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• .1 9! p 4..- - O estudo da Sagrada Fitura des- perta cada vez maior Interêsse em nossos dias. Os problemas da hora presente têm obrigado os homens a recorrer sequlosamente às fontes onde possam encontrar a sabedoria da vi- da, as normas para proceder no mo- mento atual. Ora entre essas fontes se acham em lugar eminente os livros da Biblia, que contêm os princípios sõbre os quais se construiram quase 20 séculos de civilização cristã. que explica que estudiosos de corren- tes assaz diversas estejam voltando atenção crescente para a Escritura Sagrada e as questões a elas atinen- tes; haja vista o grande Interésse com que têm sido analisados por ca- tólicos, protestantes, judeus e racio- nalistas os manuscritos recéxn-desco- bertos junto ao Mar Morto (alguns julgaram poder haurir dêles nova compreensão da civilização contem- porânea). Em particular, aos fiéis ca- tólicos impõe-se a necessidade de aprofundarem seus conhecimentos de Sagrada Escritura, já que esta é o manancial por excelência da vida e da piedade cristãs. Contudo não é fácil, ao primeiro contato, compreender os livros da Bi- blia; foram redigidos em épocas muito remotas (os mais recentes datam do fim do séc. 1 d. O., enquanto os mais antigos são do séc. XIII a. O.), em ambiente semita ou helenista e se- gundo modos de falar bem diversos dos que hoje estão em uso. Principal- mente o Antigo Testamento apresenta dificuldades, não raro ventiladas em conferências ou em simples conversas de amigos. Católicos e não-católicos nessas ocasiões gostariam de conhe- cer melhor a mentalidade, a alma religiosa, que movia os judeus do An- tigo Testamento; gostariam também de possuir normas objetivas, deriva- das da moderna filologia, arqueologia, etc., que os ajudassem a interpretar as passagens controvertidas. Foi em vista de tais dlficuldade, que o presente livro se originou. A obra começa por propor algumas noções concernentes á redação dos li- vros sagrados: o conceito de inspira- ção biblica (esta não dispensa, mas, ao contrário, utiliza o cabedal de cultura, rica ou pobre, de um autor humano), a mentalidade e os modos de falar característicos dos judeus (o "gênio" da língua hebraica), o em- prêgo de antropomorfismos, nomes e números na literatura semita. Vêm depois questões referentes ao conteú- do dos livros sagrados: antes do mais, é exposto o significado positivo, o va- lor perene que o Antigo Testamento (continua na 2. 11 orelha) - t .. ' I PARA ENTENDER roi ANTIGO TESTAMENTO DOM ESTÊVÃO BETTENCOURT O.S.B. PARA ENTENDER ANTIGO TESTAMENTO "Quando nasceu..., padeceu, ressus- citou e subiu aos céus, Cristo abriu o livro do Antigo Testamento, pois realizou por atos quanto ali por figuras era insinuado". (Berengáudio, séc. IX). 1956 L2vrarza AG 1 R &dgarc, RIO DE JANEIRO Copyright de ARTES GRAFICAS INDÚSTRIAS REUNIDAS S. A. ( A G I R ) NIHIL OBSTAT Côn. J. A. de Castro Pinto Rio, 9-7-1956 PODE IMPRIfl-SE Rio, iO de julho de 1956 Mons. Caruso Vigário Geral CUM PERMISSU SUPERIOR UM ORDINIS L2vrana AG 1 R Rua Bráulio Gomes, 125 Rua México, 98-E Av. Afonso Pena, 919 (ao lado da Bibi. Mun.) Caixa Postal 3291 Caixa Postal 733 Caixa Postal 6040 'rei.: 2-3038 'rei.: 34-8300 Tel.: 42-8327 Belo Horizonte São Paulo, S. P. Rio de Janeiro Minas Gerais ENDEREÇO TELEGRAFICO: "AGIRSA" INDICE Págs ABREVIATURAS E EXPLICAÇÕES 9 PREFACIO.........................................................11 CAI'. 1—O PROBLEMA BÍBLICO E SEU PRINCÍPIO DE SOLUÇAO.. 15 § l.° O problema ........................................ 15 § 2.° O princípio de solução ............................. 19 o tema da Sagrada Escritura ............... 19 a Escritura, patrimônio da Igreja . .......... 21 CAI'. ri— LIVRO INSPIRADO POR DEUS ........................... 25 § 1.0 Que se entende por inspiração bíblica 9 25 2.° A Sagrada Escritura e as Ciências Naturais ....... 30 § 3.0 Como o israelita escrevia a História ................ 32 CAP. m - PARTICULARIDADES DE LINGUAGEM DOS SEMITAS.. 39 § 1.0 O génio da língua hebraica ......................... 40 2.0 Os antropomorfbsmos bíblicos ...................... 52 1. A natureza personificada .......................... 52 2. Deus semelhante ao homem no Antigo Testamento .. 53 a) o significado geral dos antropomorfismos .. 54 b) o sentido de alguns antropomorfismos em particular ................................ 57 Apêndice - O valor da linguagem shnbolista .............. 60 CAI'. IV - NOME E NÚMEROS NA SAGRADA ESCRITURA .......... 61 § 1.0 A filosofia do nome ............................... 61 * 2.0 Os números nos textos bíblicos ..................... 65 Os números simbolos de qualidades ................ 65 Alguns aspectos do simbolismo dos números ........ 67 A - O simbolismo do número como tal ........... 61 E - O simbolismo peculiar de alguns números 68 a) o número sete ........................... 69 b) o número três ........................... 70 c) o número dez ........................... 70 d) o número doze .......................... 71 S. Enumerações proverbiais e arredondadas .......... 71 Números mal transmitidos ......................... 74 Sentido exclusivo e sentido precisivo ............... 17 6 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO Págs. GAP. V - O SIGNIFICADO DO ANTIGO TESTAMENTO ............19 § 1.0 Diversas etapas e uma só meta .....................80 § 2.0 Os tipos bíblicos ...................................86 CAP. VI— AS LINHAS MESTRAS DA SAGRADA ESCRITURA ...... 93 § 1.0 A artéria central da Sagrada Escritura: a figura do Messias.......................................... 94 § 29 Os fios condutores do Antigo Testamento ........... 98 O tema da escolha gratuita ou da fôrça de Deus que se manifesta na fraqueza do homem ............. 98 O tema da Aliança ................................ 101 O tema da prevaricação e da restauração corres- pondente ........................................ 103 O tema do deserto ................................. 105 O tema da habitação de Deus ..................... 105 O tema do maná .................................. 107 O tema da videira ................................ 110 O tema do pastor .................................. 112 CAP. VII - A MORALIDADE DO ANTIGO TESTAMENTO (1) - O HERDEIRO EM IDADE INFANTIL .................. 115 CAP. VIII— A MORALIDADE DO ANTIGO TESTAMENTO (II) - OS DESMANDOS DA CRIANÇA ......................... 123 § 1.0 A lei do talião .................................... 123 § 2.0 O externiinlo dos inimigos ........................ 125 § 3.0 As imprecações .................................... 132 § 4? Poligamia, divórcio e incesto ...................... 134 poligamia .................................. 134 divórcio .................................... 137 e) ulteriores aspectos ......................... 138 § 5.0 Mentira e fraude .................................. 140 a fraudulência do Patriarca Jacó .......... 140 Judite, Aod e Jael: a amabilidade a serviço do morticínio ........................... 114 § 6.0 Pureza e impureza ritual .......................... 146 7.° A escravatura ..................................... 150 CAP. IX - O "DEUS DE JUSTIÇA" DO ANTIGO TESTAMENTO ..... 151 § 1.0 Um principio geral ................................ 151 § 2 0 O recenseamento pecaminoso ...................... 152 § 3.0 O "mau espirito" do Senhor ........................154 § 4.0 O Deus que fuimina ............................... 157 § 5.° Conclusão ......................................... 161 ÍNDICE 7 Págs. CAP. X - SANGUE E VIDA . 165 1.0 "Sem efusão de sangue não há remissão de pecado." (Hebr 9,22.) ................................... 166 29 "Quem come a minha carne e bebe o meu sangue possui a vida eterna." (Jo 6,54.) ................ 171 CAP. XI - DOENÇAS E SONHOS ................................... 175 § 1.0 As doenças ........................................ 175 Entre as nações pagãs ............................ 175 No povo de Israel .................................. 178 § 29 Os sonhos .......................................... 183 CAP. XII - A SORTE PÓSTUMA NA EXPECTATIVA DO POVO DE DEUS ............................................... 189 § 1.° No inexorável fôsso dos mortos ..................... 189 § 2.0 A grande surprêsa póstuma ....................... 196 CAP. XXII - 'PRODIGIOS" E PRODÍGIOS DO ANTIGO TESTA- MENTO ........................................... 201 § 1» A mulher de Lote transformada em estátua de sal (Gên 19,15-26) .................................. 202 § 2.° As dez pragas do Egito (Êx 7,14-12,36) ............. 205 § 3.0 A passagem do Mar Vermelho e do Rio Jordão 210 A travessia do Mar Vermelho (Êx 14,5-31) ......... 210 A passagem do Rio Jordão (Jos 3,7-17) ............. 212 § 4.° A queda dos muros de Jericó (Jos 6,1-20) ........... 214 § 5.0 O maná (Êx 16,2-36; Núm 11,4-9; Sab 16,20-29) .. . 219 § 6.0 Balaã e o asno que falou (Núna 22,22-35) ........... 223 § 7.0 A história de Sansão (Jz 13-16) .................... 226 CAP. XIV - COMO LEREI A BÍBLIA" ............................. 233 § 1 0 Os pressupostos de frutuosa leitura ................ 233 1. Pré-requisitos naturais ............................ 233 A - Boa edição do texto sagrado ................ 233 B - Noções introdutórias ........................ 235 2. Pé-requisitos sobrenaturais ....................... 236 § 2 0 Itinerário através da Biblia ....................... 240 § 3.0 Pequena antologia bíblica .......................... 245 MAPA ILUSTRATIVO DO ËXODO E, EM PARTICULAR, DA TRA- VESSIA DO MAR VERMELHO (Êx 12,31-14,31) .............. 253 TABELA CRONOLÓGICA ........................................... 