Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Doutorado em Educação “Digo Escuela del Sur, porque, en realidad, nuestro Norte ES el Sur” (Joaquin Torres Garrcia – 1874 - 1949, artista plástico, escritor e professor uruguaio) CLAUDIO ANDRÉS BARRÍA MANCILLA ii UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Doutorado em Educação CLAUDIO ANDRÉS BARRÍA MANCILLA Pela poética de uma Pedagogia do Sul Diálogos e reflexões em torno de uma filosofia da educação descolonial desde a Cultura Popular da Nossa América Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção de Grau de Doutor. Área de confluência: Estudos do cotidiano da Educação Popular. Orientadora Professora Dra. REGINA LEITE GARCIA Niterói, Junho 2014 iii B275 Barría Mancilla, Claudio Andrés. Pela poética de uma Pedagogia do Sul: diálogos e reflexões em torno de uma filosofia da educação descolonial desde a Cultura Popular da Nossa América / Claudio Andrés Barría Mancilla. – 2014. 233 f. Orientadora: Regina Leite Garcia. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2014. Bibliografia: f. 225-233. 1. Filosofia da Educação. 2. Colonialidade. 3. Descolonialidade. 4. Educação popular. 5. Cultura popular. 6. Epistemologia. 7. América do Sul. I. Garcia, Regina Leite. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título. CDD 370.1 iv v A mis hijos Camilo, Lucca e Naomi que de encuentros con el mundo y con los otros van tejiendo sus trayectorias, reinventándose de vida y amores A todos e todas que, a pesar de tudo, tornaram-se capazes de aprender a amar, tornando-se parte do contínuo fluxo humano de fazer e criar e r-existir com os outros e com o mundo. Aos que sonham, aos que brincam, aos que se atrevem, aos que sentem, aos que se dão, Às crianças. vi RESUMO Esta tese consiste em um exercício de reflexão no cotidiano-mundo - um esforço de pesquisa transdisciplinar articulado a partir do campo da cultura popular da nossa América - sobre as possibilidades e a necessidade de se (re)pensar a educação, dentro e fora da Escola, como parte de um projeto de libertação dos oprimidos (DUSSEL, 1977, 1977b; FANON, 2006; FREIRE, 2005). Desde uma perspectiva crítica descolonial e assumindo um contexto de interculturalidade, as reflexões são urdidas e vinculadas diretamente a trajetórias, entendidas estas como fluxos contínuos e descontínuos de práticas sociais, políticas, estético/culturais e educativas em contextos de r-existência, na diferença colonial (MIGNOLO, 2003). É, pelas releituras propostas desde o pensamento descolonial, uma tentativa de articular aspectos que, ao menos discursiva e analiticamente, estiveram cindidos na tradição teórica ocidental. De um modo geral, estas releituras partem da inclusão de categorias espaço-temporais aplicadas a uma construção rigorosamente inter e transdisciplinar, de modo a contemplar o caráter tópico de qualquer pensamento e enunciação. Algumas das releituras referidas são: sobre o conceito de aura da arte (BENJAMIN, 1985) a partir da diferença colonial, articulada ao entendimento da cultura da nossa América como exterioridade ontológica (DUSSEL, 1980) do sistema- mundo moderno/colonial (WALLERSTEIN, 1974; QUIJANO, 2000); do conceito de trajetória como lócus em movimento da pesquisa e como base de uma conceituação não essencialista dos sujeitos ou atores históricos, sua memória, sua identidade, sua ação no mundo em relação contínua e suas narrativas - para além da codificação da língua colonial, na paisagem, no gosto, nas práticas, no corpo, na produção estética e simbólica, etc.; e do poder, a partir das experiências insurgentes e instituintes em curso na nossa América, das que se desprende a noção de poder obedencial, proposta por Dussel (2007). O desejo último é o de indagar na direção de uma pedagogia descolonial, construída a partir do nosso lugar no mundo, uma práxis pedagógica que participe da ruptura das correntes subjetivas (memória, identidade, imaginário, enunciação, anunciação e denúncia) e objetivas (acumulação, exploração do trabalho, extrativismo, violência, militarização) da dominação, do modo como esta se dá nas sociedades da Nossa América na moderno/colonialidade deste século XXI. Em tempo, a tese propõe uma releitura possível do campo da Educação Popular desde a perspectiva descolonial. Isto é, assumindo, na sua narrativa e na sua prática, a diferença colonial como locus de enunciação. Desta última se desprende o que chamo de Pedagogia do Sul. Palavras Chave: filosofia da educação, colonialidade/descolonialidade, educação popular, cultura popular, epistemologias do sul. vii ABSTRACT This thesis is a reflection exercise in everyday life-world - one articulated transdisciplinary research effort from the field of popular culture of our America - about the possibilities and the need for education (re) thinking inside and outside the school, as part of a project of liberation of the oppressed (DUSSEL, 1977, 1977b; FANON, 2006; FREIRE, 2005). From a critical decolonial perspective and assuming a context of interculturalism the reflections are woven directly linked to trajectories understood as continuous and discontinuous flows of social practices, political, aesthetic/cultural and educational contexts of r-existence in colonial difference (MIGNOLO 2003). It is proposed by readings from the de-colonial thinking - an attempt to combine aspects that at least discursive and analytically were cleaved in western theoretical tradition. In general, these readings leave the inclusion of space-teporais categories applied to a strictly inter-and transdisciplinary construction, in order to include the character topic any thought and utterance. Some of these readings are about the concept of aura of art (Benjamin, 1985) from the colonial difference, articulated understanding of the culture of our America as ontological exteriority (DUSSEL, 1980) of the modern world-system/colonial (WALLERSTEIN, 1974; QUIJANO 2000); the concept of moving trajectory as the locus of research and as a basis for a non-essentialist conception of the subject or historical actors, his memory, his identity, his action in the world in their ongoing relationship and narratives - in addition to the coding of the colonial language, landscape, in taste, in practice, in body, aesthetic and symbolic, production etc..; and power, from the insurgents and instituting ongoing experiments in our America, that emanates from the notion obedencial power, proposed by Dussel (2007). The last wish is to investigate the direction of decolonial pedagogy, built from our place in the world, a pedagogical practice that participates in the rupture of subjective currents (memory, identity, imaginary, enunciation, annunciation and denunciation) and objective (accumulation , labor exploitation, extraction, violence, militarization) domination, the way this happens in societies of Our America in modern/coloniality this XXI century. In time, the thesis proposes a possible reinterpretation of the field of popular education since the de-colonial perspective.That is, assuming, in his narrative and in its practice, the colonial difference as a locus of enunciation. The latter comes off what I call Pedagogy of the South. Keywords: philosophy of education, coloniality / decoloniality, popular education, popular culture, Epistemologies of the South. viii RESUMÉ Cette thèse consiste en un exercice de réflexion dans un quotidien-monde - un effort d'investigation transdisciplinaire articulé á partir du champ de la culture populaire de notre Amérique- sur les possibilités et la nécessité de (re)penser l'éducation, á l'intérieure et en dehors de l'Ecole, comme faisant partie d'un projet de libération des opprimés (DUSSEL, 1977, 1977b; FANNON, 2006; FREIRE, 2005). Depuis une perspective critique décoloniale et assumant un contexte d' interculturalité, les réflexions sont tissées et liées directement aux trajectoires, celles -ci entendues comme flux continus et discontinus de pratiques sociales, politiques, esthétiques/culturelles et éducatives en contexte de r-existence, dans la différence colonial (MINGOLO, 2003). C'est, par les relectures proposées depuis la pensée décoloniale, une tentative d'articuler certains aspects que, pour le moins de manière discursive et analytique, furent scindées dans la tradition théorique occidentale. D'un mode général, ces relectures partent de l'inclusion des catégories espace-temporelles appliquées á une construction rigoureusement transdisciplinaire, de manière á contempler le caractère topique de chaque pensée et énonciation. Certaines des relectures concernées sont: sur le concept de aura de l'art (BENJAMIN, 1985) á partir de la différence coloniale, articulée á la compréhension de la culture de notre Amérique comme extériorité ontologique (DUSSEL, 1980) du système-monde moderne/colonial (WALLERSTEIN, 1974; QUIJANO, 2000); du concept de trajectoire comme locus en mouvement de recherche et comme base d'une conceptualisation non essentialiste des sujets ou acteurs historiques, leur mémoire, leur identité, leur action dans le monde en relation continue et leur récits - au delà de la codification de la langue coloniale, dans le paysage, le goût, les pratiques, le corps, dans la production esthétique et symbolique, etc.; et du pouvoir á partir des expériences insurgées et instituées en cours dans notre Amérique, de celles oú l'on désapprend la notion de pouvoir