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Identidade e exclusão, a abordagem feminista das relações internacionais

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30º Encontro Anual da ANPOCS 
24 a 28 de outubro de 2006 
Gênero na contemporaneidade - GT 09 
 
 
"Identidade e exclusão: a abordagem feminista das 
relações internacionais” 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Luara Landulpho Alves Lopes 
 
 2
Índice 
 
1. Introdução 
 
2. A disciplina de Relações Internacionais: a ortodoxia realista e 
a crise de identidade contemporânea 
 
3. O silêncio das Relações Internacionais 
 
4. A mulher e a economia internacional 
 
5. A mulher e a Guerra 
 
6. O rei está nu: desvios de gênero nos discursos realista e neorealista 
 
7. Além da crítica: a alternativa feminista 
 
8. Bibliografia 
 
9. Notas 
 
 
 
 
 3
1. Introdução 
Para aqueles não iniciados no campo das relações internacionais e também para 
muitos estudantes e profissionais da área, incluir questões de gênero no estudo da política 
internacional pode parecer bem estranho. De fato, a abordagem feminista das relações 
internacionais enfrenta resistência considerável por parte da comunidade acadêmica em 
geral. No Brasil, o tema raramente aparece nas grades curriculares dos cursos de graduação 
em relações internacionais, e quando surge é muitas vezes tratado com desdém e 
rapidamente descartado como irrelevante. 
Assim, a abordagem feminista não fez parte dos meus estudos durante a graduação 
em Relações Internacionais: mesmo na pós-graduação o assunto foi tratado com visível 
ceticismo e indiferença. Apesar do curso fazer parte da faculdade de ciências sociais, não 
tivemos contato com literatura que tratasse do movimento feminista; tampouco conheço 
profundamente o desenvolvimento das questões de gênero fora do campo das relações 
internacionais. O presente trabalho, portanto, partiu mesmo da curiosidade a respeito de um 
assunto ainda pouco tratado, que pretende transformar o conhecimento das relações 
internacionais a partir de considerações sobre a experiência social da mulher. Se me faltam 
instrumentos teóricos para avançar na análise do movimento feminista, acredito que isso não 
prejudique o modesto objetivo deste artigo, qual seja, apresentar a abordagem feminista das 
relações internacionais para interessados em geral, sem pressupor nenhum conhecimento 
teórico sobre qualquer um dos assuntos. Creio que os estudiosos das relações internacionais 
devam aceitar sua natureza multidisciplinar, acolhendo novas leituras, bem como novos 
leitores. 
Apesar de ainda causar estranhamento, a abordagem feminista das relações 
internacionais tem ganhado espaço no debate acadêmico da área, especialmente a partir de 
meados da década de 1990. A eminente professora J. Ann Tickner pode ser considerada uma 
pioneira no estudo das mulheres nas relações internacionais: insistente, Tickner foi 
responsável pelo avanço do diálogo entre feministas e demais teóricos das RI, principalmente 
a partir do artigo publicado na prestigiosa International Studies Quarterly em 1997, que 
provocou alguma reação entre os acadêmicos da área. O diálogo, como veremos, ainda é 
marcado por preconceitos e equívocos que Tickner atribui, em parte, à ignorância dos 
estudiosos de relações internacionais quanto a questões de gênero, e - talvez em maior parte 
 4
- ao desejo de proteger os conceitos fundamentais da disciplina contra críticas demasiado 
ácidas. 
Com efeito, este trabalho procura contribuir para o debate sobre a legitimidade da 
abordagem feminista e a pertinência de suas críticas. Dirigido tanto àqueles que se 
interessam pela questão de gênero de forma geral quanto aos interessados nos debates 
contemporâneos das relações internacionais, procuramos incluir uma breve introdução à 
teoria das RI, com vistas a melhor apresentar o objeto das críticas feministas. 
 
2. A disciplina de Relações Internacionais: a ortodoxia realista e a crise de 
identidade contemporânea 
Costuma-se atribuir a origem da disciplina de Relações Internacionais ao período 
imediatamente posterior à I Guerra Mundial. Segundo os professores João e Nizar: 
 
“O primeiro departamento de Relações Internacionais foi criado em 
1917, na universidade escocesa de Alberystwyth, com uma preocupação 
normativa: os acadêmicos que se reuniram naquele departamento tinham 
como objetivo organizar uma disciplina em torno do estudo da questão da 
guerra e, mais precisamente, com a finalidade de livrar a humanidade de suas 
conseqüências nefastas. Era preciso, então, estudar o fenômeno da guerra e 
suas causas para poder evitar a repetição de tragédias similares às 
acontecidas na então chamada Grande Guerrai”. 
 
Os famosos “14 pontos” do presidente norte-americano Woodrow Wilson, que 
constavam da mensagem enviada ao Congresso em 1918, tentaram regular uma “paz sem 
vencedores nem vencidos”, inaugurando a Liga das Nações – organização internacional cuja 
função seria mediar desavenças internacionais para impedir que precipitassem um novo 
conflito. Outra manifestação de otimismo e (ou) ingenuidade foi o pacto Briand-Kellog de 
1928: um tratado de renúncia à guerra como instrumento de política internacional, assinado, 
ironicamente, pelos próprios protagonistas da Guerra que se aproximava. 
Edward Carr, ex-diplomata britânico à época, acusou a “preocupação normativa” dos 
acadêmicos em evitar a guerra de impedir que percebessem a proximidade do novo conflito. 
Em vez de concentrarem seus esforços estudando os mecanismos da guerra, suas causas e 
 5
conseqüências, Carr dizia que os teóricos da recém-nascida disciplina distraíram-se em 
ponderações éticas e morais, e perderam os sinais que anunciavam a II Guerra. 
Esse espírito de otimismo que impregnou as relações internacionais do período entre 
guerras, Carr chamou-o utópico, ou idealista. Contrapondo-se ao idealismo, portanto, o 
diplomata se alinha a um grupo de teóricos que chamou realista: mais preocupado com as 
relações de poder entre os Estados, com os meios de destruição disponíveis e com a 
competição dos interesses do que com divagações sobre moralidade. 
 
“A caracterização feita por Carr desse debate como um confronto entre 
idealistas e realistas ficou conhecida na área acadêmica das relações 
internacionais como o primeiro grande debate da teoria das Relações 
Internacionaisii”. 
 