257 LISTA DOS TEXTOS BÍBLICOS MAIS PARTICULARMENTE CONSI- DERADOS ................................................... 261 ÍNDICE DE NOMES E TEMAS ....................................... 262 ÍNDICE DE AUTORES CITADOS .................................... 265 ABREVIATURAS E EXPLICAÇÕES 1. ABREVIATURAS Os livros da Sagrada Escritura são brevemente citados como se segue ANTIGO TESTAMENTO Gên Gênesis Sab Sabedoria Éx Êxodo Edo Eclesiástico Lev Levitico Is Isaias Nún Números Jer Jeremias Dt Deuteronômio Lam Lamentações Jos Josué Bar Baruque Jz Juizes Ez Ezequiel Rut Rute Dan Daniel 5am Samuel Os Osélas Es Reis 31 Joel Par Paralipômenos Am Amós (Crôn) (ou Crônicas) Aix! Abdias Esdr Esdras Jon Jonas Ne Neemias Miq Miquéias Tob Toblas Na Naum Jdt Judite Hab Habacuque Est Ester Sof Sol onias JÓ Jó Ag Ageu Si Saimos Zac Zacarlas Prov Provérbios Mal Malaquias Eci Eclesiastes Mac Macabeus Cânt Cântico dos Cânticos NOVO TESTAMENTO ivIt Mateus Tes Tessalonicenses Mc Marcos Tim Timóteo Le Lucas Ti rito Jo João FIm Filêmon At Atos dos Apóstolos Hebr Hebreus Rom Romanos Tg Tiago Cor Coríntios Pdr Pedro Gâl Gálatas 1.2.3. Jo João (epístolas) El Eféslos Jud Judas Fip Filipenses Apc Apocalipse Co! Colossenses A vírgula separa capitulos de versiculos. O ponto-e-virguia separa capítulos. O ponto separa versiculos. O hífen separa tanto versiculos como capítulos, incluindo na cita- ção os versículos e capítulos intermédios. 10 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO Um s após um número indica a unidade imediatamente seguinte. a, b, e, junto ao número de um versículo, designam respectivamente a primeira, a segunda, a terceira parte do versículo. Além disto, note-se LXX = tradução grega do Antigo Testamento efetuada aos poucos no Egito, do século III ao século 1 ai]. Antiga tradição, hoje destituída de autoridade, narrava que o Pentateuco (Gên, Êx, Lev, Núm, Dt) havia sido traduzido por setenta e dois judeus no espaço de setenta e dois dias. Daí o título: tradução "dos Setenta Intérpretes" (LXX). Vg = edição latina dos textos bíblicos devida a São Jerônimo (t 420). Lste traduziu diretamente do hebraico os livros do Antigo Testamento que êle julgava canõnicos ou inspirados; quanto aos do Novo Testamento, retocou a tradução latina já existente no século IV. O novo texto assim apresentado aos cristãos em breve se tornou de uso comum; donde o nome de "Vulgata" (forma) (Vg). ca. = cêrca 2. EXPLICAÇÕES Apocalipse (em grego, apokálypsis = revelação): gênero literário em que o autor, às vêzes revestindo a autoridade de antigo personagem, descrevia acontecimentos presentes e futuros (de preferência, a vinda do Messias e a instauração cIo seu reino glorioso), a fim de consolar os'lei- tores atribulados. Apresentando as provações de sua época como coisas já previstas por Deus, avivava naturalmente a confiança dos leitores no au- xilio da Providência. Apócrifo (em grego, apókryplwn = oculto, secreto): nome que de- signa livros redigidos por judeus ou por antigos cristãos segundo o estilo das Escrituras Sagradas, mas carecentes da prerrogativa da inspiração bíblica. Êsses escritos podiam edificar os fiéis e gozar de certa autoridade; contudo não eram lidos nas assembléias de culto público; donde a designa- ção de 'ocultos" ou "secretos". Entre os apócrifos figuram os numerosos "Apocalipses" da literatura rabinica. Em oposição aos apócrifos, distinguem-se os livros canónicos, isto é, enumerados no cãnc,n (em grego, leanón = regra, catálogo) das Escri- turas inspiradas ou da Biblia. Escatologia (do grego éschaton = último, e lógos = palavra, dis- curso): nome do tratado teológico concernente às coisas últimas ou à con- sumação, seja do individuo, seja do universo. Hagiçigrafo (em grego, hagiógraphos = escritor sagrado): nome geralmente atribuido aos autores de livros da Sagrada Escritura. Javé: nome com que o Criador se deu a conhecer a Moisés, quando lhe revelou o seu desígnio de tirar do Egito a nação israelita e dela fãzer o pova de Deus por excelência (cf. Êx 3,13-15). A luz da filologia hebrai- ca, o termo significa "Êle é" ou "Aquêle que é"; designa Aquêle que sem restrição possui o ser ou Aquêle cuja existência é soberana e cuja ativi- dade é sumamente eficaz. Nas circunstâncias em que foi revelado, tal nome inculcava a imutabilidade de Deus, a fidelidade absoluta do Senhor às suas promessas, em particular à Aliança que estava para pactuar com Israel ao pé do monte Sinai; cf. Is 42,8. Depois que a antiga Aliança cedeu à nova e definitiva Aliança, selada pelo sangue de Cristo, o nome "Javé" caiu naturalmente em de- suso no povo de Deus, ou seja, entre os cristãos. PREFÁCIO Quem sinceramente procura a Deus, é não raro detido por dificuldades que lhe provêm do contato com a própria Palavra de Deus, em particular com os livros sagrados ditos do "Antigo Tes- tamento" Os problemas surgem, mais avultados talvez, para aquêles que não possuem a fé, mas em sua lealdade estão dispostos a se render a tudo que seja bom e belo. Tais pessoas lêem o Evange- lho, que lhes apresenta a figura do Cristo, com sua doutrina, e julgam-na muito nobre; sem dificuldade reconhecem-na como digna e autêntica mensagem de Deus. Mas, desde que se lhes anuncie o nexo indissolúvel existenteentre os Santos Evangelhos e o Antigo Testamento, arrefecem em seu entusiasmo: o fundo ao qual se sobrepõe a Revelação cristã, lhes parece muito diverso desta e, por isto, inaceitável. Em conseqüência, deixam-se ficar hesitantes diante da porta da Igreja do Cristo ou vão perder-se por novos "caminhos" de procura da Verdade, longe do Cristo, que é justamente o Caminho, a Verdade e a Vida (cf. Jo 14,6)! Dúvidas existem também na mente de não poucos fiéis cató- licos, os quais por vézes se vêem um tanto surpresos diante de passa gens do Antigo Testamento; preferem, por isto, deixar fe- chada a parte inicial, a metade ou mais da metade da Biblia Sa- grada. Esta - embora a reconheçam como Palavra de Deus - lhes parece ter quase esgotado em séculos anteriores a sua men- sagem; nos tempos atuais, pouco teria que dizer. Sugeridas pelo desejo de auxiliar a uns e outros, originaram- -se estas páginas. Têm por finalidade ir ao encontro daqueles que revolvem problemas de ordem religiosa ou filosófica, problemas capitais entre todos os demais, e não raro cruciantes, pois tocam as questões de origem, fim, significado do homem e de sua exis- tência na terra. Visando, pois, despertar a alegria que jorra dlo conhecimento da Verdade, os capítulos dêste livro tendem a mostrar que as Escrituras antigas não contêm apenas episódios complicados, desconcertantes,... e que, mesmo quando apresentam coisas dêste gênero, são sempre portadoras, em seu âmago, de mensa- gem valiosa, perene como a própria Palavra de Deus (cf. Is 40,8). Inspirado pelo Espírito Santo antes do Cri-sto e em vista do Cristo, o Antigo Testamento não perdeu seu significado após a vinda do Messias; antes, como diz a tradição cristã, adquiriu novo poder 12 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO de expressão, tornou-se o "cântico novo" (cf. Is 42,10), que glori- fica o Redentor outrora aguardado, hoje presente entre nós. 1 Com efeito, os escritores sagrados de Israel se referiam ao Messias por meio de símbolos e sentenças misteriosas; a vinda do Cristo só fêz tornar patente o significado profundo de tais acenos. Éstes agora, num só côro com os escritos do Novo Testamento, concorrem para ilustrar a figura do Senhor Jesus, figura que está esculpidia sõbre a face da história inteira do gênero humano. Para melhor dar a entender o valor cristão do Antigo Testa- mento, têm-se proposto na literatura moderna comparações assaz significativas. Poderia ser assemelhado a um clichê... Êste representa um objeto preciso, gravado sôbre a sua superfície, indiscernível, porém, enquanto o clichê não é revelado, ou submetido a unt "re- velado?' que o torne claro, luminoso. Ora o "revelador" que deu clareza, luminosidade plena ás páginas do Antigo Testamento, tornando-as, por assim dizer, coloridas e vivas, foi o Senhor Jesus com o seu Evangelho. Pode-Àe, outrossim, lembrar o caso de um homem que considerasse uma tela de pintura rematada e depois lançasse os olhos sôbre o esquema ou croqui cIo mesmo quadro; tal observador saberia descobrir no esbôço muito mais acenos ou riquezas do que aquêle que não conhecesse a obra terminada. Assim fala o Antigo Testamento ao leitor que, depois de conhecer o Cristo, se aplica aos escritos sagrados de Israel. "A Antiga Aliança é tão cristã quanto a Nova; há di)' e- rença apenas no modo como Deus ensina: modo ora claro, ora ftgurado." (C. Splcq, L'Epitre aux Hébreux, 1., Paris, 1952, 331.) Na base destas considerações, vê-se bem que não pode haver compreensão do Evangelho nem renovação da catequese cristá (renovação que muitas e belas iniciativas hoje em dia procuram realizar) senão mediante a devida utilização dos escritos do An- tigo Testamento. A vida cristã, para ser cada vez mais vigorosa, há de saber sempre melhor nutrir-se da Palavra de Deus, tal como o Senhor a comunicou aos homens. É o que, com sua linguagem, parecem incutir os aconteci- mentos mesmos dos últimos decênios. As excavações arqueoló- gicas no Oriente trouxeram ao conhecimento do público impor- tantes dados, que permitiram aos estudiosos como que reviver episódios do Antigo Testamento; as páginas dêste parecem aos eruditos ter sido também recém-descobertas (atesta-o bem o tí- tulo da obra de H. H. Rowley: The Rediscovery of the Olá Testa- ment, Londres, 1945). Ora a impressão de que a antiga Lei se tornou nova no setor das investigações científicas deve suscitar 1 "O Antigo Testamento é como que o cântico novo a