obéissant, proposé par Dussel (2007). L'ultime désir est celui d'investiguer dans la direction d'une pédagogie décoloniale, construite á partir de notre lieux du monde, une praxis pédagogique qui participe de la rupture des chaines subjectives (mémoire, identité, imaginaire, énonciation, annonciation, et dénonciation) et objectives (accumulation, exploitation du travail, extraction,violence, militarisation) de la domination, comme elle á lieu dans les sociétés de Notre Amérique dans la moderne/colonisation de ce siècle XXI. La thèse propose une relecture possible du champ de L'Education populaire depuis une perspective décoloniale. Celá est, assumant, dans son récit et dans sa pratique, la différence coloniale comme locus d'énoncé. De ce dernier se détache de ce que j'appelle Pédagogie du Sud. Mots Clefs: philosofie de l’éducation, colonialité/decolonialité, éducation populaire, culture populaire, epistemologie du sud. ix RESUMEN Esta tesis consiste en un ejercicio de reflexión en el cotidiano-mundo – un esfuerzo indagatorio transdisciplinar articulado a partir del campo de la cultura popular de nuestra América - sobre las posibilidades y necesidad de (re)pensarse la educación dentro y fuera de la Escuela como parte de un proyecto de liberación de los oprimidos (DUSSEL, 1977, 1977b; FANON, 2006; FREIRE, 2005). Desde una perspectiva crítica descolonial y asumiendo un contexto de interculturalidad, las reflexiones se urden y vinculan directamente a trayectorias, entendidas estas como flujos continuos y discontinuos de prácticas sociales, políticas, estético/culturales y educativas en contextos de r-existencia, en la diferencia colonial (MIGNOLO, 2003). Es, por las relecturas propuestas desde el pensamiento descolonial, un intento de articular aspectos que, al menos discursiva e analíticamente, estuvieron escindidos en la tradición teórica occidental. En general, estas relecturas parten de la inclusión de categorías espacio-temporales aplicadas a una construcción rigorosamente inter y transdisciplinar, de modo a contemplar el carácter tópico de cualquier pensamiento y enunciación. Algunas de las relecturas referidas son: sobre el concepto de aura del arte (BENJAMIN, 1985) a partir de la diferencia colonial, articulada al entendimiento de la cultura de nuestra América como exterioridad ontológica (DUSSEL, 1980) del sistema-mundo moderno/colonial (WALLERSTEIN, 1974; QUIJANO, 2000); del concepto de trayectoria como lócus en movimiento de la investigación y como base de una conceptuación no esencialista de los sujetos o actores históricos, su memoria, su identidad, su acción en el mundo en relación continua y sus narrativas – más allá de la codificación de la lengua colonial, en el paisaje, en el gusto, en las prácticas, en el cuerpo, en la producción estética y simbólica, etc.; y del poder, a partir de las experiencias insurgentes e instituyentes en curso en nuestra América (vinculadas de un modo u otro a nociones del orden filosófico, político, social de los pueblos originarios), de las que se desprende la noción de poder obedencial, propuesta por Dussel (2007). El deseo último es el de indagar hacia una pedagogía descolonial, construida a partir de nuestro lugar en el mundo, una praxis pedagógica que participe de la ruptura de las corrientes subjetivas (memoria, identidad, imaginario, enunciación, anunciación y denuncia) y objetivas (acumulación, explotación del trabajo, extractivismo, violencia, militarización) de la dominación, como esta se da en las sociedades da Nuestra América en la moderno/colonialidad de este siglo XXI. Concomitante, la tesis propone una relectura posible del campo de la Educación Popular desde la perspectiva descolonial. O sea, asumiendo, en su narrativa y práctica la diferencia colonial como locus de enunciación. De esta última relectura se desprende lo que he llamado Pedagogía del Sur. Palabras Clave: filosofía de la educación, colonialidad/descolonialidad, educación popular, cultura popular, epistemologías del sur. x AGRADECIMENTOS Gracias a la vida, que me ha dado tanto Me ha dado el sonido y el abecedario Con él las palabras que pienso y declaro Madre, amigo, hermano y luz alumbrando Violeta Parra Yo digo que las estrellas Le dan gracias a la noche Porque en cima de otro coche No pueden lucir tan bellas Silvio Rodriguez Somos movimento, trajetórias em relação, uma sucessão de encontros que nos definem e nos refazem de sentidos. É a partir desses encontros, com o mundo e com o outro, que projetamos tempos e espaços, definindo afazeres, compromissos e afetos. Todo fazer é ato coletivo, mesmo em solidão, somos parte desse contínuo fluxo, histórico, social e biocultural. Cada agradecimento é, então, um canto à própria vida, e a vida canta e se reconhece plural, diversa, contínua. Para além das formalidades que a institucionalidade impõe, agradecer é assumir o canto desse reconhecimento da própria existência-em-relação e, assim, da própria incompletude. É perceber, como disse o poeta Manoel de Barros – em cujo nome agradeço à poesia – que “o melhor de mim sou eles”. Este trabalho é, em boa medida, resultante de trajetórias de vida - sempre plurais, pois sequências de encontros - que definiram as narrativas das pessoas da minha pessoa, por tanto meu “canto geral” aos encontros que, em seu momento, me alimentaram de existires e de sonhares, à sua vertenteinfinita. Um Canto agradecido à ‘la mama Luisa’, María Luisa Mancilla Délano, gênese primeira da minha diversidade biocultural e vínculo indelével da minha ontogênese social. À sua intuição certeira e sua coragem admirável, ao seu amor indizível. E nessa mesma interface de trajetórias que se abrem e se reencontram renovadas de compromissos políticos e afetivos, aos meus amados hermanos mayores, com os quais aprendi cedo a me reconhecer na diversidade, a respeitar e admirar trajetórias diversas e, por vezes, aparentemente opostas, com amor, Cecília, María Angélica, Sergio y Reinaldo, gracias por ello. Em seu nome, um canto de fraternura a todos os primos, Juan, Manuel, Pablo e Gabriel Razeto, irmãos também na aventura de irmos descobrindo a vida, e no nome de Luis Razeto Migliaro e da “tía Pila” - em cuja casa me senti sempre acolhido, como na minha, um agradecimento a todos os “tios luchos”, cuja história tanto nos legou. Um Canto agradecido e alegre como de “Zorsal” aos meus filhos Camilo, Lucca e Naomi, com os quais vou aprendendo a cada dia novos sentidos para as palavras cuidado, respeito, autonomia, liberdade, carinho. Sem eles eu não seria nem sombra nem miragem. A Rosana Ilabaca Parry, que desde seu refúgio nos confins mais frios do sul mundo, foi companheira na mais difícil tarefa de reinventar a memória, o amor e o significado da palavra companheira. Pelo apoio constante na distância. xi À minha companheira Dani, Daniela Nunes Araujo, um canto inventado e puro, pelo encontro, pela coragem, pela alegria de viver, pela paciência e pela aposta diária, pela vida cotidiana e pela aventura, pelo desejo e, acima de tudo, pelo mergulho em picada no devir, no sem contorno definido, onde o único sisal é aquele que vamos tecendo, com amor, pelo Nada. Um agradecimento, como o canto que a terra devolve à chuva, à minha família carioca, construída em laços cotidianos de irmandade escolhida, de confiança e cumplicidades, de carinhos e afetos, de companheirismo profundo. Roberto Marques, pelo caminhar e o pensar juntos ou por perto. Elizabeth Serra pelo carinho incondicional, pela certeza da trajetória juntos, pelo exemplo de amor, coragem e luta. À Carla Sartor, à amizade e a busca de coerência, à Paula, pela persistência e pelo papel decisivo na minha entrada no programa de doutorado e nos debates que se seguiram. À Marcia Gatto, ao Helder e à Vitória; a Rômulo, Helene e à pequena Lívia, vizinhos do coração. À Monique pelo afeto, pelo cuidado e o exemplo de articulação corajosa entre saber, arte e resistência no campo acadêmico. À Fernanda pelo carinho e a delicadeza das palavras, e em nome deles a todas e todos que me ensinam os sentidos da palavra amizade; a eles, pelo encontro. À Juli, entre tantos outros cantos que trás seu devir, um agradecimento enorme pela leitura dos rascunhos, pelo pensamento instigante e os debates generosos, pela revisão de boa parte deste trabalho, pelo olhar amoroso e corajoso que seu estar no mundo lança à vida, e pelos pães e queijo partilhados. Um canto de lume, do chão, pela poesia e o fazer artesanal, a cada um e cada uma dos tearteiros e tearteiras, seres engajados e apaixonados como poucos, que vêm tecendo, fiando juntos um cotidiano trabalho engajado no afeto, no compromisso com a arte e com o Outro, com a educação, com a cultura popular brasileira e os saberes dos seus povos, e com a construção de práticas socioambientais ética e esteticamente sustentáveis. Com eles um agradecido abraço, com fraternura, à Denise, pelo aprendizado e a reinvenção da palavra e do fazer, do cuidado minuciosos e rigoroso da estética da terra, da fabulação, do canto e da brincadeira, pela confiança e a parceria no mergulho de tornar possível nossa teia TEAR. Às crianças da nossa terra, pela potência do seu imaginário, pelo despudor de brincar e abraçar, pela paixão da sua cultura, memória viva do nosso ser comunitário, elo esquecido com a nossa ontogênese descolonial. Aos professores-em-formação que partilharam comigo a experiência de reinventar a sala de aula nos