Assim, o início da II Guerra Mundial serviu de argumento para os realistas, que ainda 
obtiveram considerável reforço teórico com a publicação, em 1948, do livro de Hans 
Morgenthau, A política entre as nações. A partir de então, os realistas dominaram o primeiro 
debate até a consolidação do regime bipolar da Guerra Fria. 
O segundo debate das relações internacionais, portanto, teve início quando a 
intensidade da Guerra Fria arrefecia, durante os anos 1960 e 1970. Com o impasse nuclear 
entre as duas superpotências, a “alta política” encontrava-se congelada e os teóricos das 
relações internacionais voltaram seu interesse para as relações econômicas, até então 
desconsideradas pela disciplina. Estando o conflito ideológico entre Leste e Oeste paralisado 
pelo overkill – a mútua capacidade de destruição – os acadêmicos das relações internacionais 
se viram obrigados a lidar com questões de economia internacional que ameaçavam a 
estabilidade do equilíbrio de terror: desde a emergência do Terceiro Mundo, chamando 
atenção para desigualdades econômicas que não dependiam de orientação ideológica, até a 
sucessiva demonstração de vulnerabilidade do sistema às questões do comércio 
internacional, como foram as crises do petróleo. O livro de Joseph Nye e Robert Keohane, de 
1977, Power and Interdependence, critica a indiferença realista com relação a assuntos alémda segurança, e sua recusa em reconhecer atores não-estatais. Por estarem 
demasiadamente concentrados em temas de segurança e envolvidos nos seus “jogos de 
 6
soma zero”, os teóricos realistas deixaram de enxergar elementos de interdependência e de 
cooperação fundamentais para o sistema internacional. 
A resposta realista aos críticos do segundo debate (também chamado “debate neo x 
neo”) veio com a formulação do neorealismo, a partir da publicação do livro de Kenneth Waltz, 
Theory of International Politics, em 1979. Waltz reafirma a relevância da distribuição de poder 
para a teoria política internacional e expõe suas concepções acerca da estrutura anárquica do 
sistema internacional, e da sua natureza permanente. Se a anarquia, como argumenta Waltz, 
é a principal condição do sistema internacional, então a desconfiança é a regra, e as 
iniciativas de cooperação não se sustentam. 
 
“Com tantos Estados soberanos, sem um sistema jurídico que possa ser 
imposto a eles, com cada Estado julgando suas queixas e ambições segundo 
os ditames de sua própria razão ou de seu próprio desejo, o conflito, que por 
vezes leva à guerra, está fadado a ocorrer. A fim de alcançar um desfecho 
favorável nesse conflito, os Estados têm de confiar em seus próprios 
dispositivos, cuja relativa eficiência tem de ser sua constante preocupação. iii” 
 
Um outro grupo de teóricos apresentou desafios ainda maiores à teoria de RI: 
influenciados pela tradição marxista e pelo processo de descolonização, que trouxe novos 
Estados para o sistema, esses teóricos entendiam as relações internacionais pelo movimento 
de expansão do capitalismo e de seus padrões internacionais de exploração. Immanuel 
Wallerstein faz uso de alguns conceitos da tradição marxista para elaborar sua teoria do 
sistema-mundo, desenvolvendo sua própria concepção de estrutura do sistema internacional, 
que para ele obedece à lógica de exploração capitalista. 
Nos anos 1980 e 1990, a disciplina de relações internacionais esteve sujeita a ainda 
mais questionamentos: teóricos advindos de outras áreas das ciências sociais se engajaram 
em críticas à epistemologia positivista predominante no campo das RI: 
 
“O problema com as teorias positivistas é que partem de pressupostos 
(por exemplo, sobre a natureza humana) que são colocados fora de qualquer 
debate e tratados como dadosiv”. 
 
 7
O terceiro debate, portanto, contrapôs positivistas e pós-positivistas. O pós-positivismo 
procurou questionar a divisão entre sujeito e objeto e assim desacreditar a neutralidade do 
discurso tradicional da teoria das relações internacionais: 
 
“O questionamento dos pressupostos das teorias de Relações 
Internacionais é uma das principais contribuições do pós-modernismo para a 
redefinição da área a partir dos anos 80. Se, por exemplo, o pressuposto da 
anarquia como estado de natureza for colocado em dúvida a partir de uma 
análise das origens e dos contextos intelectuais em que é produzido, a força 
que adquiriu enquanto ‘realidade’ que condiciona inexoravelmente a qualidade 
da política mundial se verá bastante reduzida.v” 
 
De maneira geral, a abordagem feminista das relações internacionais pode ser 
corretamente identificada com o terceiro debate, e com muitos dos argumentos da teoria 
crítica e pós-moderna contra os pressupostos da teoria de relações internacionais 
preponderante até então. Ao desafiar a separação entre sujeito e objeto na formulação de 
teoria, os pós-positivistas levantam o tema da identidade nas relações internacionais, 
questionando sua neutralidade e buscando alternativas transformadoras: 
 
“Os pós-modernos denunciam essa naturalização dos pressupostos da 
atividade científica como um movimento para silenciar e excluir formas 
alternativas de produção de conhecimento e reproduzir relações de 
dominaçãovi” 
 
 
3. O silêncio das Relações Internacionais 
 
“Nos últimos 25 anos, as questões de gênero e particularmente aquelas 
referentes ao lugar e ao papel das mulheres têm adquirido uma importância 
muito maior dentro das ciências sociais como um todo. Em resposta à 
ascensão dos movimentos de mulheres em algumas sociedades ocidentais e à 
produção de um corpo crescente de literatura analítica com relação à posição 
 8
da mulher, tem havido um desenvolvimento significativo na agenda e nos 
conceitos estudados em diversas disciplinas acadêmicas. Se isto tem sido 
especialmente percebido na história e na sociologia, também tem sido evidente 
na ciência política, na economia e na antropologia e vem adquirindo maior 
importância na literatura de humanidades mais ideologicamente constituída. 
Até o final dos anos 1980, existia, entretanto, uma exceção marcante nesta 
crescente conscientização das questões de gênero: as relações 
internacionaisvii”. 
 