significar por Imagens e figuras múltiplas a mesma realidade que o Novo Testamento." (Ruperto de Deutz, séc. XII, ixi Apoc 1.9). PREFÁCIO 13 efeito semelhante no espírito daqueles que consideram os escritos de Israel não apenas como livro de erudição humana, mas princi- palmente como código de Sabedoria sobrenatural: mais clara- mente apreciado na qualidade de LETRA ou doctmentó literário, o Antigo Testamento não poderá deixar de ser também mais valor rizado como ESPÍRITO e ViDA ou mensagem de Deus aos homens (cf. 2 Cor 3,3.6; Jo 6,63). Não seria suficiente, porém, dizer que a situação dos cristãos peregrinos neste mundo só se entende como prolongamento de uma história pré-cristã: a própria consumação final é anunciada pela Palavra de Deus mediante alusões contínuas a tipos e episó- dios do Antigo Testamento. Assim o tema da "Cidade Santa, Je- rusalém nova, trajada como a noiva que vai ao encontro de seu noivo" (Apc 21,2), faz ecoar acordes disseminados por todo o An- tigo Testamento; o quadro do paraíso, lugar de felicidade dos pri- meiros pais (cf. Gên 2), é reproduzido no Apocalipse ou na cena final dos séculos (cf. 22,2-5); a terra "onde correm leite e mel" (cf. Êx 3,8), prometida ao povo de Deus nos inícios da história sagrada, é anunciada também por Jesus aos mansos de coração (cf. Mt 5,5) e só será plenamente concedida quando céu novo e terra nova forem instaurados na criação (cf. Apc 21,1). Assim as figuras esquemáticas do Antigo Testamento rece- bem nas últimas páginas da Bíblia os matizes mais vivos possi- veis e são, já plenamente desabrochadas, ainda uma vez apresen- tadas ã consideração do leitor. As Escrituras israelitas aparecem então qual maqueta (de argila, cêra ou madeira) de edificio fiz- turo, maqueta cujas linhas, longe de ser abandonadas pelo Arqui- teto do mundo e dos séculos, vão sendo reproduzidas lenta e fiel: mente, em proporções mais amplas e com material definitivo, ate se completar a construção (cf. Hebr 11,8-10). No fin dos tempos, e sàmente então, o Antigo Testamento desvendara todo o seu sentido. * * * Uma vez proposta a finalidade destas páginas, resta indicar o roteiro que percorrem. Depois de estabelecido um princípio que é chave para a solução de qualquer dificuldade bíblica (cap. 1), são focalizadas questões de redação e forma literária dos escritos sagrados: o sen- tido da inspiração bíblica (cap. 11), algumas notas características da linguagem semítica ou israelita (caps. 1H e IV). A seguir, aborda-se o conteúdo mesmo do Antigo Testa- mento: Primeiramente, o que há de positivo, a mensagem perene das Escrituras judaicas, é pôsto em relêvo (caps. V e VI). 14 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO Já, porém, que, ao lado das grandes e luminosas linhas, ficam não poucos pontos obscuros, os caps. VII, viir e IX procuram mos- trar o que podem significar as narrativas de pecados "escanda- losos" nos livros que Deus inspirou. Os caps. X, XI e XII tratam de expressões e manifestações da religiosidade do Antigo Testamento que ao leitor moderno pare- cem estranhas ou desprezíveis, por se basearem em pressupostos de medicina e antropologia hoje carecentes de valor: é, pois, consi- derada a doutrina religiosa, sempre válida, que se prendia à uti- lização do sangue, à conceituação das doenças, dos sonhos, e às noções de vida póstuma, entre os israelitas.Mais uma fonte de perplexidade é o caráter maravilhoso que tomam certos episódios narrados pela história sagrada. O cap. Xlii expõe a interpretação que a tais seções dá a exegese católica contemporânea, sem recear o "maravilhoso", mas coadjuvada por melhores instrumentos de trabalho do que os de outrora. iii. O conjunto se encerra com a apresentação de pequeno guia prático para a leitura da Bíblia (cap. XIV). Outros tentas do Antigo Testamento que talvez ainda susci- tem ao leitor dificuldades (de menor vulto, porém) foram deixa- dos de parte, por pertencerem antes à alçada de um comentário do texto sagrado. Abram-se agora os capítulos acima assinalados sob o eco de famosas palavras de Santo Agostinho dirigidas ao Senhor Deus: "Sejam as minhas castas delicias as tuas Escrituras, nem seja eu por elas enganado, nem por elas engane... Dá lugar ás nossas meditações sôbre os mistérios da tua Lei, e não a le- ches áqueles que batem; pois não 101 em vão que quiseste fõs- sem escritos os densos segredos de tantas páginas. .. Eis que a tua VOZ é a minha alegria, a tua voz está acima da abundán- cia das volúpias. Dá o que amo; pois amo, e Jôste Tu que o deste. Não abandones os teus dons, nem desprezes a tua erva que tem séde. Louve-Te eu por tudo que encontrar nos teus livros, e ouça a voz de louvor, e beba a Ti, e considere as ma- ravilhas da tua Lei, desde o principio, no qual lizeste o céu e a terra, até o reino perpétuo da tua Cidade Santa." (Confissões, 11,7.) Rio de Janeiro, maio de 1956. 0 AUTOR. CAPÍTULO 1 O PROBLEMA BIBLICO E SEU PRINCIPIO DE SOLUÇÃO § 1.0 O PROBLEMA É fato inegável que bom número dos católicos de hoje, mes- mo dentre os mais fiéis à vida cristã, não estão familiarizados com a Sagrada Escritura. Esta é, para êles, um livro mais ou me- nos cerrado, onde não têm o costume de procurar o nutrimento da vida espiritual; para revigorar sua piedade, servem-se, com prazer, e quase que exclusivamente, de obras e opúsculos religiosos poste- riores à Bíblia. Tal verificação não pode deixar de impressionar a quem sôbre ela reflita... Todo católico professa que a Bíblia é livro inspirado por Deus para a santificação dos leitores; conseqüentemente, espe- rar-se-ia que fôsse a obra mais lida e explorada pelos cristãos, o primeiro manancial de espiritualidade dos fiéis, pois, dir-se-ia em linguagem popular, "Deus não se terá abalado por pouca coisa. . As páginas inspiradas por Deus certamente não excluem o que os santos e justos escreveram de verídico e belo, mas, quase que por definição, exigem para si a primazia na biblioteca ou na cabeceira do cristão. O fato de que a Bíblia não é devidamente conhecida causa pesar semelhante ao que suscita o esquecimento de alguns cristãos em relação à S. Eucaristia. Em um e outro caso observa-se que os maiores dons de Deus não são suficientemente procurados; são subestimados em favor de objetos e práticas menõs ricos e efi- cases para a santificação. Conscientes de tal anomaiia, alguns núcleos de fiéis têm ten- tado explorar os tesouros da Sagrada Escritura, empreendendo a leitura sistemática da mesma. Contudo, ainda que animados pelas mais sinceras disposições, não se podem furtar, perante certas pági- nas do texto sagrado, à impressão de mal-estar ou mesmo de escân- dalo ou à conclusão de que a Escritura é livro obscuro, difícil de- mais para ser alimento da vida espiritual; ela lhes parece arcaica, alheia às idéias e à terminologia que os cristãos costuitam ter na mente e nos lábios. E, quando se lembra ao leitor, desapontado ou escandalizado, que, para entender as páginas bíblicas, se requerem certas noções introdutórias, o mesmo se sente como que atemo- 16 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO rizado pelas exigências que a técnica exegética moderna lhe pa- rece impor. A solução, em vez de o satisfazer, faz-lhe perder o ânimo, porque a Sagrada Escritura se lhe afigura então objeto de estudo científico antes do que livro de edificação sobrenatural; e, como se sabe, para o estudo erudito, nem todos têm tempo ou aptidão! Um inquérito recém-realizado na França nos dá a conhecer com exatidão as opiniões de fiéis que têm procurado ler a Escri- tura. Vão aqui transcritos alguns dêstes testemimhos, a fim de se perceber mais ao vivo o doloroso realismo do problema: "A Bíblia é objeto de museu, não coisa viva, atual. É livro ante-diluviano, onde os homens do séc. XX nada encontram que possam aproveitar. A história dêsse obscuro povo hebreu parece tão longínqua que se torna meio-irreal. O Antigo Testamento procede de um espírito totalmente diverso do do Evangelho. Ora é o espírito do Evangelho só que devemos procurar. Devo dizer que não li Daniel-Rops, que meu pároco dá cursos de Sa- grada Escritura, que jamais freqüentei. É esta uma forma de resistência... Alguma coisa dentro de mim se recusa a crer que minha vida possa ser ajudada, iluminada, por essas narrativas pré-históricas." "Noto, escreve uma dirigente da Ação Católica, que em minha infância e juventude só me falaram do Antigo Testamento em têrmos nega- tivos: encerra histórias demasiado realistas para poder ser colocado nas mãos de qualquer leitor." "Há na Biblia uma série de histórias horrendas, escreve outra pessoa. Não quero defender a hipocrisia da nossa sociedade contemporânea, que à Biblia prefere a literatura "de água de rosas", ou que só admite a literatura escandalosa quando esta se apresenta com aparato e fama; não obstante, é muito difícil perceber como julgar tódas essas histórias." Eis o depoimento de um grupo de casais: "Salvo algumas passagens esparsas cá e lá, não se compreende quase nada na Sagrada Escritura... A leitura frutuosa da Bíblia exige árduo trabalho literário, ao menos para se recolocar o texto no seu contexto e no seu clima de origem (exegese, estudo dos gêneros literários, de história, de nomes e datas, etc.). Não temos tempo para fazer isto tudo: cada famí- lia se acha sobrecarregada com obrigações profissionais, materiais e educa- tivas. E, mesmo se tivéssemos tempo, não sentiríamos atrativo por êsse estudo árido. Depois da labuta de cada dia, desejamos repouso, paz, calma, oração, e não livros de erudição. Julgamos poder encontrar esta paz, esta respiração profunda em Deus, ou por meio de reflexão pessoal sôbre alguns textos prediletos ou pela meditação de alguns pensamentos familiares ou pela leitura de excertos, densos e curtos, em que as verdades religiosas não se encontram ocultas sob uma multidão de imagens e de fatos, mas se acham luminosamente expressas." 