cinco anos que lecionei na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, pelos diálogos, pela escuta, por se atreverem à curiosidade epistêmica, por semearem com suas trajetórias as, por vezes, frias paredes da academia. À professora Regina Leite Garcia, orientadora nesta pesquisa dialógica e reflexiva, pela instigação inicial de pensar os estudos desde o subalterno e do cotidiano, abrindo a possibilidade de um giro descolonial na pesquisa. Ao poeta e educador Carlos Brandão, pelo encontro e a palavra, pela humildade e a poesia, e em seu nome a todos os educadores e educadoras populares que, junto aos movimentos xii sociais da nossa América, na contracorrente hegemônica e abraçados amorosamente à sorte dos condenados da terra, produziram um pensamento original e fértil como poucos no recém passado século, a eles um assovio enamorado de aprendiz de passarinho. A todos e todas que mantêm vivo e potente o sonho de uma universidade pública, gratuita e de qualidade, cuja força incentiva e fomenta a produção de conhecimentos que tanto precisa o Brasil e a nossa América. xiii SUMÁRIO Um Prefácio - Carta ao sujeito da modernidade,....................................................................................15 ACHANDO OS (DES)CAMINHOS (E os meus lugares de ver) ..........................................................16 [chegança e Walking bass - algumas pistas para andar] [sankofa - o lócus das minhas trajetórias como exterioridade e o encontro nelas com o pensamento social da nossa América] [Alguns elementos nodais da discussão proposta] Trajetórias, diálogos e reflexões epistêmicas: por uma metodologia da pesquisa, da narrativa e da prática educativa descolonizadoras. [a ilusão biográfica e o conceito de trajetória] [trajetórias-maaya como o devir das pessoas da pessoa - um antídoto desde a exterioridade ao perigo de uma única história] Da CRISE (e outras ruas) .......................................................................................................................46 [Os novos fantasmas da velha Europa e a emergência de novos/velhos saberes] [Dos sentidos da revolta e da subversão que educa] Da RAZÃO (e do lugar) .........................................................................................................................59 A colonialidade do saber e o saber dos nadies [O mundo pelo avesso ou, da ‘Verdade’ e do saber dos que sabem] [A erosão do saber dos que sabem e a emergência do saber dos outros] [Recuperação e emergência do saber dos nadies] Colonialidade do poder como violência simbólica: racismo e mérito no ensino “...todo mundo como se fosse branco” [e a história da gente, quando?] [O real aparente e a aparência natural da dominação: Violência simbólica e perspectiva descolonial] [Cotas, racismos e meritocracia] DA CULTURA (e o lugar)...................................................................................................................100 Estética desde a marginalização e a barbárie, exterioridade da cultura popular e a heteronímia da Cultura popular da Nossa América. [a posição do campo da arte e da cultura e a ilusão da razão] [arte legítima, o poder simbólico e a expressão do outros] ["música é uma maneira de escutar" assim como às vezes, ciência é uma maneira de ensurdecer] xiv [Contemporaneidade, tradição e Aura da cultura popular, para além da reprodutibilidade técnica no fazer das culturas subalternizadas] [sobre o(s) conceito(s) de Cultura popular, um debate e outras aproximações] [exterioridade da cultura popular e exterioridade da nossa América - a estética do invisível] [História, revoltas, morte e permanências na narrativa das memóriasdos vencidos] [experiência, relação e imaginário nas culturas subalternas desde a periferia-mundo] [memória e rearranjos político-identitários no deslocamento epistêmico da descolonização do pensamento: Abya Yala e Nossa América] [A heteronímia da Nossa América como base da compreensão da vocação pluriversal do seu projeto político] Cultura, memória e identidade rebelde na Nossa América. Por um ato educativo contínuo que saiba ler paisagem e corpos e não apenas os códigos da língua oficial/colonial. [Cultura, memória e identidade na encruzilhada do púbico do espaço] [a paisagem que conta histórias e a Memória que reencanta a cidade] [a cidade imanente e a geopolítica da cultura e da razão] [de trajetórias subalternas e da reinvenção do espaço público] [trajetórias, da rua e outros platôs] [recapitulando] DA EDUCAÇÃO (e outros lugares) ....................................................................................................191 [Forma, conteúdo e um olhar sobre o olhar e o narrar] [De novo as trajetórias – para pensar o público da escola pública] [Crise da Escola monocultural moderno/colonial e o pensamento da Nossa America, por uma pedagogia do Sul] [a pedagogia simplesmente e a pedagogia do Sul como uma antipedagogia do Ser desde a diferença colonial] [a heteronímia da Pedagogia do Sul, base de um projeto político-afetivo pluriversal para uma democracia radical] [uma noção de projeto e o sujeito descolonial, por um currículo insurgente da ação educativa] [a pedagogia do Sul como práxis do sujeito descolonial e o projeto de uma sociedade pluriversal] [uma leitura esquemática possível como síntese geral ou argumento implícito, isto é, a minha leitura e o meu projeto político neste diálogo] REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA .....................................................................................................233 15 Um Prefácio - Carta ao sujeito da modernidade O Ser, o Saber e o Poder no sistema-mundo moderno/colonial têm a sua História contada pelas tuas leis e pelas tuas instituições, e os livros que aprendemos a venerar relatam os heróis que se fizeram tais pelo teu olhar. Nunca nos viste e, hoje, incrédulo e atordoado pela cegueira do teu poder, sentes no ruir do teu orbe, o clamor do nosso potente canto improvável... Tu que professas verdades, que falas a língua dos deuses, que vens nos ensinando, por todos os meios, com o lápis e o fuzil, com a fé e o punhal, que somos apenas eternos aprendizes da tua sabedoria, apenas reprodutores da tua grandeza, eternos subalternos desprovidos do espírito civilizatório que alimenta a essência do Ser, na monocorde plêiade do Deus branco que não dança; Tu, portador das luzes que nos iluminaram e com as quais devemos iluminar os outros, ali onde disseste pureza, nós dissemos mistura, onde ensinaste a louvar a perfeição aprendemos a amar o erro e o acaso, enquanto defendias o ideal aprendíamos a nos fazer humanos no chão, onde disseste rigor, demos a ele outro tom a partir do inesperado, onde colocaste normas, as humanizamos dispersando o tempo, onde impuseste Apolo escolhemos a dança de Baco com o Curupira e todos os orixás, onde nos ensinavas a respeitar os direitos da Pessoa Humana, aprendíamos, sob o chicote e o olhar inquisidor de teus vassalos, que a dignidade pouco tem a ver com essa tal pessoa humana que desconhecemos, mas com o pão nas nossas mãos, a terra sob os nossos pés, o trabalho coletivo dos nossos, que volta ao leito do seu rio trazendo os frutos da própria pescaria; ali onde nos ensinaste e impuseste a tua monocultura religiosa, científica, filosófica, moral, ética, econômica, social, corporal e étnica, crescíamos teimosa e sub-repticiamente múltiplos, diversos, pluriversais, como filhas e filhos do Sol. Tu, que negaste a nossa língua e a definiste como “Barbara”; Denunciamos aqui a tua ciência como o ardil da ordem espúria dos pretensamente puros. Assim, nas nossas indagações e diálogos, haveremos de preferir caminhar no obscuro a continuar achando apenas aquilo que se pode ver onde as luzes estão; nós, do sul, los de abajo, les damné de la terre, os condenados do sistema, nós, los nadie, impuros, diversos, confusos e apaixonados, somos a sombra que a modernidade projetou, somos a vida que ela, sem vê-la, enxerga sempre 'menos', subalterna, somos o silêncio milenar que, transfigurado em grito, anuncia um novo-ancestral. 16 ACHANDO OS (DES)CAMINHOS (E os meus lugares de ver) (...) o modo como critérios hoje dominantes desvalorizam palavra e pensamento em nome do lucro fácil e imediato. Falo de razões comerciais que se fecham a outras culturas, outras línguas, outras lógicas. A palavra de hoje é cada vez mais aquela que se despiu da dimensão poética e que não carrega nenhuma utopia sobre um mundo diferente. O que fez a espécie humana sobreviver não foi apenas a inteligência, mas a nossa capacidade de produzir diversidade. Essa diversidade está sendo negada nos dias de hoje por um sistema que escolhe apenas por razões de lucro e facilidade de sucesso. (Mia Couto) 17 [chegança e Walking bass1- algumas pistas para andar] O saber é inimigo da Reflexão, se sei não reflito. Daí a potência de refletir, porque a reflexão é um ato de saltar (Humberto Maturana) Todo conhecimento há de conter em seu interior alguma pitada de contrassenso, ao igual que na Antiguidade os desenhos dos tapizes ou os frisos se desviavam um pouco em algum sítio a respeito de seu curso regular. […] o decisivo não é o avançar de um conhecimento a outro distinto, senão saltar sobre cada um. Esse salto é a marca do autêntico, o que distingue o conhecimento de una mercadoria feita em série, seguindo algum padrão preexistente. (Walter Benjamin) O discurso (entenda-se discurso no sentido de curso que atravessa) que lhes proponho não vai partir da filosofia para interpretar a cotidianidade, mas vai partir da cotidianidade em direção à filosofia(...) A cotidianidade vigente significa o mundo da vida cotidiana; esse mundo concreto, agora e aqui (...). Esse é o ponto de partida do pensar filosófico e se o pensar filosófico partir de qualquer outro ponto, já partiria do ar e começaria perdendo o pé, de algo abstrato. A questão é justamente o saber partir da cotidianidade. (Enrique Dussel) Esta tese consiste, antes de tudo, em um exercício de reflexão no cotidiano-mundo2 - articulando o campo3 da cultura4 popular da nossa América - sobre as possibilidades e a necessidade de se pensar a educação, dentro e fora da Escola, como parte de um projeto de libertação dos oprimidos (DUSSEL, 1977, 1977b; FANON, 2006; FREIRE, 2005). A reflexão proposta, desde uma perspectiva crítica descolonial e assumindo um contexto de interculturalidade, é urdida e vinculada diretamente a trajetórias, entendidas como práticas 1 O Walking bass (“baixo caminhando”, na tradução literal) é uma linha de baixo contínua, improvisada pelo contrabaixo nos grupos do jazz que, seguindo a estrutura harmônica de uma canção é a base sobre a qual os demais instrumentos desenvolvem seus improvisos. Uso aqui o termo como metáfora livre. 