O eminente Professor Fred Halliday dedica uma pequena parte do seu “Repensando as 
Relações Internacionais” ao tema da participação das mulheres na arena internacional - o 
título deste capítulo também foi emprestado de lá. Para Halliday, o silêncio sobre os avanços 
feministas na área das relações internacionais durou até o fim dos anos 1980. No entanto, 
como citado no capítulo anterior, o chamado “terceiro debate”, iniciado na década de 80, já 
anunciava algumas das críticas presentes na abordagem feminista: a co-constituição entre 
sujeito e objeto; a relevância da análise do discurso para compreender a ação política; a 
crítica à reificação dos conceitos que informam a teoria das relações internacionais; a 
construção de teoria como meio de emancipação... Ainda que a diversidade das abordagens 
feministas para as relações internacionais não nos permita fazer generalizações, há que se 
reconhecer a convergência entre a agenda pós-positivista e muitas das críticas feministas 
posteriormente levantadas. 
De fato, a abordagem feminista das relações internacionais ganhou maior visibilidade 
após a emergência do debate entre positivistas e pós-positivistas: a crítica à epistemologia 
positivista inspirou vários autores a repensarem as relações internacionais e a questionarem 
seus pressupostos. Nesse sentido, a abordagem feminista trouxe diversas contribuições para 
o recém-inaugurado debate e assumiu formas variadas: há desde aquelas que defendem o 
“ponto de vista” feminino (feminist standpoint) e argumentam pelo aumento da participação de 
mulheres na arena internacional, até as feministas pós-modernas, que parecem concentrar 
sua crítica nos desvios de gênero escondidos no discurso dominante da teoria das relações 
internacionais. Há também feministas que se identificam com a abordagem construtivista e 
fazem uso dos seus instrumentos analíticos para tecerem considerações sobre gênero, e há 
ainda feministas da teoria crítica, que, por sua vez, procuram ressaltar o caráter emancipatório 
 9
da teoria e propõem maneiras alternativas de pensar as relações internacionais. Neste 
trabalho, no entanto, iremos tratar a abordagem feminista de maneira necessariamente 
simplificadora, com vistas a apresentar aquelas que consideramos suas contribuições mais 
originais e promissoras, sem maiores preocupações com relação à classificação das diversas 
correntes. 
Com efeito, a década de 1990 foi mais receptiva para os estudos feministas na área 
das relações internacionais: o silêncio experimentado até então deu lugar a uma 
esclarecedora comunicação entre autores engajados na abordagem feminista e os chamados 
“teóricos tradicionais” das relações internacionais, comunicação que se deu especialmente na 
forma de artigos publicados em periódicos internacionais especializados. Reconhecidos 
autores do campo das relações internacionais se dispuseram a responder aos apelosfeministas por diálogo: assim, ao artigo de Ann Tickner, de 1997, intitulado You just don’t 
understand, seguiu-se a réplica de Robert Keohane e a tréplica de Tickner. Até o célebre 
autor nipo-americano Francis Fukuyama publicou suas impressões a respeito do tema num 
ensaio para a revista Foreign Affairs, que também mereceu resposta de Tickner. 
O diálogo ao longo dos anos 1990 rendeu maior visibilidade aos argumentos 
feministas, mas também ajudou a disseminar alguns equívocos comuns. Entre eles, Ann 
Tickner destaca a freqüente suposição de que uma abordagem feminista defenda a “natureza” 
pacífica da mulher contra a também natural “belicosidade” masculina: para confrontar esse 
argumento, com o qual as feministas não concordam, muitos costumam citar mulheres que 
ascenderam na política internacional agindo “como homens”, e repetem sempre os mesmos 
exemplos. A “dama de ferro”, Margareth Thatcher, é talvez o mais freqüente. 
Para tentar evitar tantos mal-entendidos, há que se esclarecer a diferença entre gênero 
e sexo: 
 
“Quando se fala em sexo, se fala em biologia, e não em relações sociais 
e de poder. Quando se fala em gênero, se fala de uma construção social que 
define a masculinidade e a feminilidadeviii” 
 
 Considerações sobre gênero, apesar de serem socialmente construídas, são tão 
persuasivas e poderosas que são muitas vezes consideradas naturais. O discurso tradicional 
 10
da teoria das relações internacionais, portanto, quando silencia sobre o gênero, não está 
sendo “neutro”, mas sim parcial, conservador e omisso. 
Francis Fukuyama, além de incorrer nos mesmos enganos de outros autores 
tradicionais quanto aos argumentos feministas, ainda desvia a discussão em direção ao 
pantanoso - e deslocado - debate entre natureza e cultura. Seu artigo faz uso de argumentos 
sócio-biológicos para chegar a conclusões assustadoramente conservadoras. No entanto, por 
ter sido publicado em uma revista de reconhecida tradição e credibilidade entre os 
profissionais e estudiosos da área, tem grande poder de alcance, e bastante potencial para 
espalhar seus equívocos sobre uma matéria já pouco tratada. 
Assim, a abordagem feminista das relações internacionais ainda tem muito que 
avançar, seja em suas próprias elaborações teóricas, seja no árduo trabalho de convencer os 
colegas da área da legitimidade de suas propostas. O presente trabalho tem como objetivo 
esclarecer algumas das contribuições da abordagem feminista, argumentando pelo 
reconhecimento do gênero como categoria válida de análise na área das relações 
internacionais. Mais do que isso, queremos estimular a leitura dos trabalhos feministas, em 
favor de um diálogo mais informado. 
Para tanto, o trabalho foi dividido de maneira a incluir, ainda que de forma ligeira, as 
principais preocupações feministas quanto às relações internacionais. Assim, as duas 
próximas partes tratam da ausência feminina em dois domínios muito caros ao campo das 
relações internacionais: o econômico e o militar. A parte seguinte tenta refutar a suposta 
“neutralidade” de gênero do discurso realista e neorealista, para assim expor a relação entre 
linguagem e poder, entre discurso discriminatório e prática discriminatória. A última parte 
tentará organizar algumas das alternativas propostas pelos teóricos feministas, 
freqüentemente acusados de paralisar o debate com lamentações improdutivas. A bibliografia 
serve como referência para aqueles que, depois desta breve exposição, quiserem conhecer a 
abordagem feminista de forma mais detida e menos superficial. 
 