1 Tais depoimentos encontram eco espontâneo fora mesmo da França; são a expressão fiel do que muitas vêzes se pensa também no Brasil. A situação assim esboçada pede ser revolvida, transformada. Contribuir para a renovação, é o que se propõem os capítulos se- 1 Como se compreende, os depoimentos são anônimos; foram colhidos no artigo de Henry, "Les catholiques lisent-ils la Bible?" em La Vis Epiritucue - Stipplément 12 (1950) • 84-98. O PROBLEMA BÍBLICO E SEU PRINCÍPIO DE SOLUÇÃO 17 guintes. Antes, porém, de estudarmos algumas vias de solução do problema, interessa-nos considerar mais atentamente as causas do distanciamento dos fiéis em relação à Escritura. A tal fim, recordaremos alguns fatos da história religiosa moderna. Uma das raízes remotas da desconfiança dos católicos frente à Sagrada Escritura é, sem dúvida, a Ps. Reforma Protestante. No séc. XVI, irrompeu o movimento luterano, que abusivamente fêz da Biblia a principal fonte de seus erros religiosos; a Escri- tura, assiduamente manejada pelos protestantes, passou a ser o arsenal de argumentos dos herejes. Ora, para impedir fôssem seduzidos os fiéis, as autoridades eclesiásticas viram-se obrigadas a lhes restringir de certo modo o uso da Sagrada Escritura: no Conciliode Trento (1545-1563), o texto latino da Vulgata foi de- clarado autêntico e aos fiéis se proibiu a leitura de traduções ver- náculas da Bíblia não acompanhadas de notas explicativas con- formes à doutrina católica. Tais normas (em si muito sábias e oportunas), assim como o continuado abuso dos protestantes, fo- ram suficientes para criar entre os católicos uma atmosfera de pouca "simpatia" para com a Bíblia; esta passou a ser julgada livro perigoso, escola de heresias, manual de protestantismo, obra colocada no Índice dos livros proibidos pela Igreja! ... Tais opi- niões se foram disseminando através dos tempos sem grandes dificuldades, de mais a mais que na Bíblia há realmente expres- sões e narrativas cujo sentido não é evidente à primeira leitura, e que, por isto mesmo, se prestam a mal-entendidos ou escânda- los. A história do séc. XIX veio corroborar a desconfiança. Com efeito, aconteceu que, por todo o século passado, a Bíblia, tendo deixado de ser o manual daqueles que visavam a piedade, se tor- nou o objeto de exploração dos homens de ciência, eruditos muitas vézes sem fé. Descobrindo no Oriente manuscritos e monumentos pré-cristãos, os sábios puseram-se a compará-los com a antiga lite- ratura religiosa de Israel. As suas pesquisas não raro tiveram por resultado ilustrar maravilhosamente o sentido de passagens bíbli- cas obscuras. Muitas vêzes, porém, os estudiosos não se consegui- ram emancipar de preconceitos filosóficos ou racionalistas; quise- ram mesmo confirmá-los por seus trabalhos científicos, e isto os fêz chegar a conclusões estranhas à Biblia, errôneas e ímpias. Em tôrno da Escritura formaram-se escolas diversas, correntes eruditas de pensamento, em boa parte norteadas por protestantes liberais. 2 Ora isto contribuiu naturalmente para que se acen- 2 Principalmente a Escola alemã de Tuebingen, tendo à frente Bruno Bauer (t1882), se distinguiu por suas teses hipercriticas. Fomentou uma onda de cepti- cismo que se propalou pela Holanda (Pierson, Naber), a inglaterra (Johnson, Ro- bertson), a França (Couchoud), a Suiça (Steck), a Itália (Bossi), os Estados Uni- dos da América (Smlth). As figuras de Jesus e S. Paulo foram reduzidas a ficções literárias; aos Evangelhos e aos escritos paulinos se denegou tôda autenticidade; o 18 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO tuasse mais ainda nos católicos a impressão de que a Escritura é livro reservado: reservado aos protestantes ou, se não a êstes, àqueles que têm muita ciência .....livro perigoso a novo título, já qUe, ao estudá-lo no séc. XIX, tantos se perderam nos mais varia- dos erros do liberalismo e da impiedade. Assim a recente história da exegese parecia confirmar o preconceito de que a leitura do texto sagrado constitui um risco para a verdadeira religiosidade; seria necessária muita fé, para não se cair na infidelidade ao ler a Bíblia! A situação se complicou mais ainda em virtude de um terceiro fator. O cientificismo bíblico, inovador, provocou uma reação imediata. Perante a confusão suscitada pelos eruditos, alguns cír- culos católicos se fecharam por completo à utilização dos recentes dados da ciência na exegese bíblica; caíram assim numa atitude simplória, infantil, lendo e expondo as passagens da Sagrada Es-. critura sem muito discernimento das regras de estilo, vocabulário, sem consideração do respectivo panorama histórico, que as pes- quisas modernas desvendaram. Desta atitude resultou em não poucos dos contemporâneos a idéia de que a Bíblia é livro retró- grado em relação à ciência, átimo repertório de histórias para crianças, de modo nenhum, porém, sustento de um espírito escla- recido. Entendida de maneira demasiado humana, fantasista, a Bíblia veio a seróbjeto de desprêzo daqueles mesmos que procu- ravam uma religiosidade elevada, digna do verdadeiro Deus! Pois bem; é no mundo herdeiro de tais preconceitos que se procura despertar hoje um movimento católico de volta à Escritura. Poderá esta iniciativa contar com alguma probabilidade de sucesso? A resposta afirmativa se impõe. O movimento bíblico é portador de um título, ao menos, capaz de lhe assegurar pleno êxito. O homem dos nossos tempos tem acentuada sêde de tudo que é genuíno, autêntico; procura tomar consciência da razão de ser de tôdas as coisas, e rejeita o que lhe pareça destituído de fundamento objetivo, tudo que sej a fruto de mera convenção. Isto se dá também no setor religioso, e entre os próprios católicos. Os nossos fiéis têm procurado praticar a sua religião imediatamente à luz dos grandes dogmas; manifestam o desejo de viver as conseqüências práticas dos mistérios da SS. Trin- dade, da Encarnação e do Corpo Místico, reavivando em si uma mentalidade mais tipicamente cristã, menos superficial ou desvir- cristianismo passou por produto da filosofia religiosa de Alexandria e da sabedoria popular dos romanos! Alguns autores de Tuebingen, mais moderados, admitiam que no séc. 1 a cristandade estava dividida em facção petrina e facção paulina; o livro dos Atos dos Apóstolos, no séc. II, teria tentado conciliá-las; o Evangelho de S. João, depois de 160, seria a expressão da conciliação jã obtida. Assim, por exemplo, Cristiano Baur (t1860). O PROBLEMA BÍBLICO E SEU PRINCÍPIO DE SOLUÇÃO 19 tuada pelas influências não-católicas que sofreu a partir do séc. XVI. 3 Em outros termos: nota-se uma sêde de voltar às fontes da verdade e da vida cristãs, a fim de que o sal da terra seja sal ainda mais autêntico, numa fase da história em que diversas fac- ções humanas se chocam, mobilizando tudo que elas possuem de vital. Ora entre as fontes de revigoramento da vida cristã está cer- tamente a Escritura Sagrada; é por esta e pela tradição oral que a Igreja se orienta. De modo particular se sentem os católicos contemporâneos impelidos a tomar conhecimento da genuína mensagem da Bíblia, por verificarem que se vai multiplicando o número de confissões religiosas (seitas protestantes, espíritas, teosofistas, etc.) que, cada qual do seu modo, falam em nome da Sagrada Escritura, procu- rando deduzir da mesma as idéias mais desconexas possíveis. É, pois, a sêde do autêntico, bem característica da nossa época, que, humanamente falando, permite prever todo o êxito ao movi- mento bíblico contemporâneo. § 2.0 O PRINCIPIO DE SOLIJÇAO Os capítulos que se seguem, visam introduzir os fiéis na leitura do livro sagrado, fornecendo noções que lhes tornem possível des- frutar o rico conteúdo das páginas inspiradas. Impõe-se, porém, uma observação prévia, que será também um princípio geral de solução para as dificuldades acima apontadas. Quem quer que se apreste a ler a Escritura, recorde-se de que uma atitude de fé sobrenatural é condição absoluta para penetrar o âmago da mesma. E isto, por dois motivos: a) o tema da Sagrada Escritura. Através dos seus setenta e quatro variados livros, a Bíblia, em última análise, trata de um só objeto, a saber, as disposições da Providência em vista da salvação do homem. Apresenta-nos em suas fases sucessivas, desde os primórdios até o fim dos tempos, o mistério de um Deus que desce até o homem para elevar o homem 3 O Santo Padre Pio XII, por seus escritos, tem estimulado tão louvável tendência: a encíclica de S. Santidade sôbre a S. Liturgia (Mediator Dei, de 20 de novembro de 1947) apela freqüentemente para os dogmas da Encarnação e da Reden- ção, dos quais deduz conclusões atinentes à vida de oração; é do âmago do dogma que Pio XII deseja se nutra a espiritualidade crista. Os comentadores conside- ram a Mediator Dei como o segundo capitulo de uma única obra que começou com a encíclica sõbre o Corpo Mistico de Cristo (Mystiet Ccrporis, de 29 de junho de 1943). 4 Cc nwuveme,zt irrésistible qui, dans ia mêlée actueile, force la conscicift de chacun d présenter les piêces authentiquesde ia croyancc, amênera les catholi- ques à tire de pias cii pias la Bibie. C'cst da moins cc que nous pouvons espérer lopalement. (Henry, art. cit., 98.) 