2 Com o conceito de cotidiano-mundo quero chamar a atenção para a relação intrínseca entre o tempo espaço local e o global, no sentido apontado por Milton Santos, “cada lugar é ao seu modo o mundo”, e no sentido de totalidade, de horizonte existencial, dado pela experiência no mundo, apontado por Dussel e trazido na epígrafe. Voltarei sobre o tema no decurso das reflexões apresentadas. 3 O conceito de Campo é utilizado no sentido apontado por Bourdieu (2000, 2001), na sua releituraaproximada por Dussel (2007). 4 Como veremos de modo mais extenso, no capitulo dedicado à cultura, parto do entendimento da sua simultaneidade e mútua articulação com os demais campos da vida humana (econômico, institucional, político, social, etc.), com o qual Dussel busca superar a questão da última instância. 18 sociais, políticas, estético/culturais e educativas em contextos de r-existência5. É, pelas releituras propostas, uma tentativa de articular aspectos que, ao menos discursiva e analiticamente, estiveram cindidos na tradição teórica ocidental. De um modo geral, estas releituras partem da inclusão de categorias espaciais, ou melhor, espaço-teporais aplicadas a uma construção rigorosamente transdisciplinar6, de modo a permitir, nesta perspectiva, a inclusão do caráter tópico de qualquer pensamento e enunciação. Algumas das releituras referidas são: sobre o conceito de aura da arte (BENJAMIN, 1985) a partir da diferença colonial (MIGNOLO, 2003), articulada ao entendimento da cultura da nossa América como exterioridade ontológica do sistema-mundo7 (DUSSEL, 1980); do conceito de trajetória como lócus em movimento da pesquisa e como base de uma conceituação não essencialista dos sujeitos ou atores históricos, sua memória, sua identidade, sua ação no mundo em relação contínua e suas narrativas - para além da codificação da língua colonial, na paisagem, no gosto, nas práticas, no corpo, na produção estética e simbólica, etc.; e sobre do poder, a partir das experiências insurgentes e instituintes em curso na nossa América, das que se desprende a noção de poder obedencial, proposta por Dussel (2007). 5 O conceito de r-existência refere-se à capacidade dos sujeitos (coletivos ou individuais em articulação a um processo coletivo) submetidos a condições de dominação material e simbólica de reinventarem seu cotidiano, não apenas resistindo à opressão, nem se limitando à sua reprodução. Ver Achinte (2007), Porto-Gonçalves (2008). 6 Sem demérito da ampla literatura existente sobre o fenômeno do multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, que atravessa os estudos da filosofia da ciência e ocupa lugar central nas tecnociências, para os efeitos do presente trabalho utilizarei como referência a compreensão proposta por Sotolongo e Delgado (2006), que nos alertam para a necessidade de entendê-los como esforços investigativos que, longe de se contradizer, se complementam. Dita complementaridade provem do fato das suas fronteiras serem difusas e flexíveis, embora existentes e delimitáveis enquanto tais. Para eles multidisciplina constitui um esforço de pesquisa convergente de varias disciplinas diferentes em torno de um mesmo problema ou situação a ser elucidado. A Bioquímica e a Biofísica, entre outras, são bons exemplos da multidisciplina. Já a interdisciplina, mais ambiciosa do que a anterior, é compreendida como o “esforço de pesquisa, também convergente, entre varias disciplinas - e, pelo mesmo, nesse sentido pressupõe a multidisciplinaridade – mas que persegue o objetivo de obter "quotas de saber" a respeito de um objeto de estudo novo, diferente dos objetos de estudo que pudessem estar previamente delimitados disciplinaria o inclusive multidisciplinarmente. A Engenharia genética e a Inteligência artificial, entre outras, surgem como exemplos da interdisciplina”. Por último, a trasndisciplinaridade é reconhecida como “o esforço de pesquisa que busca obter "quotas de saber" análogas sobre diferentes objetos de estudo disciplinares, multidisciplinares ou interdisciplinares - inclusive aparentemente muito distantes e divergentes entre si – articulando elas de modo a irem conformando um corpus de conhecimentos que transcende quaisquer disciplinas, multidisciplinas e interdisciplinas. O enfoque da complexidade, a Bioética global, o Holismo ambientalista, entre outros, aparecem como exemplos da transdisciplina”. Sobre esta questão ver, específicamente “La complejidad y el diálogo transdisciplinario de saberes”, em: SOTOLONGO, P. L., DELGADO, C. J. (2006) Cap. IV, págs. 65-77. 7 A categoria exterioridade, originalmente proposta por Emmanuel Levinas e a partir dele utilizada por Dussel, constitui o corpo central da Filosofia da Libertação latino-americana, na concepção deste, e da tese que aqui defendo, sendo por mim utilizada no seu sentido ontológico/epistêmico. Mais adiante desenvolverei mais largamente esta questão. Ver subtítulo [exterioridade da cultura popular e exterioridade da nossa América - a estética do invisível] pág. 127. 19 O desejo último é o de indagar, articulando trajetórias e reflexões, na direção de uma pedagogia descolonial, construída a partir do nosso lugar no mundo, uma práxis pedagógica que participe da ruptura das correntes subjetivas (memória, identidade, imaginário, enunciação, anunciação e denúncia) e objetivas (acumulação, exploração do trabalho, extrativismo, violência, militarização) da dominação, do modo como esta se dá nas sociedades da Nossa América na moderno/colonialidade deste século XXI. Em tempo, a tese propõe uma releitura possível do campo da Educação Popular desde a perspectiva descolonial. Isto é, assumindo, na sua narrativa e na sua prática, a diferença colonial como loci de enunciação. Desta última se desprende o que chamo de Pedagogia do Sul. Este movimento só pode ser um movimento total, que busca a cada momento não separar a própria ação de pensar o mundo da sua pretensão de mudá-lo. Pretende ser, posto que entendido como parte de um projeto descolonial mais amplo e abrangente, a articulação de um pensamento, necessária e radicalmente, autocrítico. É nesse sentido que surge o fundamental caráter de exercício que adquire esta indagação, que é, ao mesmo tempo, uma tese, uma pesquisa, uma reflexão e uma aposta, um salto no desconhecido, uma tentativa de superar as próprias contradições no ato de conhecer e, no mesmo movimento, um ato comunicativo. Como tal, se propõe a estabelecer hiperlinks, enlaces que são ao mesmo tempo fonte e ampliação do texto para a leitura final: a do leitor. Muito embora assuma explicitamente um ponto de vista engajado com a libertação dos oprimidos, no sentido que se desprende da Filosofia da Libertação, e seja herdeiro do pensamento social da Nossa América, propõe-se um texto aberto, em cada parte e no todo, porque se afasta da ideia de síntese conclusiva como modo de aporte à produção do conhecimento. Parto, assim, do entendimento de que ao conjunto de sentidos definidos como leituras hegemônicas legitimadas8 no sistema-mundo moderno/colonial - incluindo aqui determinadas leituras contra-hegemônicas do sistema - se somam diversas redes de sentido e significação que operam principalmente nas camadas locais e regionais, mas que constituem, igualmente, todo o tecido do global. A relação destas com a cultura hegemônica9 é complexa e 8 Os discursos legitimados em um determinado grupo social não são, nem por isso, menos arbitrários, como bem apontara Bourdieu ao longo da sua obra sociológica, notadamente em A reprodução (2000) e O poder Simbólico (1996). 9 Nesse sentido é interessantíssimo o trabalho de Antonio Gramsci sobre Cultura Hegemônica e Contra Cultura, bem como seus escritos sobre Cultura Popular, heteronomia e autonomia do pensamento subalterno e a questão do conformismo ativo e passivo (ver Cadernos do Cárcere 25 e 27). 