4. A mulher e a economia internacional 
O campo das ciências econômicas raramente inclui em suas análises a divisão sexual 
do trabalho ou a produção predominante no ambiente doméstico, que acontece no interior da 
casa e entre os membros de uma família. O trabalho doméstico, de forma geral, não é 
remunerado, não consta dos índices nacionais que medem o desenvolvimento econômico de 
 11
um país, não está sujeito à regulamentação e é, salvo exceções, geralmente atribuído à 
mulher. A abordagem feminista pretende desafiar a “naturalidade” da relação entre a mulher e 
o trabalho doméstico, e problematizar a ausência feminina enquanto agente econômico. 
Como visto no capítulo 2, em meados dos anos 1970 as questões de economia 
voltaram a influenciar a agenda política internacional, quando os temas militares se 
encontravam paralisados pelo impasse nuclear. Com o desmantelamento da União Soviética 
e a ascensão de uma nova ordem “unipolar”, assim como a Inglaterra professava o liberalismo 
econômico durante seu período hegemônico no século XIX, os Estados Unidos tornaram-se 
os mais fortes defensores do neoliberalismo no pós-Guerra Fria. 
Para os fins a que este trabalho se propõe, cremos que seja bastante apresentar 
somente as críticas feministas ao liberalismo, dada sua preponderância contemporânea global 
(ainda que Ann Tickner dedique um capítulo inteiro do seu livro de 1992 à ausência feminina 
nas três principais tradições da economia política internacional: liberalismo, nacionalismo 
econômico e marxismoix). 
A teoria do liberalismo econômico vê o indivíduo como ser racional movido pelos 
próprios interesses (self-interested) e pela vontade de maximização do lucro. Seus defensores 
acreditam que, mesmo que os indivíduos ajam socialmente tendo em vista motivações 
egoístas, o resultado da interação social aumenta a riqueza relativa de todos. 
As críticas feministas desafiam justamente a suposição liberal que atribui ao indivíduo 
tal comportamento individualista: alegam que esse modelo de racionalidade não é compatível 
com a experiência feminina, ou com a experiência de indivíduos em sociedades não-
capitalistas, e por isso não pode ser entendido como protótipo de racionalidade humana. A 
experiência da mulher no seu papel maternal, por exemplo, não condiz com a racionalidade 
liberal, autocentrada e individualista. Nos países não-capitalistas, a produção cooperativa e 
comunitária de homens e mulheres tampouco se encaixa no modelo de racionalidade liberal. 
Como o trabalho feminino geralmente acontece fora da economia de mercado, um 
modelo econômico baseado na racionalidade instrumental defendida pelo liberalismo exclui 
grande parte do trabalho geralmente executado por mulheres, naturalizando a desigualdade: 
 
“Globally, women are a disadvantaged group: they own one percent of 
the world’s property and resources, perform 60 per cent of the labour, are the 
 12
majority of refugees, illiterate and poor persons, and yet women are central to 
the social and material survival of families and communitiesx” 
 
As autoras da abordagem feminista argumentam que uma concepção mais justa de 
trabalho deveria incluir a produção e reprodução da vida, em vez de se restringir às atividades 
que geram mais-valia. No lugar de aceitar a divisão sexual do trabalho como algo “natural”, a 
perspectiva feminista defende o reconhecimento dos seus desvios de gênero, com vistas a 
transformar a divisão artificial (porque socialmente construída) que desvaloriza o trabalho 
feminino. 
A formulação de novos modelos de comportamento econômico que incluíssem a 
experiência econômica diferenciada das mulheres possibilitaria novas abordagens para os 
problemas econômicos globais. Revelar a ausência da mulher no discurso supostamente 
neutro das teorias econômicas pode contribuir para o desenvolvimento de políticas mais 
inclusivas, a fim de transformar as estruturas desiguais de gênero que atualmente 
marginalizam grande parte da população mundial. 
 
5. A mulher e a guerra 
Como vimos, o período da Guerra Fria foi bastante influenciado por autores realistas, 
cuja principal preocupação é com assuntos relativosà segurança. Por isso, algumas autoras 
feministas resolveram atacar o núcleo teórico realista, investigando o tema da segurança por 
meio de uma abordagem alternativa aos pressupostos do realismo. 
No seu livro, Ann Tickner chama atenção para os problemas da concepção realista de 
segurança: como consideram o ambiente internacional perigoso e inóspito, os realistas 
aconselham os Estados a estarem sempre preparados para a guerra, e acrescentam que a 
segurança e a estabilidade do sistema dependeriam desse frágil equilíbrio entre Estados bem 
armados. 
Com o desenvolvimento das armas nucleares, a possibilidade de destruição total - 
tanto de vencedores como de vencidos - faz com que a idéia realista sobre o comportamento 
dos Estados baseada na auto-ajuda (self-help) se torne pouco confiável. De acordo com a 
ortodoxia realista, os Estados têm a obrigação de se armar para garantir sua própria proteção 
no sistema internacional anárquico; no entanto, a busca constante por armamentos pode ser 
 13
percebida pelos demais Estados como ameaçadora, o que leva os atores a uma corrida 
armamentista que pode desestabilizar o sistema como um todo. 
Recentemente, alguns autores (não só feministas) têm procurado desenvolver uma 
concepção alternativa de segurança que vá além do contexto militar interestatal. Esses 
autores questionam se a segurança do Estado, tradicionalmente considerada em termos 
militares, é compatível com a segurança dos seus residentes. Argumentam por exemplo que 
um Estado, ao buscar sua segurança por meio da corrida armamentista internacional, desvia 
recursos do seu tesouro para o orçamento militar, em prejuízo dos demais serviços públicos, 
ou seja, muitas vezes a busca de segurança do Estado provoca a insegurança do indivíduo 
aquém fronteiras. 
Um conceito de segurança definido mais amplamente, portanto, deve ter como 
referencial o indivíduo, não o Estado, e deve incluir ponderações sobre segurança econômica 
e outros temas relativos ao bem estar e à diminuição do sofrimento humano: 
 
“Arguing for an emancipatory vision of security, Ken Booth criticizes 
‘unhelpful dichotomies’ which have characterized the way we study 
international politics. According to Booth, the language in which security has 
been framed is one of division and exclusion; unless we cast off these old 
images and begin to think more interdependently, our images of the future will 
tend to replicate the past. Booth argues for a position that sees security from a 
holistic perspective rather than one that privileges the state and its military 
powerxi” 
 
A abordagem feminista também prefere definições ampliadas de segurança, que 
privilegiem o bem estar dos indivíduos mais do que a simples proteção do Estado. De fato, 
essa preocupação com novas formas de definir segurança vai ao encontro de outro 
argumento bastante presente nas críticas feministas: a crítica às dicotomias - no caso, àquela 
que distingue o ambiente nacional do sistema internacionalxii. Quando a segurança nacional é 
definida negativamente, contrapondo a “ordem interna” à “desordem externa”, ela revela a 
necessidade realista de afirmar a anarquia do sistema para legitimar a soberania e a 
identidade nacional. 
 14
Segundo Jacqui True, o Estado moderno foi formado ao longo de dois eixos 
constituintes, que distinguiam interno de externo e público de privado: para ela, as duas 
dicotomias serviram também para naturalizar pressuposições desiguais de gênero. 
 