20 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO ao consórcio de Deus. E - note-se bem - tal descida não é sim- plesmente uma vinda; ela tem o caráter quase paradoxal de uma condescendência 5 de Deus para com o homem, de uma adaptação da Majestade do Criador aos moldes pequeninos do pensamento e da vida da criatura. Essa descida de Deus ao homem é também o mistério de um Amor que, embora soberano e independente, se quer dar derramaildo o bem sôbre os indigentes, mas que é, de diversos rnodos, mal entendido, rejeitado; não obstante, mostra-se invencí- vel na arte de procurar o indigente ingrato. Por tratar de tal tema, a Bíblia tem necessàriamente passagens quase desconcer- tantes para o leitor que a queira julgar inicamente à luz da sabe- doria humana: a sua linguagem é simples e pobre, semelhante à de um judeu antigo; e a figura de Deus 4ue ela apresenta, embora seja inconfundível, está por vêzes adaptada à mentalidade oriental e aos costumes, às tradições dos semitas antigos. Não há dúvida, os planos de Deus as vias pelas quais Éle procura o homem trans- cendem 'infinitam , ente o bom-senso da criatura. Disto se segue que a chave para se penetrar na Bíblia há de ser uma fé coerente no mistério da Encarnação do Verbo, Encarnação que se deu na plenitude dos tempos, mas que tem seus prenúncios nos séculos anteriores (entre os quais, os livros sagrados do Antigo Testamen- to) e que continua a se manifestar em tôda a história do cristia- nismo. A atitude de fé já por si desfaz muitos dos problemas que o con- teúdo e a forma literária da Sagrada Escritura apresentam; tais 'problemas" na realidade não são maiores enigmas do que a pro- posição de um Deus pregado à cruz; quem na fé aceita o aniquila- mento do Filho de Deus até a morte de servo (cf. Flp 2,8), já não se admira diante dasmúltiplas formas da condescendência divina sugeridas pela Bíblia. Assim como não podemos indicar a última razão por que Deus se fêz homem na plenitude dos tempos, assim também não sabemos dizer porque se quis adaptar à linguagem do homem no livro sagrado nem porque quis incluir no seu plano pro- videncial tantos instrumentos rudes e imperfeitos. O Deve-se mesmo observar que, quanto mais a fé é viva e forte no leitor, quanto mais a vida sobrenatural nêle está arraigada, tanto üiais também êle experimenta afinidade com os dizeres da Escri- tura; longe de se deixar desnortear por textos difíceis, tal cristão discerne cada vez melhor o que é contingente e o que é mensagem perene, em cada urna das passagens da Bíblia; é que lhe fala mais claramente o Mestre interior, o próprio Autor das Escrituras. 6 A expressão é de S. João Crisóstomo, que a usa freqüentemente (ei. in .Gen h. 3,3; 15,2; 11,1; in lo 15,1). • O O significado geral do Antigo Testamento e da História Sagrada será objeto de ulterlores considerações no cap. V. O PROBLEMA BÍBLICO E SEU PRINCÍPIO DE SOLUÇÃO 21 S. Gregório Magno (f 604) exprimia esta verdade numa frase inci- siva: "Os dizeres de Deus crescem com aquêle que os lê." Destas considerações decorre que, ao abordar a Escritura, nin- guém se prometerá chegar um dia a compreendê-la como com- preende um livro ditado imicamente pela sabedoria humana; ao contrário, tenha consciência de que encontrará passagens diante das quais, até o fim da vida, deverá simplesmente adorar, os juízos de Deus, renunciando a exercer o espírito de crítica, a proferir al- gum juízo. b) a Escritura, patrimônio da Igreja. A penetração da Sagrada Escritura, sendo função da fé na En- carnação, não pode deixar de estar também 'rntimamente associa- da à fé na Igreja. Com efeito, para os católicos, é na Igreja que o Verbo Encarnado prolonga a sua vida e a sua obra de iluminar e salvar os homens. Quem admite isto, há de reconhecer que à Igreja compete, em última análise, dar a genuína interpretação da Escri- tura; já que pela Igreja Cristo ensina aos homens, é pela Igreja que lhes dá a saber o sentido da Palavra escrita de Deus, que é a Bíblia. Por conseguinte, seria incoerente o católico que procu- rasse estudar a Sagrada Escritura independentemente do magis- tério da Igreja, seguindo apenas as insinuações da ciência ou ào seu bom-senso pessoal. Verdade é que o magistério eclesiástico não dita normas positivas para o entendimento de todo e qualquer texto bíblico, mas ao menos indica verdades de fé às quais nenhum exegeta pode derrogar sem cair no êrro. - É esta fé na Igreja que, dos demais leitores da Bíblia (protes- tantes, espíritas, racionalistas, etc.), distancia radicalmente o ca- tólico. Pode acontecer mesmo que a autoridade da Igreja seja o único argumento decisivo para que o católico tome tal posição exe- gética em vez de outra. ° Sendo assim, tenham os fiéis consciência de que não poderão sempre por argumentos filológicos, arqueoló- gicos, literários provar a protestantes e racionalistas que a inter- 7 Divina eloquia cum Iegente crescunt (in Ez 1, 7, 85). 8 Como, de resto, o mistério da Encarnação do Verbo sempre exigirá a ado- ração reverente dos fiéis. 9 Exemplo notório é o do cânon ou catálogo das Escrituras sagradas. Todos sabem que Lutero não reconheceu como inspirados ou canônicos certos livros que os católicos admitem como tais (assim Tob, Jdt, 1 e 2 Mac, Sab, Rolo, Bar; Hebr, T, 2 Pdr, 2 e 3 Jo, Jud, Apc). Os protestantes apresentam razoes, deduzidas da histôria, para os rejeitar. Os católicos também desenvolvem argu- mentos para os admitir. As razões de uma parte e de outra não bastam para dirimir a questão. Se os católicos mantêm o seu ponto Qe vista, isto se dá, em Última análise, porque crêem na autoridade infalível cio magistério da Igreja. Donde se vê bem que tal crença é básica para o católico que se proponha ler a sagrada Escritura; ela se exerce já na questão de saber em que consiste a Biblia. 22 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO pretação dada pelos católicos a tal passagem bíblica é a autêntica; deverão, pois, não raro, professar que é a voz da Igreja que os leva a optar entre duas explicações que, à luz dos critérios literários, seriam igualmente plausíveis. '° Pergunta-se, porém: não será constrangedora, pouco digna da inteligência humana, esta atitude dos católicos? Não; pode-se dizer que ela é não apenas imposta pela Igreja, mas exigida pela índole mesma da Escritura Sagrada, de sorte que subtrair-se a essa posição vem a ser infidelidade para com o texto mesmo que se quer elucidar. Como isto? É preciso não esquecer que os livros da Escritura tiveram ori- gem ocasional ou esporádica. No tocante ao Novo Testamento, sabe-se que Jesus Cristo comunicou todo o seu ensinamento aos Apóstolos por via mera- mente oral. Por sua vez, os Apóstolos não se preocuparam grande- mente com a redação da doutrina recebida de Cristo; foram-na transmitindo de viva voz pela pregação. " Acontecia, porém, que esporàdicamente os fiéis desta ou daquela região propunham ques- tões particulares (de índole dogmática ou moral) aos Apóstolos ou pediam que lhes enviassem uma súmula escrita do que haviam pregado; atendendo a essas necessidades contingentes é que os Apóstolos e Evangelistas redigiram suas cartas e suas biografias de Jesus (Evangelhos); ao abordar pontos de doutrina em tais escri- tos, de modo nenhum intencionavam expô-los de maneira siste- mática ou exaustiva; apenas elucidavam os aspectos que davam lugar a mal-entendidos entre os fiéis, pressupondo de resto os ensi- namentos que de viva voz haviam transmitido. 12 Daqui se segue 10 Já que os não-catúlicos não reconhecem tal magistério, torna-se por vêzes vão querer argumentar com êles. 11 Isto bem se entende pelo fato de que escrever era arte difícil naantigui- dade; o material respectivo (papiro ou pergaminho) era raro, exigia muito tempo e grande habilidade por parte do autor. Em conseqüência, o magistério se exercia quase ünicamente pela palavra viva. - 12 Haja vista, por exemplo, a maneira como se originaram as duas epísto- las de S. Paulo aos tessalonlcenses. Por volta de 51, o Apóstolo estêve em Tessalonica (Macedônia), onde fundou o primeiro núcleo de cristãos da cidade. Não se pôde, porém, demorar aí tanto quanto necessário para rematar a catequese dos recém-convertidos: um tumulto provocado pelos judeus obrigou-o a procurar refúgio em Atenas e corinto (cf. At 17,1-15). Ora, pouco depois de chegar a Corinto, Paulo teve noticia de que os tessalonicenses 1' / nutriam dúvidas a respeito cIo dia do juízo final e da sorte que então tocaria aos irmãos defuntos; tais dúvidas provocavam agitação entre os fiéis e solicitavam a intervenção do Apóstolo. Foi o que ocasionou a primeira epístola aos tessaloni- censes, em que S. Paulo aborda aspectos da doutrina da segunda vinda de Cristo, em térmos breves, porém, porque apenas intencionava completar a pregação de viva voz. Já que esta primeira carta não bastou para acalmar os ânimos, Paulo, ciente disto, poucos meses mais tarde, escreveu a segunda epístola aos tessaloai- censes, em que de novo só se propunlia desfazer os mal-entendidos dos fiéis, ape- O PROBLEMA BÍBLICO E SEU PRINCIPIO DE SOLUÇÃO 23 que muitos temas da autêntica pregação de Jesus ou do depósito revelado não passaram para o papiro, mas ficaram na tradição meramente oral da cristandade; é preciso mesmo dizer que só pe- quena parte das verdades de fé foi explicitamente consignada por escrito. E, como se vê, esta pequena parte não constitui um bloco fechado e completo em si, mas é inseparável da tradição oral; de- pende desta, pois se originou dentro da tradição oral, como moda- lidade nova da mesma. Semelhantemente, tiveram origem ocasional, esporádica, os escritos do Antigo Testamento. 