20 contraditória, ora nutrindo, ora minando suas bases10. Alimentado por essas redes de sentido e organização do saber e do fazer, este trabalho é, também, uma tentativa de ruptura da dicotomia entre o pensamento pragmático e o utópico. Aponta para fora do sistema de sentidos e relações materiais de poder e de saber justamente porqueestá inserido nele, como todas e todos, de modo tenso e crítico. Esta tese busca pensar no sentido da sua superação, mas não busca um método ou modo conclusivo de fazê-lo. Esta indagação surge de maneira explicitamente híbrida, interdisciplinar, e situada em um encontro de reflexões cuja genealogia provém e se alimenta, principalmente, de ao menos três fontes de produção de conhecimentos, quais sejam, o pensamento crítico ligado ao marxismo; o pensamento descolonial e, dentro dele no caso específico da educação, a perspectiva da interculturalidade crítica; e, por último, os chamados saberes subalternos11. Trata-se de vertentes intelectuais e/ou políticas intimamente entrelaçadas que vêm confluindo em teorias e práticas no campo da educação e da filosofia, dos estudos culturais, das ciências sociais e da política, mas também da economia e da ecologia, e cujo lócus articulador se encontra no próprio movimento de luta dos grupos na subalternidade pela sua libertação no sul do mundo, e especificamente na Nossa América12. Uma dessas vertentes no campo teórico encontra-se na contramão do pensamento hegemônico, alicerçada no chamado pensamento crítico, fortemente definido pelas 10 Dizer que a chamada primavera árabe, tanto colocou em xeque interesses geopolíticos do grande capital e das potências imperiais do Ocidente, como alimentou seu discurso de liberdade, abrindo possibilidades objetivas para a ampliação dos seus mercados, é uma leitura plausível. Do mesmo modo, para esse exemplo e o de centenas de outras “explosões sociais” que têm acontecido nos últimos anos mundo afora, poderia se dizer que os valores de liberdade, mobilidade e comunicabilidade, tão alardeados pelo ocidente, têm sofrido releituras por meio das redes sociais e a web 2.0 contribuindo para inesperadas e massivas mobilizações. 11 A categoria de Subalternidade é utilizada por mim, neste trabalho, com base na tradição teórica do chamado Grupo de Estudos Subalternos (Guha, Chakravarty, Amin, Spivak, et ali.) surgido na década de 1980 no sul asiático a partir da produção de Ranahit Guha, que retoma o conceito de Subalterno do filósofo Antônio Gramsci para se referir aos grupos sociais discriminados por questões de raça, etnia, sexo ou classe social. Secundado dez anos mais tarde pelo grupo de Estudos subalternos latino-americanos, consubstanciam ambos os chamados estudos subalternos, e estão inseridos no movimento intelectual denominado Estudos pós-coloniais. Embora reconhecendo algumas importantes contribuições deste movimento, a perspectiva assumida nesta pesquisa se distancia, e mesmo se contrapões da assinalada, para assumir a crítica descolonial, que implica, como veremos adiante, não apenas a descolonização do pensamento científico moderno clássico (eurocêntrico e colonial), como também dos próprios estudos subalternos, cuja priorização do cânone ocidental (notadamente Foucault, Deleuze e o próprio Gramsci) para efetuar sua crítica da historiografia colonial, acaba por reproduzir a colonialidade do saber contida nele. Ver GROSFOGUEL, 2006, pág. 17 a 20. 12 Utilizo ao longo da presente tese “Nossa América” como um sintagma que faz referência ao imaginário social, político e cultural da chamada América Latina e do Caribe, como o definira José Marti, que o cunhara para delimitar uma diferença civilizatória com aquela que ele denominou de “América europeia”, a do norte. 21 contribuições de Karl Marx, de tradição eurocêntrica, mas matizado e relido pelas experiências e produções decorrentes das lutas sociais no sul do mundo. A segunda vertente é constituída, como assinalado, pelo pensamento descolonial, de um modo amplo, cuja genealogia está intimamente ligada à Teoria Social Latino-americana, da África e da Ásia, em diálogo crítico com o marxismo e com a teoria pós-colonial, da qual se diferencia, como veremos posteriormente com maior detalhamento. O que, para efeitos deste trabalho, venho chamando de Pensamento Descolonial articula uma ampla gama interdisciplinar de contribuições que vão da sociologia, os estudos literários, os estudos sociais aplicados à educação, os chamados estudos culturais, à filosofia, a epistemologia e a estética. Na mesma linha, e assumindo o caráter intercultural da nossa sociedade, um conceito que também orienta estas reflexões é o da interculturalidade crítica (CANDAU 2009, WALSH 2006). O conceito de interculturalidade surge na América Latina no campo da educação, vinculado originalmente à educação escolar indígena. Já o de interculturalidade crítica surge em oposição àquilo que denuncia como uma ‘interculturalidade funcional’ - aquela que se ocupa da instrução dos indígenas para sua inclusão na sociedade eurocentrada - ao incluir na sua leitura da diferença entre as culturas as assimetrias econômico-sociais e as relações de poder em contextos de dominação, contrapondo-se assim também, ao conceito de multiculturalismo. É a partir das teses do Projeto Descolonial que temos acesso, de um modo mais franco, a um diálogo possível e frutífero com os saberes subalternizados. Em tempo, por uma opção política de coerência com a tentativa de pensar o mundo a partir da nossa América, proponho- me a trabalhar, prioritariamente, com autores da América latina. Nesse sentido, e atentos ao chamado feito em 1996 pela Comissão Gulbenkian, de abrir as Ciências Sociais a outras Epistemologias (WALLERSTEIN, 1996), são fundamentais as contribuições da filosofia latino-americana, notadamente o trabalho de Enrique Dussel, mas também as oriundas da filosofia dos povos originários, como a Nahuatl, a Mapuche, a dos Quéchuas e Aimarás, entre tantos outros, bem como dos clássicos do pensamento social da Nossa América (José Martí, Simon Bolivar, Franscisco Bilbao, José Carlos Mariátegui), de modo intrinsecamente articulado às práxis de movimentos sociais. 22 Da filosofia da libertação, em particular, extraí a categoria de exterioridade, que nos permite entender o lugar do outro da modernidade eurocêntrica. Também dela veio a concepção de pensar o cotidiano como modo de pensar a totalidade mundo. Proponho-me, afinal, a pensar as questões da educação e da transformação social, ou melhor, dos processos de ensino/aprendizagem em nosso mundo em permanente transformação, a partir do que se tem chamado “a reação crítica dos oprimidos” (GONZALES, et ali. 2011), invisibilizada pela própria matriz do pensamento social clássico ou moderno/colonial. A terceira fonte, de mais difícil apropriação, surge do cotidiano das classes populares e grupos sociais subalternizados, isto é, da exterioridade do sistema-mundo moderno, do Outro da ontologia do centro (DUSSEL, 1977b), cuja expressão histórica ganha destaque nos mais diversos movimentos sociais de luta pela libertação dos oprimidos na Nossa América, desde os de reivindicação de direitos civis, passando pelos movimentos da arte popular, até os movimentos insurgentes e libertários. Fonte historicamente subalternizada e negada como possibilidade de produção de conhecimento legítimo e pertinente pelas diversas tradições acadêmicas é também profundamente transversalizada pela sua relação com o pensamento crítico de tradição marxista, comumente tido como a única lente apropriada para interpretá-lo. Todavia, ancorado na práxis dos, mal chamados, novos movimentos sociais13, na subalternidade-mundo14, defendo o entendimento de haver neles muito mais do que apenas 13 Como apontam e sustentam historicamente Gunder Frank e Fuentes (1989) na primeira das suas “Dez teses acerca dos movimentos sociais”, “os novos movimentos sociais não são novos, ainda que tenham algumas características novas, e os movimentos sociais clássicos são relativamentenovos e provavelmente temporários, (...)Os múltiplos movimentos sociais do Ocidente, do Sul e do Leste que hoje em dia são denominados "novos" constituem, com raras exceções, novas formas de movimentos sociais que existiram através dos tempos. Ironicamente, os movimentos "clássicos" da classe trabalhadora e sindicais surgiram principalmente no século passado e, com o passar do tempo, parecem ser mais um fenômeno transitório relacionado com o desenvolvimento do capitalismo industrial. Por outro lado, os movimentos camponeses, de comunidades locais, étnicos/nacionalistas, religiosos e até de mulheres/feministas existiram durante séculos e até milênios em muitos lugares do mundo.” 