“Otherness within (women, femininity) and others outside (barbarians, 
foreigners, other states) threaten the coherent identities of men and states, 
whose security rests on the establishment of fixed, gendered boundariesxiii” 
 
Quando procuram tratar de temas de segurança, as feministas entram num domínio 
visivelmente dominado por considerações e simbologias de gênero: a guerra. A simbologia 
associada aos conflitos é bastante esclarecedora, e repleta de conteúdos de gênero: a 
imagem do soldado (homem) cuja função é proteger a nação e seus compatriotas “indefesos” 
(mulheres, crianças), é largamente utilizada e esconde concepções exclusivistas baseadas no 
gênero, ao mesmo tempo em que desvaloriza a capacidade das mulheres como agentes de 
sua própria proteção: 
 
“Excluded from military combat in almost all societies, women have, therefore, been 
perceived as second-class citizens or victims who lack agency in matters of their own 
protection. By questioning this protector/protected relationship and by seeing how these 
political identities are constructed in terms of gender inequalities, we can begin to understand 
how they, and other social relations of domination and subordination, can be obstacles to a 
comprehensive definition of security.xiv” 
 
Não é difícil observar como os valores tradicionalmente associados à idéia ocidental de 
masculinidade são sistematicamente invocados nos treinamentos militaresxv. Como essas 
características tradicionalmente associadas ao mundo masculino são construções sociais, 
nem todo indivíduo do sexo masculino se identifica com elas: por isso, o serviço militar faz uso 
de uma linguagem que apela para a afirmação da masculinidade enquanto dever patriótico. 
 
“To be a soldier is to be a man, not a woman; more than any other social institution, the 
military separates men from women. Soldiering is a role into which boys are socialized in 
school and on the playing fields. A soldier must be a protector; he must show courage, 
 15
strength, and responsibility and repress feelings of fear, vulnerability, and compassion. Such 
feelings are womanly traits, which are liabilities in time of warxvi” 
 
A glória do soldado herói, celebrada desde a Antigüidade, a honra de morrer pela 
pátria, imortalizada em inúmeros símbolos nacionais, e outras exaltações do valor em 
combate têm sido sistematicamente negadas às mulheres. A participação feminina no serviço 
militar tem avançado significativamente, mas está longe de superar representações de gênero 
ainda bastante rígidas: a imagem de uma mulher na frente de batalha é tão perturbadora 
porque subverte a simbologia à qual estamos condicionados, segundo a qual é dever do 
homem provar sua masculinidade defendendo nacionais indefesos dos perigos externos. 
A guerra, como outros aspectos da teoria política internacional, está repleta de 
suposições sobre gênero que contribuem para a reprodução do discurso exclusivista que 
legitima e naturaliza a desigualdade entre homens e mulheres. Questionar essas 
pressuposições ajuda a desconstruir o discurso dominante e abre espaço para novas formas 
de enxergar o objeto de estudos predileto dos realistas. 
 
6. O rei está nu: desvios de gênero nos discursos realista e neorealista 
Esta parte do trabalho procura analisar a hierarquia de gênero presente nos discursos 
dominantes das relações internacionais. Com especial atenção à vertente pós-moderna da 
abordagem feminista, partimos da influência de Michel Foucault com relação à importância da 
análise do discurso para o conhecimento da prática política. Para o filósofo francês, “toda 
forma de dominação depende de uma articulação entre conhecimento e poderxvii”. Assim, ao 
revelar os conteúdos de gênero presentes nos discursos realista e neorealista, procuraremos 
expor também a desigualdade de gênero que contamina a prática dominante. 
 
“Para os pós-modernos, toda verdade é a afirmação de uma posição de 
poder e reflete estruturas de dominação que pretendem, por meio do discurso 
científico, apresentar-se como neutras e naturaisxviii” 
 
Ainda que os teóricos realistas pretendam que sua teoria seja objetiva e tenha validade 
universal, as ferramentas teóricas que eles utilizampara analisar e explicar o comportamento 
dos Estados no sistema internacional são visivelmente imbuídas daquilo que, no ocidente, 
 16
convencionou-se associar à masculinidade. O modo como os realistas descrevem o indivíduo, 
o Estado e o sistema de Estados é construído levando em conta a experiência do homem, 
melhor, de alguns homens, e é, portanto, parcial e limitado. 
A seguir tentaremos exemplificar a presença de conteúdos de gênero no discurso 
realista examinando as interpretações mais comumente utilizadas na retórica internacional. 
 
6.1 Maquiavel: a fortuna é uma mulher 
O florentino Nicolau Maquiavel é geralmente citado com um dos “pais” do realismo nas 
relações internacionais. Sua obra mais lembrada pela tradição realista é “O Príncipe”, um 
manual escrito no exílio, dirigido ao “magnífico Lorenzo, filho de Piero de Médici”, que oferece 
conselhos bastante práticos para o governante que deseja conquistar e manter principados. 
Escrito de forma direta, o livro trata da prática política sem rodeios, sem preocupações 
religiosas ou morais: 
 
“E deve-se entender o seguinte: que um príncipe, e sobretudo um 
príncipe novo, não pode seguir todas as coisas a que são obrigados os 
homens tidos como bons, sendo muitas vezes obrigado, para conservar o 
governo, a agir contra a caridade, a fé, a humanidade, a religiãoxix” 
 
O estilo de Maquiavel atraiu os teóricos realistas, que, a partir da leitura de sua obra-
prima, postularam a separação entre a moral e a política como fundamento da razão de 
Estado. 
Assim, nos seus conselhos para o Príncipe, Maquiavel elogia o governante engenhoso, 
capaz de calcular seus passos políticos com prudência, sem se perder em elucubrações 
éticas ou religiosas, mas recorrendo a elas quando conveniente para os fins que elegeu. Essa 
qualidade de ser flexível e de não se deixar amarrar por constrangimentos morais é relevante 
porque prepara o Príncipe para a mudança imprevisível das circunstâncias. Nas palavras do 
autor, o Príncipe deve contar com a virtù para melhor enfrentar os caprichos da fortuna. 
Algumas autoras feministas têm sugerido que a distinção entre fortuna e virtù esconde 
suposições de gênero, multiplicadas pela tradição realista descendente do florentino. Segundo 
a abordagem feminista, a construção do conceito de virtù exigiu a elaboração de um conceito 
que se opusesse ao primeiro: a valorização da autonomia, característica tradicionalmente 
 17
associada à natureza masculina, contrapunha-se à alteridade feminina, caprichosa e 
imprevisível. 
 
