comum às peças 1, 2, 3 e 4 e à folha fotografada:” 
“Estas diferentes peças (uma, duas, três e Quatro) são talismãs ou 
gris-gris, destinados a proteger o indivíduo que as traz. São todas 
escritas em um árabe deformado e especialmente apropriado aos 
adeptos que professam o culto de Maomé. Em muitos lugares destes 
documentos encontram-se palavras destacadas, incorretas e 
truncadas, tiradas daqui e dali dos versetos do Korão; nessas palavras 
falta geralmente a sílaba final, às vezes a do começo, ora a principal, 
a alma da palavra. Em resumo: de tudo o que se pode decifrar, foi 
impossível fazer uma composição mesmo simplesmente literal. O 
todo (peças 1, 2, 3 e 4) deve ser considerado como místico, escrito 
por algum inurabu que há de ter vendido o seu talismã a algum pobre 
diabo ignorante e fanático, e escrito de modo que ele não 
compreenda patavina. O texto da folha fotografada deve ser incluído 
na mesma ordem de ideias”. 
Peça nº 5. (Talismã): 
“Tanto quanto as linhas intactas permitem julgar, seguramente não e 
escrito em árabe. Esta peça parece ser de um dialeto africano, escrito 
em caracteres árabes, da região de Turnbuctu, em um raio de 300 
quilômetros. Os Imans empregam geralmente os caracteres árabes 
para escrever o seu dialeto, que muitas vezes tem curso e valor 
apenas em uma tribo, em uma aldeia, em um burgo. O autor da peça 
n.° 5 deve possuir mais do que elementarmente a língua hebraica 
africana, porque os seus traçados não deixam dúvida alguma a este 
respeito. Serviu-se delespara desfigurar a forma árabe. Foi o suor 
humano que corroeu e desfez a maior parte das palavras deste 
documento. Pôsto que sem valor, pôde-se reconhecer que ainda esta 
peça participa do Korão”. 
“Folha fotografada:” 
“No alto: — “Em nome de Deus Clemente e Misericordioso”. 
“Depois: — Os versetos 129 e 130 da 2.a Surata do Korão, repetidos 
trinta e duas vezes, mais quatro na margem esquerda.” 
“A tradução destes versetos é a seguinte:” 
“129. — Um profeta veio para vós, um profeta tomado entre vós. 
Vossas iniquidades lhe pesam, ele deseja ardentemente ver-nos 
crentes. Ele é cheio de bondade e de misericórdia.” 
“130. — Se eles se afastam (de teus ensinamentos), dize-lhes:” 
73 
 
“Deus me basta. Não há outro Deus senão ele.” 
“Pus nele a minha confiança; é o possuidor do grande trono (isto é, o 
trono da majestade divina)”. 
Facilmente se compreendem as dificuldades que hão de encontrar 
aqueles que pretendem, como o Office Hasenfeld, traduzir estes 
documentos pela significação ordinária das palavras empregadas. Eles só 
podem ser devidamente entendidos pelos sacerdotes ou marabus males. E 
certamente era alufá ou maraba o negro haussá Albino que serviu de 
tradutor perito para os documentos da insurreição de 1835. De outro modo 
não se compreende que ele os tivesse mais do que traduzido, interpretado 
tão bem. 
Como um exemplo destes documentos, gris-gris, talismãs mandingas, 
damos em seguida (figura 1), a reprodução litografada da peça nº 5 6 que o 
Office Hasenfeld, de Paris, diz não ser de língua árabe, embora escrito em 
caracteres árabes7. A suposição de que se trate de uma língua das 
 