13 É o que faz que, na exegese da Sagrada Escritura, o primeiro elemento a ser consultado seja o conjunto de ensinamentos que sempre se transmitiram ao lado da Escritura no povo de Deus ou na Igreja; é, em outros têrmos, a tradiçâo oral, que ainda hoje vive entre os cristãos e tem seu autêntico órgão de expressão no niagistério da Igreja. De tudo isto resulta claramente que o recurso à tradição, longe de ser imposição arbitrária da autoridade eclesiástica, é exi- gência decorrente da índole mesma da Sagrada Escritura. Por fim, não se pode deixar de salientar que, embora a atitude de fé seja a atitude primária para uma profícua leitura do texto sagrado, ela de modo nenhum dispensa certo estudo ou esfôrço que vise penetrar e entender o aspecto literário, humano, da Bíblia. Esta é, sem dúvida, um livro divino, portador de mensagem sobre- natural, e, enquanto tal, é o espírito sobrenatural do leitor que a deve perscrutar. Ao mesmo tempo, porém, é obra de autores hu- manos, que, para a redação das páginas sagradas, contribuíram com seu cabedal de cultura, e cultura oriental antiga; ora não resta dúvida de que êste outro aspecto da Escritura só pode ser entendido mediante o recurso às noções de cultura pressupostas pelos autores bíblicos. Tendo em vista as disposições habituais da Providência, ninguém pretenderá apreender a mensagem divina da Escritura, sem prêviamente tomar conhecimento exato do veí- culo humano a que se quis ligar a Palavra de Deus. Errôneo, pois, seria desprezar, em nome da fé ou da piedade, o recurso aos resul- tados da ciência moderna empreendido pelos bons exegetas con- laudo, de resto, para o seu ensinamento oral (cf. 2,5s). É o que explica que estas duas epistolas, certamente inteligíveis para os seus primeiros leitores, apresentem hoje dificuldades exegéticas insolúveis; faltam-nos os elementos da pregação oral que deviam esclarecer o que Paulo diz a respeito da aparição do Anticristo e do Obstáculo que o detém (cf. 2 Tes 2,5s: "Não vos lembrais de que eu vos dizia essas coisas quando ainda estava convosco? Agora sabeis o. que o detém, para que se manifeste em seu tempo.") 15 Isto se compreende já pelo fato de que escrever era relativamente pouco usual entre os antigos. Apenas fragmentos cio historiograf ia ou dos cráculos dos profetas ou das máximas dos sábios de Israel nos foram consignados, como se deduz da critica literária dos livros do Antigo Testamento. 24 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO temporâneos. É claro, porém, que nem todos os leitores da Escri- tura estão obrigados a fazer os mesmos estudos para desfrutar o conteúdo do texto sagtado; as noções introdutórias na Escritura encontram-se redigidas sob forma breve e simples em opúsculos das diversas línguas modernas; tais opúsculos possibilitam o acesso ao livro sagrado mesmo às pessoas que, por suas circunstâncias de vida, menos se possam dedicar ao estudo. Deus houve por bem fazer da sua Palavra a mensagem para todos os homens, não sõ- mente para aquêles a quem é dado o lazer do estudo. Em conclusão: espírito sobrenatural muito vivo, que, de um lado, está pronto a exercer a fé renunciando a julgar as autênticas obras de Deus, mas, de outro lado, nada despreza daquilo que de verídico ensina a ciência, eis o pressuposto de uma leitura frutuosa do livro sagrado; eis o princípio geral para a solução dos proble- mas da Bíblia. CAi'ínJLo II LIVRO INSPIRADO POR DEUS Quem toma em mãos a Sagrada Escritura para dela fazer o seu livro de doutrina e espiritualidade, é geralmente movido por uma crença de importância capital: a Bíblia é a Palavra de Deus, Livro inspirado pelo Altíssimo; goza, pois, de autoridade única. O conceito, porém, de inspiração bíblica não é claro a todos os cristãos. Não poucos se admiram ao verificar que a Escritura se assemelha muito a obras profanas, a documentos da literatura an- tiga; também não vêem como se possa conciliar o conceito de ins- piração divina com o estudo das fontes humanas de um trecho bí- blico, com a crítica literária e paleográfica do texto, com as hipó- teses de acréscimos ou interpolações feitas a determinada passa- gem etc. "Livro inspirado por Deus" parece-lhes ser obra absoluta- mente emancipada das fases de preparação por que costuma passar todo produto literário humano. Ao estudo dêste problema, que é capital em tôda iniciação bí- blica, se dedicará o presente capítulo, abordando primeiramente o conceito de inspiração em si Q 1. 0), depois as relações da Escritura com as conclusões das ciências naturais (§ 2. 0) e da história pro- fana Q 3.0). § 1.0 QUE SE ENTENDE POR INSPIRAÇÃO BIBLICA? Na procura da resposta autêntica à pergunta, faz-se mister remover logo duas opiniões errôneas: a) inspiração bíblica de modo nenhum é revelação, comu- nicação sobrenatural de verdades desconhecidas ao escritor. A ias- piração pode, sim, estar associada a êste outro dom divino, ou seja, ao ensinamento de verdades até o presente ignoradas pelo hagió- grafo. Isto, porém, não ocorre necessàriamente; verificou-se, por exemplo, quando os profetas de Israel, séculos antes de Cristo, consignaram por escrito pormenores da vida do Messias, tais como o seu nascimento em Belém de Judá (Miq 5,1), sua paixão expia- tória (Is 50,4-10; 52,13-53,12), sua transfixão na cruz (Zac 12,10). Tais episódios foram redigidos sob a influência de dois dons sobre- naturais: o da inspiração bíblica, visto que deviam fazer parte da 26 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO Escritura, e o da revelação, pois certamente os autores sagrados não adquiriram essas notícias por estudo ou por via meramente hu- mana. Quando, porém, os evangelistas, a seu turno, consignaram os mesmos episódios (cf. Mt 2,6; 8,17; J0 19,37; At 8,32s), já o fize- ram apenas sob o influxo da inspiração bíblica, não por revelação divina,pois haviam presenciado os fatos ou tinham sido informa- dos por testemunhas abalizadas. De resto, os autores bíblicos apelam freqüentemente para a sua experiência; atestam ter visto ou ouvido o que referem (cf. Jo 19,35; 21, 24; 1 J0 1, 1-3), ter investigado documentos, consultado testemunhas (cf. Lc 1,1-4; 2 Mac 2, 24-32; 11,16-38); citam também as fontes compulsadas (os anais dos reis de Israel, por exemplo, em 1 Crôn 27,24; 29,29; 2 Crôn 9,29; 3 lis 14,19.29; 15,7.23.31. ..). Isto tudo quer dizer que, na Bíblia redigida sob a inspiração divina, va- mos encontrar noções que diríamos "humanas" (não falsas, po- rém), ou seja, proposições verídicas, formuladas segundo os moldes usuais entre os homens da antiguidade; b) se a inspiração bíblica não é necessàriamente revelação, também não consiste em ditado meramente mecânico, tal como se dá entre o autor de uma carta e seu dactilógrafo. Êsse ditado dis- pensaria tôda a ciência pessoal do hagiógraf o, bem como o seu esfôrço de composição literária; o livro estaria, por assim dizer, emancipado de vestígios da personalidade do autor humano. Em têrmos positivos, que é, pois, a inspiração bíblica? Supondo no homem um cabedal de cultura, Deus, pela inspi- ração, ilumina a inteligência do hagiógraf o, de sorte que êste, com a lucidez do próprio Deus, perceba tais e tais verdades, prêviamente adquiridas, serem a expressão autêntica da mensagem que o Se- nhor quer transmitir aos leitores. Essa iluminação faz que noções ineptas a comunicar as verdades intencionadas por Deus apareçam à mente do hagiógrafo como inadequadas, enquanto as proposições aptas a êste fim lhe são apresentadas como tais. Em outros têrmos: a inspiração faz que, com a clarividência de Deus, o hagiógraf o examine a veracidade das noções que êle tem na mente, as escolha e formule de modo a se tornarem a expressão fiel dos pensamentos do Altíssimo. Como se vê, êste processo não implica comunicação de novos conhecimentos, mas de maior certeza (da certeza do pró- prio Deus) na posse das verdades já adquiridas. Além de ilumina- ção da.inteligência, a inspiração importa moção da vontade e das potências executivas do hagiógrafo, a fim de que êste resolva escre- ver & de fato, sem o mínimo êrro, escreva aquilo que percebeu em sua mente ilustrada. - O qué acaba de ser dito, ainda se pode explicitar do seguinte modo: a inspiração bíblica, longe de extinguir a atividade do ha- giógrafo (ou o trabalho de um escritor), ao contrário a suscita; LIVRO INSPIRADO POR DEUS 27 suscitando-a, porém, eleva-a a plano superior, a fim de que produza efeito não simplesmente humano, mas humano e divino. Sim; pelo influxo do carisma, 1 Deus penetra tôdas as faculdades do escritor (inteligência, vontade, potências executivas) e percorre simultâ- neamente com êste as etapas necessárias para a redação de um livro, de modo que a obra daí resultante não apenas contém a Pala- vra de Deus, mas é a Palavra de Deus, que tomou a face, a veste, de palavra do homem. Em conseqüência, a inspiração tem sua se- melhança com o mistério da Encarnação, mistério pelo qual o Fi- lho de Deus apareceu na terra revestido da natureza humana, sem mutilar a esta, antes servindo-se de tudo que lhe pertence e equi- parando-se integralmente (exceto no pecado; cf. Hebr 4,15) aos demais homens. O conceito de inspiração é bem ilustrado pela analogia do homem que, com um pedaço de giz, escreve sôbre o quadro-negro. O efeito produzido na pedra se deve atribuir tanto ao escritor como ao seu instrumento; um sem o outro não o produziria. E nesse efeito encontram-se inevitàvelmente os vestígios de um e outro agente: ao homem se devem atribuir os pensamentos expressos, ao passo que ao giz se deve reduzir a forma visível dos mesmos na pedra (côr, grossura, certa graciosidade, etc.); um só pensamento pode mesmo tomar configurações bem diversas conforme os diver - sos tipos de giz usados. Anàlogamente se relacionam Deus e o hagiógrafo na composição dos livros sagrados: as idéias ensinadas pela obra provêm primàriamente de Deus, Autor principal; todavia a forma literária, a veste, que serve para exprimir tais idéias, é con- dicionada pelo hagiógrafo; o que quer dizer: fica subordinada à educação e às categorias culturais de um escritor humano; mais precisamente: de um judeu que viveu no Oriente há mais de três ou há quase dois milênios atrás, ignorando muita coisa das ciências e das artes que hoje se conhecem, possuindo, não obstante, cultura própria, não desprezível. E note-se que cada hagiógraf o deu os seus pressupostos pessoais, um cabedal, rico ou pobre, de valores huma- nos, para exprimir a verdade divina. 