“Estou convicto de que é melhor ser impetuoso do que circunspecto, 
porque a fortuna é uma mulher e, para dominá-la, é necessário bater-lhe e 
contrariá-laxx”. 
 
Para Tickner, a formulação política de Maquiavel reflete e reproduz desigualdades de 
gênero quando valoriza qualidades políticas geralmente atribuídas aos homens, e também 
quando sugere que as características consideradas femininas devam ser dominadas em 
nome do bom governo: 
 
“The most dangerous threat to both a man and a state is to be like a 
woman because women are weak, fearful, indecisive, and dependent – 
stereotypes that still surface when assessing women's suitability for the military 
and the conduct of foreign policy todayxxi”. 
 
6.2 Hobbes: o homem é o lobo do homem 
O trabalho do filósofo inglês Thomas Hobbes, especialmente sua obra “Leviatã”, 
também é considerado fundamental para a teoria realista. Hobbes não escreveu 
especialmente sobre o sistema internacional, mas a leitura realista ampliou suas 
considerações sobre a formação do Estado para pensar as relações internacionais. De fato, o 
“estado de natureza” hobbesiano é a metáfora mais utilizada para descrever as relações 
políticas – anárquicas – no sistema internacional: 
 
“De Hobbes, os realistas destacaram o conceito de estado de natureza 
que comparam com o estado de anarquia no sistema internacional. Para os 
realistas, a falta de um soberano que tenha o monopólio do uso legítimo da 
força nas relações internacionais é comparável ao estado de natureza de 
Hobbes. A impossibilidade de estabelecer um Leviatã no plano internacional – 
pela própria admissão de Hobbes – torna a anarquia internacional uma 
característica definitiva das relações internacionaisxxii”. 
 18
 
Para Hobbes, um contratualista, a vida dos indivíduos no estado de natureza é 
embrutecida e breve, porque insegura. Na ausência de um poder soberano com o monopólio 
do uso da força, cada um conta com seus próprios recursos para sobreviver e para competir 
numa sociedade sem regras e sem poder centralizado de sanção, onde impera a “guerra de 
todos contra todos”. 
A crítica do feminismo à leitura realista da obra de Hobbes argumenta que a descrição 
do estado de natureza também está fundada em uma visão do comportamento humano 
essencialmente masculina. Afinal, se a vida sem o Estado era tão competitiva e bruta, como 
ela se reproduzia? Ann Tickner também trata do assunto, afirmando que a concepção realista 
do estado de natureza ignora a experiência feminina de cooperação e de reprodução da vida: 
 
“As a model of human behavior, Hobbes's depiction of individuals in the 
state of nature is partial at best; certain feminists have argued that such 
behavior could be applicable only to adult males, for if life was to go on for 
more than one generation in the state of nature, women must have been 
involved in activities such as reproduction and child rearing rather than in 
warfare. Reproductive activities require an environment that can provide for the 
survival of infants and behavior that is interactive and nurturingxxiii”. 
 
Assim, a abordagem feminista das relações internacionais desafia os cânones da 
tradição realista revelando as suposições hierárquicas de gênero que sustentam seus 
pressupostos. O que essa visão seletiva, denunciada por Tickner e outros autores, revela? 
Sobre o que ela silencia? Para Tickner, essa visão limitada da natureza humana privilegia 
estereótipos masculinos de comportamento competitivo e predatório: uma concepção mais 
inclusiva e sensível à experiência feminina veria a natureza humana como sendo ao mesmo 
tempo competitiva e cooperativa, adicionando características de interdependência e 
reprodução social àquelas de dominação e separação. 
 
6.3 Waltz e os caçadores 
O proeminente professor Kenneth Waltz elaborou, no seu livro “Theory of International 
Politics”, de 1979, os princípios do neorealismo. Como já foi brevemente explicado na 2º parte 
 19
deste trabalho, Waltz elabora o conceito de estrutura para descrever o elemento constante do 
sistema internacional: a anarquia. Para ele, essa estrutura anárquica constrange o 
comportamento dos Estados nas relações internacionais, que deve ser orientado pelo 
princípio da auto-ajuda e de acordo com a divisão internacional de poder. 
Para ilustrar a condição anárquica que define o sistema internacional, Waltz utiliza a 
parábola do cervo e do coelho desenvolvida por Rousseau: 
 
“Suponha que cinco homens que adquiriram uma capacidade 
rudimentar de falar e de compreender uns aos outros se reúnam num 
momento em que todos estão famintos. A fome de cada um será saciada por 
um quinto de um cervo, de modo que eles ‘concordam’ em cooperar no projeto 
de apanhar um cervo numa armadilha. Mas, do mesmo modo, a fome de cada 
um será satisfeita por um coelho, de modo que, como um coelho está ao 
alcance, um dos homens o apanha. O traidor obtém o meio de satisfazer sua 
fome, mas, ao apanhar o coelho, permite que o cervo escape. Seu interesse 
imediato prevalece sobre a consideração pelos companheiros.xxiv” 
 
Se a anarquia, como argumenta Waltz, é aprincipal condição do sistema 
internacional, então a desconfiança é a regra, e as iniciativas de cooperação não se 
sustentam: há sempre a possibilidade de haver um coelho por perto, que servirá ao mais 
astuto, prejudicando seus pares. Por isso, na anarquia as alianças são frágeis e os 
interesses imediatos são dominantes. 
A abordagem feminista, mais uma vez, questiona o ambiente pré-social no qual se dá 
a caça ao cervo e investiga o significado dessa parábola para a desigualdade de gênero na 
teoria das relações internacionais. Os cinco caçadores são autônomos, egoístas e 
desconfiados: características comumente associadas ao homem. A parábola de Rousseau, 
reproduzida por Waltz, parece ocorrer em um mundo povoado por homens órfãos, onde não 
há a menor evidência de ligações familiares: a experiência feminina de interdependência e 
de cuidado com a prole é, de novo, desconsiderada. 
 