6
 Entre os clichés, que acompanhariam este livro, encontramos as quatro reproduções de 
amuletos, que são as figuras ns. 1, 2, 3 e 4, algumas com esta indicação: “Situação p. .63”. 
(Nota de H. P.). 
7
 Pareceu-me oportuno transcrever da obra de Binger a seguinte nota de Houdas, professor 
da Escola de línguas orientais sobre a escrita da gente de Kong. 
A escrita árabe empregada pela gente de Kong é a de que se servem todos os 
negros do Sudão; pertence ao gênero que eu chamei sudani e que é uma das 
variedades do tipo maghebino. O que caracteriza este gênero de escrita é a 
notável semelhança que conservou um grande número de letras com a escrita 
cufica, tal como era usada para o século IV da hegira. Nela se encontra, com 
efeito, a forma retangular das letras enfáticas que, nos outros gêneros da 
escrita, foi substituída pela figura de uma pena deitada;as três letras djim, ha 
e kha são representadas por uma linha quebrada em vez de uma semielipse 
acompanhada da parte correspondente da sua normal: o dal e o dzal tem três 
ramos em vez de dois, etc. De acordo com estas observações, parece bem 
difícil não admitir que a gente do Kong, aliás como os outros muçulmanos 
do Sudão, tenha tirado sua escrita diretamente do cufico na época em que 
este último caráter era ainda usado nos livros litúrgicos, isto é, mais tarde, no 
V século da hegira. Além disso é mais do que provável que a introdução da 
escrita árabe e a do Islamismo, que a trouxe consigo, se tenham feito 
diretamente do Kairuam e não de Marrocos ou da Algéria, porque nestes dois 
últimos países o uso do cufico parece ter cessado desde muito cedo, para dar 
lugar a uma escrita mais elegante e mais cursiva. Seria bem surpreendente 
que os negros tivessem adotado um caráter pesado e sem graça, se tivessem 
74 
 
proximidades de Tumbuctu, posto que não seja impossível, é pouco 
provável. Inclino-me a crer se trata da língua haussá que, na África, é 
correntemente escrita nestes caracteres. Em todo o caso, aqui fica o 
documento, para que os competentes resolvam a dúvida. 
Um dos alufás desta cidade deu-me o destino de cada um dos 
principais gris-gris que estão em meu poder, e distribuiu-os por ordem dos 
seus merecimentos, pois, naturalmente de acordo com o valor venal, eles 
vão crescendo de prestigio miraculoso, em uma progressão rigorosamente 
estabelecida. 
O curioso processo de reforçar-se o efeito moral ou espiritual das 
orações pelo efeito material da sua ingestão é um atestado mais eloquente 
da impossibilidade em que se acham os Negros de dispensar as práticas 
fetichistas. Como já vimos, consiste este processo em se escreverem as 
orações em tábuas de madeira apropriadas, e depois de tê-las escrito vinte 
vezes, na última lavar a tábua para que o crente beba esta água tida por 
miraculosa, naturalmente por se acreditar, que ela conduz consigo o 
princípio ou virtude milagrosa, suposto material, que a oração encerra. 
Explicava-me o alufá que por esta forma se fecha o corpo a todos os 
malefícios, — essa preocupação eterna do temor da feitiçaria, que domina e 
subjuga o Negro. Este fato, que se dá correntemente entre nós, é a 
reprodução fiel do que ainda hoje se passa na África. Eis como o capitão 
Binger8 descreve o que a este respeito ocorreu com ele no Kong, em 1888: 
“Não se passava um dia sem que eu recebesse a visita de um vizinho que 
me vinha pedir um n escrito destinado a dar inteligência a seus filhos. 
Debalde eu expunha que a eficácia de tal remédio era difícil de provar; 
insistiam por modo tal que, com grande pesar, fui forçado por vezes a me 
prestar a esta fantasia. Desempenhei-me dela o mais lealmente possível, 
escrevendo à tinta nas pequenas tábuas de madeira, que lhes servem de 
ardósia: “Deus lhes dê a luz”. As tábuas eram lavadas em seguida, e a tinta, 
de mistura com a água que tinha servido para limpá-las, era dada a beber 
aos meninos. Outros vinham solicitar-me um escrito que preservasse das 
 
tido conhecimento de um tipo, de um traçado mais cômodo e de um talhe 
mais livre. 
8
 Binger, Du Niger au golphe de Guiné, Paris, 1892, vol. I, pág. 321. 
75 
 