2 Do fato de que a Escritura é inspirada por Deus (nos têrmos acima expostos) segue-se a sua inerrância ou isenção de êrro dou- 1 "Carisma", dom (de Deus) outorgado em favor da comunidade dos fiéis, designa aqui a inspiração. 2 Com efeito, na Escritura depreendem-se os vestígios característicos de um homem de cultura esmerada e trato nobre, como Isai as, um dos ilustres cida- dãos de Jerusalém no séc. VIU a.C.; as impressões de um homem dos campos, simples pastor, como Aniós; as de um temperamento muito sensível e vibrante, como o de Jeremias; os cálculos harmoniosos e simétricos de um cobrador de im- postos, afeito aos números, como S. Mateus; a vivacidade de um Jovem fogoso, pouco preocupado com o estilo, como S. Marcos; a terminologia e a finura de espírito de um médico de formação helenista, como S. Lucas. 28 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO trinário; êste, caso nela existisse, deveria ser imputado ao próprio Deus! Jamais, porém, se poderia esquecer neste assunto uma cláu- sula de grande alcance: já que a inerrante Palavra de Deus toma na Bíblia uma veste humana, não é senão mediante a interpreta- ção desta que aquela pode ser atingida. O que quer dizer, em têr- mos mais claros: as afirmações da Sagrada Escritura só gozam da absoluta veracidade da Palavra de Deus quando entendidas no sentido mesmo que o hagiógrafo, seu porta-voz humano, lhes que- ria atribuir; não, pois, quando interpretadas no sentido que um leitor moderno, em leitura superficial, lhes possa dar. Esta cláu- sula, de resto, se prende a uma regra geral de hermenêutica, a saber: o autêntico significado de uma obra literária só se patenteia a quem procure reconstituir a mentalidade do respectivo autor e as circunstâncias em que escrevia. Embora não raro as palavras de determinado texto sejam suscetíveis de mais de uma interpre- tação, ninguém ousará atribuir indiferentemente ao autor qual- quer das teses conciliáveis com o conteúdo "bruto" de seus vo- cábulos. Daqui se deduz a imperiosa necessidade de discernir o que se chama o "gênero literário" de cada livro da Sagrada Escritura. E que será prõpriamente o "gênero literário"? Esta expressão •designa o conjunto das regras de estilo e o vocabulário que os ho- mens de determinada época ou região costumavam observar quan- do queriam escrever sôbre certo tema; não há dúvida, outras são as normas de redação de um texto de leis, outras as de uma seção de crônicas, outras as da poesia, outras as da história "edificante" ou "moralizante", outras as da profecia, etc., de tal modo que ne- nhun-i leitor interpretaria uma peça jurídica, a qual prima pela precisão de suas palavras e a concisão de suas sentenças, como interpreta uma seção poética, em que os artifícios e as metáforas são de praxe. 1 Ora na Bíblia há livros de leis (o Levítico), poesia (o Cântico dos Cânticos, os Salmos), história estritamente dita (os livros dos Reis, o primeiro dos Macabeus), história edificante ou ornamentada com fim catequético (Tobias, Judite e Ester), profe- cias (Isaías, Jeremias, Ezequiel), diálogos (Jó) ... Sem saber qual o gênero literário com que se defronta, nenhum leitor se pode jul- garautorizado intérprete de tal ou tal seção bíblica. 3 verificando isto, Platão dizia: "Mentiroso como um poeta." (Citação transcrita de Gourbillon, Comment tire la Bible, Paris, 23.) 4 Esta verificação dá claramente a entender que o cultivo de certas disci- plinas profanas, como a filologia, a arqueologia, a história do antigo Oriente, a arte crítica dos textos, etc., não constitui, para a exegese católica, modalidade con- tingente, mas vem a ser tarefa a que as nossas escolas não se podem furtar, como o recomendavam ainda recentemente os Sumos Pontífices. Após Leão XXII (Enc. Providenti.ssimus) • escrevia S. Santidade Pio XII em 1943: "Bem preparado com o conhecimento das línguas antigas e com os recursos LIVRO INSPIRADO POR DEUS 29 O fato de que a inerrante Palavra de Deus está associada aos gêneros literários dos antigos semitas ainda é fecundo para expli- car um fenômeno aparentemente estranho: hoje os autores cató- licos já não atribuem à Escritura proposições que antigos e medie- vais afirmavam em nome da mesma. 5 Isto poderia fazer crer que a Igreja mudou os seus dogmas e pràticamente nega a inerrância da Palavra de Deus. Tal conclusão seria precipitada. Deus e as Escrituras não alteram a sua doutrina; todavia, já que esta só pode ser percebida mediante a consideração da sua face humana ou dos gêneros literários, está claro que, na proporção em que melhor se vão conhecendo os processos de redação dos povos antigos, se vai manifestando deficiente a interpretação que a certos trechos se dava, quando não se possuíam tão esmerados instrumentos de tra- balho. Distinga-se, por conseguinte, entre doutrina divina iner- rante, contida na Escritura, e interpretação falível que os homens podem dar a êste texto. As recentes excavações no Oriente, tendo projetado luz valiosa sôbre as páginas bíblicas levam-nos a dizer que a genuína mensagem das Escrituras, em pontos de importân- cia secundária, não era sempre plenamente percebida pelos intér- pretes antigos. Em nossos dias, pois, o que se dá na Igreja não é mudança de dogma, mudança da Palavra de Deus (o Magistério eclesiástico nunca declarou verdades de fé as proposições dos exe ; getas hoje revogadas); o que se verifica é, antes, o aperfeiçoamento dos métodos exegéticos e conseqüentemente a reforma da interpre- tação de um texto cuja mensagem em si mesma é una e constante. O labor do homem é indispensável para se entender a Bíblia, e êste labor pode, sim, necessitar de remodelação à medida que se desco- brem novos instrumentos de pesquisa. 6 da crítica, aplique-se o exegeta católico àquele que é o principal de todos os seus deveres: indagar e expor o sentido genuíno dos Livros sagrados. Neste trabalho tenham os intérpretes bem presente que o seu maior cuidado deve ser distinguir claramente e precisar qual seja o sentido literal das palavras bíblicas. Procu- rem-no, pois, com tõda a diligência, valendo-se da ciência das linguas, do exame do contexto, da comparação com passos semelhantes; coisas tôdas de que se costu- ma tirar partido na interpretação dos escritores profanos, para tirar a limpo o pensamento do autor... o intérprete deve.., com o auxilio da história, arqueologia, etnologia e de outras ciências, examinar e distinguir claramente que géneros literários quiseram empregar... os escritores daquelas épocas remotas." (Enc. Divino ali jante Spiritu, Acta Apostolicae Sedis 35 [1943] 310. 315.) 5 É o que se verifica principalmente na história das origens do mundo e do homem. o sua Santidade o Papa Pio XII manifestava em nossos dias a esperança deque os tempos futuros nos forneçam ainda novos meios de estudo e, por conse- guinte, o conhecimento mais exato de passagens da Escritura que nos ficam obscuras: "Não é para admirar se não se venceram nem resolveram ainda tõdas as dificuldades, mas há ainda hoje graves questões que não pouco agitam os espíritos dos católicos. Não é caso para desanimar; basta refletir que nos estudos huma- nos sucede como nas coisas naturais; crescem pouco a pouco e não se colhe fruto senao depois de muito trabalho. Assim precisamente sucedeu que a muitas questões 30 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO - e Em suma, dir-se-á: tôdas as vêzes que uma antiga sentença exegética seja comprovada falsa à luz das ciências modernas, reco- nheça-se que o êrro estava contido não na Sagrada Escritura, mas na interpretação que os homens davam a esta. Haja vista o caso de Galileo Gaifiei, cientista que por volta de 1615 começou a ensinar a tese do movimento da terra em tôrno do sol. Muitos de seus contemporâneos julgavam que contradizia à inerrante palavra da Sagrada Escritura; esta, com efeito, lhes parecia Inculcar o geocentrismo, tanto por caúsa do propalado milagre de Josué (Jos 10,7-15) como pe10 fato de que a Encarnação teve lugar na terra, a qual deveria ser, por conse- guinte, o centro do universo. Na realidade, a Sagrada Escritura não ensina tais conclusões de ordem meramente científica; era, porém, errôneamente Interpretada em tal sentido. Por isto é que, depois de momentâneamente condenado pelo Santo Oficio (tribunal eclesiástico que não goza da infali- bilidade própria do magistério universal da Igreja), Galileo foi reabilitado e suas Idéias aceitas por exegetas e teólogos; comprovara-se que errônea era 4etermino4a interpretação dada à Sagrada Escritura, não a Escritura mesma, § 2.0 A SAGRADA ESCRITURA E AS CIÊNCIAS NATURAIS Importa agora abordar mais detidamente o problema parti- cular que acaba de ser insinuado, a saber: embora a Bíblia seja a inerrante Palavra de Deus, entra por vêzes em aparente conflito com as ciências da natureza. Como será isto possível? Antes do mais, observe-se que a finalidade em vista da qual Deus moveu os hagiógrafos a escrever, era estritamente religiosa: o Espírito Santo, pelos autores bíblicos, quis ensinar aos homens £nicamente verdades que importem à salvação eterna, de modo nenhum temas que diríamos profanos ou científicos. Contudo, já