14 Utilizo a noção de subalternidade-mundo no intuito político de chamar a atenção para o fato do sistema-mundo moderno/capitalista/colonial operar como produtor e reprodutor de subalternidades, como condição do seu próprio funcionamento. Por analógica, à economia-mundo (Braudel) e sua vocação universal, há uma subaternidade-mundo (de clara vocação pluriversal). O conceito alude a um campo formado por uma diversidade de grupos sociais submetidos a diversas formas de subalternização e dominação - objetiva e/ou simbólica - decorrentes da organização do sistema-mundo moderno/colonial. Assim, o conceito não se refere a um grupo ou classe social definida, enquanto categoria de análise, identificável apenas a partir da sua relação com a organização dos modos de produção ou acesso diferenciado ao consumo ou aos modos de distribuição de renda. Trata-se de uma metáfora espacial que se articula conceitualmente às categorias de subalterno, proposta por Gramsci, exterioridade ontológica, em Dussel, à abordagem do Sistema-mundo Moderno/Colonial de Wallertein e Quijano, e em uma particular leitura, à luz da diferença colonial, das noções de experiência e Classe, de Thompson (Estes conceitos serão oportunamente tratados ao longo do presente trabalho). Nesse sentido, pode ser entendido como o alter-campo da modernidade eurocentrada, definido pelas dimensões concretas da exterioridade perante a Totalidade dominadora do sistema-mundo moderno: o lugar do outro, como definido por 23 resistência ou reprodução, mas de que a sua contribuição última para a construção de uma práxis libertadora (necessariamente descolonial) precisa ser lida a partir de um pensamento produzido nesse mesmo movimento sócio histórico de lutas objetivas contra diversas formas de subalternização e opressão. No campo conceitual parto da tese de que o saber científico moderno, bem como a História universal e a filosofia escolástica, são particulares universalizados do sujeito eurocêntrico da modernidade, que projeta sua colonialidade sobre o seu “outro” subalternizado, como efeito da potência enunciadora da institucionalidade político-econômico-militar que dá sentido ao sistema-mundo moderno (SPIVAK, 2010; DUSSEL, 1980; QUIJANO 2000, MIGNOLO 2003, SANTOS, MENEZES, 2010); Todavia, a subalternidade no sistema-mundo moderno/colonial (WALLERSTEIN, 1974; QUIJANO, 2000) não é nunca apenas uma, nem homogênea15. Esta se constitui em uma multiplicidade de sujeitos, coletivos, grupos e movimentos sociais não objetiváveis a partir da metodologia que se desprende de tais discursos, pois a sua síntese em constante transformação se configura como uma intersubjetividade. Assim, configura-se um campo societário, múltiplo e fronteiriço, que não se esgota no seu ser híbrido - como assinalado por algumas correntes dos estudos Culturais e pelos Estudos pós-coloniais (BHABHA, SPIVAK et alli). Nesse campo, como assinalávamos, não há apenas resistência e reprodução, mas r-existências, isto é, uma fecunda gama de diversas formas de produzir conhecimento e modos de viver, que reinventam o estar no mundo dos grupos e classes em e a partir dessa subalternidade. Sob a convicção político-epistêmica de serem, esses saberes, de fundamental importância para uma mudança na direção de uma sociedade mais justa e digna16, a pesquisa dialoga com Dussel. Desta maneira, a subalternidade-mundo apresenta-se como uma aproximação das relações de dominação como esta se dá nos níveis geo-econômico (periferia e semiperiferia com relação ao centro), socioeconômico (trabalhadores/as sub e desempregados, assalariados, moradores de periferias e favelas, moradores de rua, sem terra, etc.), étnico (povos colonizados, comunidades quilombolas, indígenas, etc.), culturais (artistas e mestres populares, circenses, pontos de cultura viva comunitária, artistas de rua, etc.), sexuais (subalternizados pela heteronormatividade machista e falocêntrica, mulheres, grupos homoafetivos, etc.) etário (jovens, crianças no mundo adultocêntrico), econômico/político (povo, proletariado, precariado) e sócio-cognitivo (analfabetos ou analfabetizados, cognariado, etc.), entre tantos outros. 15 Logo impossível de ser inteligida com base em uma única categoria analítica, como por exemplo, “classe trabalhadora”, o que no nosso entendimento não nega, de modo algum, a compreensão da sociedade capitalista como uma sociedade de classes, nem a importância do trabalho assalariado como parte central para o estabelecimento das relações de produção da vida e da exploração social dentro dela, como apontara Marx. 16 Muito além do uso puramente retórico ou abstrato da noção de dignidade, faço uso desse conceito aqui no sentido explícito de dignidad anunciado por movimentos sociais e insurgentes da nossa América, notadamente o dos povos originários em sua articulação com movimentos insurgentes, como os Zapatistas do sul do México ou de movimentos sociais com peculiares propostas de reorganização e mudança social a partir de saberes ancestrais, como os cocaleiros da Bolívia, o movimento indígena no Equador ou o Conselho de todas as terras e 24 diversas experiências nos campos da cultura popular, das artes, da educação, da mobilização social, e se alimenta delas, de modo a estabelecer diálogos entre os saberes ali produzidos e o pensamento acadêmico clássico, escolástico ou moderno/colonial - diálogos transversais e necessariamente multi e transdisciplinares, que tencionam deslocar o lugar do discurso dominante a partir das percepções desse outro até então percebido como subalterno. Para tal diálogo é proposto um movimento explícito de reflexão a partir de experiências partilhadas no cotidiano de diversos espaços sociais em que o saber/fazer das classes populares e dos grupos na subalternidade emerge como elemento de produção de conhecimento e de processos de ensino-aprendizagem, em permanente disputa contra- hegemônica. Definindo a própria trajetória como lócus em movimento desse devir dialógico - que ao se envolver em uma práxis de co-construção do saber/fazer pretende superar, ao menos em parte, aquilo que Souza Santos (2000) vem chamando de o “desperdício da experiência” - procuro um olhar interessado nos elementos que contribuam para ir redefinindo possibilidades para os processos de formação e de libertação. [Sankofa e o lócus da minha trajetória como exterioridade e o encontro nela com o pensamento social da nossa América] Mas, por paradoxal que possa parecer, mesmo se tratando de um trabalho acadêmico de reflexão/produção teórica, devo esclarecer que não é a partir do confronto de teorias que gostaria de desenvolver minha indagação, embora ao longo do texto o faça, conscientemente, por entender a importância de alguns elos de inteligibilidade que nos permitam caminhar juntos na reflexão que agora proponho. Para começar uma reflexão outra, sobre cultura, memória e identidade optarei, inspirado no espírito do Sankofa17, por arriscar uma primeirao intenso debate conceitual e político em torno da nação de bem viver. 17 O conceito de Sankofa (Sanko = voltar; fa = buscar, trazer) origina-se de um provérbio tradicional entre os povos de língua Akan da África Ocidental, em Gana, Togo e Costa do Marfim. Como um símbolo Adinkra, Sankofa pode ser representado como um pássaro mítico que voa para frente, tendo a cabeça voltada para trás e carregando no seu bico um ovo, o futuro. Os Ashantes de Gana usam os símbolos Adinkra para representar provérbios ou idéias filosóficas. Sankofa ensinaria a possibilidade de voltar atrás, às nossas raízes, para poder realizar nosso potencial para avançar. [Ver Revista de História da África e de estudos da diáspora Africana – NECAP- FFLCH-USP in https://sites.google.com/site/revistasankofa/ último acesso em 07/11/2013]. Como representação mítica relacionada diretamente à memória e ao futuro, isto é, à história, é surpreendente a similaridade da imagem com o Ángelus novus, de Paul Klee (1922), no sentido dado por Wlater Benjamin na sua célebre Tese IX sobre o conceito de História: “Há um quadro de Paul Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. 25 aproximação a partir da memória do próprio fazer. Assim, assumo o lócus da minha fala como um continuum, uma trajetória em movimento, referenciado em experiências concretas na Nossa América, que nos impactam coletivamente, de um modo ou outro, recuperando o sentido dado à imagem do Sankofa pelos povos de língua Akan no dizer “se wo were fi na wosan kofa a yenki”, que pode ser traduzido por “não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”. E embora não tenha a pretensão de “fazer filosofia”, no mais largo e rigoroso sentido acadêmico ou escolástico, me acompanho da definição com que Dussel (1977c) abre sua “Introducción a una Filosofía de la Liberación Latinoamericana” ao definir a tentativa de ir pensando o nosso estar no mundo, a cotidianidade vigente significa o mundo da vida cotidiana; esse mundo concreto, agora e aqui (…). Esse é o ponto de partida do pensar filosófico, e se o pensar filosófico partisse de qualquer outro ponto, já partiria do ar e começaria perdendo pé. A questão é justamente o saber partir da cotidianidade. (pág. 14)18. E ao tentar me aproximar, a partir também da própria práxis (em postura reflexiva diametralmente oposta ao proposto pela Escola de Frankfurt, que acreditava ser necessário um afastamento da práxis para não “contaminar” o pensamento crítico), amplio-me na minha trajetória, no fazer de artífices e artistas, educadores e, por que não, militantes; fazer de quem faz coletivamente. Trata-se de um fazer que, ao mesmo tempo, surge da revolta com a sua própria negação enquanto fazer legítimo, enquanto produção humana. Esta particular opção, longe de ser uma tentativa de desprezar a reflexão abstrata e suas conceituações sobre as diversas formas da prática humana, aparece, de um modo muito diferente, como um imperativo ético e político: uma necessidade. É a partir dela que se pode abrir a possibilidade de um diálogo epistemológico a partir da exterioridade19, na direção da necessária abertura das ciências sociais já referida, à qual retornarei no desenvolvimento do presente trabalho.20 Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”. BENJAIN apud LOWY, 2005. 