 
 
 20
7. Além da crítica: a alternativa feminista 
Fred Halliday termina seu capítulo sobre as mulheres avaliando as contribuições do 
“pós-modernismo e suas abordagens associadas” para o debate das relações internacionais. 
 
“No contexto de um interesse disseminado pelo pós-modernismo, a 
teoria feminista tem sido crescentemente influenciada pelo último e isto tem um 
impacto nas RI com resultados previsíveis. Enquanto a autoridade das 
abordagens tradicionais tem sido enfraquecida, a alternativa proposta tornou-
se uma nova ortodoxia, de um tipo vago e, freqüentemente, autoderrotista.xxv” 
 
O professor britânico argumenta que a crítica pós-moderna não avança em direção a 
construções alternativas, e quando o faz, acaba se perdendo em “um frenesi de prolixidade e 
de rodeios”. Há que se dar alguma razão a Halliday: as considerações feministas são 
incômodas, às vezes panfletárias e bastante pretensiosas, principalmente quando propõem 
mudar radicalmente os pressupostos tradicionais das relações internacionais. No entanto, 
essa má-vontade com a abordagem feminista muitas vezes impede que se conheça mais 
sobre o assunto. 
No seu artigo de 2005, Ann Tickner reafirma a perspectiva feminista sobre a 
associação entre conhecimento e poder: 
 
“Since many feminists do not believe it is possible to separate thought 
from action and knowledge from practice, they claim that feminist research 
cannot be separated from the historical movement for the improvement of 
women’s lives out of which it emerged.xxvi” 
 
A abordagem feminista, ao contrário do que pensam seus críticos mal-informados, está 
visivelmente preocupada com a repercussão prática de suas demandas teóricas. Para ela, o 
objetivo da teoria é a emancipação humana, é essa sua preocupação normativa. 
Freqüentemente identificada com o pós-positivismo, a abordagem feminista não procura 
oferecer uma maneira neutra de estudar as relações internacionais: pelo contrário, afirma que 
o reconhecimento da subjetividade do pesquisador de fato aumenta a objetividade da 
pesquisa. 
 21
 
“What Reinharz refers to as ‘reflexive attitude’ has developed in reaction 
to androcentric research with its claims to value neutrality.xxvii” 
 
De modo geral, pode-se dizer que a abordagem feminista está preocupada em superar 
as estruturas de gênero que desvalorizam a experiência feminina. No entanto, ela não tem 
como objetivo simplesmente libertar as mulheres dessa estrutura excludente: ela também 
espera libertar os homens das expectativas acerca da masculinidade, superando a reificação 
das construções sociais de gênero. Redefinir conceitos que informam domínios afetos às 
relações internacionais (econômicos, militares, metodológicos) abre espaço para novas 
possibilidades de construção de teoria. Transformações no nível teórico se refletem na 
“realidade lá fora”. Transformar o conhecimento é transformar a realidade: 
 
“Since knowledge about the behavior of states in the international 
system depends on assumptions that come out of men's experiences, it ignores 
a large body of human experience that has the potential for increasing the 
range of options and opening up new ways of thinking about interstate 
practices.xxviii” 
 
A alternativa proposta pela abordagem feminista, contra a “neofobia” realista, é a 
transformação. Concordemos: às vezes, o terceiro debate se parece demais com o primeiro, 
com o de sempre. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 22
8. Bibliografia 
 
 FUKUYAMA, Francis. Women and the evolution of World Politics 
Foreign Affairs – 1998 # 77 p 22-40 
 
 HALLIDAY, Fred. Repensando as Relações Internacionais. 
Editora da UFRGS - 1999 
 
 KEOHANE, Robert O. Beyond dichotomy: conversations between 
international relations and feminist theory 
International Studies Quarterly – 1998 # 42 
 
 KRAUSE, Jill. Gendered Identities in International Relations. in. RENWICK, 
Neil. Identities in International Relations. Macmillan Press Ltd - 1996 
 
 MARCHAND, Marianne. Different Communities / Different Realities / 
Different Encounters: a Reply to J. Ann Tickner. 
International Studies Quarterly – 1998 # 42 
 
 NOGUEIRA, João Pontes e MESSARI, Nizar. Teoria das Relações 
Internacionais: correntes e debates. Editora Elsevier - 2005 
 
 PITKIN, Hanna Fenichel. Fortune Is a Woman : Gender and Politics in the 
Thought of Nicollo Machiavelli 
University of California Press, 1984 
 
 TICKNER, Ann. Gender in International Relations: Feminist Perspectives on 
Achieving Global Security - 1992 
http://www.ciaonet.org/book/tickner/index.html 
 
 23
 IDEM. Re-visioning Security. in: BOOTH, Ken and SMITH, Steve. 
International Relations Theory Today; The Pennsylvania State University 
Press - 1997 
 
 IDEM. Continuing the Conversation… 
International Studies Quarterly - 1998 # 42 
 
 IDEM. You just don’t understand: Troubled engagements between feminists 
and IR theorists 
International Studies Quarterly - 1997 # 41 
 
 IDEM. What is your research program? Some feminist answers to 
international relations methodological questions. 
International Studies Quarterly - 2005 # 49 
 
 TRUE, Jacqui. Feminism. in: BURCHILL, Scott and LINKLATER, Andrew. 
Theories of international relations. Macmillan Press Ltd – 1996 
 
 WALTZ, Kenneth. O Homem, o Estado e a Guerra. 
Editora Martins Fontes, 2004 
 
 IDEM. Theory of International Politics 
McGraw-Hill, 1979 
 
 ZALEWSKI, Marysia e ENLOE, Cynthia. Questions about identity. 
in: BOOTH, Ken and SMITH, Steve. International Relations Theory Today 
The Pennsylvania State University Press - 1997 
 
 
 
 
 