que o homem procura a salvação dentro do cenário da natureza, a Sagrada Escritura também alude a conceitos de índole cientí- fica (física, astronômica, biológica, etc.). Estas noções profanas na Bíblia servem de mero veículo; não são visadas em si, mas em função de proposições religiosas. Desta afirmação decorrem im- portantes conseqüências: às proposições religiosas da Sagrada Escritura cabe veracidade absoluta; quanto às referências de outra ordem, podem exprimir vera- cidade relativa, popular, pré-científica, a qual se distingue da vera- controversas, não resolvidas e indecisas nos tempos passados, só nos nossos dias com o progresso dos estudos se encontrou felizmente solução. Pode-se, pois, esperar que tarnbëm as que hoje nos parecem sumamente complicadas e dificíli- mas, com uma constante aplicação virão a ser um dia plenamente dilucidadas." (Ibid., 318.) LIVRO INSPIRADO POR DEUS 31 cidade científica, refletida 4 técnica. Ainda hoje na linguagem coti- diana se diz que "o sol nasce e se põe"; fala-se da baleia como "peixe", do morcêgo como "ave", etc. Estas expressões não deixam de ter fundamento objetivo, pois se baseiam na aparência que os fenômenos realmente apresentam. Mesmo quando o hamem de ciências se refere ao "nascer" e ao "pôr" do sol, todos sabem que não quer ensinar astronomia, mas se adapta ao modo de falar dos contemporâneos, sem os induzir em êrro científico. Ora o Espírito de Deus, ao inspirar os hagiógrafos, não julgou necessário revelar- -lhes a estrutura do universo e dos sêres vivos; permitiu, pois, que formulassem verdades religiosas mediante os conceitos de ciência que estavam em voga no seu povo. Tais noções, embora imper- feitas aos olhos do homem moderno, eram suficientes para designar o mundo visível e suas relações com Deus, como se propunha o ha-gíógrafo; servir-se de outra linguagem seria mesmo tornar a men- sagem religiosa da Bíblia ininteligível aos seus destinatários du- rante muitos séculos. O leitor contemporâneo, portanto, não tomará as alusões da Escritura como insinuação de teses físicas, cosmológica.s, bioló- gicas... .Já que o Livro de Deus nada quer ensinar neste setor, não há choque entre o mesmo e a ciência humana quando se ref e- rem às criaturas materiais. Procedem, sim, de pontos de vista diversos: o cientista considera os elementos em si mesmos, refe- re-os às suas causas próximas e dá-se por satisfeito depois de ter tomado conhecimento da estrutura de cada ente corpóreo; não o interessa ir além disto (a menos que passe para os domínios da Filosofia e da Teologia). A Bíblia, ao contrário, tudo contempla de um plano superior; só a interessa, por assim dizer, a tangente que passa por cada ser visível e o liga com Deus. Por isto é que a linguagem do cientista é precisa, enquanto a da Bíblia, versando sôbre os mesmos temas, pode ser assaz livre, impregnada única- mente de Veracidade popular. Aplicação muito clara desta distinção tem-se na narrativa da cria- ção em Oãn 1,1-2,4a. A cosmologia pressuposta pelo autor sagrado é, aos olhos da ciência moderna, insustentável (a luz seria anterior às estrêlas; haveria uma abóboda cristalina, o firmamento. sôbre a terra) todavia corresponde ao que se ensinava entre os judeus antigos. Ora bastava ao hagiógraf o esta veracidade relativa, pois êle não queria descrever as fases pelas quais o mundo se originou, mas, sim, inculcar que todos os sêres designados mediante "tais" e "tais" noções se relacionam com Deus como criaturas dependentes do Criador, destinadas a refletir, com o homem, a perf&ção do Altíssimo (no caso, como se vã, pouco importavam as fórmulas cosmológicas ou biológicas, desde que indicassem as diversas criaturas que cercam o homem). 7 ótimas são as observações de J. Steinman,n, Les plus ancienfles traditions dit Pentateu que (Paris, 1954), 92: "Os dogmas (na narrativa biblica da criação) são revestidos à moda do Oriente e realçados por poesia maravilhosa. Como se poderiam, aliás, conceber 32 PAiA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO * Outro texto significativo é o de Lev 11,6, onde o hagiógrafo apresenta a lebre como animal ruminante. A classificação é, sem dúvida, deficiente; não carece, porém, de veracidade popular (a lebre está continuamente a mover os rnaxiliares e os lábios) ; e tal veracidade era suficiente para que o Espirito Santo, mencionando-a na Lei, despertasse no israelita uma ati- tude religiosa, ou seja, fidelidade e amor a Deus. À luz dêstes princípios e exemplos, mostra-se inconsistente a supeita de desacôrdo entre a Sagrada Escritura genu'mamente entendida e os genuínos dados da ciência. § 3•0 COMO O ISRAELITA ESCREVIA A HISTÓRIA Os antigos povos do Oriente, por muito elevado que fôsse o seu grau de cultura, pouco prezavam a história... Era assaz gene- ralizada a tese de que os séculos constituem ciclos fechados, os quais se repetem regulamente; acontecimentos já verificados no pretérito se reproduzirão em época futura; a sucessão dos tempos jamais conhecerá remate ou consumação final. Representavam esta concepção recorrendo à figura de uma serpente enrolada, cuja cabeça vem a morder a própria cauda (princípio e fim coincidem no mesmo ponto; todo o movimento que se registra entre os dois têrmos nada de novo acarreta!). Ëste circular contínuo e monó- tono da história era dito "o ritmo do yin e do yang", "a aspiração e a expiração de Brama", "a dança de Siva que produz e destrói sucessivamente os mundos", "a incessante alternância da Discórdia e da Amizade". ° Em conseqüência, a tendência de muitos indivíduos era eman- cipar-se dos.ciclos do mundo presente mediante a ascese, o esque- cimento e o repúdio do corpo e do corpóreo, a fim de passarem a vi- ver num mundo transcendente. as coisas de outra forma? Dizer que Deus concebeu em sua mente as nebulosas e criou a alma humana no fim de uma série de sêres em evolução não esclarece mais o mistério do que dizer que Deus plasmou o corpo do homem servindo-se de barro e plantou num oásis árvores frutíferas. Terão sido ingênuos (raïfs) os escritores javistas? Se o quisermos, sim! Como, de resto, o foram Péguy e Clau- deI! Não falavam os antigos, com sentimentos de compaixão, da barbârie dos escultores do estilo românico ?" 8 "2 certo que nunca haverá desacôrdo real entre o teólogo e o cientista, enquanto um e outro se mantiverem dentro de seus limites e se esforçarem, como diz S. Agostinho, 'por nada afirmar irrefletidamente e não fazer passar por ver- dade bm conhecida aquilo de que não tenham conhecimento claro'." (Leão XIfl, Enc. Provi denttssimus; cf. S. Agostinho, De Genesi ad Iitt. intperf. 9,30; ep. 82,1.) O Testemunhos ou vestlgios desta ideologia oriental encontram-se em: Em- pédocles, Fragm. 30 e 115; Aristóteles, Meteor. 1, 1, c. 3; Da geração e da corrução 1. 2, cap. li; Séneca, Quaestiones naturales 1. 3, caps. 28s; Censorino, De die na- tali 18; Stobeu, Eclogae physicae 1, 1, c. 8; Cicero, Sonho de Cipião 7; sérvio, Co- mentãrjo da Quarta Ecloga de Vergltio, V. 4. LIVRO INSPIRADO POR DEUS 33 Isto explica que os antigos orientais pouco se tenham preocu- pado com historiografia, ou seja, com o relato contínuo e fiel das fases sucessivas da evolução humana. Quando o faziam, visavam apenas episódios restritos ou envolviam as narrativas dentro de concepções lendárias, mitológicas, de sorte que os relatos já não transmitiam a notícia de fatos ocorridos, mas eram, em grau maior ou menor, a expressão da fantasia popular ou de uma religiosidade politeísta, exuberante (nos diversos acervos de ruínas excavados no Oriente até hoje, não se encontrou uma síntese histórica dos tempos antigos; apenas se descobriram elementos -, inscrições, documentos parciais - para se reconstituir a história da Assíria, do Egito, etc.). Ora nesse ambiente o povo de Israel se distingue por ter culti- vado a história, e o ter feito com esmêro tal que só foi superado pelos gregos, mestres da historiograf ia ocidental. É o que reconhe- cem, não sem admiração, os críticos modernos racionalistas: "Dentre todos os povos asiático-europeus, sômente Israel e a Grécia possuem autêntica historiograf ia. Em Israel, que ocupa lugar priviIegado entre todos os povos civilizados do Oriente, a historiografia se originou em época tão remota que causa surprêsa, e produziu logo de início obras de importân- cia... Na Grécia surgiu mais tarde." 10 Com efeito, na literatura dos hebreus, que coincide com os es- critos bíblicos, é delineada a história do povo em traços contínuos e de modo que pressupõe a pesquisa de fontes, a transcrição de docu- mentos dos arquivos orientais ... Quando é possível controlar as afirmações dos cronistas de Israel à luz de textos profanos, aquêles se comprovam fiéis à verdade, condizentes com o que referem ou- tras fontes. 11 A história de Israel assim descrita se desdobra uni- formemente, sob a influência de uma ideologia monoteísta assaz forte para superar crises, aberrações, suscitadas entre os hebreus pela idolatria dos povos vizinhos. E como se explica que os rudes judeus, ultrapassando as cate- gorias culturais do seu ambiente, tenham com tanto esmêro culti- vado a historiografia? 10 E. Meyer, Geschichte der Altertums 14 1. 1921, 227. Pio XII chamava a atenção para tal fenômeno em sua Encíclica Divino ai/Jante Spiritu: "As pesquisas comprovaram claramente que o povo israelita, entre as de- mais nações antigas do Oriente, se distinguia singularmente na arte de escrever a história, e isto tanto pela fidelidade como pela antiguidade das narrativas." (Ibid., 315.) 11 Dentre as várias obras que nos últimos tempos têm proposto o confronto e a concórdia
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