balas e fizesse desviar os seus próprios projetos, a fim de que nenhum dos 
seus pudesse ser atingido na guerra”. 
Se só na Bahia parece terem organizado os Negros uma verdadeira 
igreja maometana, não é de crer que só para a Bahia tivessem vindo negros 
males. 
Afirmam-me o Limano e alguns alufás que também no Rio de 
Janeiro existe uma igreja musulmi regularmente organizada e sobre a qual 
não pesa, como sobre a da Bahia, a interdição das festas solenes que lá são 
executadas com grandes pompas. Mas, tanto quanto pude inferir destas 
informações, trata-se antes de uma igreja de muçulmanos árabes em que os 
negros males são admtidos. 
A Festa dos Mortos, que o Dr. Melo Morais9 descreve em Penedo 
(Alagoas), é com certeza uma festa muçulmana. A prática de rezas e longos 
jejuns, a abstinência de bebidas alcoólicas, as relações das festas com as 
fases lunares, o sacrifício de carneiros, a vestimenta de longas túnicas alvas, 
descritas ou mencionadas pelo Dr. Melo Morais, são todas práticas e 
costumes males, que não se encontram nas festas dos negros fetichistas. De 
que nacionalidade eram esses males, é o que o autor não disse, não indagou, 
nem tenho dados para julgar. 
VI. Se, com efeito, foram os Haussás e os Tapas que propagaram e 
desenvolveram o Islamismo na Bahia, é quase certo que, para a introdução 
desta religião, eles foram precedidos por outra família negra, os Mandês ou 
mandingas. 
Em trabalho anterior a este, procurando a origem da denominação de 
“Males” que os negros muçulmanos tomaram na Bahia, fui levado a 
aproximá-la do termo “Malinkê” a que atribui, seguindo a Hovelacque, uma 
significação ofensiva ou deprimente. A aproximação era justa, a explicação 
da origem estava, porém, errada. Como o termo “Malinkê” o nosso Male 
indica a família Mande ou Mandinga. 
“Malê” é evidentemente uma ligeira e insignificante corrupção de 
Melle, Mellé, Mali ou Malal, donde também vem “Malink”, (“Mali-nkê”, 
gente ou homens de Mali). Mali ou Mellê era o nome de um dos três 
 
9
 Dr. Melo Morais, Festas e tradições populares do Brasil, Rio de Janeiro, pág. 333. 
76 
 
célebres e afamados impérios em que, no começo da era cristã, se 
desenvolveu todo o brilho da civilização central da bacia ou vale do Niger. 
No império de Ghanata ou Ghenata, suposta origem do apelido Guiné, que 
a notória fama do império africano levara os portugueses a aplicar a toda a 
África Ocidental; assim como nos reinos de Mali e do Sonrag, incarnou-se 
a grandeza dessa civilização, desenvolvida no coração da África 
setentrional, sob o concurso e a influência dos Senhadjos (Bérberes), Fulás 
e Mandês. De fato, tomando por guia os historiadores árabes que nos 
legaram a história dos reis Sonrays, Binger demonstra que, desde muito 
cedo, os mandês ou Mandingas exerciam ali poderosa influência e 
acabaram apoderando-se da direção suprema daqueles estados e impondo a 
todos, por largo prazo, a suserania do reino mandinga, Mali. Deslumbrou 
aos orientais do Cairo e de Meca, pelo seu fausto e esplendor, a 
peregrinação do mansa Muça, rei de Mali em 1326. Só nos fins do século 
XV (1499), o rei sonray Askia destruiu o poderio Mali ou Melle. E dessa 
época os Fulás, que ocupavam o reino, dispersaram-se, vindo, talvez pela 
primeira vez, ter grande fração deles às regiões ocidentais da Senegâmbia 
(Futa-Djalon, Alto-Senegal), infiltrando-se mesmo nos povos indígenas da 
costa ocidental: Sérêrês, Yalofs, etc.. Não parece ter sido, todavia, este o 
primeiro núcleo do Islamismo da Senegâmbia, que já de antes devia estar 
impregnada de tradições malis. Mais ou menos um século depois (1584 a 
1590), as invasões marroquinas dirigidas pelo eunuco espanhol, o pachá 
Djodar ou Diodar, que trazia consigo muitos andaluzes, destruíram todo 
este antigo poderio, e apoderaram-se os expedicionários de Tumbuctu. 
Dispersos por sua vez os Mandês, a sua principal emigração fez-se para 
Oeste e com eles vieram de novo para a Senegâmbia as tradições malis 
associadas à cultura muçulmana. Já muito antes, porém, os Sussus ou 
Soçõs, ramo mande, tinham sido obrigados a emigrar nesta direção e 
haviam ocupado a Alta Gambia, Casamansa, etc. 
Naturalmente foram estes Mandês e com eles os Fulás da ala 
ocidental, que todos viviam impregnados das tradições do poderio Mali na 
alta curva do Níger, os introdutores do Islamismo africano no Brasil com os 
escravos da Senegâmbia, da Gâmbia,

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