18 No original em Espanhol: “La cotidianidad vigente significa el mundo de la vida cotidiana; ese mundo concreto, ahora y aquí (…). Ese es el punto de partida del pensar filosófico, y si el pensar filosófico partiera de cualquier otro punto, ya partiría desde el aire y comenzaría perdiendo pie. La cuestión es justamente el saber partir de la cotidianidad.” DUSSEL (1977c, pág. 14). Tradução própria. 19 Alguns conceitos e categorias aqui abordados como noções aproximativas são apresentados e discutidos ao longo do texto. 20 É também esta pertença a um coletivo de fazer, e do compromisso político afetivo que implica, a que evoco ao me permitir, em diante e me determinados momentos, a licença de fazer uso do coletivo para enunciar, lançando mão da primeira pessoa do plural, com base nessa necessidade, mesmo a risco de ser mal entendido, por alguns, como um populismo. Em outras palavras, neste caso, o uso do coletivo não nega o sujeito, mas o amplia, 26 Olhando em retrospectiva, é interessante registrar, brevemente, como a aproximação da filosofia da libertação e de uma crítica da “razão indolente”21 se deu a partir de uma trajetória de reflexão não acadêmica, mas que se concretizou instigada pelo diálogo com o campo acadêmico. Isto me parece pertinente, não por um intuito de focar em questões autobiográficas22, mas por permitir a compreensão de que o pensamento descolonial é anterior à sua organização teórica no campo acadêmico, relativamente recente. É assim, pertinente refletir, autocriticamente e em retrospectiva, o modo como vínhamos fazendo uso - eu e muitos com quem tenho partilhado do fazer artístico, político e educativo nos meios populares - da noção de Outro, que traz implícitas as questões da exterioridade e da invisibilidade, mas de maneira relativamente intuitiva. Todavia, era esta uma perspectiva da qual se desconfiava, pois o senso comum ensina que ela pode estar coberta de um resentimento não resolvido ou revestida de certa arrogância, ao desprezar o arcabouço conceitual crítico. No debate contínuo com artistas e educadores, companheiros de caminhada, ao refletirmos sobre a necessidade de se estender essa “ponte” com a academia, ficava ainda um sentimento de frustração ao não encontrar nem na Escola, nem na academia, na grande mídia ou no discurso legitimado, reflexões por meio das quais pudéssemos nos ver refletidos. Ao não encontrarmos, aliás, sequer analisada a estética da qual nos sentíamos parte (como modo de representação do nosso estar no mundo). Os artistas que considerávamos como os maiores artífices da nossa Cultura, da Cultura da Nossa América, não apreciam, ou então, o faziam dentro de um debate conceitual que mais os velava do que os reconhecia. E ainda, muitos dos textos cujos autores nos inspiraram raramente figuraram em uma bibliografia acadêmica. Então, a partir desse sentimento, ainda bastante confuso, começamos a construir modos próprios de expressar nossa própria análise. Quando desenvolvi uma reflexão sobre o Circo Social, durante o curso de Mestrado23, depois de anos fazendo parte de uma organização da sociedade civil24 que colocou as bases desse peculiar conceito junto a artistas populares, educadores e à garotada nas ruas, a ideia era justamente tecer aquela ponte com a academia. A motivação estava posta pelo objetivo tornando politicamente explícita sua pertença e identidade a partir da qual enuncia. 21 Ver Santos, Boaventura de S. A sociologia das ausências e uma sociologia dascompetências, disponível em http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/sociologia_das_ausencias.pdf 22 Por considerá-lo importante para os estudos do cotidiano, no sentido da construção de uma teoria não essencialista, que permita fugir aos determinismos e à reificação do sujeito, em contraposição à ideia de Biografia, e que permita assim também sua extrapolação para reprensarmos a memória, a história e a Cultura, desenvolverei adiante uma reflexão sobre a categoria de trajetória. Ver pág. 24 23 Ver BARRÍA, 2007. 24 Trata-se da ONG Se Essa Rua Fosse Minha, na qual trabalhei entre 2000 e 2012. 27 explícito de pegar emprestada parte da legitimidade do espaço acadêmico para fortalecer o trabalho desenvolvido no meio popular, como educadores, ativistas e artistas populares. Ao chegar ao programa de pós-graduação me parecia que quanto mais nos embrenhávamos nas metodologias colocadas pelo método científico clássico, utilizado por mim em trabalhos anteriores, mais nos distanciávamos do que pensávamos buscar. Negava-me a aceitar, ao menos, dois dos pressupostos: ‘tornar-se objeto’ da indagação e fingir não fazer parte dele. Aquele mesmo sentimento de frustração tomou por momentos a nossa reflexão, ao sentirmos que muitos dos pressupostos centrais do pensamento científico e da racionalidade instrumental moderna pareciam negar sistematicamente aquilo que intuíamos como sinais de algo especial e diferente. Em tempo, as contribuições do pós-estruturalismo, que abriam alguns novos diálogos, apresentavam também novos ocultamentos. A existência daquele ‘algo’ que, para nós, orientava as práticas da nossa organização parecia ser, paradoxal e justamente, sua principal contribuição, mesmo que tal percepção fosse, como assinalado, uma ‘intuição sobre a prática’. Toda a metodologia sacralizada pela academia como o seu modus operandi, negava o que tínhamos de mais rico e parecia estar nos colocando “de fora” da experiência a ser “estudada”. Para além de todo o debate que os estudos subalternos (SPIVAK, 2010), algumas correntes da filosofia da ciência (SOTOLOGO, DELGADO, 2006; CASANOVA, 2006) e o Projeto Descolonial, entre outras, vêm colocando à matriz de legitimação do pensamento social clássico, mas de um modo muito mais íntimo, apontarei apenas que, para as reflexões que me interessava colocar a partir da experiência coletiva da qual vinha e desde a qual pensava o mundo, a questão teórico metodológica aparecia como uma camisa de força da qual seria quase impossível se despir. Percebia logo que a nossa palavra como produtores de cultura e conhecimento não tinha condição de dialogar, pois não possuía o mesmo status. Não por incapacidade de construção discursiva ou intelectual, mas por estarmos situados, epistemicamente, em um lugar outro. Deparávamo-nos, pela primeira vez de modo consciente, com aquilo que Grosfoguel (2006), seguindo as pegadas de Franz Fanon (2008), enuncia e denuncia como a “corpo-política do conhecimento”, que junto à “geopolítica do conhecimento” descrita por Dussel (1977), compõem a cartografia da racionalidade no Sistema-mundo moderno/colonial. Estávamos de fato situados em um lugar totalmente diferente do lugar da academia, o que traz consigo uma construção de linguagem diferente, um modo de reflexão diferente e, principalmente, pressupostos diferentes para a produção de saber. 28 O engajamento político e afetivo, não mais com o ato de descrever o mundo, mas com os sujeitos concretos com os quais tínhamos construído até então, constituía-se em uma urgência, que intensificava a suspeita da incompletude de uma descrição, qualquer descrição, por mais apurada que fosse. A ela faltaria sempre a voz ativa daquilo, ou melhor, daquele(s) que está(ão) sendo descrito(s) na sua relação com o mundo e os outros, mesmo que essa voz fosse citada como referência. A alma25, a Aura dos que fazem e do feito, parecia ficar sempre ausente nas pesquisas com que nos deparamos; A compreensão-de-mundo do “objeto” pesquisado nunca poderá aparecer senão como relato sobre ela, logo, morta, já que ele, o “objeto”, não sendo um Sujeito, só pode ser descrito nas suas propriedades, embora saibamos por experiência que não se esgota nelas. Percebemos que a integração desse objeto, sua transformação em sujeito do conhecimento, era impossível naquele contexto, pois ele era externo à ontologia científica, era o outro, e como tal, só objeto poderia ser. Isto me levou a dedicar boa parte do trabalho da dissertação a expor e debater esta questão e buscar alternativas para a produção do conhecimento desde o que já então chamávamos de uma perspectiva outra. A partir daí veio a minha aproximação com os Estudos Subalternos, com o Pensamento Descolonial e, posteriormente, com a Filosofia da Libertação (a qual eu conhecia apenas em termos gerais, como parte da “paisagem” conceitual do nosso horizonte político da America Latina). Estes sim, pensamentos em direto diálogo com os saberes oriundos da Educação Popular e o pensamento social da Nossa América. Os contínuos debates sobre a prática docente, a sociologia da educação e a cultura com os e as jovens professores-em-formação, durante os cinco anos que lecionei na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, significaram para mim um enorme aprendizado e enriquecimento dessa reflexão, no sentido de ampliar a possibilidade de articulação entre o cotidiano escolar e as perspectivas descolonial e da filosofia da libertação. A própria descrição que aqui faço não é alheia à suspeição que levanto. Até aqui tenho descrito um percurso de reflexões sobre a teoria em termos mais ou menos formais, acadêmicos. Todavia, a aproximação com esses referenciais é de outra ordem, que não apenas do racional analítico, mas também da ordem do afetivo, envolvendo a memória, a intuição e, também, outras racionalidades. De fato foi uma espécie de reconhecimento, um encontro, um achar-se dentro desse arcabouço conceitual. A questão é que esse sentimento de se achar ali, de se sentir à vontade, identificado, se deve, em grande medida, ao fato de que ele faz sentido 25 Não num sentido metafísico, mas no claro sentido etimológico de aquilo que anima. 