 24
 
Notas 
 
i NOGUEIRA, João Pontes e MESSARI, Nizar. Teoria das Relações 
Internacionais: correntes e debates. p 3 
 
ii IBIDEM p 4 
 
iii WALTZ, Kenneth. O homem, o Estado e a Guerra. p 197 
 
iv NOGUEIRA, João Pontes e MESSARI, Nizar. Teoria das Relações 
Internacionais: correntes e debates. p 189 
 
v IBIDEM p. 190 
 
vi IBIDEM p. 189 
 
vii HALLIDAY, Fred. Repensando as Relações Internacionais. p. 161 
 
viii NOGUEIRA, João Pontes e MESSARI, Nizar. Teoria das Relações 
Internacionais: correntes e debates. p 227 
 
ix TICKNER, Ann. Gender in International Relations. capítulo 3 
 
x TRUE, Jacqui. Feminism. p 217 
“Globalmente, as mulheres formam um grupo em desvantagem: elas possuem 1% 
dos recursos e propriedades mundiais, executam 60% do trabalho, formam a 
maioria dos refugiados, analfabetos e pobres, e ainda assim, são fundamentais 
para a sobrevivência material de famílias e comunidades.” (tradução livre) 
 
xi TICKNER, Ann. Re-visioning Security. p. 188 
 25“Argumentando em favor de uma visão emancipadora de segurança, Booth critica 
as ‘dicotomias enganosas’ que caracterizaram o modo com que estudamos a 
política internacional. De acordo com Booth, a linguagem com a qual tem-se 
tratado a segurança é uma de inclusão e exclusão; a menos que possamos 
superar essas velhas imagens e começar a pensar de forma mais independente, 
nossas imagens do futuro tenderão a replicar o passado. Booth defende uma 
posição que considere segurança sob uma perspectiva holística, em vez da que 
privilegia o Estado e o poder militar.” (tradução livre) 
 
xii Sobre este assunto, ver também WALKER, R. B. J. Inside/Outside: International 
Relations as Political Theory. 
 
xiii TRUE, Jacqui. Feminism. p.231 
“A alteridade interna (mulher, feminilidade) e os outros externos (bárbaros, 
estrangeiros, outros Estados) ameaçam as identidades coerentes do homem e 
dos Estados, cuja segurança reside no estabelecimento de fronteiras fixas, 
permeadas pelo gênero.” (tradução livre) 
 
xiv TICKNER, Ann. Re-visioning security. p. 192 
“Excluídas do serviço militar em quase todas as sociedades, as mulheres têm 
sido, então, percebidas como cidadãos de segunda classe ou como vítimas sem 
capacidade de agir em sua própria proteção. Ao questionar essa relação entre 
protetor e protegido e ao examinar como essas identidades políticas são 
construídas em termos de desigualdades de gênero, podemos começar a 
entender como essas e outras relações sociais de dominação e subordinação 
podem ser obstáculos para uma definição ampliada de segurança.” (tradução livre) 
 
xv �ZALEWSKI, Marysia e ENLOE, Cynthia. Questions about identity. p.291 
 
xvi TICKNER, Ann. Gender in International Relations. p.45 
 26
 
“Ser um soldado é ser um homem, e não uma mulher; mais do que qualquer outra 
instituição social, o serviço militar separa os homens das mulheres. Ser soldado é 
um papel para o qual os meninos são socializados desde a escola e nos 
parquinhos. Um soldado deve ser um protetor, ele deve mostrar coragem, força e 
responsabilidade e deve reprimir sentimentos de medo, vulnerabilidade e 
compaixão. Esses sentimentos são traços femininos, considerados deficiências 
em tempo de guerra.” (tradução livre) 
 
xvii NOGUEIRA, João Pontes e MESSARI, Nizar. Teoria das Relações 
Internacionais: correntes e debates. p 194 
 
xviii IBIDEM p. 188 
 
xix MACHIAVELLI, Niccolò. O Príncipe. p. 100 
 
xx IBIDEM. p.146 
 
xxi TICKNER, Ann. Gender in International Relations. p.45 
“A ameaça mais perigosa tanto para o homem como para o Estado é agir como 
mulher, porque as mulheres são fracas, medrosas, indecisas e dependentes – 
estereótipos que ainda hoje aparecem quando se discute a capacidade feminina 
de participar do serviço militar e de conduzir as relações exteriores” (tradução 
livre) 
 
xxii NOGUEIRA, João Pontes e MESSARI, Nizar. Teoria das Relações 
Internacionais: correntes e debates. p. 22 
 
xxiii TICKNER, Ann. Gender in International Relations. p.45 
“Como modelo de comportamento humano, a descrição hobbesiana dos 
indivíduos no estado de natureza é, no mínimo, parcial; algumas feministas têm 
argumentado que tal comportamento poderia ser atribuído somente a adultos do 
 27
 
sexo masculino, porque se a vida tivesse que continuar por mais de uma geração 
no estado de natureza, as mulheres teriam que estar envolvidas em atividades de 
reprodução e criação dos filhos, e não em jogos de guerra. Atividades de 
reprodução requerem um ambiente que permita a sobrevivência de crianças e um 
comportamento interativo e acolhedor.” 
 
xxiv WALTZ, Kenneth. O homem, o Estado e a Guerra p 208 
xxv HALLIDAY, Fred. Repensando as Relações Internacionais. p. 184 
xxvi TICKNER, What is your research program? Some feminist answers to 
international relations methodological questions. p. 9 
“Como muitas feministas não acreditam ser possível separar pensamento e 
conhecimento de ação, elas afirmam que a pesquisa feminista não pode ser 
separada do movimento histórico pela melhora da vida das mulheres de onde 
surgiu a pesquisa.” (tradução livre) 
 
xxvii IBIDEM p. 8 
“Aquilo a que Reinharz se refere como ‘atitude reflexivista’ se desenvolveu em 
reação à pesquisa androcêntrica e a suas alegações de neutralidade.” (tradução 
livre) 
xxviii IDEM. Gender in International Relations. p.22 
“Como o conhecimento sobre o comportamento dos Estados no sistema 
internacional depende de suposições que vêm de experiências masculinas, ele 
ignora uma grande parte da experiência humana que tem potencial para aumentar 
o leque de opções e para abrir novas maneiras de pensar sobre as práticas 
estatais.” (tradução livre)

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