29 para nós porque fazemos parte do mesmo contexto social, político, estético, afetivo, do mesmo imaginário, que é o processo de produção de conhecimento do pensamento social da nossa América. Refiro-me a um contexto de luta pela libertação das mais diversas opressões, contexto partilhado por quem está nos movimentos sociais, na Educação Popular, nas lutas sociais, nos movimentos insurgentes na Nossa América, em diferentes tipos de engajamento político-afetivo. Talvez retroceder um pouco mais nessa retrospectiva permita compreender melhor esse percurso para a questão que quero levantar. Lembro que ao ingressar, ainda muito novo, no Conservatório Nacional de Música, da Faculdade de Artes da Universidade do Chile, para estudar Interpretação Superior em Violão Clássico, os universos da arte ‘erudita’ e popular se encontraram na minha percepção de mundo, frontalmente, como dois trens desgovernados. Instigado pela primeira negação da técnica e da estética que trazia do campo popular, comecei minhas primeiras indagações, ainda que muito desordenadamente, sobre o gosto musical e as relações entre arte e dominação. Essa fase, entretanto, não esteve em nada afastada dos movimentos sociais e da militância política insurgente, das quais já participava desde muito antes. Pelo contrário, a década de 1980 foi a época em que a luta contra a ditadura militar26 mais se ampliou e radicalizou, se vendo fortalecida pela mobilização popular e o enfretamento frontal ao fascismo. Desta maneira, o compromisso com o desenvolvimento dos processos sociais e de ensino- aprendizagemnos setores populares, assim como sua relação com a criação, a arte e a cultura está ligado intimamente, desde minha infância e juventude no Chile, a uma participação ativa nesses movimentos sociais e a uma militância política. Esse foi o pano de fundo do meu próprio desenvolvimento no período escolar, marcando não só os limites do que era possível ou não ser feito, como jovens em formação, mas também o nosso modo de pensar, sentir e 26 Refiro-me ao período em que o Chile foi governado por uma Junta militar liderada pelo então General Augusto Pinochet, que chegara ao poder traz derrocar, com apoio dos EUA e por meio de um violento Golpe de Estado, o governo da Unidade Popular, presidido por Salvador Allende. À maneira de contexto para os mais jovens, cabe apontar que o regime militar ficou afamado pela crueldade da repressão perpetrada que, segundo dados oficiais, cobrou 40.018 vítimas entre prisões ilegais, torturas, execuções e desaparecimentos. Isto considerando que o mesmo informe oficial, apresentado em agosto de 2011, reconhece não ter registrado mais de 22.000 outras denúncias, por não ter condição de comprová-las, podendo ter o número total elevado a mais de 80.000 vítimas (dados da Comissão Valech entregues ao presidente da República Sebastian Piñera). Além destes crimes, a ditadura queimou e proibiu sistematicamente livros e discos que considerava “sediciosos”. Cabe também lembrar que a aceleração do processo de globalização e a imposição do modelo neoliberal no mundo, tiveram como ponto de partida, justamente, a ditadura do Pinochet no Chile. Ver CASANOVA, Pablo G. Capitalismo corporativo y Ciencias sociales. Disponível em http://alainet.org/active/59821&lang=es Ver também, MOULIAN, Tomas, Chile actual: anatomía de un mito, Santiago: Lom editores, 1997. 30 produzir culturalmente. Este complexo contexto de participação e militância contra o horror do fascismo influiu, de um modo ou outro, não só nas nossas lutas, mas também nas nossas músicas, nossa poesia e nossa ludicidade. Foi também uma época em que a atividade política ia instigando constantes descobertas e aprendizados - foram os primeiros estudos sistemáticos da obra de Marx e de textos que marcaram a minha leitura de mundo, como os de Mariategui, Martí e Galeano e também os primeiros passeios pela literatura latino-americana. Na música, a Nossa América se fazia ainda mais presente, em discos e fitas que circulavam clandestinamente, enquanto nos meios, por imposição da ditadura militar, só se ouvia música de mercado norte-americana e, em menor grau, inglesa. Além delas, versões oficiais de um folclore pasteurizado que visava fazer contraponto à força de uma música de matriz popular subalterna (urbana e camponesa), que entre as décadas de 1950 e 1970, tinha arquitetado um projeto estético claro e coerente de uma modernidade outra. Assim, ouvir clandestinamente Violeta Parra, Victor Jara, Inti-illimani, Silvio Rodriguez, Pablo Milanés, Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui e também Chico Buarque, Milton Nascimento e tantos outros, era um ato indissociavelmente estético e político. Longe de serem “músicas de protesto”, como se costumou chamá-las, tratava-se de expressões de uma estética particular que dá conta do mundo visto de um outro lugar, com suas contradições, alegrias e dores, uma estética marcada pela potência criativa de um movimento social que se insurgia com força naquele então. A minha trajetória de músico iria se encarregar de misturar, naturalmente, estas fontes com a música afro-brasileira, afro-norte-americana, ameríndia e africana. Mas esse é já outro assunto. Daquele tempo, marcado também por inúmeras ações coletivas de luta e de criação, vem a minha primeira curiosidade por entender a arte e os processos culturais para além do simples fazer e reproduzir em contextos sociais predeterminados. Uma vez no Brasil, mais de uma década depois, o contato cotidiano com a miséria e o abandono da infância nas ruas, somado à experiência de lecionar em uma escola pública numa favela carioca, marcaram profundamente minha trajetória, dando uma nova leitura ao compromisso do qual falava anteriormente. A articulação do engajamento na luta por direitos com o fazer artístico veio naturalmente, mais uma vez, ao ser convidado, em 2000, para trabalhar como arte/educador nas ruas de Copacabana, na ONG Se Essa Rua Fosse Minha. Essa singular experiência me fez compreender não só a crueza daquela realidade, mas o incrível potencial criativo e transformador desses meninos e meninas que têm a rua como principal referência de socialização. Foi durante esses dez anos em que mais pude ampliar 31 uma reflexão a partir da prática que articulasse em um mesmo eixo cultura, educação popular e luta por direitos. Foi lá também que apreendi a importância de articular todos os saberes com o cotidiano do qual emanam e ao qual voltam. Esse trabalho me permitiu, também, conhecer de perto diversas experiências de educação popular, arte e cultura, no Brasil e em outros países da Nossa América, onde o circo assumia um papel articulador de diversas linguagens, conceitos e propostas temáticas entrelaçadas segundo as especificidades locais. O meu posicionamento, ao encarar a pesquisa no âmbito acadêmico do curso de Mestrado, era então projeção dessa trajetória, solidária com o lugar das crianças e jovens das classes populares, notadamente aqueles que estavam em situação de rua: o Outro da cidade e do sistema socioeducativo, porque o é, antes, de todo o sistema de ensino escolarizado e também da arte e da cultura, pois é considerado como incapaz de produzir a primeira e desprovido da segunda. Todavia, justamente pela experiência desse contato político, lúdico, pedagógico, solidário e afetivo, cujo efeito em mim foi um primeiro giro epistêmico na perspectiva dos oprimidos, chegava absolutamente convencido da sua força criativa. Era aquela trajetória o meu lócus em movimento, que assumia então como ponto a partir do qual olhar o mundo. Em outras palavras, é essa trajetória a que definiu, até agora, o meu horizonte, a minha totalidade mundo. E essa totalidade é, como veremos, uma exterioridade que, pelo mesmo, para não subsumir à razão científica moderna e toda sua ontologia, tem por condição do seu ato de indagar e produzir conhecimento, uma atitude insurgente de desobediência epistêmica (MIGNOLO, 2008. Pag. 287). Enfrentado a uma serie de entraves burocrático-institucionais, durante os cinco anos que lecionei na Faculdade de formação de professores, na UERJ (2007 a 2012), foi a partir do entrelace dessas trajetórias (de militância, de ativismo, de fazer no campo da arte e do trabalho intelectual) que busquei articular os saberes trazidos pelos educandos e colegas, tensionando a ocupação/reinvenção dos espaços delimitados pelo universo acadêmico escolar, para uma descolonização das nossas práticas ético-estéticas e político-pedagógicas. A tensão entre o instituído e o instituinte achava ali outros modos, colocando novos desafios ao fazer e à produção teórica. Assim, reafirmando o posicionamento assumido durante a elaboração da minha dissertação de Mestrado, em 2005, entendo o nosso fazer de educadores populares e a prática artística e cultural como historicamente ligados ao lugar que ocupamos como coletividade no mundo, carregando nele nossas contradições, nossas necessidades e nossa revolta. É também neste lugar que está sua legitimidade enquanto fazer propriamente humano. Esta é uma questão 32 política e epistêmica, que traz implícita uma questão de identidade que não pode ser resolvida a partir da ideia de identidade imposta, como unidade simbólica unificadora anterior aos sujeitos e ao seu fazer social específico (como os símbolos pátrios, ou mesmo a ideia de raça27
Compartilhar